sexta-feira, 3 de setembro de 2010

“Morrer cantando, quero morrer cantando...”


Editorial do Observador Semanal

Carlos, antes de morrer, entoou seu último canto

A morte chega de repente, afirma o Evangelho, como um ladrão. Não envia um aviso, mesmo que, na maioria dos casos, os sinais de sua visita iminente sejam evidentes. Em nossa clínica, porém, ela tem uma presença contínua. Só em um dos últimos dias cinco pessoas morreram e, entre elas, apenas uma tinha mais de cinquenta anos. Os demais tinham entre trinta e quarenta anos, quatro eram vítimas do câncer e o outro de AIDS. A morte convive comigo vinte quatro horas por dia. Todavia, não me assusta. Porque sua presença me remete – e isso é algo maravilhoso – ao motivo último pelo qual vale a pena viver.
Vejo-a caminhando por todos os quartos da clínica, entre as camas onde, lentamente, meus filhos vão se apagando. Vejo-a pelos corredores, quando escuto o ruído já familiar das rodinhas da maca que acompanha ao necrotério o recém-falecido. Não existe esquina ou detalhe que não me recorde o que disse Cesare Pavese: “a morte virá e tomará teus olhos”.
Existe algo de mais belo do que uma companhia que, em cada momento, tira-o da anestesia que facilmente toma conta da vida? Haverá uma motivação mais humana do que uma companhia que desperta a razão com suas grandes interrogações e consegue que, a cada instante, assumamos o Infinito? Não existe aventura mais humana do que conviver com quem permite viver tendido em direção à eternidade.
Quando estou ao lado de um moribundo, escuto sua respiração difícil que, progressivamente, diminui de intensidade até acabar; quando vejo o moribundo com a boca aberta, como na pintura “O grito” de Munch, como que para, finalmente, permitir que a alma saia do corpo; quando vejo os olhos abertos, de par em par, fixando o desconhecido, o incognoscível, não consigo não me identificar com este meu filho que está se adiantando para preparar-me um lugar no Paraíso.
A última batalha da vida, a decisiva, é duríssima, porque, de seu êxito, depende toda a vida, depende a eternidade. E é bonito ver como a maioria absoluta dos que morrem perderam todas as batalhas da vida, mas ganharam a última e, com ela, a guerra. A morte convive conosco, parece a rainha entre nós, todavia é derrotada sempre porque Cristo Eucarístico, o “Pantocrator”, domina a clínica. Ele mesmo é que acompanha a cada um dos que morrem ao Paraíso.
Enquanto a batalha toma corpo e a morte parece prevalecer, é Cristo o protagonista que, diante de um mínimo de consciência do paciente que lhe permita dizer “SIM”, se apieda, o agarra pela mão e o leva consigo. A evidência deste fato é o rosto sorridente do cadáver. É impressionante ver como a pele, antes enrugada, torna-se jovem, os lábios, antes tensos pela dor, se transformam num sorriso celestial.
“Creio na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém”. É o último artigo do Credo e é o mais esquecido mesmo pelos padres. No entanto, que sentido teriam os demais artigos se este último? São Paulo nos lembra disso em uma de suas cartas: se os mortos não ressuscitam, tampouco Cristo ressuscitou, e nós seríamos o mais loucos do mundo por seguir uma ilusão que não resolve o problema da morte. Porém, Cristo ressuscitou e nós também com Ele. Por isso, ao longo dos séculos, a Igreja sempre nos educou a uma familiaridade com a morte, aquela familiaridade que permitiu a São Francisco dizer: “louvado seja meu Senhor por nossa irmã morte corporal”. A experiência de Francisco acontece diariamente na clínica. Em seis anos, faleceram mais de setecentas pessoas, a maioria delas jovens, depois de um longo calvário.
Carlos, com um estilo de vida boêmio, de origem argentina, passou sua vida vagabundeando por todos os lados, cantando, farreando, distante de Deus. E como a todos os que pensam que a vida é uma farra, durante a qual se colecionam mulheres, se bebe, se faz o que se quer, quando alguma enfermidade chega, a única companhia que lhes resta é a solidão. E assim aconteceu que Carlos, trazido a nossa clínica por umas pessoas piedosas, se encontrou sozinho diante da morte. Porém, estando em nossa companhia, quer dizer, na companhia de Cristo, conheceu o cristianismo, encontrou a Ele.
O dia em que, depois de décadas longe dos sacramentos, pediu a confissão foi uma festa para ele e para todos. A morte perdeu sua cara feia e se tornou desejável, como para um noivo que, depois de muitas lutas, pode coroar seu sonho de amor. Desde aquele dia, retomou o violão e, ainda que todo carcomido pelo câncer, continuou tocando e cantando na clínica até ao último dia, tornando-se a alegria de todos. Alguns dias antes de morrer, compôs uma canção maravilhosa, através da qual expressou toda a sua paixão por Cristo e a espera gozosa de encontrá-Lo. Música e palavras suas.
O título de sua última canção descreve a modalidade com a qual se preparou para morrer e morreu: “Morrer cantando”

“Envolveu-me a escuridão, com seu escuro manto,
tive uma sensação de medo que fez meus passos tremerem
tratei de me afastar e fugir de suas mãos,
mas uma luz potente me arrebatou num choro.

Veio ao meu encontro e iluminou meus anos
voltei a dizer: Cristo, de olhar manso,
senti um amor diferente, a que abracei chorando,
depois da noite sei que existe algo.

Morrer cantando, quero morrer cantando,
Para encontrar a Cristo
quero morrer cantando.

Aquela escuridão que eu temia tanto
Era uma luz viva, era Deus que se aproximava,
um encontro amigo que me está dando
felicidade eterna, alegria e canto.

Já estou na luz e, com Cristo, a salvo
Meu futuro, um presente que me está passando.
Não fujam da morte, não temam seus dentes
Temam apenas perder-se sem Cristo, irmãos.

Morrer cantando, quero morrer cantando,
Para encontrar a Cristo
quero morrer cantando.

Recordo-me do momento, alguns dias antes de morrer, em que, com um esforço grande, colocando todas as suas energias, quis se despedir, presenteando-nos com este canto que testemunha a mudança de sua vida. Uma mudança que aconteceu graças ao encontro com Cristo, aquele Cristo que havia permanecido no fundo de sua memória, como um tesouro que espera ser reconhecido. Toda a clínica vibrou de comoção porque era evidente a vitória de Cristo.
Aquela mesma comoção que vivemos alguns dias atrás, quando Maria, uma mulher brasileira, sozinha, de origem italiana, que, antes de morrer pronunciando o doce nome de Jesus, pediu um sorvete. “Desejo saborear um sorvete antes de morrer”, nos disse. E, enquanto a enfermeira foi comprá-lo, lhe pedi: “Maria, daqui a pouco você vai estar no Paraíso. Peço que você cumprimente a Jesus, José e Maria e a Santíssima Trindade por mim”. E ela: “Sim, padre”. Uma coisa do outro mundo, neste mundo. Que alguém possa se despedir dessa maneira, quando cotidianamente até mesmo a palavra “morte” é censurada. Quando a enfermeira chegou, conseguiu saborear um pouquinho do sorvete, seus olhos já prontos para se apagarem se iluminaram e, pronunciando o doce nome de Jesus, se foi para o céu.
Sua vida tinha sido uma aventura dolorosa, como é a vida de todos aqueles que morrem na clínica, porém o final foi glorioso. O que pode haver de mais bonito do que morrer saboreando um sorvete e dizendo “Tu, meu Cristo!”? Sim, “Tu, meu Cristo!”, porque quando a pessoa chega aqui, normalmente, não conhece a Jesus. Porém, com o tempo, graças à ternura do pessoal (todos, sem exceção, sentem-se abraçados por Cristo), a liberdade de cada paciente adverte a urgência de pronunciar mesmo com palavras “Tu, meu Cristo!”.
É algo paradisíaco ver como, quando pronunciam o doce nome de Jesus, toda a sua personalidade vibra de comoção até às lágrimas. Não é que desapareça a dor, ou reduzamos a dose de morfina, mas é que o nome de Jesus, apenas pronunciado, faz o milagre de devolver a cada um a paz e a serenidade a que aspira o coração.
Amigos, para mim, é uma graça indizível ver, todos os dias, a potência do nome de Jesus... e sinto uma dor muito grande no coração quando vejo quanta falta de fervor há em nós, quão distantes estamos do que significa vibrar pelo simples fato de pronunciar o nome santo de Jesus. Para mim, é uma doçura e uma fortaleza únicas, desde o momento em que desperto até a hora de dormi, afirmar continuamente “Tu, meu Cristo!”, não apenas com o pensamento como também com a boca. Nesta consciência de ser propriedade de Cristo, brota a liberdade de aceitar minha dor e a dor de todos.
Olhando como morrem meus pacientes, com os olhos fixos no Mistério, para cima, para o Infinito, não posso não sentir que esta é a única postura totalmente humana, porque o homem é feito para o Infinito. Recentemente, me comovi quando Etsuro Sotoo, visitando nossa nova clínica, me disse: “Padre, é importante que o teto de cada quarto não seja branco, mas como o belíssimo céu do Paraguai, azul com linhas de nuvens, para que o paciente, quando estiver por morrer, esteja olhando para o céu, sinal do que é o Paraíso”.
E é verdade, porque todos morremos de morte natural, olhando para o Infinito; e quando o Infinito, que se fez carne, é a vida de quem assiste o moribundo, o moribundo mesmo, ao escutar “Tu, meu Cristo!”, mudará sua atitude, às vezes cheia de angústia, em uma entrega total a Cristo e morrerá saboreando a paz de quem alcançou a meta depois de tanto navegar. 
“Sob o denso azul
do céu, uma ave marinha voa;
nunca descansa, porque todas as imagens têm escrito:
mais além”.
Como são verdadeiros estes suspiros dramáticos de Montale, e que intensidade de esperança vibra em nós só de ouvi-los! Meus pacientes tocam já com a mão aquele “mais além” a que tudo remete.

Padre Aldo

* Extraído do Observador Semanal, do dia 03 de setembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Nenhum comentário: