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segunda-feira, 12 de abril de 2010

O abraço de Cristo, maior que as feridas

Por Dom Filippo Santoro

O momento presente, marcado pela acirrada discussão sobre a pedofilia, é uma grande ocasião de purificação e de conversão da Igreja, para poder comunicar a todos, com transparência, o abraço da justiça e da misericórdia de Deus , que é a razão pela qual ela existe.
O papa Bento XVI na Carta aos católicos na Irlanda, com grande humildade e coragem, afirma que: “para se recuperar desta dolorosa ferida, a Igreja na Irlanda deve em primeiro lugar reconhecer diante do Senhor e diante dos outros, os graves pecados cometidos contra jovens indefesos. Esta consciência, acompanhada de sincera dor pelo dano causado às vítimas e às suas famílias, deve levar a um esforço concentrado para garantir a proteção dos jovens em relação a semelhantes crimes no futuro” (n. 1).
E aos sacerdotes e religiosos que abusaram dos jovens diz: “deveis responder diante de Deus onipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos” (n. 7). Por isso, indica-se uma perspectiva que, com toda clareza, submete estes crimes, no futuro, ao juízo dos tribunais eclesiásticos e civis. “Ao mesmo tempo, a justiça de Deus exige que prestemos contas das nossas ações sem nada esconder. Reconhecei abertamente a vossa culpa, submetei-vos às exigências da justiça, mas não desespereis da misericórdia de Deus” (n. 7).
E aos bispos acrescenta que “estabelecessem a verdade de quanto aconteceu no passado, tomassem todas as medidas adequadas para evitar que se repita no futuro, garantissem que os princípios de justiça sejam plenamente respeitados e, sobretudo, curassem as vítimas e quantos são atingidos por estes crimes horríveis” (n. 5).
“Deve-se admitir que foram cometidos graves erros de juízo e que se verificaram faltas de governo. Tudo isto minou seriamente a vossa credibilidade e eficiência. Aprecio os esforços que fizestes para remediar os erros do passado e para garantir que não se repitam. Além de pôr plenamente em prática as normas do direito canônico ao enfrentar os casos de abuso de jovens, continuai a cooperar com as autoridades civis no âmbito da sua competência. Só uma ação decidida, levada em frente com total honestidade e transparência, poderá restabelecer o respeito” (n. 11).
Algo mais claro que isso não poderia ser dito e a natureza emblemática desta carta se aplica não apenas à Irlanda como às outras nações no mundo onde estes crimes foram cometidos, manifestando o firme propósito de punir com rigor os culpados e de não esconder absolutamente nada.
Mas, com tudo isso, a onda midiática não se declara satisfeita, porque o seu objetivo é abater a autoridade moral do Papa e da Igreja. A culpa de alguns membros, uma pequena minoria, tiraria a autoridade de toda uma instituição que, atualmente, é a única que lembra, sem equívocos, a voz da consciência e a defesa total da vida e da dignidade das pessoas? Quer-se atingir a Igreja enquanto tal, na sua capacidade de falar aos homens e às mulheres de nosso tempo. É claro que os mesmos que acusam são aqueles que pregam qualquer liberdade e justificam tudo em matéria de sexo.
Essa é a tentativa de eliminação da consciência do bem e do mal deixando tudo ao arbítrio do homem e do poder. E, no fundo, trata-se da eliminação de Deus, não de um deus construído pelo sentimento e pelas opiniões - esta divindade é largamente acolhida pela mentalidade dominante -, mas de um Deus que é diferente de nós: o Altíssimo que quis se manifestar na nossa história como companheiro e salvador.
Ele já nos doou tudo, nos libertou. Não compactuou com o pecado, mas o perdoou por meio de um amor muito maior. O que não se tolera, em certa mentalidade dominante, é a Presença de um amor total, que incide e que transforma a vida e que lembra a todos o valor objetivo da consciência moral.
A partir de pecados detestáveis de alguns membros da Igreja, a partir de faltas morais, se quer destruir a origem da moral que é a presença do infinito no coração do homem, que a Igreja prega e testemunha por meio do dom generoso e total de muitos filhos seus, sacerdotes e religiosos. Chega-se a associar celibato e pedofilia, quando muitas sérias pesquisas científicas demonstraram que não tem que ver uma coisa com a outra, e que a maioria destes delitos acontece em família. Assim, se quer atingir todos os padres e negar a possibilidade de uma doação integral, isto é virgem, para Cristo e para o bem dos irmãos e irmãs.
Mas esta tentativa violenta de desmoralizar a Igreja não pode tirar a presença objetiva do bem maior que existe na História: o abraço de Cristo à humanidade ferida. A onda midiática e os gravíssimos erros não podem vencer o bem mais precioso que a Igreja tem e comunica: a esperança e a vitória da ressurreição. Esta é a fonte da qual partir novamente com humildade, transparência e rigor no serviço ao mundo de hoje.
Dom Filippo Santoro
Bispo de Petrópolis

* Extraído do site da Agência Zenit, e revisado por Paulo R. A. Pacheco.

Contra os escândalos, Bento prepara a “revolução” dos mestres e dos santos

por Massimo Introvigne

A carta de Carrón nos lembra que os padres pedófilos existem. A muitos de nós agradaria que se tratasse apenas de um sonho feio, ou de calúnias da imprensa laicista. Não é o que escreve Carrón, e não é o que nos ensina o papa. Na magnífica Carta aos Católicos da Irlanda, de 19 de março de 2010, Bento XVI denuncia com voz fortíssima os “crimes horríveis”, “a vergonha e a desonra”, a violação da dignidade das vítimas, o golpe dado à Igreja “a tal ponto ao qual nem sequer séculos de perseguição tinham chegado”. Em nome da Igreja “exprime abertamente a vergonha e o remorso”.
Certo, o papa enfrenta o problema do ponto de vista do direito canônico, confirmando com força que foi a sua “aplicação malograda”, algumas vezes da parte de bispos, não as suas normas como uma certa imprensa laicista pretenderia, a causar a “vergonha”. Certo também, o papa acena para o fato de que o problema da pedofilia não toca apenas – e tampouco principalmente – os sacerdotes, de forma que não é nem malícia que certos setores da mídia concentram o foco sobre a Igreja e sobre o pontífice. Mas, o papa, assim como Carrón, se coloca, em última instância, em um plano diferente. Fala da vida espiritual dos sacerdotes, cujo descuido está na raiz do problema, e para o qual pede que se retorne através da adoração eucarística, das missões, da prática frequente da confissão. E o retorno a Cristo não é apenas para os padres: é para todos nós.
Como uma tragédia tão terrível pode ter acontecido? Aqueles que os americanos e os ingleses chamam the Sixties (“os anos 1960”) – e nós, concentrando-nos sobre o ano emblemático, “o 1968” – aparecem sempre mais como os anos ou o tempo de uma profunda mudança de costumes, com efeitos cruciais e duradouros sobre a religião. Aconteceu, de resto, um 1968 na sociedade e também um 1968 na Igreja: exatamente o ano de 1968 é o ano do dissenso público contra a encíclica Humanae Vitae de Paulo VI.
Com muita perspicácia, um pensador católico brasileiro, Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995), falou de uma “4ª Revolução” – sucessiva à Reforma, à Revolução Francesa e à Soviética – mais radical do que as precedentes, porque capaz de transtornar não apenas o corpo social, mas o corpo humano. Na Igreja Católica, não houve consciência suficiente do alcance esta revolução. Pelo contrário, ela contagiou – explica, na sua carta, Bento XVI – “também sacerdotes e religiosos”, determinou “desentendimentos” na interpretação do Concílio, causou “insuficiente formação, humana, moral e espiritual nos seminários e nos noviciados”. Neste clima, certamente, nem todos os sacerdotes insuficientemente formados ou contagiados pelo clima que se seguiu aos anos 1960, e muito menos um percentual significativo, se tornou pedófilo. E, todavia, este número não é igual – como todos queremos – a zero, e justifica as severíssimas palavras do papa.
O estudo da “4ª Revolução” dos anos 1960, e de 1968, é crucial para entender o que aconteceu depois, a pedofilia inclusive. E, para encontrar remédios reais, a Igreja começou a se mexer. Se esta revolução, diferentemente das precedentes, é moral e espiritual e diz respeito à interioridade do homem, será apenas da restauração da moralidade, da vida espiritual e de uma verdade integral sobre a pessoa humana que poderão, em última instância, vir os remédios. Mas, para isto, os sociólogos, como sempre, não bastam: são necessários os pais e os mestres, os educadores e os santos.

* Extraído do Il sussidiario, do dia 12 de abril de 2010, traduzido por Paulo R. A. Pacheco, sem revisão do autor.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Muito maior que o pecado

Na última Escola de Comunidade, padre Carrón, lendo o editorial de Passos dedicado à “carta que o Papa escreveu diante de um fato tão brutal como o abuso de crianças”, sublinhou que esta carta “é um testemunho da ‘comoção’ da qual fala a Escola de Comunidade, que nos permite olhar tudo, sem eliminar nada, até chegar ao juízo. Visto que todos os jornais carregam um olhar diferente, nós não podemos fazer esta Escola de Comunidade sem falar e sem olhar esse fato de um outro modo, ajudados pelo testemunho do Papa, pois a pergunta é: ‘De onde nasce esse olhar?’”.
Por isso é muito importante que nesses dias leiamos, tornemos conhecido e difundamos o máximo possível nos ambientes o texto publicado.

Haveria muito o que discutir a respeito do que levou Bento XVI a escrever a Carta aos católicos da Irlanda. Poderíamos fazê-lo partindo dos fatos, dos números e dos dados que – lidos corretamente – falam de uma realidade muito menos imponente do que dá a entender a feroz campanha encetada pela mídia; ou das contradições dos que, nos mesmos jornais, acusam – com razão – certas coisas ignóbeis, mas algumas páginas depois justificam tudo e todos, sobretudo em matéria de sexo. Seria possível, e talvez isso ajudasse a entender melhor o contexto de uma Igreja sob ataque, independentemente dos seus erros. Só que o gesto humilde e corajoso do Papa levou a coisa para outros patamares, para o centro da questão.
Claro, a ferida existe. E é gravíssima. Do tipo da que levou Cristo a dizer aquelas palavras de fogo: “Quem escandalizar um só destes pequeninos que creem em mim, seria melhor que lhe pendurassem no pescoço uma pedra e o jogassem no abismo...”.
Há coisas torpes na Igreja. Isso foi reconhecido, de modo claro e forte, pelo próprio Joseph Ratzinger na Via Sacra de cinco anos atrás, pouco antes de se tornar Papa, e que nunca parou de lembrar depois, com realismo. Há o pecado, inclusive grave. Há o mal e o abismo de dor trazido pelo pecado. E há também a exigência de se fazer todo o possível – até com dureza – para frear esse mal e reparar essa dor. O Papa o está fazendo, como prova eloquentemente a sua Carta, ao lembrar que os culpados terão de responder “diante do Deus onipotente, como também perante os tribunais” humanos.
Mas, justamente por essas razões, o verdadeiro centro da questão, o focus esquecido, está em outro lugar. A par de todos os limites e dentro da humanidade ferida da Igreja há ou não há algo maior do que o pecado? Radicalmente maior que o pecado? Há algo que pode romper a medida inexorável do nosso mal? Algo que, como escreve o Pontífice, “tem o poder de perdoar até o mais grave pecado e de tirar o bem inclusive do mais terrível dos males?”.
Esse é o ponto: “Deus teve compaixão do nosso nada”, lembrava Dom Giussani numa frase usada por CL no cartaz de Páscoa: “Não só: Deus se comoveu com a nossa traição, com a nossa rude pobreza, esquecida e traidora, com a nossa mesquinhez. É uma compaixão, uma piedade, uma paixão. Teve piedade de mim”.
É isso que a Igreja traz ao mundo, não certamente por mérito, bravura ou coerência dos seus membros: a compaixão de Deus é pela nossa mesquinhez. Algo muito maior do que os nossos limites. A única coisa infinitamente maior do que nossos limites. Se não partirmos daí, não compreenderemos nada. Tudo fica incompreensível, literalmente.
Costumamos nos esquivar dessa compaixão, tentar escapar dela. Às vezes é dentro da própria Igreja que se reduz a fé a uma ética, e a moralidade a um impossível recurso solitário às leis, parecendo até que sentir necessidade desse abraço seja uma coisa de que deveríamos nos envergonhar. Mas se nos esquecermos de Cristo, se descartarmos totalmente a medida diferente que Ele introduz no mundo agora, através da Igreja, não teremos mais os termos necessários para entendermos e julgarmos a própria Igreja. Então, fica fácil confundir a atenção às vítimas e à sua história com silêncio conivente, e a prudência em relação aos culpados (verdadeiros ou presumidos) – acusados, talvez, por vozes que só se levantaram décadas depois – com a vontade de criar “cortina de fumaça” (o que, às vezes, evidentemente, ocorreu mesmo). Torna-se quase que inevitável falar mal do celibato, sem mencionar sequer o valor real da virgindade. E torna-se impossível entender por que a Igreja pode ser dura e, ao mesmo tempo, materna com os seus sacerdotes que erram. Pode puni-los com severidade e exigir que paguem a pena e reparem o mal feito (é o que ela vem fazendo, não de hoje, pois sempre o fez), mas sem romper – quando possível – o elo de ligação, por ser a única coisa que poderá redimi-los. Pode pedir aos seus filhos “sede perfeitos como é perfeito o vosso Pai”, não para exigir deles algo impossível, mas para despertar neles a tensão a viver a misericórdia com que Deus nos abraça (“sede misericordiosos como é misericordioso o Pai que está nos céus”). É justamente por isso que a Igreja pode educar. Que, no fundo, é a verdadeira questão posta em discussão pelos que estão acusando (“vejam como até os padres erram, e erram feio! Como podemos confiar a eles as nossas crianças?”), como se o título de mestra da Igreja dependesse da coerência dos seus filhos, e não dEle. De Cristo. Da Presença que – em meio a todos os erros e horrores cometidos – torna possível no mundo um abraço como aquele do Filho pródigo retratado por Chagall no mesmo cartaz de Páscoa. Ali, junto com a frase de Giussani, há uma outra, de Bento XVI: “No fundo, converter-se a Cristo significa precisamente isto: sair da ilusão da auto-suficiência para descobrir e aceitar a própria indigência, a exigência do seu perdão e da sua amizade”.
É isso: o abraço de Cristo, dentro da nossa humanidade ferida e indigente e para além do mal que podemos cometer. Se a Igreja – com todos os seus limites – não pudesse oferecer isso ao mundo, inclusive às vítimas dessas barbaridades, então sim estaríamos perdidos. Porque o mal continuaria a existir, mas aí seria impossível vencê-lo.

Comunhão e Libertação