terça-feira, 24 de agosto de 2010

Ulisses: herói do coração e não apenas do cérebro

Por Alessandro Banfi

Ulisses desembarcou também em Rímini. Aconteceu ontem entre os jovens do Meeting, confirmando a sua fama de grande viajante, renovando seu fascínio que, mais uma vez, pode ser definido como verdadeiramente mítico.
Nos pavilhões da feira tomou corpo, graças às palavras de Simone Invernizzi e di Carmine Di Martino, e graças a alguns grandes escritores. O mito e o gênio, de fato, são destinados a se encontrarem. Partindo de Primo Levi, que dedicou um capítulo inteiro do seu diário de Auschwitz – Se questo è un uomo (traduzido para o português como Os afogados e os sobreviventes, pela editora Paz e Terra) – exatamente ao Canto dantesco de Ulisses. Foi Invernizzi quem introduziu a versão dantesca do mito mais fascinante da nossa cultura ocidental.
Ulisses sempre foi, para nós, como que uma pessoa ainda viva, a encarnação mesma da astúcia, da inteligência, do desejo de sair do mundinho particular para descobrir o mundo inteiro. Mas, em Rímini, quem chegou foi o Ulisses dantesco que, sem perder nada do caráter do primeiro Ulisses, o clássico, o “polutropos” [πολυτρόπως, em grego, quer dizer “de diversas maneiras”; ndt] o herói dos muitos rostos, se torna o emblema mesmo da humanidade, o pretexto para cantar “a estatura do homem”.
E a mostra dedicada a este tema, no Meeting (é preciso dizer, entre parênteses, que as mostras, em Rímini, são sempre muito atraentes e os catálogos da Itaca Libri são preciosos e muito adequados para levar para casa algo mais do que uma simples emoção), aberta por Invernizzi e Martino, num encontro emocionante e muito aplaudido realizado no Auditório da feira, foi em si um pequeno evento com leituras poéticas e muito envolvimento. Ulisses, em Rímini, foi resgatado, revelou-se também como um herói do coração, não apenas do cérebro.
O que há nesse mito clássico revistado por Dante que é capaz de tornar a questão assim viva e presente? O já citado Levi e uma outra vítima da violência estatal e ideológica do século XX, o poeta russo dissidente, Osip Mandelstam, refletiram exatamente sobre o XXVI Canto do Inferno. Ambos, quando eram prisioneiros, se refugiaram na recordação daquele terceto: “Considerate la vostra semenza /  Fatti non foste a viver come bruti / ma per seguir virtute e conoscenza” ("Considerai a vossa origem / Não fostes feitos para viver como os animais / Mas para seguir virtude e conhecimento").
Que hino à humanidade, que sintética e magistral descrição da estatura do humano, do seu desejo! Sem se conhecerem, distantes no tempo por alguns anos, duas vítimas do campo de concentração, um de Hitler e outro de Stálin, pensavam em Dante, no seu Ulisses. Agarraram-se a ele. O Pikolo do romance de Levi, Jean Samuel, ainda está vivo e, anos mais tarde, falou a respeito daquela recitação de Dante em voz alta que Levi fez numa manhã fria de Auschwitz: “Era o protesto extremo do prisioneiro de um campo de concentração”.
Invernizzi e Di Martino explicaram bem que a interpretação que, por anos, se fez de Dante não é uma questão secundária. É como se tivessem existido três grandes correntes de leitura desse mito dantesco. A primeira vai de Croce a De Sanctis e vê uma contradição entre o Dante poeta e o Dante cristão-teólogo. O poeta parece amar Ulisses, mas o teólogo, como Di Martino disse de forma muito eficaz, o “castra”. Depois, tem uma leitura religiosa que vê no desejo de Ulisses um exagero mesmo em relação a Deus, o “voo louco” seria uma culpa, também cristã. Enquanto que será a leitura que Dom Luigi Giussani propõe, n’O senso religioso, a única que fará justiça a este mito.
Certamente, o desejo de Ulisses não é uma culpa, mas é o meio, o como, que o leva ao fracasso. Não é uma questão pequena, porque na negação, ou melhor na limitação do desejo, se joga o que há de mais fundamental. “Resecare spem longam”, já recomendava o poeta romano Horácio, inspirando-se em Epicuro. Literalmente cortar a própria aspiração pelo Infinito para não sofrer. Frase que, se tinha um valor antes da Encarnação, se torna uma censura estridente no mundo depois de Cristo.
Não é por acaso que a interpretação que Giussani faz é a mais próxima da de Eliot, de Auerbach, de Singleton e da estudiosa italiana da obra de Dante, Anna Maria Chiavacci, citada ontem em Rímini.
Se tem algo de sedutor no Meeting é isso: propor as grandes questões da vida e da cultura a um público frequentemente jovem, muito vasto. Por isso, Ulisses passou de muito bom grado também por Rímini.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 24 de agosto de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Nenhum comentário: