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quarta-feira, 4 de abril de 2012

Comentário ao Evangelho do dia - Semana Santa


4ª-feira da Semana Santa
     
1ª Leitura - Is 50,4-9a
O Senhor Deus deu-me língua adestrada, para que eu saiba dizer palavras de conforto à pessoa abatida; Ele me desperta cada manhã e me excita o ouvido, para prestar atenção como um discípulo. O Senhor abriu-me os ouvidos; não Lhe resisti nem voltei atrás. Ofereci as costas para me baterem e as faces para me arrancarem a barba: não desviei o rosto de bofetões e cusparadas. Mas o Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não sairei humilhado. A meu lado está quem me justifica; alguém me fará objeções? Vejamos. Quem é meu adversário? Aproxime-se. Sim, o Senhor Deus é meu Auxiliador; quem é que me vai condenar?

Salmo - Sl 68
R. Respondei-me pelo vosso imenso amor,
neste tempo favorável, Senhor Deus.

Por vossa causa é que sofri tantos insultos, *
e o meu rosto se cobriu de confusão;
eu me tornei como um estranho a meus irmãos, *
como estrangeiro para os filhos de minha mãe.
Pois meu zelo e meu amor por Vossa casa *
me devoram como fogo abrasador;
e os insultos de infiéis que Vos ultrajam *
recaíram todos eles sobre mim!R. 

O insulto me partiu o coração;+
Eu esperei que alguém de mim tivesse pena;* 
procurei quem me aliviasse e não achei!
Deram-me fel como se fosse um alimento, *
em minha sede ofereceram-me vinagre!R. 

Cantando eu louvarei o Vosso nome *
e agradecido exultarei de alegria!
Humildes, vede isto e alegrai-vos: +
o vosso coração reviverá, *
se procurardes o Senhor continuamente!
Pois nosso Deus atende à prece dos seus pobres, *
e não despreza o clamor de seus cativos.R.

Evangelho - Mt 26,14-25
Naquele tempo, um dos doze discípulos, chamado Judas Iscariotes, foi ter com os sumos sacerdotes e disse: "O que me dareis se vos entregar Jesus?". Combinaram, então, trinta moedas de prata. E daí em diante, Judas procurava uma oportunidade para entregar Jesus. No primeiro dia da festa dos Ázimos, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram: "Onde queres que façamos os preparativos para comer a Páscoa?". Jesus respondeu: "Ide à cidade, procurai certo homem e dizei-lhe: 'O Mestre manda dizer: o meu tempo está próximo, vou celebrar a Páscoa em tua casa, junto com meus discípulos'". Os discípulos fizeram como Jesus mandou e prepararam a Páscoa. Ao cair da tarde, Jesus pôs-se à mesa com os doze discípulos. Enquanto comiam, Jesus disse: "Em verdade eu vos digo, um de vós vai me trair". Eles ficaram muito tristes e, um por um, começaram a lhe perguntar: "Senhor, será que sou eu?". Jesus respondeu: "Quem vai me trair é aquele que comigo põe a mão no prato. O Filho do Homem vai morrer, conforme diz a Escritura a respeito dele. Contudo, ai daquele que trair o Filho do Homem! Seria melhor que nunca tivesse nascido!". Então Judas, o traidor, perguntou: "Mestre, serei eu?". Jesus lhe respondeu: "Tu o dizes".

Comentário feito por Santo Agostinho (354-430)
bispo de Hipona (Norte de África) e Doutor da Igreja 

"Não vos escolhi Eu a vós, os Doze? Contudo, um de vós é um diabo" (Jo 6,70). O Senhor devia dizer: "Escolhi onze de vós"; terá Ele escolhido um demônio, haveria um demônio entre os eleitos? [...] Diremos nós que, ao escolher Judas, quis o Salvador cumprir através dele, contra sua vontade, sem que ele soubesse, uma obra tão grande e tão boa? Isto é próprio de Deus [...]: fazer que as más obras dos maus sirvam o bem [...]. O mau faz que todas as boas obras de Deus sirvam o mal; o homem de bem, ao contrário, faz que as más ações dos maus sirvam o bem. Haverá alguém tão bom quanto o Deus único? O próprio Senhor diz: "Ninguém é bom senão um só: Deus" (Mc 10,18) [...] Haverá quem seja  pior do que Judas? De entre os discípulos do Mestre, de entre os Doze, foi ele o escolhido para guardar a bolsa e prover aos pobres (Jo 13,29). Mas depois de tal dom, é ele quem recebe dinheiro para entregar Aquele que é a Vida (Mt 26,15); perseguiu como inimigo Aquele a Quem tinha seguido como discípulo [...]. Mas o Senhor fez que tão grande crime servisse o bem. Aceitou ser traído para nos resgatar: eis como o crime de Judas se transmuta em bem. Quantos mártires terá Satanás perseguido? Mas, se não o tivesse feito, não celebraríamos hoje o triunfo daqueles [...]. O mau não pode contrariar a bondade de Deus. Ainda que Satanás seja um artesão do mal, o supremo Artesão não permitiria a existência do mal se não soubesse servir-Se dele para que tudo concorra para o bem.

domingo, 11 de março de 2012

A Quaresma com os santos

A paixão de todo o corpo de Cristo

Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Agostinho, bispo (Séc.V)
(Ps 140,4-6:CCL 40,2028-2029)

Senhor, eu clamo por vós, socorrei-me sem demora (Sl 140,1). Isto todos nós podemos dizer. Não sou eu que digo, é o Cristo total que diz. Contudo, estas palavras foram ditas especialmente em nome do Corpo, porque, quando Cristo estava neste mundo, orou como homem; orou ao Pai em nome do Corpo; e enquanto orava, gotas de sangue caíram de todo o seu corpo. Assim está escrito no Evangelho: Jesus rezava com mais insistência e seu suor tornou-se como gotas de sangue (Lc 22,44). Que significa este derramamento de sangue de todo o seu corpo, senão a paixão dos mártires de toda a Igreja? Senhor, eu clamo por vós, socorrei-me sem demora. Quando eu grito, escutai minha voz! (Sl 140,1). Julgavas ter acabado de vez o teu clamor ao dizer: eu clamo por vós. Clamaste, mas não julgues que já estejas em segurança. Se findou a tribulação, findou também o clamor; mas se a tribulação da Igreja e do Corpo de Cristo continua até o fim dos tempos, não só devemos dizer: eu clamo por vós, socorrei-me sem demora; mas: Quando eu grito, escutai minha voz! Minha oração suba a vós como incenso, e minhas mãos, como oferta da tarde (Sl 140,2). Todo cristão sabe que esta expressão continua a ser atribuída à própria Cabeça. Porque, na verdade, foi ao cair da tarde daquele dia, que o Senhor, voluntariamente, entregou na cruz Sua vida, para retomá-la em seguida. Também aqui estávamos representados. Com efeito, o que estava suspenso na cruz foi o que Ele assumiu da nossa natureza. Como seria possível que o Pai rejeitasse e abandonasse algum momento Seu Filho Unigênito, sendo ambos um só Deus? Contudo, cravando nossa frágil natureza na cruz, onde o nosso homem velho, como diz o Apóstolo, foi crucificado com Cristo (Rm 6,6), clamou com a voz da nossa humanidade: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Sl 21,2). Eis, portanto, o verdadeiro sacrifício vespertino: a paixão do Senhor, a cruz do Senhor, a oblação da vítima salvadora, o holocausto agradável a Deus. Esse sacrifício vespertino, Ele o converteu, por Sua ressurreição, em oferenda da manhã. Assim, a oração que se eleva, com toda pureza, de um coração fiel, é como o incenso que sobe do altar sagrado. Não há aroma mais agradável a Deus: possam todos os fiéis oferecê-lo ao Senhor. Por isso, o nosso homem velho – são palavras do Apóstolo – foi crucificado com Cristo, para que seja destruído o corpo do pecado, de maneira a não mais servirmos ao pecado (Rm 6,6).

domingo, 26 de fevereiro de 2012

A Quaresma com os santos

No Cristo fomos tentados e nele vencemos o demônio 

Dos Comentários sobre os Salmos, de Santo Agostinho, bispo (Séc.V)
(Ps 60, 2-3:CCL39,766) 

Ouvi, ó Deus, a minha súplica, atendei a minha oração (Sl 60,2). Quem é que fala assim? Parece ser um só: Dos confins da terra a Vós eu clamo, e em mim o coração já desfalece (Sl 60,3). Então já não é um só, e contudo é somente um, porque o Cristo, de quem todos somos membros, é um só. Como pode um único homem clamar dos confins da terra? Quem clama dos confins da terra é aquela herança a respeito da qual foi dito ao próprio Filho: Pede-me e te darei as nações como herança e os confins da terra por domínio (Sl 2,8). Portanto, é esse domínio de Cristo, essa herança de Cristo, esse corpo de Cristo, essa Igreja de Cristo, essa unidade que somos nós, que clama dos confins da terra. E o que clama? O que eu disse acima: Ouvi, ó Deus, a minha súplica, atendei a minha oração; dos confins da terra a Vós eu clamo. Sim, clamei a Vós dos confins da terra, isto é, de toda parte. Mas por que clamei? Porque em mim o coração já desfalece. Revela com estas palavras que Ele está presente a todos os povos no mundo inteiro, não rodeado de grande glória mas no meio de grandes tentações. Com efeito, nossa vida,enquanto somos peregrinos neste mundo, não pode estar livre de tentações, pois é através delas que se realiza nosso progresso e ninguém pode conhecer-se a si mesmo sem ter sido tentado. Ninguém pode vencer sem ter combatido, nem pode combater se não tiver inimigo e tentações. Aquele que clama dos confins da terra está angustiado, mas não está abandonado. Porque foi a nós mesmos, que somos o Seu corpo, que o Senhor quis prefigurar em Seu próprio corpo, no qual já morreu, ressuscitou e subiu ao céu, para que os membros tenham a certeza de chegar também onde a cabeça os precedeu. Portanto, o Senhor nos representou em Sua pessoa quando quis ser tentado por Satanás. Líamos há pouco no Evangelho que nosso Senhor Jesus Cristo foi tentado pelo demônio no deserto. De fato, Cristo foi tentado pelo demônio. Mas em Cristo também tu eras tentado, porque Ele assumiu a tua condição humana, para te dar a Sua salvação; assumiu a tua morte, para te dar a Sua vida; assumiu os teus ultrajes, para te dar a Sua glória; por conseguinte, assumiu as tuas tentações, para te dar a Sua vitória. Se nEle fomos tentados, nEle também vencemos o demônio. Consideras que o Cristo foi tentado e não consideras que Ele venceu? Reconhece-te nEle em Sua tentação, reconhece-te nEle em Sua vitória. O Senhor poderia impedir o demônio de aproximar-se dEle; mas, se não fosse tentado, não te daria o exemplo de como vencer na tentação.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Olhar para Cristo para compreender o sentido do viver no serviço e no dom de si

Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro

Quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Gostaria hoje de terminar as minhas catequeses sobre a oração do Saltério, meditando um dos mais famosos “Salmos reais”, um Salmo que Jesus mesmo citou e que os autores do Novo Testamento retomaram e leram amplamente em referência ao Messias, a Cristo. Trata-se do Salmo 110 segundo a tradição hebraica, 109 segundo a greco-latina; um Salmo muito amado pela Igreja antiga e pelos crentes de todos os tempos. Esta oração estava, talvez, vinculada à entronização de um rei davídico; todavia, o seu sentido vai além da específica contingência do fato histórico abrindo-se a dimensões mais amplas e se tornando assim celebração do Messias vitorioso, glorificado à direita de Deus.
O Salmo começa com uma declaração solene: “Oráculo do Senhor ao meu senhor: ‘Senta-te à minha direita, até que eu ponha teus inimigos como escabelo de teus pés’” (v. 1).
Deus mesmo entroniza o rei na glória, fazendo-o sentar à Sua direita, um sinal de honra grandiosa e de privilégio absoluto. Desta maneira, o rei é admitido à participação da senhoria divina, da qual é mediador junto do povo. Tal senhoria do rei se concretiza também na vitória sobre os adversários, que são colocados aos seus pés por Deus mesmo; a vitória sobre os inimigos é do Senhor, mas o rei é feito participante desta vitória e o seu triunfo se torna testemunho e sinal do poder divino.
A glorificação real expressa neste início do Salmo foi assumida pelo Novo Testamento como profecia messiânica; por isso, o versículo está entre os mais usados pelos autores neotestamentários, seja como citação explícita, que como alusão. Jesus  mesmo mencionou este versículo a propósito do Messias, para mostrar que o Messias é mais do que Davi, é o Senhor de Davi (cf. Mt 22, 41-45; Mc 12, 35-37; Lc 20, 41-44). E Pedro o retoma no seu discurso no Pentecostes, anunciando que, na ressurreição de Cristo, realiza-se esta entronização do rei e que, a partir de então, Cristo está à direita do Pai, participa da Senhoria de Deus sobre o mundo (cf. At 2, 29-35). É o Cristo, de fato, o Senhor entronizado, o Filho do homem sentado à direita de Deus que vem sobre as nuvens do céu, como Jesus mesmo se define durante o processo diante do Sinédrio (cf. Mt 26, 63-64; Mc 14, 61-62; cf. também Lc 22, 66-69). É Ele o verdadeiro rei que, com a ressurreição, entrou na glória à direita do Pai (cf. Rm 8, 34; Ef 2, 5; Col 3, 1; Hb 8, 1; Hb 12, 2), superior aos anjos, sentado nos céus acima de toda potência e com todos os adversários aos seus pés, até que aquela última inimiga, a morte, seja vencida definitivamente por Ele (cf. 1Cor 15, 24-26; Ef 1, 20-23; Hb 1, 3-4.13; Hb 2, 5-8; Hb 10, 12-13; 1Pd 3, 22). E se entende imediatamente que este rei está à direita de Deus e participa da Sua Senhoria, não é um desses homens sucessores de Davi, mas somente o novo Davi, o Filho de Deus que venceu a morte e participa realmente da glória de Deus. É o nosso rei, que nos dá mesmo a vida eterna.
Entre o rei celebrado pelo nosso Salmo e Deus existe, portanto, uma relação incindível; os dois governam juntos um único governo, até o ponto que o Salmista pode afirmar que é Deus mesmo que estende o cetro do soberano dando-lhe a missão de dominar sobre seus adversários, como recita o versículo 2:
“De Sião o Senhor estende o cetro do teu poder: Domina no meio de teus inimigos!”
O exercício do poder é um encargo que o rei recebe diretamente do Senhor, uma responsabilidade que deve viver na dependência e na obediência, se tornando assim sinal, no meio do povo, da presença poderosa e providente de Deus. O domínio sobre os inimigos, a glória e a vitória são dons recebidos, que fazem do soberano um mediador do triunfo divino sobre o mal. Ele domina sobre os inimigos transformando-os, os vence com o seu amor.
Por isso, no versículo seguinte, se celebra a grandeza do rei. O versículo 3, na realidade, apresenta algumas dificuldades de interpretação. No texto original hebraico faz-se referência à convocação do exército, para a qual o povo responde generosamente, colocando-se em torno do seu soberano no dia da sua coroação. A tradução grega dos LXX, que remonta ao século III ou II a.C., faz referência, pelo contrário, à filiação divina do rei, ao seu nascimento ou geração da parte do Senhor, e é esta a escolha interpretativa de toda a tradição da Igreja, de forma que o versículo soa da seguinte forma:
“Tu és príncipe desde o dia do teu nascimento, entre santos esplendores; antes da aurora, como orvalho, eu te gerei.”
Este oráculo divino sobre o rei afirmaria, portanto, uma geração divina inundada de esplendor e de mistérios, uma origem secreta e imperscrutável, ligada à beleza arcana da aurora e à maravilha do orvalho que, na luz da primeira manhã, brilha sobre os campos e os torna fecundos. Delineia-se, assim, indissoluvelmente ligada à realidade celeste, a figura do rei que vem realmente de Deus, do Messias que leva ao povo a vida divina e é mediador de santidade e de salvação. Também aqui vemos que tudo isto não é realizado pela figura de um rei davídico, mas pelo Senhor Jesus Cristo, que realmente vem de Deus; Ele é a luz que traz a vida divina para o mundo.
Com esta imagem sugestiva e enigmática termina a primeira estrofe do Salmo, que dá lugar a outro oráculo, que abre uma nova perspectiva, na linha de uma dimensão sacerdotal ligada à realeza. Recita assim o versículo 4:
“O Senhor jurou e não se arrepende: ‘Tu és sacerdote para sempre à maneira de Melquisedec’.”
Melquisedec era o sacerdote rei de Salém que havia abençoado Abraão e oferecido pão e vinho depois da vitoriosa campanha militar conduzida pelo patriarca para salvar o neto Ló das mãos dos inimigos que o haviam capturado (cf. Gn 14). Na figura de Melquisedec, poder real e sacerdotal convergem e, nesse ponto, são proclamados pelo Senhor numa declaração que promete eternidade: o rei celebrado pelo Salmo será sacerdote para sempre, mediador da presença divina no meio do seu povo, através da bênção que vem de Deus e que, na ação litúrgica, se encontra com a resposta bendita do homem.
A Carta aos Hebreus faz uma referência explícita a este versículo (cf. Hb 5, 5-6.10; Hb 6, 19-20) e sobre ele centra todo o capítulo 7, elaborando a sua reflexão sobre o sacerdócio de Cristo. Jesus, assim nos diz a Carta aos Hebreus à luz do Salmo 110 (109), Jesus é o verdadeiro e definitivo sacerdote, que leva à plena realização os traços do sacerdócio de Melquisedec tornando-os perfeitos.
Melquisedec, como diz a Carta aos Hebreus, era “sem pai, sem mãe, sem genealogia” (Hb 7, 3a), sacerdote, portanto, não segundo as regras dinásticas do sacerdócio levítico. Ele, por isso, “permanece sacerdote para sempre” (Hb 7, 3b), prefiguração de Cristo, sumo sacerdote perfeito que “foi constituído não por prescrição de uma lei humana, mas pela Sua imortalidade” (Hb 7, 16). No Senhor Jesus ressuscitado e ascendido ao céu, onde senta à direita do Pai, realiza-se a profecia do nosso Salmo e o sacerdócio de Melquisedec é levado à perfeição, porque se tornou absoluto e eterno, se tornou uma realidade que não conhece fim (cf. Hb 7, 24). E a oferta do pão e do vinho, realizada por Melquisedec nos tempos de Abraão, encontra a sua realização no gesto eucarístico de Jesus, que no pão e no vinho oferece a Si mesmo e, vencida a morte, leva todos os crentes à vida. Sacerdote perene, “santo, inocente, imaculado” (Hb 7, 26), Ele, como diz ainda a Carta aos Hebreus, pode “levar a termo a salvação daqueles que por Ele vão a Deus, porque vive sempre para interceder em seu favor” (Hb 7, 25).
Depois deste oráculo divino do versículo 4, com seu solene juramento, a cena do Salmo muda e o poeta, dirigindo-se diretamente ao rei, proclama: “O Senhor está à tua direita!” (v. 5a). Se, no versículo 1 era o rei que se assentava à direita de Deus em sinal de sumo prestígio e de honra, agora é o Senhor que Se coloca à direita do soberano para protegê-lo com o escudo na batalha e para salvá-lo de todo perigo. O rei está protegido, Deus é o seu defensor e juntos combatem e vencem todo o mal.
Desta maneira, se abrem os versículos finais do Salmo com a visão do soberano triunfante que, apoiado pelo Senhor, tendo recebido dEle poder e glória (cf. v. 2), se opõe aos inimigos, fazendo os adversários baterem em retirada, e julgando as nações. A cena é pintada com cores fortes, a fim de significar a dramaticidade do combate e a plenitude da vitória real. O soberano, protegido pelo Senhor, abate todos os obstáculos e segue seguro em direção à vitória. Diz-nos: sim, no mundo existe tanto mal, há uma batalha permanente entre o bem e o mal, e parece que o mal seja o mais forte. Não, mais forte é o Senhor, o nosso verdadeiro rei e sacerdote Cristo, porque combate com toda a força de Deus e, não obstante todas as coisas que nos fazem duvidar do êxito positivo da história, Cristo vence e o bem vence, o amor vence e não o ódio.
É aqui que se insere a sugestiva imagem com a qual o nosso Salmo se finaliza, que é também uma palavra enigmática.
“Ao longo do caminho ele bebe da torrente, por isso levantará a cabeça.” (v. 7)
No meio da descrição da batalha, se destaca a figura do rei que, num momento de trégua e de repouso, mata a sede numa torrente d’água, encontrando nele restauro e novo vigor, de forma a poder retomar o seu caminho triunfante, com a cabeça erguida, em sinal de vitória definitiva. É óbvio que esta palavra muito enigmática era um desafio para os Padres da Igreja devido às diversas interpretações que se podiam dar. Assim, por exemplo, Santo Agostinho disse: esta torrente é o ser humano, a humanidade, e Cristo bebeu desta torrente fazendo-se homem, e assim, entrando na humanidade do ser humano, levantou Sua cabeça e, agora, é a cabeça do Corpo Místico, é o nosso chefe, é o vencedor definitivo (cf.  Enarratio in Psalmum CIX, 20: PL 36, 1462).
Caros amigos, seguindo a linha interpretativa do Novo Testamento, a tradição da Igreja teve grande consideração por este Salmo como um dos textos messiânicos mais significativos. E, de modo eminente, os Padres fizeram referência contínua a ele sempre em chave cristológica: o rei cantado pelo Salmista é, definitivamente, Cristo, o Messias que instaura o Reino de Deus e vence as potências do mundo, é o Verbo gerado pelo Pai antes de toda criatura, antes da aurora, o Filho encarnado morto e ressuscitado e sentado nos céus, o sacerdote eterno que, no mistério do pão e do vinho, doa a remissão dos pecados e a reconciliação com Deus, o rei que ergue a cabeça triunfando sobre a morte com a Sua ressurreição. Bastaria recordar, uma vez mais, um trecho do comentário de Santo Agostinho a este Salmo: “Era necessário conhecer o único Filho de Deus, que estava para vir entre os homens, para assumir o homem e para se tornar homem através da natureza assumida: Ele morreu, ressuscitou, ascendeu ao céu, está sentado à direita do Pai e cumpriu entre os povos tudo o que havia prometido... Tudo isto, portanto, deveria ser profetizado, deveria ser prenunciado, deveria ser assinalado como destinado a ocorrer, para que, acontecendo de repente, não causasse medo, mas fosse prenunciado, ou mais ainda aceito com fé, alegria e espera. No âmbito destas promessas recai este Salmo, que profetiza, em termos seguros e explícitos, o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, de quem não devemos ter a menor dúvida de que nEle seja realmente  anunciado o Cristo (cf. Enarratio in Psalmum CIX, 20: PL 36, 1447).
O evento pascal de Cristo se torna assim a realidade para a qual o Salmo nos convida a olhar, olhar para Cristo para compreender o sentido da verdadeira realeza, do viver no serviço e no dom de si, num caminho de obediência e de amor levado “até o fim” (cf. Jo 13, 1 e Jo 19, 30). Rezando com este Salmo, pedimos ao Senhor, portanto, que possamos, também nós, seguir sobre Seus caminhos, no seguimento de Cristo, o rei Messias, dispostos a subir com Ele sobre o monte da cruz para chegarmos, também com Ele, à glória, e contemplá-Lo sentado à direita do Pai, rei vitorioso e sacerdote misericordioso que doa perdão e salvação a todos os homens. E também nós, tornados, por graça de Deus, “gente escolhida, sacerdócio régio, nação santa” (cf. 1Pd 2, 9), poderemos chegar com alegria às fontes da salvação (cf. Is 12, 3) e proclamar a todo o mundo as maravilhas dAquele que nos “chamou das trevas para a Sua luz maravilhosa” (cf. 1Pd 2, 9).
Caros amigos, nestas últimas Catequeses quis vos apresentar alguns Salmos, preciosas orações que encontramos na Bíblia e que refletem as várias situações da vida e os vários estados de espírito que podemos ter para com Deus. Gostaria, agora, de renovar a todos o convite a rezar com os Salmos, habituando-se talvez a usar a Liturgia das Horas da Igreja, as Laudes pela manhã, as Vésperas à tarde, as Completas antes de dormirem. O nosso relacionamento com Deus será, com isso, enriquecido no caminho cotidiano em direção a Ele, e realizado com maior alegria e confiança. Obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 16 de novembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A lição de Dante e de Agostinho para curar a “doença da alma”


Por Laura Cioni

Entre os vícios capitais, o menos conhecido, mesmo que muito difundido, é a acídia. Escreveu-se a seu respeito em todos os tempos, refletindo-se acerca da vida moral a partir dos conceitos de vício e de virtude, numa modalidade concreta e facilmente observável mesmo na vida cotidiana. Horácio, tão sabiamente epicurista, numa carta sua definiu a acídia como strenua inertia, inércia ansiosa, ou, em outras palavras, inquietude. Tácito, por sua vez, falando sobre como os estudos, em tempos de opressão política, definham, e afirmou, de maneira muito realista, que apenas a liberdade redescoberta seria capaz de favorecer a retomada dos estudos, mas com uma fadiga, porque não podemos nos enganar: existe uma secreta suavidade mesmo na ociosidade que, se é odiada no início, no fim é amada.
Para Santo Tomás, a acídia não é apenas a demora para se decidir pelo bem e a inconstância no persegui-lo, mas mais precisamente é a tristeza do bem, uma inatividade da alma que não quer e, ao mesmo tempo, não consegue se voltar para a verdadeira alegria.
Dante a representa no Inferno, colocando os acidiosos junto dos iracundos no pântano do Estige: “Fitti nel limo dicon: ‘Tristi fummo / ne l'aere dolce che dal sol s'allegra, / portando dentro accidïoso fummo: / or ci attristiam ne la belletta negra’” (“‘Nos doces ares, a que o sol aquece’ - No ceno imersas dizem - ‘tristes fomos: dentro em nós fumo túrbido recresce. Ora no lodo inda mais triste somos’”): como foram tristes na vida, envoltos pela fumaça da negligência, da mesma forma, na eternidade, vivem o mesmo humor negro, que lhes aperta a garganta como o lodo que lhes enche a boca. O poeta volta a falar da acídia nos cantos centrais do Purgatório, onde explica a dinâmica da liberdade humana; pela boca de Virgílio, define a acídia assim: “amor del bene scemo / del suo dover” (“do bem o amor recua no seu dever”), ou seja, desejo apenas intencional, sem os atos necessários para alcançar o bem e saboreá-lo. Dante explica como todo homem deseja o verdadeiro bem e luta para obtê-lo: “Ciascun confusamente un bene apprende / nel qual si queti l’animo, e disira; / per che di giugner lui ciascun contende” (“Confusamente cada qual se acende por certo bem e sôfrego o deseja: por ter-lhe a posse, afana-se e contende”). E na beira do penhasco vê os acidiosos arrependidos espiando o fato de não terem favorecido desejo algum e de não o terem perseguido com amor pressuroso e operante: “Se lento amore in lui veder vi tira, / o a lui acquistar, questa cornice, / dopo giusto penter, ve ne martira” (“O que do bem no amor inerte seja depois que do pesar sofrerá agrura, é justo que em martírio aqui se veja”).
A insuficiente energia moral da acídia é reconhecida como característica sua por Petrarca no Secretum, o diálogo literário com Santo Agostinho; nesta obra, ele diz que sua origem está na desilusão. Mesmo aqui podemos ver que os modernos - e não apenas os poetas - são um pouco herdeiros seus também.
Podemos especular que a acídia seja um vício predominante dos nossos dias; muitos sinais indicariam isto pela simples observação: o desprezo a todas as diretivas, o tédio, o desperdício, a mania pelo efêmero, a falta de contentamento, o ressentimento... todos são comportamentos difundidos e pouco percebidos e, exatamente por isso, geradores de males piores, que enchem a sociedade de violência e de injustiça. 
Como se corrige este mau hábito da alma, ligado à inatividade, à inquietude, à ira, à melancolia? É difícil superar a tristeza do bem com suas próprias forças, mas também as muitas palavras confusamente cheias de pareceres, conselhos e sermões parecem pouco eficazes. Somente um acontecimento pode agitar a vida e mudar a direção das coisas, como se nota, por exemplo, nas biografias dos grandes e em acontecimentos familiares menos conhecidos. O grande recurso que temos é certamente o de estar presentes a nós mesmos, admitir nossos próprios erros, prever a fadiga de nos levantarmos e recomeçar a caminhada... quem sabe, a descoberta de um novo amor.
Mas, uma experiência dada apenas a alguns, e bastante decisiva, foi descrita por Agostinho nos últimos diálogos com sua mãe: ele imagina que, para o homem, tudo silencia - a terra, o céu, a alma mesma -, e neste silêncio ele pode ouvir a voz de Deus falando não através das coisas, mas através de Sua boca mesma; então, não seria isto o “entrar na alegria do teu Senhor”?
Se a descoberta da alegria de Deus, imprevisível e duradoura, irrompesse num ponto crucial da vida, a acídia seria vencida no ato: “Fomos libertados como um pássaro do laço dos caçadores; o laço arrebentou-se e nós escapamos”. Restaria a liberdade de voar.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 29 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Como reconhecemos o que é justo?



Visita ao Parlamento Federal

Discurso do Papa Bento XVI 

Palácio Reichstag de Berlim
Quinta-feira, 22 de setembro de 2011  

Ilustre Senhor Presidente Federal!
Senhor Presidente do Bundestag!
Senhora Chanceler Federal!
Senhor Presidente do Bundesrat!
Senhoras e Senhores Deputados!
E, para mim, uma honra e uma alegria falar diante desta Câmara Alta, diante do Parlamento da minha Pátria alemã, que se reúne aqui em representação do povo, eleita democraticamente para trabalhar pelo bem da República Federal da Alemanha. Quero agradecer ao Senhor Presidente do Bundestag o convite que me fez para pronunciar este discurso, e também as amáveis palavras de boas-vindas e de apreço com que me acolheu. Neste momento, dirijo-me a vós, prezados Senhores e Senhoras, certamente também como concidadão que se sente ligado por toda a vida às suas origens e acompanha solidariamente as vicissitudes da pátria alemã. Mas o convite para pronunciar este discurso foi dirigido a mim como Papa, como Bispo de Roma, que carrega a responsabilidade suprema da Igreja Católica. Deste modo, vós reconheceis o papel que compete à Santa Sé como parceira no seio da Comunidade dos Povos e dos Estados. Em base a esta minha responsabilidade internacional, quero vos propor algumas considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito.
Seja-me permitido começar as minhas reflexões sobre os fundamentos do direito com uma pequena narrativa tirada da Sagrada Escritura. Conta-se, no Primeiro Livro dos Reis, que Deus concedeu ao jovem rei Salomão fazer um pedido por ocasião da sua entronização. Que irá pedir o jovem soberano neste momento tão importante: sucesso, riqueza, uma vida longa, a eliminação dos inimigos? Não pede nada disso; mas sim: “Concede ao teu servo um coração dócil, para saber administrar a justiça ao teu povo e discernir o bem do mal” (1Re 3, 9). Com esta narrativa, a Bíblia quer nos indicar o que deve ser, em última análise, importante para um político. O seu critério último e a motivação para o seu trabalho como político não devem ser o sucesso e menos ainda o lucro material. A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições de fundo para a paz. Naturalmente um político procurará o sucesso, sem o qual não poderia jamais ter a possibilidade de uma ação política efetiva; mas o sucesso há de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de atuar o direito e à inteligência do direito. É que o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindo assim o caminho para a falsificação do direito, a destruição da justiça. “Se se põe de lado o direito, em que se distingue então o Estado de um grande bando de ladrões?” – sentenciou uma vez Santo Agostinho (De civitate Dei IV, 4, 1). Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estas palavras não são fúteis. Experimentamos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu pisotear o direito, de tal modo que o Estado se tornou o instrumento para a destruição do direito: tornou-se um bando de ladrões muito bem organizado, que quase chegou a ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício. Servir ao direito e combater o domínio da injustiça é e permanece sendo a tarefa fundamental do político. Num momento histórico em que o homem adquiriu um poder até agora impensável, esta tarefa torna-se particularmente urgente. O homem é capaz de destruir o mundo. Pode manipular-se a si mesmo. Pode, por assim dizer, criar seres humanos e excluir outros seres humanos de serem homens. Como reconhecemos o que é justo? Como podemos distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente? O pedido de Salomão permanece sendo a questão decisiva perante a qual se encontram também hoje o homem político e a política.
Grande parte da matéria que se deve regular juridicamente pode ter por critério suficiente o da maioria. Mas é evidente que, nas questões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade, o princípio majoritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação. No século III, o grande teólogo Orígenes justificou assim a resistência dos cristãos a certos ordenamentos jurídicos em vigor: “Se alguém se encontrasse no povo de Cítia que tem leis irreligiosas e fosse obrigado a viver no meio deles, (…) estes agiriam, sem dúvida, de modo muito razoável se, em nome da lei da verdade que precisamente no povo da Cítia é ilegalidade, formassem juntamente com outros, que tenham a mesma opinião, associações mesmo contra o ordenamento em vigor” [Contra Celsum GCS Orig. 428 (Koetschau); cf. FÜRST, A. (2006). “Monotheismus und Monarchie. Zum Zusammenhang von Heil und Herrschaft in der Antike”. Theol.Phil. 81, pp. 321-338; a citação está na página 336; cf. também RATZINGER, J. (1971). Die Einheit der Nationem, Eine Vision der Kirchenväter. Salzburg-München, p. 60].
Com base nesta convicção, os combatentes da resistência agiram contra o regime nazista e contra outros regimes totalitários, prestando assim um serviço ao direito e à humanidade inteira. Para estas pessoas era evidente de modo incontestável que, na realidade, o direito vigente era injustiça. Mas, nas decisões de um político democrático, a pergunta sobre o que corresponda agora à lei da verdade, o que seja verdadeiramente justo e possa tornar-se lei não é igualmente evidente. Hoje, de fato, não é por si mesmo evidente aquilo que seja justo e possa se tornar direito vigente m relação às questões antropológicas fundamentais. À questão de saber como se possa reconhecer aquilo que verdadeiramente é justo e, deste modo, servir à justiça na legislação, nunca foi fácil encontrar resposta e hoje, na abundância dos nossos conhecimentos e das nossas capacidades, uma tal questão tornou-se ainda muito mais difícil.
Como se reconhece o que é justo? Na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens. Ao contrário de outras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado de uma revelação. Mas apelou para a natureza e para a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre razão objetiva e subjetiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus. Deste modo, os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II (a.C.). De fato, na primeira metade do século II pré-cristão, deu-se um encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos filósofos estóicos, e autorizados mestres do direito romano [cf. WALDSTEIN, W. (2010). Ins Herz geschrieben. Das Naturrecht als Fundament einer menschlichen Gesellschaft. Augsburg, pp. 31-61]. Neste contato nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da humanidade. Desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos e depois à nossa Lei Fundamental alemã, pela qual o nosso povo reconheceu, em 1949, “os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo”.
Foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem colocado ao lado da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação. Esta opção já havia sido realizada por São Paulo, quando afirma na Carta aos Romanos: “Quando os gentios que não têm a Lei [a Torá de Israel], por natureza agem segundo a Lei, eles (…) são lei para si próprios. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, como resulta do testemunho da sua consciência” (Rm 2, 14-15). Aqui aparecem os dois conceitos fundamentais de natureza e de consciência, sendo aqui a “consciência” o mesmo que o “coração dócil” de Salomão, a razão aberta à linguagem do ser. Deste modo se até à época do Iluminismo, da Declaração dos Direitos Humanos depois da II Guerra Mundial e até à formação da nossa Lei Fundamental, a questão acerca dos fundamentos da legislação parecia esclarecida, no último meio século verificou-se uma dramática mudança da situação. Hoje considera-se a ideia do direito natural uma doutrina católica bastante singular, sobre a qual não valeria a pena discutir fora do âmbito católico, de tal modo que quase se tem vergonha mesmo só de mencionar o termo. Queria brevemente indicar como se veio a criar esta situação. Antes de mais nada é fundamental a tese segundo a qual haveria entre o ser e o dever ser um abismo intransponível: do ser não poderia derivar um dever, porque se trataria de dois âmbitos absolutamente diversos. A base de tal opinião é a concepção positivista de natureza, quase adotada por todos hoje em dia. Se se considera a natureza – no dizer de Hans Kelsen - “um agregado de dados objetivos, unidos uns aos outros como causas e efeitos”, então realmente dela não pode derivar qualquer indicação que seja de algum modo de caráter ético (Waldstein, op. cit., 15-21). Uma concepção positivista de natureza, que compreende a natureza de modo puramente funcional, tal como a conhecem as ciências naturais, não pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas apenas funcionais. Entretanto o mesmo vale para a razão numa visão positivista, que é considerada por muitos como a única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável ou falsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito. Por isso, a ética e a religião devem ser atribuídas ao âmbito subjetivo, caindo fora do âmbito da razão no sentido estrito do termo. Onde vigora o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, o caso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas de conhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. Esta é uma situação dramática que interessa a todos e sobre a qual é necessário um debate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção essencial deste discurso.
O conceito positivista de natureza e de razão, a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar. Mas ela mesma no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. Digo isto pensando precisamente na Europa, onde vastos ambientes procuram reconhecer apenas o positivismo como cultura comum e como fundamento comum para a formação do direito, reduzindo todas as outras convicções e os outros valores da nossa cultura ao estado de uma subcultura. Assim a Europa se coloca, face às outras culturas do mundo, numa condição de falta de cultura e suscitam-se, ao mesmo tempo, correntes extremistas e radicais. A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de concreto armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus. E no entanto não podemos iludir-nos, pois em tal mundo autoconstruído bebemos em segredo e igualmente nos “recursos” de Deus, que transformamos em produtos nossos. É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo para a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo.
Mas, como fazê-lo? Como encontramos a entrada justa na vastidão, no conjunto? Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? Chamo à memória um processo da história política recente, esperando não ser mal entendido nem suscitar demasiadas polêmicas unilaterais. Diria que o aparecimento do movimento ecológico na política alemã a partir dos anos 1970, apesar de não ter talvez aberto janelas, todavia foi, e continua a ser, um grito que anseia por ar fresco, um grito que não se pode ignorar nem deixar de lado, porque se vislumbra nele muita irracionalidade. Pessoas jovens deram-se conta de que, nas nossas relações com a natureza, há algo que não está bem; que a matéria não é apenas um material para nossa factura, mas a própria terra traz em si a sua dignidade e devemos seguir as suas indicações. É claro que aqui não faço propaganda por um determinado partido político; nada me seria mais alheio do que isso. Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos refletir seriamente sobre o conjunto e todos somos remetidos à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura. Seja-me permitido deter-me um momento mais neste ponto. A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que – a meu ver –, hoje como ontem, é negligenciado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.
Voltemos aos conceitos fundamentais de natureza e razão, de onde partíramos. O grande teórico do positivismo jurídico, Kelsen, em 1965 – com a idade de 84 anos (consola-me o fato de ver que, aos 84 anos, ainda se é capaz de pensar algo de razoável) –, abandonou o dualismo entre ser e dever ser. Antes, ele tinha dito que as normas só podem derivar da vontade. Consequentemente – acrescenta ele – a natureza só poderia conter em si mesma normas, se uma vontade tivesse colocado nela estas normas. Mas isto – diz ele – pressuporia um Deus criador, cuja vontade se inseriu na natureza. “Discutir sobre a verdade desta fé é absolutamente vão” – observa ele a tal propósito (citado segundo Waldstein, op.cit., 19). Mas sê-lo-á verdadeiramente? – eu perguntaria. É verdadeiramente desprovido de sentido refletir se a razão objetiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?
Aqui deveria vir em nossa ajuda o patrimônio cultural da Europa. Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade. A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico.
Ao jovem rei Salomão, na hora de assumir o poder, foi concedido formular um seu pedido. Que sucederia se nos fosse concedido a nós, legisladores de hoje, fazer um pedido? O que é que pediríamos? Penso que também hoje, em última análise, nada mais poderíamos desejar que um coração dócil, a capacidade de distinguir o bem do mal e, deste modo, estabelecer um direito verdadeiro, servir à justiça e à paz. Agradeço-vos pela vossa atenção!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 22 de setembro de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Meditar: "ruminar" os mistérios de Deus e Sua vontade


Bento XVI

Audiência Geral

Pátio do Palácio Apostólico de Castel Gandolfo
Quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Ainda estamos sob as luzes da Festa da Assunta, que – como eu disse – é uma Festa da esperança. Maria chegou ao Paraíso e este é o nosso destino: todos nós podemos chegar ao Paraíso. A questão é: como? Maria chegou; Ela – disse o Evangelho – é “Aquela que acreditou no cumprimento daquilo que o Senhor lhe disse” (Lc 1, 45). Portanto, Maria acreditou, confiou-se a Deus, entrou com a sua vontade na vontade do Senhor e, assim, estava exatamente no caminho mais direto, na estrada que leva ao Paraíso. Acreditar, confiar-se ao Senhor, entrar na sua vontade: esta é a direção essencial.
Hoje, não gostaria de falar sobre todo este caminho da fé, mas apenas sobre um pequeno aspecto da vida da oração que é a vida do contato com Deus, ou seja, falar sobre a meditação. E o que é a meditação? Quer dizer “fazer memória” daquilo que Deus fez e não esquecer os tantos benefícios que Ele nos faz (cf. Sl 103, 2b). frequentemente, vemos apenas as coisas negativas; temos que manter na nossa memória também as coisas positivas, os dons que Deus nos fez, estar atentos aos sinais positivos que veem de Deus e fazer memória deles. Portanto, falamos de um tempo de oração que, na tradição cristão, é chamada “oração mental”. Conhecemos, em geral, a oração com palavras, naturalmente também a mente e o coração devem estar presentes nesta oração, mas falamos hoje sobre uma meditação que não é feita de palavras, mas é um deixar que nossa mente entre em contato com o coração de Deus. E Maria, aqui, é um modelo muito real. O evangelista Lucas repete, diversas vezes, que Maria “de sua parte, guardava todas estas coisas, meditando-as no seu coração” (Lc 2, 19; cf. 2, 51b). Guarda, não esquece, Ela é atenta a tudo o que o Senhor lhe disse e fez, e medita, ou seja, entra em contato com diversas coisas, aprofunda-as no seu coração.
Aquela, portanto, que “acreditou”, no momento do anúncio do Anjo, e que se fez instrumento para que a Palavra eterna do Altíssimo pudesse se encarnar, acolheu também no seu coração o maravilhoso prodígio daquele nascimento humano-divino, meditou-o, concentrou-se na reflexão sobre aquilo que Deus estava operando nEla, para acolher a vontade divina na sua vida e corresponder a ela. O mistério da encarnação do Filho de Deus e da maternidade de Maria é tão grande que requer um processo de interiorização, não é apenas algo de físico que Deus opera nEla, mas é algo que exige uma interiorização por parte de Maria, que tenta aprofundar a inteligência do que aconteceu, interpretar seu sentido, compreender as implicações. Assim, dia após dia, no silêncio da vida ordinária, Maria continuou a guardar no seu coração os sucessivos eventos maravilhosos de que foi testemunha, até à prova extrema da Cruz e à glória da Ressurreição. Maria viveu plenamente a sua existência, os seus deveres cotidianos, a sua missão de mãe, mas soube manter em si um espaço interior para refletir sobre a palavra e sobre a vontade de Deus, sobre tudo o que acontecia nEla, sobre os mistérios da vida do seu Filho.
No nosso tempo, somos absorvidos por tantas atividades e compromissos, preocupações, problemas; frequentemente, tendemos a preencher todos os espaços do dia, sem ter um momento para parar e refletir e nutrir a vida espiritual, o contato com Deus. Maria nos ensina como é necessário encontrar, nos nossos dias, com todas as atividades, momentos para nos recolhermos em silêncio e meditar sobre aquilo que o Senhor nos quer ensinar, sobre como está presente e age no mundo e na nossa vida: ser capazes de parar um momento e meditar. Santo Agostinho compara a meditação sobre os mistério de Deus à assimilação da comida e usa um verbo que aparece repetidas vezes em toda a tradição cristão: “ruminar”; ou seja, os mistérios de Deus devem ser continuamente ecoados em nós para que se tornem familiares para nós, guiem a nossa vida, nos nutram como acontece com o alimento necessário para nos sustentar. E São Boaventura, referindo-se às palavras da Sagrada Escritura, diz que “devem ser sempre ruminadas para que possam ser fixadas, com ardente aplicação do espírito” (Coll. In Hex, ed. Quaracchi 1934, p. 218). Meditar, pois, quer dizer criar em nós uma situação de recolhimento, de silêncio interior, para refletir, assimilar os mistérios da nossa fé e aquilo que Deus opera em nós; e não apenas as coisas que vão e vêm. Podemos fazer esta “ruminação” de vários modos, tomando, por exemplo, um breve trecho da Sagrada Escritura, sobretudo dos Evangelhos, dos Atos dos Apóstolos, das Cartas dos apóstolos, ou então uma página de um autor de espiritualidade que nos aproxima e torna mais presente as realidades de Deus para o nosso hoje, ou mesmo deixando-se aconselhar por um confessor ou por um diretor espiritual, ler e refletir sobre o que se leu, centrando-se sobre isto, tentando compreender, entender o que diz para mim, o que diz hoje, abrir o nosso espírito àquilo que o Senhor quer nos dizer e ensinar. Também o Santo Rosário é uma oração de meditação: repetindo a Ave Maria somos convidados a repensar e a refletir sobre o Mistério que proclamamos. Mas podemos nos concentrar também sobre alguma intensa experiência espiritual, sobre palavras que permaneceram impressas em nós ao participar da Eucaristia dominical. Portanto, como podeis ver, existem muitos modos de meditar e, dessa forma, tomar contato com Deus e nos aproximar de Deus e, assim, estar no caminho em direção ao Paraíso.
Caros amigos, a constância no dar tempo a Deus é um elemento fundamental para o crescimento espiritual; será o Senhor mesmo que nos concederá o gosto dos Seus mistérios, das Suas palavras, da Sua presença e ação, sentir como é belo quando Deus fala conosco; nos fará compreender, de modo mais profundo, o que quer de mim. Enfim, é exatamente este o objetivo da meditação: confiar-se sempre mais às mãos de Deus, com confiança e amor, certos de que somente fazendo a Sua vontade seremos, no fim, verdadeiramente felizes.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 17 de agosto de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Comentário ao evangelho do dia


São Lourenço

Evangelho - Jo 12,24-26
Naquele tempo, disse Jesus a seus discipulos: "Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto. Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará".

Comentário feito por Santo Agostinho (354-430)
bispo de Hipona (África do Norte) e doutor da Igreja 

As proezas gloriosas dos mártires, que por todo o lado ornam a Igreja, permitem-nos compreender a verdade daquilo que foi cantado: "É preciosa, aos olhos do Senhor, a morte dos Seus fiéis" (Sl 115,15). Com efeito, ela é preciosa aos nossos olhos e aos olhos dAquele em nome de Quem eles morreram. Mas o preço de todas aquelas mortes é a morte de um só. Quantas mortes resgatou ao morrer sozinho porque, se não tivesse morrido, o grão de trigo não se teria multiplicado? Haveis ouvido o que Ele disse quando se aproximava a Sua Paixão, isto é, quando se aproximava a nossa redenção: "Se o grão de trigo lançado à terra não morrer, fica ele só; mas se morrer dá muito fruto". Quando o Seu lado foi ferido pela lança, o que dele jorrou foi o preço do universo (cf Jo 19,34). Os fiéis e os mártires foram resgatados; mas a fé dos mártires deu provas e o seu sangue é disso testemunho. "Cristo deu a Sua vida por nós ; também nós devemos dar a nossa vida pelos nossos irmãos" (1Jo 3,16). E em outro lugar é dito ainda: "Quando te sentas a uma mesa magnífica, repara bem no que te servem pois terás de preparar o mesmo" (cf Pr 23,1). É uma mesa magnífica, aquela em que comemos com o Senhor do banquete. Ele é o anfitrião que convida, Ele próprio é o alimento e a bebida. Os mártires prestaram atenção ao que comiam e bebiam para poderem dar o mesmo. Mas como teriam eles podido dar o mesmo se Aquele que fez a primeira oferta não lhes tivesse dado o que eles dariam? É isso que nos recomenda o salmo de onde retirámos esta frase: "É preciosa, aos olhos do Senhor, a morte dos Seus fiéis".

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Redemptor hominis - IV

João Paulo II

Redemptor hominis

aos veneráveis Irmãos no Episcopado
aos Sacerdotes
às Famílias religiosas
aos Filhos e Filhas da Igreja
e a todos os Homens de Boa Vontade
no início do Seu Ministério Pontifical

4 de março de 1979

IV. A MISSÃO DA IGREJA E O DESTINO DO HOMEM

18. A Igreja solicita pela vocação do homem em Cristo
Esta vista de olhos, necessariamente sumária, da situação do homem no mundo contemporâneo, faz-nos voltar ainda mais os nossos pensamentos e corações para Jesus Cristo, para o mistério da Redenção, no qual o problema do homem se acha inscrito com uma especial força de verdade e de amor. Se Cristo “se uniu de certo modo a cada homem”, [115] a Igreja, penetrando no íntimo deste mistério, na sua linguagem rica e universal, está vivendo também mais profundamente a própria natureza e missão. Não é em vão que o Apóstolo fala do Corpo de Cristo, que é a Igreja. [116] Se este Corpo Místico de Cristo, depois, é Povo de Deus — como dirá por sua vez o Concílio Vaticano II, baseando-se em toda a tradição bíblica e patrística — isto quer dizer que todos os homens nele são penetrados por aquele sopro de vida que provém de Cristo. Deste modo, o voltar-se para o homem, voltar-se para os seus reais problemas, para as suas esperanças e sofrimentos, para as suas conquistas e quedas, também faz com que a mesma Igreja como corpo, como organismo e como unidade social, perceba os mesmos impulsos divinos, as luzes e as forças do Espírito que provêm de Cristo crucificado e ressuscitado; e é por isto que ela vive a sua vida. A Igreja não tem outra vida fora daquela que lhe dá o seu Esposo e Senhor. De fato, exatamente porque Cristo, no seu mistério de Redenção, se uniu a ela, a Igreja deve estar fortemente unida com cada um dos homens.
Tal união de Cristo com o homem é em si mesma um mistério, do qual nasce o “homem novo”, chamado a participar na vida de Deus, [117] criado novamente em Cristo para a plenitude da graça e da verdade. [118] A união de Cristo com o homem é a força e a fonte da força, segundo a incisiva expressão de São João no prólogo do seu Evangelho: “O Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus”. [119] É esta força que transforma interiormente o homem, como princípio de uma vida nova que não fenece nem passa, mas dura para a vida eterna. [120] Esta vida, prometida e proporcionada a cada homem pelo Pai em Jesus Cristo, eterno e unigênito Filho, encarnado e nascido da Virgem Maria “ao chegar a plenitude dos tempos”, [121] é o complemento final da vocação do homem; é, de alguma maneira, o cumprir-se daquele “destino” que, desde toda a eternidade, Deus lhe preparou. Este “destino divino” torna-se via, por sobre todos os enigmas, as incógnitas, as tortuosidades e as curvas, do “destino humano” no mundo temporal. Se, de fato, tudo isto, não obstante toda a riqueza da vida temporal, leva por inevitável necessidade à fronteira da morte e à meta da destruição do corpo humano, apresenta-se-nos Cristo para além desta meta: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em Mim... não morrerá jamais”. [122] Em Jesus Cristo crucificado, deposto no sepulcro e depois ressuscitado, “brilha para nós a esperança da feliz ressurreição... a promessa da imortalidade futura”, [123] em direção à qual o homem caminha, através da morte do corpo, partilhando com tudo o que é criado e visível esta necessidade a que está sujeita a matéria. Nós tentamos e procuramos aprofundar cada vez mais a linguagem desta verdade que o Redentor do homem encerrou na frase: “O espírito é que vivifica, a carne para nada serve”. [124] Estas palavras, apesar das aparências, exprimem a mais alta afirmação do homem: a afirmação do corpo, que o espírito vivifica!
A Igreja vive esta realidade, vive desta verdade sobre o homem, o que lhe permite transpor as fronteiras da temporalidade e, ao mesmo tempo, pensar com particular amor e solicitude em tudo aquilo que, nas dimensões desta temporalidade, incide na vida do homem, na vida do espírito humano, onde se afirma aquela inquietude perene, expressa nas palavras de Santo Agostinho: “Fizestes-nos, Senhor, para Vós, e o nosso coração está inquieto, até que não repouse em Vós”. [125] Nesta inquietude criativa bate e pulsa aquilo que é mais profundamente humano: a busca da verdade, a insaciável necessidade do bem, a fome da liberdade, a nostalgia do belo e a voz da consciência. A Igreja, ao procurar ver o homem como que com “os olhos do próprio Cristo”, torna-se cada vez mais cônscia de ser a guarda de um grande tesouro, que não lhe é lícito dissipar, mas que deve continuamente aumentar. Com efeito, o Senhor Jesus disse: “Quem não ajunta comigo, dispersa”. [126] Aquele tesouro da humanidade, enriquecido do inefável mistério da filiação divina, [127] da graça de “adoção como filhos” [128] no Unigênito Filho de Deus, mediante a qual dizemos a Deus “Abbá, Pai”, [129] é ao mesmo tempo uma força potente que unifica a Igreja sobretudo por dentro e que dá sentido a toda a sua atividade. Por tal força a Igreja une-se com o Espírito de Cristo, com aquele Espírito Santo que o Redentor havia prometido e que comunica continuamente, e cuja descida, revelada no dia do Pentecostes, perdura sempre. Assim, no homem revelam-se as forças do Espírito, [130] os dons do Espírito, [131] os frutos do Espírito Santo. [132] E a Igreja do nosso tempo parece repetir cada vez com maior fervor e com santa insistência: “Vinde, Espírito Santo!”. Vinde! Vinde! “Lavai o que se apresenta sórdido! Regai o que está árido! Sarai o que está ferido! Abrandai o que é rígido! Aquecei o que está frígido! Guiai o que se acha transviado!”. [133]
Esta oração ao Espírito Santo, elevada precisamente com a intenção de obter o Espírito, é a resposta a todos os “materialismos” da nossa época. São estes que fazem nascer tantas formas de insaciabilidade do coração humano. Esta súplica se faz ouvir em diversos lugares e parece que frutifica também de modos diversos. Poder-se-á dizer que, nesta súplica, a Igreja não está sozinha? Sim, pode-se dizer, porque “a necessidade” daquilo que é espiritual é exprimida também por pessoas que se encontram fora dos confins visíveis da Igreja. [134] Ou não será isto mesmo confirmado, talvez, por aquela verdade sobre a Igreja, posta em evidência com tanta perspicácia pelo recente Concílio na Constituição dogmática Lumen Gentium, naquela passagem em que ensina ser a Igreja “sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano?”. [135]
Esta invocação ao Espírito e pelo Espírito não é outra coisa senão um constante introduzir-se na plena dimensão do mistério da Redenção, no qual Cristo, unido ao Pai e com cada homem, nos comunica sem cessar esse mesmo Espírito que põe em nós os sentimentos do Filho e nos orienta para o Pai. [136] É por isso que a Igreja da nossa época — época particularmente faminta de Espírito, porque faminta de justiça, de paz, de amor, de bondade, de fortaleza, de responsabilidade e de dignidade humana — deve se concentrar e reunir-se em torno de tal mistério da Redenção, encontrando nele a luz e a força indispensáveis para a própria missão. Com efeito, se o homem — como dizíamos antes — é a via da vida cotidiana da Igreja, é preciso que a mesma Igreja esteja sempre consciente da dignidade da adoção divina que o homem alcança, em Cristo, pela graça do Espírito Santo, [137] e da sua destinação à graça e à glória. [138]
Ao refletir sempre de modo renovado sobre tudo isto, e aceitando-o com uma fé cada vez mais consciente e com um amor cada vez mais firme, a Igreja se torna simultaneamente mais idônea para aquele serviço do homem, para o qual a chama Cristo Senhor, quando diz: “O Filho do homem... veio não para ser servido, mas para servir”. [139] A Igreja exerce este seu ministério, participando na “tríplice função” que é própria do seu mesmo Mestre e Redentor. Esta doutrina, com o seu fundamento bíblico, foi posta em plena luz pelo Concílio Vaticano II, com grande vantagem para a vida da Igreja. Quando, de fato, nos tornamos conscientes dessa participação na tríplice missão de Cristo, no seu tríplice múnus — sacerdotal, profético e real [140] — simultânea e paralelamente tornamo-nos mais conscientes também daquilo que deve servir a Igreja toda, como sociedade e comunidade do Povo de Deus sobre a terra, compreendendo, além disso, qual deva ser a participação de cada um de nós nesta missão e neste serviço.

19. A Igreja responsável pela verdade
Assim, à luz da sagrada doutrina do Concílio Vaticano II, a Igreja aparece frente a nós como sujeito social da responsabilidade pela verdade divina. Ouçamos com profunda emoção o mesmo Cristo, quando diz: “A palavra que vós ouvis não é minha, é do Pai, que me enviou”. [141] Nesta afirmação do nosso Mestre, não se adverte, porventura, aquela responsabilidade pela verdade revelada, que é “propriedade” do mesmo Deus, se até Ele, o “Filho unigênito” que vive “no seio do Pai”, [142] quando a transmite, como profeta e como mestre, sente necessidade de frisar bem que age em plena fidelidade à sua divina fonte? A mesma fidelidade deve ser uma qualidade constitutiva da fé da Igreja, quer quando ela a professa, quer quando ela a ensina. A fé como específica virtude sobrenatural infundida no espírito humano, faz-nos participantes no conhecimento de Deus, em resposta à sua Palavra revelada. Por isso, se exige que a Igreja, quando professa e ensina a Fé esteja estritamente aderente à verdade divina, [143] e que a mesma Fé se traduza em comportamentos vividos de obediência harmoniosa à razão. [144] O próprio Cristo, preocupado com esta fidelidade à verdade divina, prometeu à Igreja a particular assistência do Espírito da verdade, concedeu o dom da infalibilidade [145] àqueles a quem confiou o mandato de transmitir tal verdade e de ensiná-la [146] — doutrina esta que já havia sido claramente definida pelo Concílio Vaticano I [147] e que, depois, foi repetida também pelo Concílio Vaticano II [148] — e dotou ainda todo o Povo de Deus de um particular sentido da fé. [l49]
Por consequência, tornamo-nos participantes de tal missão de Cristo profeta; e, em virtude da mesma missão e juntamente com Ele, servimos à verdade divina na Igreja. A responsabilidade por esta verdade implica também amá-la e procurar obter a sua mais exata compreensão, de maneira a torná-la mais próxima de nós mesmos e dos outros, com toda a sua força salvífica, com o seu esplendor e com a sua profundidade e simplicidade a um tempo. Este amor e esta aspiração por compreender a verdade devem andar juntos, como o estão a confirmar as histórias pessoais dos Santos da Igreja. Eles eram os mais iluminados pela autêntica luz que esclarece a verdade divina e que aproxima a mesma realidade de Deus, porque se acercavam desta verdade com veneração e amor: amor sobretudo para com Cristo, Palavra viva da verdade divina e, ainda, amor para com a sua expressão humana no Evangelho, na Tradição e na Teologia. De igual modo hoje são necessárias, antes de mais, tal compreensão e tal interpretação da Palavra divina; é necessária tal Teologia. A Teologia teve sempre e continua a ter uma grande importância, para que a Igreja, Povo de Deus, possa participar na missão profética de Cristo de maneira criadora e fecunda. Por isso, os teólogos, como servidores da verdade divina, dedicando os seus estudos e trabalhos a uma cada vez mais penetrante compreensão da mesma verdade, não podem nunca perder de vista o significado do seu serviço na Igreja, contido no conceito do “intellectus fidei” ou seja, da “inteligência da fé”. Este conceito funciona, por assim dizer, a um ritmo bilateral, segundo a expressão de Santo Agostinho: “intellege, ut credas - crede, ut intellegas”. [150] Depois, funciona de maneira correta quando os mesmos teólogos procuram servir o Magistério confiado na Igreja aos Bispos, unidos pelo vínculo da comunhão hierárquica com o Sucessor de Pedro, e, ainda, quando se põem ao serviço da sua solicitude no ensino e na pastoral, como também quando se põem ao serviço dos interesses apostólicos de todo o Povo de Deus.
Como em épocas precedentes, também hoje — e talvez mais ainda — os teólogos e todos os homens de ciência na Igreja são chamados a unirem a fé com a ciência e a sapiência, a fim de contribuírem para uma recíproca compenetração das mesmas, como lemos na oração litúrgica da memória de Santo Alberto Magno, Doutor da Igreja. Este interesse ampliou-se enormemente nos dias de hoje, dado o progresso da ciência humana, dos seus métodos e das suas conquistas no conhecimento do mundo e do homem. E isto diz respeito tanto às chamadas ciências exatas, quanto igualmente às ciências humanas, bem como à Filosofia, cujos ligames estreitos com a Teologia foram recordados pelo Concílio Vaticano II. [151]
Neste campo do conhecimento humano, que continuamente se alarga e a um tempo se diferencia, também a fé deve aprofundar-se constantemente, tornando manifesta a dimensão do mistério revelado e tendendo para a compreensão da verdade, que tem em Deus a única e suprema fonte. Se é lícito — e é até mesmo para desejar — que aquele grande trabalho que se está por fazer neste sentido tome em consideração um certo pluralismo de métodos, tal trabalho, todavia, não pode afastar-se da fundamental unidade no ensino da Fé e da Moral, como finalidade que lhe é própria. É indispensável, portanto, que haja uma estreita colaboração da Teologia com o Magistério. Todos os teólogos devem estar particularmente conscientes daquilo que Cristo exprimiu, quando disse: “A palavra que vós ouvis não é minha, é do Pai, que me enviou”. [152] Ninguém, por conseguinte, pode tratar a Teologia como que se ela fosse uma simples coletânea dos próprios conceitos pessoais; mas cada um deve ter a consciência de permanecer em íntima união com aquela missão de ensinar a verdade, de que é responsável a Igreja.
A participação no múnus profético do próprio Cristo plasma a vida de toda a Igreja, na sua dimensão fundamental. Uma participação particular em tal múnus compete aos Pastores da Igreja, os quais ensinam e, continuamente e de diversos modos, anunciam e transmitem a doutrina da Fé e da Moral cristãs. Este ensino, quer sob o aspecto missionário quer sob o aspecto ordinário, contribui para congregar o Povo de Deus em torno de Cristo, prepara a participação na Eucaristia e indica as vias da vida sacramental. O Sínodo dos Bispos em 1977 dedicou uma atenção especial à catequese no mundo contemporâneo; e o fruto amadurecido das suas deliberações, experiências e sugestões encontrará, dentro em breve, a sua expressão — em conformidade com a proposta dos participantes no mesmo Sínodo — num apropriado Documento pontifício. A catequese constitui, certamente, uma perene e ao mesmo tempo fundamental forma de atividade da Igreja, na qual se manifesta o seu carisma profético: testemunho e ensino andam juntos. E se bem que aqui se fale em primeiro lugar dos Sacerdotes, não se pode deixar de recordar também o grande número de Religiosos e Religiosas que se dedicam à atividade de catequese por amor do divino Mestre. E seria difícil, por fim, não mencionar tantos e tantos Leigos que, nesta mesma atividade, encontram a expressão da sua fé e da sua responsabilidade apostólica.
Além disso, é preciso procurar cada vez mais que as várias formas de catequese e os seus diversos campos — a começar daquela forma fundamental que é a catequese “familiar”, isto é, a catequese dos pais em relação aos próprios filhos — atestem a participação universal de todo o Povo de Deus no múnus profético do mesmo Cristo. É necessário que, coligada a este fato, a responsabilidade da Igreja pela verdade divina seja cada vez mais, e de diversas maneiras, compartilhada por todos. E assim, o que é que diremos aqui dos especialistas das diversas disciplinas, dos representantes das ciências naturais e das letras, dos médicos, dos juristas, dos homens da arte e da técnica, e dos que se dedicam ao ensino nos vários graus e especializações? Todos eles — como membros do Povo de Deus — têm a sua parte própria na missão profética de Cristo, no seu serviço à verdade divina, até só através do seu modo honesto de comportar-se em relação à verdade, seja qual for o campo a que ela pertença, ao mesmo tempo em que educam os outros na verdade, ou lhes ensinam a maturar no amor e na justiça.
Deste modo, portanto, o sentido de responsabilidade pela verdade é um dos fundamentais pontos de encontro da Igreja com todos e cada um dos homens; e é igualmente uma das fundamentais exigências, que determinam a vocação do homem na comunidade da Igreja. A Igreja dos nossos tempos, guiada pelo sentido de responsabilidade pela verdade, deve perseverar na fidelidade à própria natureza, à qual pertence a missão profética que provém do mesmo Cristo: “Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio a vós ... Recebei o Espírito Santo”. [153]

20. Eucaristia e Penitência
No mistério da Redenção, isto é, da obra salvífica realizada por Jesus Cristo, a Igreja participa no Evangelho do seu Mestre, não apenas mediante a fidelidade à Palavra e através do serviço à verdade, mas igualmente mediante a submissão, cheia de esperança e de amor, ela participa na força da sua ação redentora, que Ele expressou e encerrou, de forma sacramental, sobretudo na Eucaristia. [154] Esta é o centro e o vértice de toda a vida sacramental, por meio da qual todos os cristãos recebem a força salvífica da Redenção, a começar do mistério do Batismo, no qual somos imersos na morte de Cristo, para nos tornarmos participantes da sua Ressurreição, [155] como ensina o Apóstolo. À luz desta doutrina, torna-se ainda mais clara a razão pela qual toda a vida sacramental da Igreja e de cada cristão alcança o seu vértice e a sua plenitude precisamente na Eucaristia. Neste Sacramento, de fato, renova-se continuamente, por vontade de Cristo, o mistério do sacrifício que Ele fez de si mesmo ao Pai sobre o altar da Cruz; sacrifício que o Pai aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que se tornou “obediente até à morte”, [156] com a sua doação paterna; ou seja, com o dom da vida nova imortal na ressurreição, porque o Pai é a primeira fonte e o doador da vida desde o princípio. Essa vida nova, que implica a glorificação corporal de Cristo crucificado, tornou-se sinal eficaz do novo dom outorgado à humanidade, dom que é o Espírito Santo, mediante o qual a vida divina, que o Pai tem em si e concede ao Filho ter em si mesmo, [157] é comunicada a todos os homens que estão unidos com Cristo.
A Eucaristia é o Sacramento mais perfeito desta união. Ao celebrarmos e ao mesmo tempo ao participarmos na Eucaristia, nós nos unimos a Cristo terrestre e celeste, que intercede por nós junto do Pai; [158] mas nos unimos sempre através do ato redentor do seu sacrifício, por meio do qual Ele nos remiu, de modo que fomos “comprados por um preço elevado”. [159] O “preço elevado” da nossa redenção comprova também ele o valor que o mesmo Deus atribui ao homem, comprova a nossa dignidade em Cristo. Realmente, tornando-nos “filhos de Deus”, [160] filhos de adoção, [161] à sua semelhança nós tornamo-nos ao mesmo tempo “reino de sacerdotes”, alcançamos o “sacerdócio real”, [162] isto é, participamos naquela restituição única e irreversível do homem e do mundo ao Pai, que Ele, Filho eterno [163] e ao mesmo tempo verdadeiro Homem, operou de uma vez para sempre. A Eucaristia é o Sacramento no qual se exprime mais cabalmente o nosso novo ser, e no qual o mesmo Cristo, incessantemente e sempre de maneira nova, “dá testemunho” no Espírito Santo ao nosso espírito [164] de que cada um de nós, enquanto participante no mistério da Redenção, tem acesso aos frutos da filial reconciliação com Deus, [165] tal como Ele mesmo a atuou e continua sempre a atuar no meio de nós, mediante o ministério da Igreja.
É uma verdade essencial, não só doutrinal mas também existencial, que a Eucaristia constrói a Igreja; [166] e constrói-a como autêntica comunidade do Povo de Deus, como assembleia dos fiéis, assinalada pelo mesmo caráter de unidade de que foram participantes os Apóstolos e os primeiros discípulos do Senhor. A Eucaristia constrói, renovando-a sempre, esta comunidade e unidade; constrói-a sempre e regenera-a sobre a base do sacrifício do mesmo Cristo, porque comemora a sua morte na cruz, [167] com o preço da qual fomos por Ele remidos. Por isso, na Eucaristia nós tocamos de certo modo o próprio mistério do Corpo e do Sangue do Senhor, como atestam as suas mesmas palavras no momento da instituição, em virtude da qual tais palavras se tornaram as palavras da perene celebração da Eucaristia, por parte dos chamados a este ministério na Igreja.
A Igreja vive da Eucaristia, vive da plenitude deste Sacramento, cujo maravilhoso conteúdo e significado tiveram a sua expressão no Magistério da Igreja, desde os tempos mais remotos até aos nossos dias. [168] Contudo, podemos dizer com certeza que este ensino — sustentado pela perspicácia dos teólogos, pelos homens de profunda fé e de oração e pelos ascetas e místicos, com toda a sua fidelidade ao mistério eucarístico — permanece como que no limiar, sendo incapaz de captar e de traduzir em palavras aquilo que é a Eucaristia em toda a sua plenitude, aquilo que ela exprime e aquilo que nela se atua. Ela é, de fato, o Sacramento inefável! O empenho essencial e, sobretudo, a graça visível e fonte da força sobrenatural da Igreja como Povo de Deus é o perseverar e o progredir constantemente na vida eucarística e na piedade eucarística, é o desenvolvimento espiritual no clima da Eucaristia. Com maior razão, portanto, não é lícito nem no pensamento, nem na vida, nem na ação tirar a este Sacramento, verdadeiramente santíssimo, a sua plena dimensão e o seu significado essencial. Ele é ao mesmo tempo Sacramento-Sacrifício, Sacramento-Comunhão e Sacramento-Presença. Se bem que seja verdade que a Eucaristia foi sempre e deve ser ainda agora a mais profunda revelação e celebração da fraternidade humana dos discípulos e confessores de Cristo, ela não pode ser considerada simplesmente como uma “ocasião” para se manifestar tal fraternidade. No celebrar o Sacramento do Corpo e do Sangue do Senhor, é necessário respeitar a plena dimensão do mistério divino, o pleno sentido deste sinal sacramental, em que Cristo, realmente presente, é recebido, a alma é repleta de graça e é dado o penhor da glória futura. [169] Daqui deriva o dever de uma rigorosa observância das normas litúrgicas e de tudo aquilo que testemunha o culto comunitário rendido ao mesmo Deus, tanto mais que Ele, neste sinal sacramental, Se nos entrega com confiança ilimitada, como se não tivesse em consideração a nossa fraqueza humana, a nossa indignidade, os nossos hábitos, a rotina, ou até mesmo a possibilidade de ultraje. Todos na Igreja, mas principalmente os Bispos e os Sacerdotes, devem vigiar para que este Sacramento de amor esteja no centro da vida do Povo de Deus e por que, através de todas as manifestações do culto devido, se proceda de molde a pagar “amor com amor” e a fazer com que Ele se torne verdadeiramente “a vida das nossas almas”. [170] Nem poderemos, ainda, esquecer nunca as seguintes palavras de São Paulo: “Examine-se, pois, cada qual a si mesmo e, assim, coma deste pão e beba deste cálice”. [171]
Esta exortação do Apóstolo indica, pelo menos indiretamente, o estreito ligame existente entre a Eucaristia e a Penitência. Com efeito, se a primeira palavra do ensino de Cristo, a primeira frase do Evangelho-Boa Nova, foi “fazei penitência e acreditai na Boa-Nova” (metanoèite), [172] o Sacramento da Paixão, da Cruz e Ressurreição parece reforçar e consolidar, de modo absolutamente especial, tal convite às nossas almas. A Eucaristia e a Penitência tornam-se assim, num certo sentido, uma dimensão dúplice e, a um tempo, intimamente conexa, da autêntica vida segundo o espírito do Evangelho, da vida verdadeiramente cristã. Cristo, que convida para o banquete eucarístico, é sempre o mesmo Cristo que exorta à penitência, que repete o “convertei-vos”. [173] Sem este constante e sempre renovado esforço pela conversão, a participação na Eucaristia ficaria privada da sua plena eficácia redentora, falharia ou, de qualquer modo, ficaria enfraquecida nela aquela particular disponibilidade para oferecer a Deus o sacrifício espiritual, [174] no qual se exprime de modo essencial e universal a nossa participação no sacerdócio de Cristo. Em Cristo, de fato o sacerdócio está unido com o próprio sacrifício, com a sua entrega ao Pai; e tal entrega, precisamente porque é ilimitada, faz nascer em nós — homens sujeitos a multíplices limitações — a necessidade de nos voltarmos para Deus, de uma forma cada vez mais amadurecida e com uma constante conversão, cada vez mais profunda.
Nos últimos anos muito se fez para pôr em realce — em conformidade, aliás, com a mais antiga tradição da Igreja — o aspecto comunitário da penitência e, sobretudo, do sacramento da Penitência na prática da Igreja. Estas iniciativas são úteis e servirão certamente para enriquecer a prática penitencial da Igreja contemporânea. Não podemos esquecer, no entanto, que a conversão é um ato interior de uma profundidade particular, no qual o homem não pode ser substituído pelos outros, não pode fazer-se “substituir” pela comunidade. Muito embora a comunidade fraterna dos fiéis, participantes na celebração penitencial, seja muito útil para o ato da conversão pessoal, todavia, definitivamente é necessário que neste ato se pronuncie o próprio indivíduo, com toda a profundidade da sua consciência, com todo o sentido da sua culpabilidade e da sua confiança em Deus, pondo-se diante dEle, à semelhança do Salmista, para confessar: “Pequei contra vós!”. [175] A Igreja, pois, ao observar fielmente a plurissecular prática do Sacramento da Penitência — a prática da confissão individual, unida ao ato pessoal de arrependimento e ao propósito de se corrigir e de satisfazer — defende o direito particular da alma humana. É o direito a um encontro mais pessoal do homem com Cristo crucificado que perdoa, com Cristo que diz, por meio do ministro do sacramento da Reconciliação: “São-te perdoados os teus pecados”; [176] “Vai e doravante não tornes a pecar”. [177] Como é evidente, isto é ao mesmo tempo o direito do próprio Cristo em relação a todos e a cada um dos homens por Ele remidos. É o direito de encontrar-se com cada um de nós naquele momento-chave da vida humana, que é o momento da conversão e do perdão. A Igreja, ao manter o sacramento da Penitência, afirma expressamente a sua fé no mistério da Redenção, como realidade viva e vivificante, que corresponde à verdade interior do homem, corresponde à humana culpabilidade e também aos desejos da consciência humana. “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”. [178] O sacramento da Penitência é o meio para saciar o homem com aquela justiça que provém do mesmo Redentor.
Na Igreja que, sobretudo nos nossos tempos, se reúne especialmente em torno da Eucaristia e deseja que a autêntica comunidade eucarística se torne sinal da unidade de todos os cristãos, unidade esta que vai maturando gradualmente, deve estar viva a necessidade da penitência, quer no seu aspecto sacramental, [179] quer também no que respeita à penitência como virtude. Este segundo aspecto foi expresso por Paulo VI na Constituição Apostólica Paenitemini. [180] Uma das obrigações da Igreja é o pôr em prática a doutrina que aí se contém. Trata-se de matéria que deverá, certamente, ser ainda mais aprofundada por nós, em comum reflexão, e tornada objeto de muitas decisões ulteriores, em espírito de colegialidade pastoral, com respeito pelas diversas tradições relacionadas com este ponto e pelas diversas circunstâncias da vida dos homens do nosso tempo. Todavia, é certo que a Igreja do novo Advento, a Igreja que se prepara continuamente para a nova vinda do Senhor, tem de ser a Igreja da Eucaristia e da Penitência. Somente com este perfil espiritual da sua vitalidade e atividade, ela é a Igreja da missão divina, a Igreja in statu missionis (em estado de missão), conforme nos foi revelado o rosto da mesma pelo Concílio Vaticano II.

21. Vocação cristã: servir e reinar
O Concílio Vaticano II, ao elaborar a partir dos próprios fundamentos a imagem da Igreja como Povo de Deus — através da indicação da tríplice missão do mesmo Cristo, participando na qual nós nos tornamos verdadeiramente Povo de Deus — sublinhou também aquela característica da vocação cristã que se pode definir “real”. Para apresentar toda a riqueza da doutrina conciliar sobre isto, seria necessário fazer aqui referência a numerosos capítulos e parágrafos da Constituição Lumen Gentium, bem como a muitos outros Documentos conciliares. No meio de toda esta riqueza, porém, há um elemento que parece emergir: a participação na missão real de Cristo, isto é, o fato de redescobrir em si e nos outros aquela particular dignidade da nossa vocação, que se pode designar por “realeza”. Tal dignidade exprime-se na disponibilidade para servir, segundo o exemplo de Cristo, o qual “não veio para ser servido, mas para servir”. [181]
Se, portanto, à luz da atitude de Cristo, se pode verdadeiramente “reinar” somente “servindo”, ao mesmo tempo este “servir” exige tal maturidade espiritual, que se tem de defini-la precisamente como “reinar”. Para se poder servir os outros digna e eficazmente, é necessário saber dominar-se a si mesmo, é preciso possuir as virtudes que tornam possível tal domínio. A nossa participação na missão real de Cristo — exatamente na sua “função real” (munus) — anda intimamente ligada com toda a esfera da moral cristã e também humana.
O Concílio Vaticano II, ao apresentar o quadro completo do Povo de Deus, recordando qual o lugar que nele ocupam, não apenas os sacerdotes, mas também os leigos, e não apenas os representantes da Hierarquia, mas também as e os representantes dos Institutos de vida consagrada, não deduziu essa imagem somente de uma premissa sociológica. A Igreja, enquanto sociedade humana, pode sem dúvida alguma ser examinada e definida segundo aquelas categorias de que se servem as ciências humanas. Mas tais categorias não são suficientes. Para toda a comunidade do Povo de Deus e para cada um dos seus membros, não se trata somente de um específico “pertencer socialmente”, mas sobretudo é essencial, para cada um e para todos, uma particular “vocação”. A Igreja, realmente, enquanto Povo de Deus — segundo a doutrina acima aludida de São Paulo, recordada de modo admirável por Pio XII — é também “Corpo Místico de Cristo”. [182] O pertencer a tal “Corpo” deriva de um chamamento particular, junto com a ação salvífica da graça. Portanto, se quisermos ter presente esta comunidade do Povo de Deus, tão vasta e sumamente diferenciada, devemos antes de mais ver Cristo, que diz, de certo modo, a cada um dos membros desta mesma comunidade: “Segue-me”. [183] Esta é a comunidade dos discípulos, cada um dos quais, de maneira diversa, por vezes muito consciente e coerentemente, e por vezes pouco conscientemente e muito incoerentemente, segue Cristo. Nisto manifesta-se também o aspecto profundamente “pessoal” e a dimensão desta sociedade, a qual — não obstante todas as deficiências da vida comunitária, no sentido humano desta palavra — é uma comunidade precisamente pelo fato de que todos a constituem juntamente com o mesmo Cristo, se não por outro motivo, ao menos porque têm nas suas almas o sinal indelével de quem é cristão.
O Concílio Vaticano II aplicou uma atenção muito particular em demonstrar de que maneira esta comunidade “ontológica” dos discípulos e dos confessores se deve tornar cada vez mais, também “humanamente”, uma comunidade consciente da própria vida e atividade. As iniciativas do Concílio quanto a isto encontraram a sua continuidade em numerosas iniciativas ulteriores, de caráter sinodal, apostólico e organizativo. Devemos ter sempre presente, no entanto, a verdade de que toda e qualquer iniciativa em tanto serve para uma verdadeira renovação da Igreja e em tanto contribui para aportar a autêntica luz de Cristo, [184] em quanto se baseia sobre uma adequada consciência da vocação e da responsabilidade por esta graça singular, única e que não se pode repetir, mediante a qual cada um dos cristãos na comunidade do Povo de Deus edifica o Corpo de Cristo. Este princípio, que é a regra-chave de toda a prática cristã — prática apostólica e pastoral, e prática da vida interior e da vida social — deve ser aplicado, em proporção adequada, a todos os homens e a cada um deles. Também o Papa, assim como todos os Bispos, o devem aplicar a si mesmos. A este princípio devem igualmente ser fiéis os sacerdotes, os religiosos e as religiosas. Com base nele, ainda, devem construir a sua vida os esposos, os pais, as mulheres e os homens de condições e de profissões diversas, a começar por aqueles que ocupam na sociedade os cargos mais elevados e a acabar por aqueles que fazem os trabalhos mais simples. É este justamente o princípio daquele “serviço real”, que impõe a cada um de nós, seguindo o exemplo de Cristo, o dever de exigir de si próprio exatamente aquilo para que somos chamados, e a que — para corresponder à vocação — nós nos obrigamos pessoalmente, com a graça de Deus.
Tal fidelidade à vocação recebida de Deus, mediante Cristo, acarreta consigo aquela solidária responsabilidade pela Igreja, para a qual o Concílio Vaticano II desejou educar todos os cristãos. Na Igreja, de fato, enquanto na comunidade do Povo de Deus, guiada pela ação do Espírito Santo, cada um possui “o próprio dom”, conforme ensina São Paulo. [185] Este “dom”, porém, embora seja uma vocação pessoal e uma forma também pessoal de participação na obra salvífica da Igreja, serve igualmente para os outros e constrói a Igreja e as comunidades fraternas nas várias esferas da existência humana sobre a terra.
A fidelidade à vocação, ou seja, a perseverante disponibilidade para o “serviço real”, tem um significado particular para esta multíplice construção, sobretudo pelo que se refere às tarefas de maior compromisso, que têm maior influência na vida do nosso próximo e de toda a sociedade. Devem distinguir-se pela fidelidade à própria vocação os esposos, como resulta da natureza indissolúvel da instituição sacramental do matrimônio. Devem distinguir-se por uma análoga fidelidade à própria vocação os sacerdotes, dado o caráter indelével que o sacramento da Ordem imprime nas suas almas. Ao receber este Sacramento, nós, na Igreja Latina, consciente e livremente comprometemo-nos a viver no celibato; e por isso, cada um de nós deve fazer todo o possível, com a graça de Deus, por ser reconhecido por este dom e fiel ao vínculo assumido para sempre. E isto não diversamente dos esposos: eles devem tender, com todas as suas forças, para perseverar na união matrimonial, construindo com este testemunho de amor a comunidade familiar e educando as novas gerações de homens para serem capazes de consagrar, também eles, toda a sua vida à própria vocação, ou seja, àquele “serviço real” do qual nos foram dados o exemplo e o modelo mais belo por Jesus Cristo.
A Igreja de Cristo, que nós todos formamos, é “para os homens”, no sentido de que, baseando-nos no exemplo do mesmo Cristo [186] e colaborando com a graça que Ele nos obteve, nós podemos atingir tal “reinar”, que o mesmo é dizer, realizar uma maturada humanidade em cada um de nós. Humanidade maturada significa pleno uso do dom da liberdade, que recebemos do Criador, no momento em que Ele chamou à existência o homem feito à sua imagem e semelhança. Este dom encontra a sua plena realização na doação, sem reservas, de toda a própria pessoa humana, em espírito de amor esponsal a Cristo e, com o mesmo Cristo, a todos aqueles aos quais Ele envia homens e mulheres que a Ele são totalmente consagrados segundo os conselhos evangélicos. Este é o ideal da vida religiosa, assumido pelas Ordens e Congregações, tanto antigas como recentes, e pelos Institutos seculares.
Nos nossos tempos, algumas vezes julga-se, erroneamente, que a liberdade é fim para si mesma, que cada homem é livre na medida em que usa da liberdade como quer, e que para isto é necessário tender-se na vida dos indivíduos e das sociedades. Mas a liberdade, ao contrário, só é um grande dom quando dela sabemos usar conscientemente, para tudo aquilo que é o verdadeiro bem. Cristo ensina que o melhor uso da liberdade é a caridade, que se realiza no dom e no serviço. Foi para tal liberdade “que Cristo nos libertou” [187] e nos liberta sempre. A Igreja vai haurir aqui a incessante inspiração, o estímulo e o impulso para a sua missão e para o seu serviço no meio de todos os homens. A verdade plena sobre a liberdade humana acha-se profundamente gravada no mistério da Redenção. A Igreja presta verdadeiramente um serviço à humanidade, quando tutela esta verdade, com infatigável aplicação, com amor ardente e com diligência maturada; e, ainda, quando, em toda a própria comunidade, através da fidelidade à vocação de cada um dos cristãos, a mesma Igreja a transmite e a concretiza na vida humana. Deste modo é confirmado aquilo a que já nos referimos em precedência, isto é, que o homem é e continuamente se torna a “via” da vida cotidiana da Igreja.

22. A Mãe da nossa confiança
Quando no início do novo Pontificado dirijo para o Redentor do mundo o meu pensamento e o meu coração, desejo deste modo entrar e penetrar no ritmo mais profundo da vida da Igreja. Com efeito, se a Igreja vive a sua própria vida, isso acontece porque ela a vai haurir em Cristo, o qual deseja sempre uma só coisa, isto é, que nós tenhamos a vida e a tenhamos abundantemente. [188] Aquela plenitude de vida que está nEle é ao mesmo tempo destinada ao homem. Por isso, a Igreja, ao se unir a toda a riqueza do mistério da Redenção, torna-se Igreja dos homens que vivem; e vivem, porque vivificados do interior pela ação do “Espírito da Verdade”, [189] e porque assistidos pelo amor que o Espírito Santo difunde nos nossos corações. [190] Assim, o objetivo de qualquer serviço na Igreja, seja ele apostólico, pastoral, sacerdotal ou episcopal, é o de manter este ligame dinâmico do mistério da Redenção com todos e cada um dos homens.
Se estamos conscientes deste intento a realizar, então nos parece compreender melhor o que significa dizer que a Igreja é mãe; [191] e, ainda, o que significa que a Igreja, sempre, mas de modo particular nos nossos tempos, tem necessidade de uma Mãe. Devemos uma gratidão especial aos Padres do Concílio Vaticano II, por terem expresso esta verdade na Constituição Lumen Gentium, com a rica doutrina mariológica que nela se encerra. [192] E dado que Paulo VI, inspirado por esta doutrina, proclamou a Mãe de Cristo “Mãe da Igreja”, [193] e que tal denominação teve uma ampla ressonância, seja permitido também ao seu indigno Sucessor dirigir-se a Maria como Mãe da Igreja, no final das presentes considerações, que era oportuno desenvolver no início do seu serviço pontifical.
Maria é a Mãe da Igreja, porque, em virtude da inefável eleição do mesmo Pai Eterno [194] e sob a particular ação do Espírito de Amor, [195] Ela deu a vida humana ao Filho de Deus, “do qual procedem todas as coisas e para o qual vão todas as coisas”, [196] e do qual assume a graça e a dignidade da eleição todo o Povo de Deus. O seu próprio Filho quis explicitamente estender a maternidade de sua Mãe — e estendê-la de um modo facilmente acessível a todas as almas e a todos os corações — apontando-lhe do alto da Cruz como filho o seu discípulo predileto. [197] E o Espírito Santo sugeriu-lhe que permanecesse no Cenáculo, após a Ascensão do Senhor, também Ela, recolhida na oração e na expectativa, juntamente com os Apóstolos, até ao dia do Pentecostes, quando devia visivelmente nascer a Igreja, saindo da obscuridade. [198]
E em seguida, todas as gerações de discípulos e de quantos confessam e amam Cristo — à semelhança do Apóstolo João — acolheram espiritualmente em sua casa [199] esta Mãe, que assim, desde os mesmos primórdios, isto é, a partir do momento da Anunciação, foi inserida na história da Salvação e na missão da Igreja. Nós todos, portanto, os que formamos a geração hodierna dos discípulos de Cristo desejamos nos unir a Ela de modo particular. E o fazemos com total aderência à tradição antiga e, ao mesmo tempo, com pleno respeito e amor pelos membros de todas as Comunidades cristãs.
Fazemo-lo, depois, impelidos por profunda necessidade da fé, da esperança e da caridade. Se, efetivamente, nesta fase difícil e cheia de responsabilidade da história da Igreja e da humanidade nós advertimos uma especial necessidade de nos dirigir a Cristo, que é o Senhor da sua Igreja e o Senhor da história do homem, em virtude do mistério da Redenção, estamos convencidos de que ninguém mais como Maria poderá introduzir-nos na dimensão divina e humana deste mistério. Ninguém como Maria foi introduzido nele pelo próprio Deus. Nisto consiste o caráter excepcional da graça da Maternidade divina. Não somente é única e algo que se não pode repetir a dignidade desta Maternidade na história do gênero humano, mas única também pela profundidade e raio de ação é a participação de Maria no plano divino da salvação do homem, através do mistério da Redenção.
Este mistério formou-se, podemos dizer, sob o coração da Virgem de Nazaré, quando Ela pronunciou o seu “fiat” (faça-se). A partir daquele momento esse coração virginal e ao mesmo tempo materno, sob a particular ação do Espírito Santo, acompanha sempre a obra do seu Filho e palpita na direção de todos aqueles que Cristo abraçou e abraça continuamente com o seu inexaurível amor. E, por isso mesmo, este coração deve ser também maternalmente inexaurível. A característica deste amor materno, que a Mãe de Deus insere no mistério da Redenção e na vida da Igreja, encontra a sua expressão na sua singular proximidade em relação ao homem e a todos as suas vicissitudes. Nisto consiste o mistério da Mãe. A Igreja, que A olha com amor e esperança muito particular, deseja apropriar-se deste mistério de maneira cada vez mais profunda. Nisto, de fato, a mesma Igreja reconhece também a via da sua vida cotidiana, que é todo o homem, todos e cada um dos homens.
O eterno amor do Pai, manifestando-se na história da humanidade através do Filho que o mesmo Pai deu “para que todo aquele que crê nEle não pereça mas tenha a vida eterna”, [200] esse amor aproxima-se de cada um de nós por meio desta Mãe e, de tal modo, adquire sinais compreensíveis e acessíveis para cada homem. Por conseguinte, Maria deve encontrar-se em todas as vias da vida cotidiana da Igreja. Mediante a sua maternal presença, a Igreja ganha certeza de que vive verdadeiramente a vida do seu Mestre e Senhor, de que vive o mistério da Redenção em toda a sua vivificante profundidade e plenitude. De igual modo, a mesma Igreja, que tem as suas raízes em numerosos e variados campos da vida de toda a humanidade contemporânea, adquire também a certeza e, dir-se-ia, a experiência de estar bem próxima do homem, de todos e de cada um dos homens, de que é a sua Igreja: Igreja do Povo de Deus.
Perante tais tarefas, que surgem ao longo das vias da Igreja, ao longo daquelas vias que o Papa Paulo VI nos indicou claramente na primeira Encíclica do seu Pontificado, nós, conscientes da absoluta necessidade de todas estas vias e, ao mesmo tempo, das dificuldades que sobre elas se amontoam, sentimos ainda mais ser-nos indispensável uma profunda ligação com Cristo. Ressoam em nós, como um eco sonoro, as palavras que Ele disse: “Sem mim, nada podeis fazer”. [201] E não só sentimos esta necessidade, mas ainda um imperativo categórico para uma grande, intensa e crescente oração de toda a Igreja. Somente a oração pode fazer com que estas grandes tarefas e dificuldades que se lhes seguem não se tornem fonte de crise, mas ocasião e como que fundamento para conquistas cada vez mais maturadas na caminhada do Povo de Deus em direção à Terra Prometida, nesta etapa da história que se vai aproximando do final do segundo Milênio.
Portanto, ao terminar esta meditação, com uma calorosa e humilde exortação à oração, desejo que se persevere nesta oração unidos com Maria, Mãe de Jesus, [202] assim como perseveraram os Apóstolos e discípulos do Senhor, após a Ascensão, no Cenáculo de Jerusalém. [203] E suplico a Maria, celeste Mãe da Igreja, sobretudo, que nesta oração do novo Advento da humanidade, Ela se digne de perseverar conosco, que formamos a Igreja, isto é, o Corpo Místico do Seu Filho unigênito. Eu espero que, graças a tal oração, nós possamos receber o Espírito Santo que desce sobre nós; [204] e, deste modo, tornar-nos testemunhas de Cristo “até às extremidades da terra”, [205] como aqueles que saíram do Cenáculo de Jerusalém no dia do Pentecostes.
Com a Bênção Apostólica.
Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 4 de Março, primeiro Domingo da Quaresma, do ano de 1979, primeiro do meu Pontificado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 4 de março de 1979. Revisado por Paulo R. A. Pacheco.

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