quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Eis porque o nosso “terrível” desejo de felicidade não é vão


Entrevista com Fabrice Hadjadj, feita por Federico Ferraù

“Basta encostar a mão contra a própria garganta para sentir a pulsação do sangue nas nossas artérias. É o sinal de que a nossa vida deve se tornar como que um rio: entrar em relação com a fonte através de todos os córregos da nossa história e fluir sem parar numa oferta”. Nesta longa entrevista, o filósofo francês Fabrice Hadjadj, hoje no Meeting de Rímini para apresentar o livro de Dom Giussani L’io rinasce in un incontro, fala com o Il Sussidiario sobre o coração humano, continuamente em equilíbrio entre o absurdo e a graça.

“Aquela natureza que nos impulsiona a desejar coisas grandes é o coração”. Segundo o senhor, em que sentido o título do Meeting deste ano é um desafio para os nossos dias?
O desafio é reconhecer em si um desejo que não vem de si. O coração é muito surpreendente, sobretudo para um individualista. Não falo em nível espiritual ou sentimental. Falo exatamente do miocárdio. Temos, em nós, este órgão que bate por um tempo que não decidimos, uma espécie de maestro a quem está ligada toda a nossa vida fisiológica. Trata-se de oxigenar o nosso sangue certamente, o que associa o coração à respiração, o “poema da respiração” diz Rilke, visto que a inspiração e a expiração nos outorgam este ensinamento admirável: a vida não está na independência, no isolamento, na autonomia, está num movimento (um teólogo diria que está em uma “pericoresi”) onde nunca se para de receber e de dar. Eis que se reduzem a nada, imediatamente, todas as pretensões de independência!

Dom Giussani diz que o simples fato de que o nosso coração existe é já uma provocação.
Ele tem razão. Basta encostar a mão contra a própria garganta para sentir a pulsação do sangue nas nossas artérias. É o sinal de que a nossa vida deve se tornar como que um rio: entrar em relação com a fonte através de todos os córregos da nossa história e fluir sem parar numa oferta. A promessa se encontra em Isaías: Eis que vou fazer a paz correr para ela como um rio (Is 66, 12). E também o Evangelho: Quem crê em mim, do seu interior manarão rios de água viva (Jo 7, 38). Certamente esta promessa pode dar medo. Alguns prefeririam reduzir-se aos seus pequenos barris de água parada. Em todo caso, o que é certo é que o cristianismo não é uma série de normas sufocantes, é ao contrário o “desejo de coisas grandes”, de tal forma grandes que superam a capacidade humana. Para acolher é preciso aceitar ser dilatados, ser até mesmo rasgados.

É mesmo necessario chamar a atenção da “natureza” para definir o coração do homem?
O termo “natureza” vem de “nascer”. Nascer é ter recebido a existência e, portanto, não ser a origem do próprio ser. Ter uma natureza é ter recebido, no nascimento, uma certa estrutura de existência, um dinamismo, uma tendência que está em mim e da qual eu não sou o artífice. É aquilo que dissemos sobre o coração: o centro do meu ser não está sob o meu controle, aquilo que tenho de mais íntimo me remete a um outro que não sou eu. Eu me desperto com os meus desejos: beber um café, folhear o jornal, ganhar mais dinheiro, beijar Caterina Murino, mas há em mim também outra coisa: este terrível desejo de felicidade.

Por que o senhor o chama “terrível”?
O dinheiro pode dar-me a felicidade? Caterina pode fazer isso? Se este desejo de felicidade não encontra vias de escape, acaba por me fazer destruir aquilo que eu, no início, havia desejado: como esse algo não é a “coisa grande”, acabo por jogar fora ou dizer isso na sua cara. Ou então me destruo a mim mesmo: como me contento com coisas pequenas, acordo a elas um valor que não têm e sufoco o meu coração. Atenção, não quero dizer que Caterina Murino, criada a imagem de Deus (e que imagem!), seja algo de pequeno. Mas, para poder estar de acordo com o meu coração, seria preciso que Caterina fosse cheia de graça, de verdade, de eternidade até (como a sua frágil beleza me deixa entrever). Seria necessário que Caterina fosse divina. Não posso fazer nada a este respeito. Está na minha natureza (na natureza de todo homem por pouco que escute o próprio coração). Dante entendeu isso muito bem. Há em nós o desejo da Coisa Grande que é Deus mesmo. Mas este desejo de Deus não deve nos levar a desprezar as criaturas (desprezar as criaturas seria necessariamente desprezar o seu Criador). Pelo contrário: o desejo de Deus nos faz desejar a divinização das criaturas. Portanto, desejar “coisas grandes” não significa rejeitar uma Beatriz anã, nem fantasiar uma Beatriz de dois metros e quarenta, mas desejar uma Beatriz tal “che Dio parea nel suo volto gioire” [“que Deus pareça, no seu rosto, se alegrar” (Paraíso XXVII, 105)].

Hoje em dia, estamos convencidos de que as ideias “fortes” não têm nenhum direito ou poder sobre nós. No melhor dos casos, se elas têm algum, é reservado ao âmbito privado, não ao público. É o mesmo também para o cristianismo? Deve ele limitar a sua “pretensão” sobre o homem?
Afirmar que as ideias fortes não têm nenhum poder sobre nós, eis aqui uma ideia, e uma ideia fraca. O homem não é um animal governado pelos instintos. Aquilo que, para o homem, cumpre o papel do instinto é a sua razão. Ele é sempre orientado por ideias, boas ou más, ideias de todas as formas (e de todas as falsificações). O homem inicia, portanto, sempre com o ser um ideólogo (pelo menos depois do pecado original). Utiliza termos abstratos. Por exemplo, diz “tudo bem”. Assim, numa conversa qualquer. Mas, “tudo bem” é algo de abstrato e enorme, é uma questão imensa na sua boca e ele não se dá conta porque é um ideólogo. De fato, deveria sair da ideologia e ir em direção à realidade, ou seja, perguntar-se: o que é verdadeiramente, realmente, “bem”? Trata-se simplesmente de tomar consciência das palavras que já estão ali, na nossa língua, entre as nossas palavras mais cotidianas e descobrir o seu peso concreto.

Qual é este peso?
Dom Giussani amava repetir estas palavras do salmista: Tu, Senhor, és meu único bem (Sl 16, 2). Esta é a concretude! Isso traça um caminho, afirma concretamente no que consiste o meu bem, e me conduz a atos que empenham a minha vida. Mas esta palavra possui algo de exorbitante. É a razão pela qual Dom Giussani acrescentava: “Uma frase assim carregada e assim peremptória, assim definitiva e totalizante, que a pode repetir?” (L’io rinasce in un incontro, p. 59).

E quanto ao que diz respeito à esfera privada, que goza de um direito absoluto?
Quanto ao que concerne à “convicções privadas”, trata-se de uma invenção burguesa: o pequeno possuidor quer afirmar que possui uma propriedade que é mesmo sua e que não pertence a nenhum outro. Mas, ao mesmo tempo, acaba por se dar conta: esta propriedade é morta se ele não acolher ninguém nela. Cada espaço privado se realiza somente na hospitalidade. E assim se torna público. Pelo contrário, peguem um jardim publico: ele assume todo o seu valor quando, por exemplo, vocês estão com uma garota, sentados num banco, ou com um velho amigo, numa conversa íntima. Cada espaço público se realiza somente no encontro entre pessoas. E assim se torna privado. Trago esses exemplos para mostrar que a separação público/privado é uma ficção muito artificial. É literalmente uma mutilação, visto que tal ficção declara: aquilo que vocês têm em no coração não deve ser gritado nas praças. Mas, se não há mais comunicação entre seus corações e suas palavras, quer dizer que não são mais homens. São uma carpa. E acabam por abocanhar todos os anzóis.

O senhor escreveu que a pretensão cristão é “tomar o poder sobre o teu coração, ou seja conquistar-te sem danificar nem a tua inteligência, nem a tua vontade, mas, pelo contrário, reforçando-o”. Como podemos viver a “pretensão” total da verdade encontrada sem renunciar a nós mesmos?
A resposta se encontra na sua pergunta: só existe encontro se existirem dois seres bem distintos. Então, encontrar a verdade não é uma alienação mas uma realização. Se lhe digo “Deus quer tudo de você”,o senhor se assustará porque comparará o desejo de Deus com o seu, e o seu é estreito, possessivo, redutivo. Mas, repito-lhe o que eu disse: “Deus quer tudo de você”, sublinho, “tudo de você”, ou seja você mesmo completamente, sem mutilações, sem diminuições, sem alienação, e portanto você mesmo com a sua alma e o seu corpo, com a sua inteligência e a sua vontade, com toda a sua liberdade, e até mesmo com uma liberdade infinitamente maior, porque desembaraçada de tudo o que pode haver de impedimento. Isso nos reconduz às palavras do salmo que se canta nas vésperas do domingo: O Senhor estenderá desde Sião teu cetro poderoso: Dominarás, disse ele, até no meio de teus inimigos (Sl 109, 2). Se forço o inimigo, se o dobro mesmo que seja com uma pequena sedução psicológica, dominarei talvez o seu corpo, mas não o seu coração. Dominar até o coração é a pretensão mais terrível e, ao mesmo tempo, a intenção mais doce. Porque não existem outros meios para dominar até o coração senão fazer-se amar livre e inteligentemente, ou seja, respondendo às “exigências do coração”. O catecismo da Igreja católica o diz claramente: “Viver no céu é estar com Cristo. Os eleitos vivem nEle, mas conservando, mais, encontrando a sua verdadeira identidade, o seu próprio nome” (Catecismo, §1025). Por que isso? Porque “o eu renasce e renasce em um encontro”. Porque eu sou eu mesmo apenas na minha relação com o meu Criador e, através dEle, com as outras criaturas. Ser originais não é ser excêntrico. É voltar-se para a origem e viver sempre no jorro da fonte.

A maravilha parece ser a dimensão mais adequada à forma original da nossa razão. Como podemos reencontrar esta dimensão para salvar a razão?
A grandeza da inteligência é efetivamente a de saber sentir-se estupefata. Atenção: sentir-se estupefata não significa ser estúpida. De fato, aquele que é verdadeiramente estúpido é, pelo contrário, aquele que crê saber tudo, que tem resposta para tudo. Quem se sente estupefeito coloca-se em posição de escuta e aprende. Um provérbio hebraico diz: “Quem é sábio? Quem sabe aprender de cada coisa”. Há, portanto, um vínculo entre estupor e estupefação. É aqui – estupefazendo-se, sentindo-se estupefeita – que a razão se abre a tudo o que a supera, àquilo que é encontro vivo, que está para além do cálculo (mas não desprezemos o cálculo, esta capacidade de pesar o real que é também um mistério – devemos apenas submeter o cálculo ao louvor, como na música). O problema não é, portanto, como fazer para redescobrir esta dimensão.

Por que o senhor diz isso?
Porque não se trata de fazer. Se nos limitamos ao “fazer” permanecemos no âmbito do nosso poder, das nossas capacidades, e nos fechamos ao estupor. Não se trata de fazer, mas de ser. O ser é, de fato, no fundo, estupor. Para dar-se conta disso é preciso saber-se abandonar ao repouso, viver – pelo menos um dia por semana, um momento no dia – a bênção do shabbat, que se poderia também chamar a nossa essência dominical. Parem tudo (Parai! Sabei que eu sou Deus, diz o salmo 45) e olhem uma flor, uma paisagem, escutem um quarteto de Mozart (ou de Haydn), contemplem o rosto de uma criança... Admirem mesmo uma garrafa, uma simples garrafa, como Morandi sabe admirá-la, não com uma genialidade especial, mas como um respiro amplo, com o coração aberto e disponível (o que é ainda melhor do que a genialidade), e eis que o mistério aparecerá, a incompreensibilidade da presença de uma garrafa... Mesmo a menor das garrafas é uma garrafa jogada ao mar, que esconde uma mensagem do criador de todas as coisas.

No ano passado, o senhor concluiu a sua entrevista no Il Sussidiario com estas palavras: “É preciso que a ação começa com um gesto de gratuidade. Se esta gratuidade não está presente, nunca estarei na direção do ser”. De onde pode vir esta gratuidade?
Não me lembro de ter dito isso. Talvez porque era exatamente um “gesto de gratuidade”... A gratuidade pode ter dois sentidos. Há a gratuidade do absurdo. E há a gratuidade da graça. Tudo aquilo que fazemos, todos os nossos cálculos, todos os nossos projetos, devem desembocar em uma ou outra dessas gratuidades. Encontrou um bom trabalho, e depois? Casa-se com uma mulher, e depois? Tem filhos, e depois? Ou não há nenhum sentido e você se encontra na gratuidade do absurdo. Ou então, tudo isso tem o sentido de um amor, um amor que dá a vida, e você se encontra na gratuidade da graça. Ou uma ou a outra. Mas antes ainda de entender a gratuidade quanto à finalidade da existência, ela pode ser entendida a partir da sua presença mesma: como é possível que eu esteja aqui? De onde me vem esse dom? É um presente envenenado? Também aqui: ou reconheço a graça de ser, ou então acho absurda a existência (mas nesse último caso me contradigo, porque desfruto da existência para desprezar a existência – esta é a minha própria absurdidade). O ato de render graças é o fundamento de toda ação porque, se não reconheço a graça de ser, então tudo aquilo que poderei fazer será da ordem do desprezo do ser, da regressão, da negação. Isso poderá assumir uma aparência humanista, apresentar-se como uma utopia de sociedade perfeita; na verdade, já que não vejo a existência como uma graça, essa utopia será o triunfo do nada: o seu fundamento será o ressentimento. Sob o pretexto de construir um super-homem ou uma super-sociedade, o empreendimento seria a destruição da sociedade e do homem.

O senhor vai apresentar o livro de Dom Giussani L’io rinasce in un incontro. O que lhe sugeriu a leitura desse livro? O senhor compartilha a escolha do título?
Saibam que se eu encontrei o pessoal de CL é porque aquelas pessoas encontraram afinidade entre o meu modo de colocar as questões e o de Dom Giussani. Eu não o conhecia. Travei contato com sua obra apenas há dois anos atrás. Depois, me pediram para fazer a apresentação, em Paris, do livro É possível viver assim? (em abril de 2009). Naquele momento, pude experimentar aquela afinidade de pensamento. Aquele foi um verdadeiro encontro, precisamente. Fiquei tocado com a simplicidade, a força, a tangibilidade concreta das suas palavras. Assim, a leitura de L’io rinasce in un incontro foi a continuação da mesma onda. Cada vez que leio Dom Giussani não é que encontre ideias novas, porque temos o mesmo enraizamento em Santo Tomás e na poesia e, sobretudo (eu devo isso ao teatro), um senso análogo do drama. Não, aquilo que eu acho, o que é muito melhor, é a novidade das ideias que eu já possuo, uma espécie de energia, de envio missionário, de impulsão no sentido de comunicar e viver na “dramaticidade e letícia...”. Quanto ao título do livro, tem a sua evidência. Uma evidência que imerge na profundidade de Deus. O que sabemos nós dessa profundidade? Deus é Trindade. Ele é único em três Pessoas. O Pai gera o Filho na comunhão do Espírito. De tal forma que Deus mesmo é eternamente nascimento e encontro. Um nascimento e um encontro infinito...

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de agosto de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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