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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Quaresma: tempo propício para renovarmos nosso caminho de fé


Mensagem de Sua Santidade
Papa Bento XVI
para a Quaresma de 2012

“Prestemos atenção uns aos outros,
para nos estimularmos ao amor e às boas obras” (Hb 10, 24)

Irmãos e irmãs!
A Quaresma oferece-nos a oportunidade de refletir mais uma vez sobre o cerne da vida cristã: o amor. Com efeito, este é um tempo propício para renovarmos, com a ajuda da Palavra de Deus e dos Sacramentos, o nosso caminho pessoal e comunitário de fé. Trata-se de um percurso marcado pela oração e a partilha, pelo silêncio e o jejum, com a esperança de viver a alegria pascal.
Desejo, este ano, propor alguns pensamentos inspirados num breve texto bíblico tirado da Carta aos Hebreus: “Prestemos atenção uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras” (Hb 10, 24). Esta frase aparece inserida numa passagem onde o escritor sagrado exorta a ter confiança em Jesus Cristo como Sumo Sacerdote, que nos obteve o perdão e o acesso a Deus. O fruto do acolhimento de Cristo é uma vida edificada segundo as três virtudes teologais: trata-se de nos aproximarmos do Senhor “com um coração sincero, com a plena segurança da ” (v. 22), de conservarmos firmemente “a profissão da nossa esperança” (v. 23), numa solicitude constante por praticar, juntamente com os irmãos, “o amor e as boas obras” (v. 24). Na passagem em questão afirma-se também que é importante, para apoiar esta conduta evangélica, participar nos encontros litúrgicos e na oração da comunidade, com os olhos fixos na meta escatológica: a plena comunhão em Deus (v. 25). Detenho-me no versículo 24, que, em poucas palavras, oferece um ensinamento precioso e sempre atual sobre três aspectos da vida cristã: prestar atenção ao outro, a reciprocidade e a santidade pessoal.

1. “Prestemos atenção”: a responsabilidade pelo irmão
O primeiro elemento é o convite a “prestar atenção”: o verbo grego usado é katanoein, que significa observar bem, estar atento, olhar conscienciosamente, dar-se conta de uma realidade. Encontramo-lo no Evangelho, quando Jesus convida os discípulos a “observar” as aves do céu, que não se preocupam com o alimento e todavia são objeto de solícita e cuidadosa Providência divina (cf. Lc 12, 24), e a “dar-se conta” do cisco que têm na própria vista antes de reparar na trave que está na vista do irmão (cf. Lc 6, 41). Encontramos o referido verbo também em outro trecho da mesma Carta aos Hebreus, quando convida a “considerar Jesus” (Lc 3, 1) como o Apóstolo e o Sumo Sacerdote da nossa fé. Por conseguinte o verbo, que aparece na abertura da nossa exortação, convida a fixar o olhar no outro, a começar por Jesus, e a estar atentos uns aos outros, a não se mostrar alheio e indiferente ao destino dos irmãos. Mas, com frequência, prevalece a atitude contrária: a indiferença, o desinteresse, que nascem do egoísmo, mascarado por uma aparência de respeito pela “esfera privada”. Também hoje ressoa, com vigor, a voz do Senhor que chama cada um de nós a cuidar do outro. Também hoje Deus nos pede para sermos o “guarda” dos nossos irmãos (cf. Gn 4, 9), para estabelecermos relações caracterizadas por recíproca solicitude, pela atenção ao bem do outro e a todo o seu bem. O grande mandamento do amor ao próximo exige e incita a consciência a sentir-se responsável por quem, como eu, é criatura e filho de Deus: o fato de sermos irmãos em humanidade e, em muitos casos, também na fé deve levar-nos a ver no outro um verdadeiro alter ego, infinitamente amado pelo Senhor. Se cultivarmos este olhar de fraternidade, brotarão naturalmente do nosso coração a solidariedade, a justiça, bem como a misericórdia e a compaixão. O Servo de Deus Paulo VI afirmava que o mundo atual sofre sobretudo de falta de fraternidade: “O mundo está doente. O seu mal reside mais na crise de fraternidade entre os homens e entre os povos, do que na esterilização ou no monopólio, que alguns fazem, dos recursos do universo” (Carta enc. Populorum progressio, 66).
A atenção ao outro inclui que se deseje, para ele ou para ela, o bem sob todos os seus aspectos: físico, moral e espiritual. Parece que a cultura contemporânea perdeu o sentido do bem e do mal, sendo necessário reafirmar com vigor que o bem existe e vence, porque Deus é “bom e faz o bem” (Sl 119, 68). O bem é aquilo que suscita, protege e promove a vida, a fraternidade e a comunhão. Assim a responsabilidade pelo próximo significa querer e favorecer o bem do outro, desejando que também ele se abra à lógica do bem; interessar-se pelo irmão quer dizer abrir os olhos às suas necessidades. A Sagrada Escritura adverte contra o perigo de ter o coração endurecido por uma espécie de “anestesia espiritual”, que nos torna cegos aos sofrimentos alheios. O evangelista Lucas narra duas parábolas de Jesus, nas quais são indicados dois exemplos desta situação que se pode criar no coração do homem. Na parábola do bom Samaritano, o sacerdote e o levita, com indiferença, “seguiram adiante” do homem assaltado e espancado pelos salteadores (cf. Lc 10, 30-32), e, na do rico avarento, um homem saciado de bens não se dá conta da condição do pobre Lázaro que morre de fome à sua porta (cf. Lc 16, 19). Em ambos os casos, deparamo-nos com o contrário de “prestar atenção”, de olhar com amor e compaixão. O que é que impede este olhar feito de humanidade e de carinho pelo irmão? Com frequência, é a riqueza material e a saciedade, mas pode ser também o antepor a tudo os nossos interesses e preocupações próprias. Sempre devemos ser capazes de “ter misericórdia” por quem sofre; o nosso coração nunca deve estar tão absorvido pelas nossas coisas e problemas que fique surdo ao brado do pobre. Diversamente, a humildade de coração e a experiência pessoal do sofrimento podem, precisamente, revelar-se fonte de um despertar interior para a compaixão e a empatia: “O justo conhece a causa dos pobres, porém o ímpio não o compreende” (Pr 29, 7). Deste modo entende-se a bem-aventurança “dos que choram” (Mt 5, 4), isto é, de quantos são capazes de sair de si mesmos porque se comoveram com o sofrimento alheio. O encontro com o outro e a abertura do coração às suas necessidades são ocasião de salvação e de bem-aventurança.
O fato de “prestar atenção” ao irmão inclui, igualmente, a solicitude pelo seu bem espiritual. E aqui desejo recordar um aspecto da vida cristã que me parece esquecido: a correção fraterna, tendo em vista a salvação eterna. De forma geral, hoje se é muito sensível ao tema do cuidado e do amor que visa ao bem físico e material dos outros, mas quase não se fala da responsabilidade espiritual pelos irmãos. Na Igreja dos primeiros tempos não era assim, como não o é nas comunidades verdadeiramente maduras na fé, nas quais se tem a peito não só a saúde corporal do irmão, mas também a da sua alma tendo em vista o seu destino derradeiro. Lemos na Sagrada Escritura: “Repreende o sábio e ele te amará. Dá conselhos ao sábio e ele se tornará ainda mais sábio, ensina o justo e ele aumentará o seu saber” (Pr 9, 8-9). O próprio Cristo manda repreender o irmão que cometeu um pecado (cf. Mt 18, 15). O verbo usado para exprimir a correção fraterna – elenchein – é o mesmo que indica a missão profética, própria dos cristãos, de denunciar uma geração que se faz condescendente com o mal (cf. Ef 5, 11). A tradição da Igreja enumera entre as obras espirituais de misericórdia a de “corrigir os que erram”. É importante recuperar esta dimensão do amor cristão. Não devemos ficar calados diante do mal. Penso aqui na atitude daqueles cristãos que preferem, por respeito humano ou mera comodidade, adequar-se à mentalidade comum em vez de alertar os próprios irmãos contra modos de pensar e agir que contradizem a verdade e não seguem o caminho do bem. Entretanto a advertência cristã nunca há de ser animada por espírito de condenação ou censura; é sempre movida pelo amor e a misericórdia e brota duma verdadeira solicitude pelo bem do irmão. Diz o apóstolo Paulo: “Se porventura um homem for surpreendido em alguma falta, vós, que sois espirituais, corrigi essa pessoa com espírito de mansidão, e tu olha para ti próprio, para não seres surpreendido, tu também, pela tentação” (Gl 6, 1). Neste nosso mundo impregnado de individualismo, é necessário redescobrir a importância da correção fraterna, para caminharmos juntos para a santidade. É que “sete vezes cai o justo” (Pr 24, 16) – diz a Escritura –, e todos nós somos frágeis e imperfeitos (cf. 1Jo 1, 8). Por isso, é um grande serviço ajudar, e deixar-se ajudar, a ler com verdade dentro de si mesmo, para melhorar a própria vida e seguir mais retamente o caminho do Senhor. Há sempre necessidade de um olhar que ama e corrige, que conhece e reconhece, que discerne e perdoa (cf. Lc 22, 61), como fez, e faz, Deus com cada um de nós.

2. “Uns aos outros”: o dom da reciprocidade
O fato de sermos o “guarda” dos outros contrasta com uma mentalidade que, reduzindo a vida unicamente à dimensão terrena, deixa de considerá-la na sua perspectiva escatológica e aceita qualquer opção moral em nome da liberdade individual. Uma sociedade como a atual pode se tornar surda tanto aos sofrimentos físicos, quanto às exigências espirituais e morais da vida. Não deve ser assim na comunidade cristã! O apóstolo Paulo convida a procurar o que “leva à paz e à edificação mútua” (Rm 14, 19), favorecendo o “próximo no bem, visando à edificação da comunidade” (Rm 15, 2), sem buscar “o próprio interesse, mas o do maior número, a fim de que eles sejam salvos” (1Cor 10, 33). Esta recíproca correção e exortação, em espírito de humildade e de amor, deve fazer parte da vida da comunidade cristã.
Os discípulos do Senhor, unidos a Cristo através da Eucaristia, vivem numa comunhão que os liga uns aos outros como membros de um só corpo. Isto significa que o outro me pertence: a sua vida, a sua salvação têm que ver com a minha vida e a minha salvação. Tocamos aqui um elemento muito profundo da comunhão: a nossa existência está ligada com a dos outros, tanto no bem quanto no mal; tanto o pecado como as obras de amor possuem também uma dimensão social. Na Igreja, corpo místico de Cristo, verifica-se esta reciprocidade: a comunidade não cessa de fazer penitência e implorar perdão para os pecados dos seus filhos, mas se alegra contínua e jubilosamente também com os testemunhos de virtude e de amor que nela se manifestam. Que “os membros tenham a mesma solicitude uns para com os outros” (1Cor 12, 25) – afirma São Paulo –, porque somos um e o mesmo corpo. O amor pelos irmãos, do qual é expressão a esmola – típica prática quaresmal, juntamente com a oração e o jejum – radica-se nesta pertença comum. Também com a preocupação concreta pelos mais pobres, cada cristão pode expressar a sua participação no único corpo que é a Igreja. E é também atenção aos outros na reciprocidade saber reconhecer o bem que o Senhor faz neles e agradecer com eles pelos prodígios da graça que Deus, bom e onipotente, continua a realizar nos seus filhos. Quando um cristão vislumbra no outro a ação do Espírito Santo, não pode deixar de se alegrar e dar glória ao Pai celeste (cf. Mt 5, 16).

3. “Para nos estimularmos ao amor e às boas obras”: caminhar juntos na santidade
Esta afirmação da Carta aos Hebreus (Hb 10, 24) impele-nos a considerar a vocação universal à santidade como o caminho constante na vida espiritual, a aspirar aos carismas mais elevados e a um amor cada vez mais alto e fecundo (cf. 1Cor 12, 31-13, 13). A atenção recíproca tem como finalidade estimular-se, mutuamente, a um amor efecivo sempre maior, “como a luz da aurora, que cresce até ao romper do dia” (Pr 4, 18), à espera de viver o dia sem ocaso em Deus. O tempo, que nos é concedido na nossa vida, é precioso para descobrir e realizar as boas obras, no amor de Deus. Assim a própria Igreja cresce e se desenvolve para chegar à plena maturidade de Cristo (cf. Ef 4, 13). É nesta perspectiva dinâmica de crescimento que se situa a nossa exortação a estimular-nos reciprocamente para chegar à plenitude do amor e das boas obras.
Infelizmente, está sempre presente a tentação da tibieza, de sufocar o Espírito, da recusa de “colocar para render os talentos” que nos foram dados para bem nosso e dos outros (cf. Mt 25, 24-28). Todos recebemos riquezas espirituais ou materiais úteis para a realização do plano divino, para o bem da Igreja e para a nossa salvação pessoal (cf. Lc 12, 21; 1Tm 6, 18). Os mestres espirituais lembram que, na vida de fé, quem não avança, recua. Queridos irmãos e irmãs, acolhamos o convite, sempre atual, para tendermos à “medida alta da vida cristã” (João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte, 31). A Igreja, na sua sabedoria, ao reconhecer e proclamar a bem-aventurança e a santidade de alguns cristãos exemplares, tem como finalidade também suscitar o desejo de imitar as suas virtudes. São Paulo exorta: “Adiantai-vos uns aos outros na mútua estima” (Rm 12, 10).
Que todos, diante de um mundo que exige dos cristãos um renovado testemunho de amor e fidelidade ao Senhor, sintam a urgência de esforçar-se por adiantar no amor, no serviço e nas obras boas (cf. Hb 6, 10). Este apelo ressoa particularmente forte neste tempo santo de preparação para a Páscoa. Com votos de uma Quaresma santa e fecunda, confio-vos à intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria e, de coração, concedo a todos a Bênção Apostólica.
Vaticano, 3 de novembro de 2011

BENEDICTUS PP. XVI

* Extraído do site do Vaticano. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Porta fidei


Carta Apostólica
sob forma de Motu Proprio
Porta fidei
Do Sumo Pontífice
Bento XVI
com a qual se proclama o Ano da Fé.

1. A PORTA DA FÉ (cf. At 14, 27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na Sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se em um caminho que dura a vida inteira. Este caminho tem início no Batismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual podemos nos dirigir a Deus com o nome de Pai, e se conclui com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da Sua própria glória aqueles que creem nEle (cf. Jo 17, 22). Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor (cf. 1Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da Sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor.
2. Desde o princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do pontificado, disse: “A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens para fora do deserto, para lugares de vida, de amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude” [1]. Acontece não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora, tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado [2]. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas.
3. Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16). O homem contemporâneo também pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer nEle e a beber na Sua fonte, de onde jorra água viva (cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentar da Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida, oferecidos como sustento daqueles que são Seus discípulos (cf. Jo 6, 51). De fato, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma força, este ensinamento de Jesus: “Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna” (Jo 6, 27). E a questão, então posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós também hoje: “Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?” (Jo 6, 28). Conhecemos a resposta de Jesus: “A obra de Deus é esta: crer nAquele que Ele enviou” (Jo 6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para se poder chegar definitivamente à salvação.
4. À luz de tudo isto, decidi proclamar um Ano da Fé. Este terá início a 11 de outubro de 2012, no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, a 24 de novembro de 2013. Na referida data de 11 de outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, texto promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II [3], com o objetivo de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 como instrumento ao serviço da catequese [4] e foi realizado com a colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o mês de outubro de 2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo de particular reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a celebrar um Ano da Fé. O meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um ano semelhante, em 1967, para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono centenário do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para que houvesse, em toda a Igreja, “uma autêntica e sincera profissão da mesma fé”; quis ainda que esta fosse confirmada de maneira “individual e coletiva, livre e consciente, interior e exterior, humilde e franca” [5]. Pensava que a Igreja poderia assim retomar “exata consciência da sua fé para a reavivar, purificar, confirmar, confessar” [6]. As grandes convulsões, que se verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a necessidade de uma celebração como tal. Esta terminou com a Profissão de Fé do Povo de Deus [7], para atestar como os conteúdos essenciais, que há séculos constituem o patrimônio de todos os crentes, necessitam de ser confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre nova para se dar testemunho coerente deles em condições históricas diversas das do passado.
5. Sob alguns aspectos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como uma “consequência e exigência pós-conciliar” [8], bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à profissão da verdadeira fé e da sua reta interpretação. Pareceu-me que fazer coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, “não perdem o seu valor nem a sua beleza. É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério, no âmbito da Tradição da Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa” [9]. Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a propósito do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: “Se o lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja” [10].
6. A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de fato, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição dogmática Lumen gentium, afirma: “Enquanto Cristo ‘santo, inocente, imaculado’ (Hb 7, 26), não conheceu o pecado (cf. 2Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Hb 2, 17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja ‘prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus’, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1Cor 11, 26). Mas é robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz” [11].
Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da Sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. At 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem em uma vida nova: “Pelo Batismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos em uma vida nova” (Rm 6, 4). Em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afetos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A “fé, que atua pelo amor” (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de ação, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2Cor 5, 17).
7. “Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele” (2Cor 5, 14): é o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo para proclamar o Seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o Seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor de uma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do Seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de fato, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à Sua Palavra a fim de se tornarem Seus discípulos. Os crentes – atesta Santo Agostinho – “fortificam-se acreditando” [12]. O Santo Bispo de Hipona tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus [13]. Os seus numerosos escritos, onde se explica a importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias como um patrimônio de riqueza incomparável e consentem ainda que tantas pessoas à procura de Deus encontrem o justo percurso para chegar à “porta da fé”.
Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a se tornarem mais conscientes e a revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo em um momento de profunda mudança como este que a humanidade está vivendo. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do Credo.
9. Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é “a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força” [14]. Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada [15] e refletir sobre o próprio ato com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a aprender de memória o Credo. É que este lhes servia de oração diária, para não esquecerem o compromisso assumido com o Batismo. Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo Agostinho quando afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a entrega do Credo): “O símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós o recebestes e proferistes, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por ele” [16].
10. Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o ato pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. Com efeito, existe uma unidade profunda entre o ato com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite entrar nesta realidade quando escreve: “Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé” (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro ato, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus e ação da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma.
A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas, estava Lídia. “O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia” (At 16, 14). O sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o conhecimento dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se depois o coração – autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela graça, que consente ter olhos para ver em profundidade e compreender que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um fato privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este “estar com Ele” introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um ato da liberdade, exige também assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a própria fé a toda as pessoas. É o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e corajoso.
A própria profissão da fé é um ato simultaneamente pessoal e comunitário. De fato, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Batismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da Igreja Católica, “‘Eu creio’: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião do Batismo. ‘Nós cremos’: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. ‘Eu creio’: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: ‘Eu creio’, ‘Nós cremos’” [17].
Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade ao que é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque a garantia da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o Seu mistério de amor [18].
Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um verdadeiro “preâmbulo” da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao mistério de Deus. Com efeito, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência “daquilo que vale e permanece sempre” [19]. Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao encontro dAquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo ao nosso encontro [20]. É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé.
11. Para chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio precioso e indispensável no Catecismo da Igreja Católica. Este constitui um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição apostólica Fidei depositum – não sem razão assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II – o Beato João Paulo II escrevia: “Este catecismo dará um contributo muito importante à obra de renovação de toda a vida eclesial (...). Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso, instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial” [21].
É precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol da redescoberta e do estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm no Catecismo da Igreja Católica a sua síntese sistemática e orgânica. Nele, de fato, sobressai a riqueza de doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história. Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os Mestres de teologia aos Santos que atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma memória permanente dos inúmeros modos em que a Igreja meditou sobre a fé e progrediu na doutrina para dar certeza aos crentes na sua vida de fé.
Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando as páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, em seguida à profissão de fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual Cristo está presente e operante, continuando a construir a Sua Igreja. Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos cristãos. Na mesma linha, a doutrina do Catecismo sobre a vida moral adquire todo o seu significado, se for colocada em relação com a fé, a liturgia e a oração.
12. Assim, no Ano em questão, o Catecismo da Igreja Católica poderá ser um verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para os que se comprometem com a formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto cultural. Com tal finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da Fé a redigir, de comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma Nota, através da qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos moldes mais eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.
De fato, em nossos dias mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogações, que provêm de uma mentalidade diversa que, hoje de uma forma particular, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica, porque ambas, embora por caminhos diferentes, tendem para a verdade [22].
13. Será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos.
Ao longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, “autor e consumador da fé” (Hb 12, 2): nEle encontra plena realização toda a ânsia e aspiração do coração humano. A alegria do amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra plena realização no mistério da Sua Encarnação, do Seu fazer-Se homem, do partilhar conosco a fragilidade humana para a transformar com a força da Sua ressurreição. NEle, morto e ressuscitado para a nossa salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da nossa história de salvação.
Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao Altíssimo pelas maravilhas que realizava naqueles que a Ele se confiavam (cf. Lc 1, 46-55). Com alegria e tremor, deu à luz o seu Filho unigênito, mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando em José, seu Esposo, levou Jesus para o Egito a fim de salvá-Lo da perseguição de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na Sua pregação e permaneceu ao Seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27). Com fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando no coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51), transmitiu-a aos Doze reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. At 1, 14; At 2, 1-4).
Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28). Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e realizado na Sua Pessoa (cf. Lc 11, 20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a Sua doutrina, deixando-lhes uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos como Seus discípulos depois da morte dEle (cf. Jo 13, 34-35). Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida em torno do ensinamento dos Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir às necessidades dos irmãos (cf. At 2, 42-47).
Pela fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando tudo para viver em simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a castidade, sinais concretos de quem aguarda o Senhor, que não tarda a vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma ação em prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).
Pela fé, no correr dos séculos, homens e mulheres de todas as idades, cujos nomes estão escritos no Livro da vida (cf. Ap 7, 9; Ap 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados.
Pela fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na história.
14. O Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São Paulo: “Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade” (1Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento cotidiano, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome’, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: ‘Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé’” (Tg 2, 14-18). 
A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra realizar o seu caminho. De fato, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. “Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que permite reconhecer Cristo, e é o Seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre que Se faz nosso próximo no caminho da vida. Sustentados pela fé, olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando “novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça” (2Pd 3, 13; cf. Ap 21, 1).
15. Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pediu ao discípulo Timóteo que “procure a fé” (cf. 2Tm 2, 22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2Tm 3, 15). Sintamos este convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente de muitos outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim.
Que “a Palavra do Senhor avance e seja glorificada” (2Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé tornar cada vez mais firme a relação com Cristo Senhor, dado que só nEle temos a certeza para olhar o futuro e a garantia de um amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do apóstolo Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: “É por isso que exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações; deste modo, a qualidade genuína da vossa fé – muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes nEle e vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das almas” (1Pd 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia, permanece nEle como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À Mãe de Deus, proclamada “feliz porque acreditou” (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de graça.
Dado em Roma, em São Pedro, no dia 11 de outubro do ano 2011, sétimo de Pontificado.

BENEDICTUS PP. XVI

Notas
[1] Homilia no início do ministério petrino do Bispo de Roma (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710.
[2] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no Terreiro do Paço (Lisboa – 11 de Maio de 2010): L’Osservatore Romano (ed. port. de 15/V/2010), 3.
[3] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 113-118.
[4] Cf. Relação final do Sínodo Extraordinário dos Bispos (7 de Dezembro de 1985), II, B, a, 4: L’Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 650.
[5] Paulo VI, Exort. ap. Petrum et Paulum Apostolos, no XIX centenário do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (22 de Fevereiro de 1967): AAS 59 (1967), 196.
[6] Ibid.: o.c., 198.
[8] Paulo VI, Audiência Geral (14 de Junho de 1967): Insegnamenti, V (1967), 801.
[9] João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 57: AAS 93 (2001), 308.
[10] Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 52.
[11] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 8.
[12] De utilitate credendi, 1, 2.
[13] Cf. Confissões, 1, 1.
[14] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 10.
[15] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 116.
[16] Santo Agostinho, Sermo 215, 1.
[18] Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, cap. III: DS 3008-3009; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 5.
[19] Bento XVI, Discurso no “Collège des Bernardins” (Paris, 12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 722.
[20] Cf. Santo Agostinho, Confissões, 13, 1.
[21] Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 115 e 117.
[22] Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 34.106: AAS 91 (1999), 31-32.86-87.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 11 de outubro de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A grande alternativa proposta por Bento XVI entre o Mistério e a falta de sentido



Entrevista realizada por Federico Ferraù com Nikolaus Lobkowicz

“Como reconhecer o que é justo?” É esta a pergunta fundamental que está no centro da extraordinária reflexão sobre os fundamentos do direito que Bento XVI desenvolveu no seu discurso no Bundestag, durante a última viagem apostólica à Alemanha. IlSussidiario.net conversou a respeito dele com o filósofo Nikolaus Lobkowicz, que foi reitor da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique e Presidente da Universidade Católica de Eichstätt, e atualmente é diretor do ZIMOS - Zentral Institut für Mittel- und Osteuropastudien, centro de estudos dedicado à Europa Central e Oriental.

Professor Lobkowicz, o discurso que o Papa Bento XVI dirigiu ao Parlamento Federal Alemão é, de verdade, tão importante assim?
Certamente. Não era a primeira vez que um Papa falava diante de um Parlamento: pensem nos discursos de Paulo VI e de João Paulo II diante da Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas, é a primeira vez que um Papa, a convite do Presidente do Parlamento Alemão, discursa diante dele. A Alemanha é o país de origem de Martinho Lutero, do homem de quem brotou a primeira grande divisão da cristandade na época moderna. A maior parte das divisões ocorridas depois foi apenas uma consequência direta ou indireta deste acontecimento. Em primeiro lugar, é certo que Bento XVI aceitou o convite do Parlamento da sua pátria, mas, segundo penso, o significado verdadeiro do seu discurso diante do Parlamento Federal está no fato de se inserir nos esforços do Pontífice no sentido de promover a “reunificação” dos cristãos.

Uma reunificação? Mas, será uma proposta realista?
Esta reunificação é, para um católico, invariavelmente uma “recondução”, não à força, para a Igreja romana católica assim como se encontra hoje, mais especificamente à comunidade dos cristãos tal como a queria o Senhor e da qual a Igreja católica sempre se concebeu e ainda se concebe como a representante. Bento XVI certamente foi convidado como um chefe de Estado, a Cidade do Vaticano. Todavia, todos entenderam este convite não como um convite de um Estado a outro Estado, mas como o convite àquele que é o chefe da comunidade cristã de longe a mais numerosa, uma comunidade que se considera como a comunidade dos cristãos da qual se dividiram todas as outras. Naturalmente, hoje, a Alemanha não é apenas um país de católicos ou protestantes. Muitos membros do Parlamento alemão são mais ou menos explicitamente ateus. Por isto, Bento XVI, entre as possíveis numerosas variantes para a sua alocução, escolheu um discurso que não sublinhasse aquilo que é especificamente católico e nem mesmo aquilo que é cristão, mas, por assim dizer, aquilo que é direito natural. Aquilo que a Igreja chama “direito natural” é, sim, provavelmente, compreensível particularmente a partir de um ponto de vista católico, mas é, em última instância, acessível a qualquer um, seja cristão ou não. A doutrina do direito natural está fundamentada na ordem da criação e não especificamente na obra de Redenção de Jesus Cristo.

Segundo o Papa, não podemos descobrir e explicar aquilo que é “justo” sem retornar ao conceito de “natureza”. Por quê?
Porque, para descobrir o que é justo, é preciso aprofundar a pergunta que diz respeito ao quê (ou quem) é o homem. “Natureza”, neste contexto, é compreendida não, ou somente incidentalmente, como a realidade fora do homem, mas como a essência do homem, assim como Deus o criou e quis. Este homem é danificado pelo pecado, pelo “pecado original”. Mas a sua essência não é destruída por ele – como, pelo contrário, afirmam os protestantes. Uma das diferenças mais importantes entre a compreensão do homem católica e a protestante consiste no fato que, para Lutero, nada daquilo que o homem realiza sem a graça de Deus pode ser ordenado e bom, enquanto que a Igreja católica sempre sustentou que a graça realiza a natureza, por isso a pressupõe e constrói sobre ela. Paradoxalmente, a compreensão protestante do homem fez como que não se pudesse quase mais falar daquilo que é o homem segundo a sua essência.

Explique isto melhor, professor.
Uma vez que tudo é destruído pelo pecado, até às suas últimas raízes, no fim o homem pode fazer tudo o que lhe vem em mente. Até mesmo a maior das perversões é, em última instância, legítima ou, pelo menos, compreensível, porque Deus, se o homem se arrepende do que fez, na medida em que é Deus misericordioso, o perdoa. Por assim dizer, deve perdoar: onde nada de humano é legítimo por si mesmo, tudo aquilo que o homem é e faz deve ser perdoado. Porém, a Igreja católica sempre sustentou que o homem, não obstante o dano causado pelo pecado original, é bom segundo a sua essência. Deve simplesmente agir e viver em conformidade com sua essência, e não contra ela. A graça constrói sobre esta essência e a realiza. Certamente falta algo se não há a graça, por exemplo, se um homem não encontrou a Cristo e não foi batizado. Mas, isto não significa que algo ou alguém a quem falta algo é inevitavelmente mau ou mesmo malvado.

Os pagãos confirmam isso, como dizia São Paulo.
Sim. Para o pagão, mesmo o do mundo moderno, falta algo, mas, por isto, não é também automaticamente um celerado que, ao final, deve ser condenado e danado. Neste sentido, a doutrina católica é um convite para conhecer Deus e se aproximar dEle, enquanto que a protestante é, em última instância, sempre a tentativa de uma salvação da danação. Por vezes, a radicalidade quase absurda desta concepção, a concepção protestante, levou a pensar que, no fundo, tudo aquilo que o homem faz para si e para os outros seja compreensível e, por isso mesmo, perdoável. Naturalmente, é preciso considerar que quase desde o seu início não existiu “a” doutrina protestante: desde sua origem ela se dividiu em um número de variantes constantemente em crescimento. Algumas delas até mesmo se aproximaram de novo da perspectiva católica.

Segundo o senhor, qual é a pedra angular de todo o discurso do Papa? Por quê?
Sendo que o Papa falou para pessoas de convicções muito diferentes, falou quase como um filósofo, naturalmente um filósofo cristão, e não em primeiro lugar como um teólogo. Isto foi simples para ele: de fato, Ratzinger, assim como Hans Urs von Balthasar ou Henri de Lubac, meio século atrás, é um dos homens mais cultos do nosso tempo e também um dos mais cultos da longa história de bispos de Roma. Eu consideraria como pensamento fundamental do seu discurso a intuição segundo a qual até certo ponto não é necessário ser um cristão crente para reconhecer o que é correto e justo, o que cabe ao homem e o que não cabe. Exatamente por isso o seu discurso tocou também os deputados que não queriam saber nada sobre a fé cristã. Teria tocado também aqueles que não queriam escutar o seu discurso e que, por isso, se mantiveram distantes. As maiorias não podem decidir o que é verdadeiro e o que é falso, justo ou injusto, o que faz bem ao homem e o que lhe traz algum dano. Por isto, é necessária a justa compreensão da essência da realidade e, sobretudo, do homem, uma compreensão que a Igreja católica sempre afirmou como possível e urgente. A fé cristã não nega esta compreensão, mas a realiza.

O Papa citou várias vezes o “coração dócil” (literalmente o “coração que escuta”; ndt) de Salomão. Este coração é razão, mas é também definido como consciência. Não tem um pouco de... confusão? Por quê?
Há duas maneiras para descrever aquilo que, em alemão, se chama “consciência”. De um lado a consciência é descrita como uma voz no fundo da nossa autoconsciência que adverte e condena; de outro lado, com este conceito se entende uma dedução graças à qual podemos saber quais das nossas ações seria ou era moral ou imoral, errada ou justa. Nesta última descrição, a razão desempenha um papel decisivo. Se se pensa sobre o que é ou seria razoável, busca-se o modo justo de agir. É preciso apenas prestar atenção no fato que “razoável” e “justo” significam, neste caso, algo de totalmente diferentes de “esperto”, “que promete sucesso” ou coisas parecidas. Razoáveis, neste sentido, são todas aquelas decisões e ações que, de verdade, consideram tudo aquilo de que se deve ser tido em conta, por exemplo que Deus nos deu, junto com nossa essência, também uma ordem moral, que devemos respeitar e que devemos considerar em todas as nossas decisões.

É este o “coração que escuta”?
Aquilo a que o Papa se refere quando fala do “coração que escuta” é exatamente isto: se escutamos a nossa consciência, escutamos a razão, neste sentido. Isto pressupõe, naturalmente, que não escutemos as premissas de uma ideologia que falsifica a realidade. No fundo, cada um de nós conhece esta situação: sabemos o que seria “a coisa justa”, porém nos persuadimos continuamente de que seria justo algo diferente, às vezes tão distante no tempo que a nossa consciência “emudece” e não é mais possível escutar a sua voz de advertência. Se eu torturo ou mato alguém, traio a minha mulher ou roubo algo, no fundo, sempre sei, independentemente da minha visão de mundo, que isto “não é justo”; só que me convenço que, levando em consideração as minhas circunstâncias, isto é justo ou até mesmo necessário. Naquele momento, sei perfeitamente que estou me iludindo, mas tendo me distrair, me convenço, minto para mim mesmo.

Na primeira parte, o Papa disse que “aquilo que é justo” não é mais evidente. Por onde passa o caminho (o método) para reencontrar esta evidência? Como nós, homens pós-modernos, podemos encontrar isto? 
Aquilo que eu acabei de descrever se tornou cada vez menos claramente reconhecível na nossa cultura, por causa do desaparecimento das tradições cristãs. Desde a Idade Média (Ratzinger escreveu sua tese de habilitação para a Universidade de Munique sobre Boaventura) nasceram sempre mais frequentemente filosofias ou modos de pensar comuns que apagaram e, por assim dizer, renegaram as tradições cristãs e, deste modo, também aquelas partes do pensamento da antiguidade pré-cristã retomadas pelo cristianismo. Isto causou uma atrofia ou mesmo um ressecamento das convicções tradicionais sobre o que é “justo”. Eu, no fundo, acredito que seja um absurdo esta frase feita sobre os “pós-modernos”. De fato, a ruptura é muito mais antiga, sobretudo na cultura alemã. Pensadores como Kant, Hegel ou Nietzsche, que tinham muita coisa justa para dizer, mas descuidaram da verdade sobre questões essenciais, marcaram a cultura alemã de modo determinante. Mesmo se Hegel, por exemplo, tivesse ficado horrorizado ao conhecer a ideologia dos nazistas ou dos comunistas, ainda assim algumas convicções atuais, particularmente nos países de língua alemã, são referidas a ele e aos seus herdeiros. Assim, a Igreja católica, a partir de muitos pontos de vista, se tornou quase a única instituição a manter vivo aquilo que a cultura ocidental entendeu. Eu acredito, por isso, que seja possível readquirir as justas convicções sobre aquilo que é verdadeiro, significativo, correto e justo, somente na medida em que o mundo, e sobretudo os países de língua alemã, se tornem “mais católicos” outra vez.

O que o senhor quer dizer com isso?
Com isto não entendo necessariamente que todos devem se tornar católicos. Mas se trata de um modo de pensar que somente os católicos conseguem levar adiante, e também uma parte essencial dos crentes ortodoxos e anglicanos. Com efeito, não gostaria de excluir que nos estamos aproximando de um tempo que, na tradição cristã, é descrito como o do anticristo. Exatamente nas últimas décadas, por exemplo, se tornou particularmente atual a visão do anticristo apresentada por Vladimir Soloviov no início do século XX. Talvez o fim da história da humanidade, o “fim do mundo”, esteja mais perto do que geralmente pensamos...

É necessário chamar em causa a razão criativa de Deus para tornar a unir razão e natureza?
Sim, porque em última instância apenas a ideia segundo a qual Deus é o criador, de um lado, de toda a realidade, e de outro, também da nossa razão, é que nos permite ver ambas como ordenadas uma à outra. Se não somos nada mais do que macacos por acaso altamente desenvolvidos, vivemos num mundo no qual tudo o que está em jogo é a sobrevivência; mas o homem não sobreviverá para sempre. Somente na medida em que se admite que Deus criou o mundo por amor ao homem, é que a nossa existência tem um sentido neste mundo. Para aqueles que veem em nós um macaco que, por acaso, é mais desenvolvido, de forma que tudo se deve ao acaso de uma cega evolução que poderia mesmo ter terminado de uma forma completamente diferente da forma como terminou, não é possível existir nenhum sentido “objetivo” para a existência do homem. Então, não somos nada mais do que produto do acaso, que, um dia, se apagará novamente e desaparecerá. Então, nada tem sentido; e o homem não é nada mais nada menos do que um Prometeu que, um dia, desaparecerá de novo. Às vezes me espanto ao ver como os homens conseguem apenas suportar uma tal ideia; provavelmente podem suportá-la somente porque nunca a levaram até às suas extremas conclusões. Houve homens, no século passado, que se suicidaram por causa desta visão, com a ideia, por assim dizer, que a única coisa na qual podemos ainda dar prova de nós e que nos demonstra nossa unicidade consiste no fato que somos o único ser vivo sobre a terra que pode “eliminar” a si mesmo intencional e conscientemente. Dostoievski descreveu de forma persuasiva esta visão das coisas no seu romance Os Demônios...

Por que o Papa falou do “movimento ecológico na política alemã a partir dos anos 1970”? Qual é o sentido desta referência específica?
João Paulo II já havia falado de um dever do cristão de preservar o ambiente da destruição, ao invés de simplesmente desfrutar dele até que não reste mais nada. Não devemos esquecer que o movimento e o partido dos “verdes”, na Alemanha, tem sua origem, sim, a partir dos marxistas, mas atraiu também muitos cristãos que estavam preocupados com a destruição do ambiente. Conheço pessoalmente alguns “verdes” que são cristãos convictos. O desejo de proteger a criação é mais do que um mero sentimentalismo; no fundo, todos queremos viver num mundo que não tenha perdido completamente a sua natureza original. Por trás disto há também a preocupação com o sustento da humanidade que continua crescendo...

Por que a doutrina do direito natural não é mais popular no pensamento católico?
Este, efetivamente, é um problema: eu o descreveria como uma preocupante “protestantização” de uma parte dos teólogos católicos e da teologia ensinada por eles. Ver o jusnaturalismo como uma premissa importante e como uma implicação da interpretação da fé pertence à grande tradição da teologia católica. Para mim, há dois motivos que justificam a cada vez menor disponibilidade a se ocupar deste tema: em primeiro lugar, o influxo dos protestantes agnósticos (“somente a Sagrada Escritura vale!”), em segundo lugar, alguns modernos desenvolvimentos do direito natural, que argumentam de modo completamente diverso daquele da tradição cristã. Para dizer a verdade, emerge também o fato que não é fácil continuar a desenvolver o direito natural clássico da Igreja católica: parece que já foi dito tudo o que era essencial. Parece-me que o significado da doutrina do direito natural consista sobretudo no fato que contradiz a ideia segundo a qual existam apenas duas alternativas: a ciência moderna, frequentemente positivista, e a fé cega, quase irracional. Já há bastante tempo, desde antes de se tornar papa, que Ratzinger tem realçado o significado da terceira alternativa: o jusnaturalismo como uma representação daquilo que emerge da essência corretamente entendida do homem. Trata-se de não esquecer uma determinada visão de homem: do homem como criatura, a que a fé cristã não se opõe, mas realiza.

O Papa disse durante a celebração ecumênica em Erfurt, na sexta-feira passada que “a fé não é algo que concebemos ou com o que concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos”. O que significa isto para o diálogo interreligioso na Europa cristã?
Antes que o Papa viesse à Alemanha, houve, na Alemanha e na Áustria, uma discussão acalorada e vivaz. De um lado, alguns protestantes esperavam que o Papa, por assim dizer, canonizasse, pelo menos em parte, Lutero (e também Calvino e Zwingli); de outro lado, houve um movimento entre os teólogos católicos que queria abolir o celibato e até mesmo ordenar mulheres. Diante disto, Bento XVI sublinhou que a unidade dos cristãos e o seu restabelecimento não pode ser, em última instância, obra do homem, ou seja, não se trata de algo que se alcançará (como é no caso de questões políticas) através de tratados e compromissos. Somente o Espírito Santo, e não a negociação entre nós, pobres homens, pode indicar o caminho. Ao mesmo tempo, as palavras do Papa foram um chamado de atenção “para o caminho que já trilhamos”. Há meio século atrás, uma oração ecumênica como aquela que houve em Erfurt seria impensável. As palavras do Papa que o senhor acabou de citar, recordam a “longa duração” que sempre foi característica da Igreja católica: a disponibilidade do coração aberto para esperar até que o Senhor nos indique o caminho.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Igreja deve se "desmundanizar"...



Encontro com os católicos comprometidos com a Igreja e a sociedade

Discurso do Papa Bento XVI 

Freiburg, Konzerthaus
Domingo, 25 de setembro de 2011.

Caros confrades no ministério episcopal e sacerdotal!
Senhoras e Senhores!
Estou feliz com este encontro convosco que sois comprometidos de múltiplas maneiras com a Igreja e a sociedade. Isto me oferece uma ocasião especial para vos agradecer, aqui, pessoalmente, de todo o meu coração, por vosso serviço e vosso testemunho como “valorosos arautos da fé naquelas realidades que esperamos” (Lumen gentium, n. 35). Dessa maneira, o Concílio Vaticano II designa as pessoas que, como vós, se preocupam com o presente e o futuro da fé. No vosso meio de trabalho vós defendeis a causa da vossa fé e da Igreja, como sabemos, o que não é nada fácil nesses tempos atuais.
Há décadas, assistimos a uma diminuição da prática religiosa, constatamos um crescente distanciamento da vida da Igreja por uma parte notável de batizados. Eis então a pergunta: será que, por acaso, a Igreja não deveria mudar? Será que, por acaso, em seus serviços e estruturas, ela não deveria se adaptar ao tempo presente, para alcançar as pessoas de hoje que estão a procura e em dúvida?
Um dia, perguntaram à Beata Madre Teresa de Calcutá qual deveria ser, segundo ela, a primeira coisa a ser modificada na Igreja. Sua resposta foi: você e eu!
Este pequeno episódio evidencia duas coisas. De um lado, a religiosa quer dizer a seu interlocutor que a Igreja não é unicamente os outros, a hierarquia, o Papa e os Bispos; a Igreja somos todos nós: nós, os batizados. Além do mais, ela parte efetivamente do pressuposto: sim, há motivo para uma mudança. Há a necessidade de uma mudança. Cada cristão e a comunidade dos crentes no seu conjunto são chamados a uma conversão contínua.
Como deve se configurar concretamente esta mudança? Será que se trata de uma renovação tal como, por exemplo, o proprietário de uma casa realiza através da reestruturação ou de uma nova pintura de seu imóvel? Ou será que se trata de uma correção, para retornar aos trilhos ou percorrer um caminho de maneira mais alegre e direta? Estes aspectos e outros mais certamente têm sua importância, e não é o caso de levar todos em consideração neste momento. Mas, quanto àquilo que diz respeito ao motivo fundamental da mudança, trata-se de uma missão apostólica dos discípulos e da própria Igreja.
Com efeito, a Igreja sempre deve verificar sua fidelidade a esta missão. Os três evangelhos sinóticos realçam diferentes aspectos do mandato desta missão: a missão se fundamenta, inicialmente, sobre a experiência pessoal – “Vós sois testemunhas” (Lc 24, 48); ela se exprime em relação – “Fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28, 19); ela transmite uma mensagem universal – “Proclamai o Evangelho a toda a criação” (Mc 16, 15). No entanto, por causa das pretensões e dos condicionamentos do mundo, este testemunho é cada vez mais obscurecido, as relações são alienadas e a mensagem é relativizada. Se, logo em seguida, a Igreja, como o diz o Papa Paulo VI, “procura modelar-se em conformidade com o tipo proposto por Cristo, não poderá deixar de distinguir-se profundamente do ambiente humano, em que afinal vive ou do qual se aproxima” (Encíclica Ecclesiam suam, n. 34). Para realizar sua missão, ela deverá continuamente se distanciar de seu meio, se “desmundanizar” por assim dizer.
A missão da Igreja, com efeito, brota do mistério do Deus uno e trino, do mistério de seu amor criador. E o amor não apenas está presente de qualquer forma em Deus: Ele é amor; por Sua natureza, Ele é amor. E o amor divino não quer ser apenas para si, quer se derramar em conformidade com sua natureza. Na encarnação e no sacrifício do Filho de Deus, o amor alcançou a humanidade de maneira particular. E foi da seguinte maneira: o Cristo, o Filho de Deus, saiu da esfera de seu ser Deus, Ele se fez carne e Se tornou homem; e isto não apenas para confirmar o mundo no seu ser terrestre, e partilhar Sua condição que – a deixando imutável – a transforma. Do evento crístico faz parte o fato incompreensível que existe – como dizem os Padres da Igreja – um sacrum commercium, uma troca entre Deus e os homens. Os Padres a explicam desta maneira: não temos nada para dar a Deus, só podemos Lhe apresentar nossos pecados. Ele os aceita e os faz Seus, e Ele nos dá a si mesmo e à Sua glória em troca. Este é, verdadeiramente, um comércio desigual que se desenrola na vida e nos sofrimentos de Cristo. Ele se torna pecador, se encarrega do pecado; Ele toma aquilo que é nosso e nos dá aquilo que é Seu. Mas, continuando a refletir e a viver na fé, torna-se evidente que nós não Lhe damos apenas o pecado, mas que Ele nos autoriza, Ele nos dá uma força interior para Lhe dar igualmente algo positivo: nosso amor Lhe dá, de maneira positiva, a humanidade. É claro, naturalmente, que é somente graças à bondade de Deus, que o homem, o mendigo, recebe a riqueza divina, que Deus pode dar qualquer coisa, que Deus torna nossa oferta aceitável nos tornando capazes de ser, para Ele, oferentes. 
A Igreja se conforma totalmente com este comércio desigual. Ela não possui nada por ela mesma diante dAquele que a fundou, de sorte que ela poderia dizer: Fizemos isto muito bem! Seu sentido consiste em ser um instrumento da redenção, deixar-se penetrar pela palavra de Deus e transformar o mundo introduzindo-o na união de amor com Deus. A Igreja imerge na atenção complacente do Redentor pelos homens. Ela está lá onde ela é ela mesma, sempre em movimento, colocando-se continuamente a serviço da missão, que ela recebeu do Senhor. É por isto que ela deve sempre se abrir às preocupações do mundo – ao qual ela pertence –, consagrar-se sem reservas a estas preocupações, para continuar e tornar presente o comércio sagrado que teve início com a Encarnação.
No entanto, no desenvolvimento histórico da Igreja se manifesta também uma tendência contrária: é a de uma Igreja que se satisfaz consigo mesma, que se instala neste mundo, que é autossuficiente e se adapta aos critérios do mundo. Muito frequentemente, ela dá à organização e à institucionalização uma importância maior do que a seu apelo à abertura para Deus, que tem a esperança do mundo para o outro.
Para corresponder à sua verdadeira tarefa, a Igreja deve sempre se esforçar por se destacar de sua “mundanidade” para se abrir a Deus. Desta forma, ela segue as palavras de Jesus: “Eles não são deste mundo, como eu não sou deste mundo” (Jo 17, 16), e é assim que ela se dá ao mundo. Num certo sentido, a história vem em socorro da Igreja, através dos diversos períodos de secularização, que contribuíram, de modo essencial, para a sua purificação e para a sua reforma interior.
Com efeito, a secularização – que foram a expropriação dos bens da Igreja ou a supressão dos privilégios ou de coisas parecidas – significaram, a cada vez, uma profunda libertação da Igreja das formas de “mundanidade”: ela se despoja, por assim dizer, de sua riqueza terrestre e volta para abraçar plenamente sua pobreza terrestre. Assim, a Igreja partilha o destino da tribo de Levi que, segundo a afirmação do Antigo Testamento, era a única tribo em Israel que não possuía patrimônio terrestre, mas que havia tomado exclusivamente a Deus, Sua palavra e Seus sinais como parte da herança. Como esta tribo, a Igreja partilhava nesses momentos históricos a exigência de uma pobreza que se abria para o mundo, para se desligar de seus vínculos materiais, e assim seu agir missionário voltava a ser igualmente credível. 
Os exemplos históricos mostram que o testemunho missionário de uma Igreja “desmundanizada” é mais claro. Libertada do fardo e dos privilégios materiais e políticos, a Igreja pode se consagrar melhor e de maneira verdadeiramente cristã ao mundo inteiro; ela pode ser verdadeiramente aberta ao mundo. Ela pode, de novo, viver com mais facilidade seu chamado ao ministério de adoração a Deus e de serviço ao próximo. A tarefa missionária que está ligada à adoração cristã, e que deveria determinar a estrutura da Igreja, se torna visível mais claramente. A Igreja se abre ao mundo não para obter a adesão dos homens a uma instituição com suas próprias pretensões de poder, mas para fazê-los entrar em si mesmos e, dessa maneira, conduzi-los Àquele de quem todas as pessoas podem dizer com Agostinho: Ele é mais íntimo de mim do que eu mesmo (cf. Conf. 3, 6, 11). Ele, que é infinitamente acima de mim, está de tal forma em mim até ao ponto de ser a minha verdadeira interioridade. Por este estilo de abertura da Igreja ao mundo, é traçada, ao mesmo tempo, a forma na qual a abertura para o mundo por parte de cada cristão pode se realizar de maneira eficaz e apropriada.
Não se trata, aqui, de encontrar uma nova estratégia para ressuscitar a Igreja. Trata-se muito mais de deixar de lado tudo aquilo que é unicamente tático, e buscar a plena sinceridade, que não negligencia nem reprime nada da verdade de nosso hoje, mas que a realiza plenamente no hoje, vivendo-a justamente, totalmente na sobriedade do hoje, levando-a à sua plena identidade, tirando dela aquilo que é somente aparência de fé, mas que, na verdade, é apenas convenção e hábito.
Digamos com outras palavras: a fé cristã é sempre, para o homem, um escândalo, e isto não é apenas no nosso tempo. Que o Deus eterno se preocupe conosco, seres humanos, que Ele nos conheça; que o Inapreensível tenha se tornado, num determinado momento, apreensível; que o Imortal tenha sofrido e morrido numa cruz; que para nós, seres mortais, sejam prometidas a ressurreição e a vida eterna – acreditar em tudo isto é, para os homens, uma verdadeira exigência. 
Este escândalo, que não pode ser abolido se não se quiser abolir o cristianismo, foi, infelizmente, colocado à sombra, recentemente, por outros escândalos dolorosos que envolveram os anunciadores da fé. Uma situação perigosa é criada quando esses escândalos tomam o lugar do skandalon primeiro da Cruz e, desta forma, o tornam inacessível, quer dizer, quando eles escondem a verdadeira exigência cristã por trás da inadequação de seus mensageiros.
Há uma razão a mais para acreditar novamente atual a retomada da verdadeira “desmundanização”, de arrancar corajosamente aquilo que há de “mundano” da Igreja. Naturalmente, isto não significa se retirar do mundo, muito pelo contrário. Uma Igreja aliviada dos elementos “mundanos” é capaz de comunicar aos homens – àqueles que sofrem e àqueles que os ajudam – justamente também na esfera sócio-caritativa, a força vital particular da fé cristã. “A caridade não é, para a Igreja, uma espécie de atividade de assistência social que se poderia também deixar para outras pessoas, mas ela pertence à sua natureza mesma, ela é uma expressão de sua essência, à qual ela não pode renunciar” (Deus caritas est, n. 25). Certamente, as obras caritativas da Igreja devem também continuamente prestar atenção às exigências de um distanciamento apropriado do mundo para evitar que, diante de um afastamento crescente da Igreja, suas raízes não sequem. Somente a relação profunda com Deus torna possível uma plena atenção ao homem, da mesma forma que sem a atenção ao próximo a relação com Deus empobrece.
Ser abertos aos acontecimentos do mundo significa, portanto, para a Igreja “desmundanizada”, testemunhar, segundo o Evangelho, o domínio do amor de Deus, em palavras e ações, aqui e agora. E além do mais, esta tarefa vai para além do mundo presente. Com efeito, a vida presente inclui o vínculo com a vida eterna. Como indivíduos, e como comunidade da Igreja, vivemos a simplicidade de um grande amor que, no mundo, é ao mesmo tempo a coisa mais fácil e a mais difícil, porque ela exige nada mais nada menos do que o dom de si mesmo.
Caros amigos, resta-me apenas implorar para nós todos a bênção de Deus e a força do Espírito Santo, para que possamos, cada um no seu próprio campo de ação, reconhecer sempre outra vez o amor de Deus e Sua misericórdia e testemunhar isso. Agradeço-vos a atenção.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 25 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Comentário ao evangelho do dia


Santa Clara

Evangelho - Mt 18,21-19,1
Naquele tempo, Pedro aproximou-se de Jesus e perguntou: "Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?". Jesus respondeu: "Não te digo até sete vezes, mas até setenta vezes sete. Porque o Reino dos Céus é como um rei que resolveu acertar as contas com seus empregados. Quando começou o acerto, trouxeram-lhe um que lhe devia uma enorme fortuna. Como o empregado não tivesse com que pagar, o patrão mandou que fosse vendido como escravo, junto com a mulher e os filhos e tudo o que possuía, para que pagasse a dívida. O empregado, porém, caíu aos pés do patrão, e, prostrado, suplicava: 'Dá-me um prazo! e eu te pagarei tudo'. Diante disso, o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida. Ao sair dali, aquele empregado encontrou um dos seus companheiros que lhe devia apenas cem moedas. Ele o agarrou e começou a sufocá-lo, dizendo: 'Paga o que me deves'. O companheiro, caindo aos seus pés, suplicava: 'Dá-me um prazo! e eu te pagarei'. Mas o empregado não quis saber disso. Saiu e mandou jogá-lo na prisão, até que pagasse o que devia. Vendo o que havia acontecido, os outros empregados ficaram muito tristes, procuraram o patrão e lhe contaram tudo. Então o patrão mandou chamá-lo e lhe disse: 'Empregado perverso, eu te perdoei toda a tua dívida, porque tu me suplicaste. Não devias tu também, ter compaixão do teu companheiro, como eu tive compaixão de ti?'. O patrão indignou-se e mandou entregar aquele empregado aos torturadores, até que pagasse toda a sua dívida. É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão". Ao terminar estes discursos, Jesus deixou a Galileia e veio para o território da Judéia além do Jordão. 

Comentário feito por Beato João Paulo II
Papa

Se Paulo VI por mais de uma vez indicou que a "civilização do amor" é o fimpara o qual devem tender todos os esforços, tanto no campo social e cultural, como no campo econômico e político, é preciso acrescentar que este fim nunca será alcançado se, nas nossas concepções e nas nossas atuações, relativas às amplas e complexas esferas da convivência humana, nos detivermos no critério do "olho por olho e dente por dente" (Ex 21, 24; Mt 5, 38) e, ao contrário, não tendermos para transformá-lo essencialmente, completando-o com outro espírito. É nesta direção que nos conduz também o Concílio Vaticano II quando, ao falar repetidamente da necessidade de "tornar o mundo mais humano" (GS 40), centraliza a missão da Igreja no mundo contemporâneo precisamente na realização desta tarefa. O mundo dos homens só se tornará mais humano se introduzirmos, no quadro multiforme das relações interpessoais e sociais, juntamente com a justiça, o "amor misericordioso" que constitui a mensagem messiânica do Evangelho. O mundo dos homens só poderá se tornar "cada vez mais humano" quando introduzirmos, em todas as relações recíprocas que formam a sua fisionomia moral, o momento do perdão, tão essencial no Evangelho. O perdão atesta que, no mundo, está presente o amor que é mais forte que o pecado. O perdão, além disso, é a condição fundamental para a reconciliação, não só nas relações de Deus com o homem, mas também nas relações dos homens entre si. Um mundo do qual se eliminasse o perdão seria apenas um mundo de justiça fria e pouco respeitosa, em nome da qual cada um reivindicaria os direitos próprios em relação aos demais. Deste modo, as várias espécies de egoísmo, latentes no homem, poderiam transformar a vida e a convivência humana num sistema de opressão dos mais fracos pelos mais fortes, ou até numa arena de luta permanente de uns contra os outros. Com razão a Igreja considera seu dever e objetivo da sua missão assegurar a autenticidade do perdão, tanto na vida e no comportamento concreto, como na educação e na pastoral. Não o protege de outro modo senão guardando a sua fonte, isto é, o mistério da misericórdia de Deus, revelado em Jesus Cristo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Hoje nós te pedimos: Santo Padre, abençoa-nos!


Homilia do Papa Bento XVI
Por ocasião da Beatificação do Servo de Deus Papa João Paulo II

Átrio da Basílica Vaticana
Domingo, 1 de maio de 2011

Amados irmãos e irmãs,
Passaram já seis anos desde o dia em que nos encontrávamos nesta Praça para celebrar o funeral do Papa João Paulo II. Naquela ocasião, se a tristeza pela sua perda era profunda, maior ainda se revelava a sensação de que uma graça imensa envolvia Roma e o mundo inteiro: graça esta que era como que o fruto da vida inteira do meu amado Predecessor, especialmente do seu testemunho no sofrimento. Já naquele dia sentíamos pairar o perfume da sua santidade, tendo o Povo de Deus manifestado de muitas maneiras a sua veneração por ele. Por isso, quis que a sua Causa de Beatificação pudesse, no devido respeito pelas normas da Igreja, prosseguir com discreta celeridade. E o dia esperado chegou! Chegou depressa, porque assim aprouve ao Senhor: João Paulo II é Beato!
Desejo dirigir a minha cordial saudação a todos vós que, nesta circunstância feliz, vos reunistes, tão numerosos, aqui em Roma vindos de todos os cantos do mundo: cardeais, patriarcas das Igrejas Católicas Orientais, irmãos no episcopado e no sacerdócio, delegações oficiais, embaixadores e autoridades, pessoas consagradas e fiéis leigos; esta minha saudação estende-se também a quantos estão unidos conosco através do rádio e da televisão.
Estamos no segundo domingo de Páscoa, que o Beato João Paulo II quis intitular Domingo da Divina Misericórdia. Por isso, se escolheu esta data para a presente celebração, porque o meu Predecessor, por um desígnio providencial, entregou o seu espírito a Deus justamente ao anoitecer da vigília de tal ocorrência. Além disso, hoje tem início o mês de maio, o mês de Maria; e neste dia celebra-se também a memória de São José operário. Todos estes elementos concorrem para enriquecer a nossa oração; servem-nos de ajuda, a nós que ainda peregrinamos no tempo e no espaço; no Céu, a festa entre os Anjos e os Santos é muito diferente! E todavia Deus é um só, e um só é Cristo Senhor que, como uma ponte, une a terra e o Céu, e neste momento o sentimos muito perto, sentimo-nos quase participantes da liturgia celeste.
“Felizes os que acreditam sem terem visto” (Jo 20, 29). No Evangelho de hoje, Jesus pronuncia esta bem-aventurança: a bem-aventurança da fé. Ela chama de modo particular a nossa atenção, porque estamos reunidos justamente para celebrar uma Beatificação e, mais ainda, porque o Beato hoje proclamado é um Papa, um Sucessor de Pedro, chamado a confirmar os irmãos na fé. João Paulo II é Beato pela sua forte e generosa fé apostólica. E isto traz imediatamente à memória outra bem-aventurança: “Feliz de ti, Simão, filho de Jonas, porque não foram a carne e o sangue que te revelaram isso, mas sim meu Pai que está nos Céus” (Mt 16, 17). O que é que o Pai celeste revelou a Simão? Que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus vivo. Por esta fé, Simão se torna “Pedro”, rocha sobre a qual Jesus pode edificar a sua Igreja. A bem-aventurança eterna de João Paulo II, que a Igreja tem a alegria de proclamar hoje, está inteiramente contida nestas palavras de Cristo: “Feliz de ti, Simão” e “felizes os que acreditam sem terem visto”. É a bem-aventurança da fé, cujo dom também João Paulo II recebeu de Deus Pai para a edificação da Igreja de Cristo.
Entretanto perpassa pelo nosso pensamento mais uma bem-aventurança que, no Evangelho, precede todas as outras. É a bem-aventurança da Virgem Maria, a Mãe do Redentor. A Ela, que acabava de conceber Jesus no seu ventre, diz Santa Isabel: “Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor” (Lc 1, 45). A bem-aventurança da fé tem o seu modelo em Maria, pelo que a todos nos enche de alegria o fato de a beatificação de João Paulo II ter lugar no primeiro dia deste mês mariano, sob o olhar materno dAquela que, com a sua fé, sustentou a fé dos Apóstolos e não cessa de sustentar a fé dos seus sucessores, especialmente de quantos são chamados a sentar-se na cátedra de Pedro. Nas narrações da ressurreição de Cristo, Maria não aparece, mas a sua presença pressente-se em toda a parte: é a Mãe, a quem Jesus confiou cada um dos discípulos e toda a comunidade. De forma particular, notamos que a presença real e materna de Maria aparece assinalada por São João e São Lucas nos contextos que precedem tanto o Evangelho como a primeira Leitura de hoje: na narração da morte de Jesus, onde Maria aparece aos pés da Cruz (Jo 19, 25); e, no começo dos Atos dos Apóstolos, que a apresentam no meio dos discípulos reunidos em oração no Cenáculo (At 1, 14).
Também a segunda Leitura de hoje nos fala da fé, e é justamente São Pedro que escreve, cheio de entusiasmo espiritual, indicando aos recém-batizados as razões da sua esperança e da sua alegria. Apraz-me observar que nesta passagem, situada na parte inicial da sua Primeira Carta, Pedro exprime-se não no modo exortativo, mas indicativo. De fato, escreve: “Isto vos enche de alegria”; e acrescenta: “Vós amais Jesus Cristo sem O terdes conhecido, e, como nEle acreditais sem O verdes ainda, estais cheios de alegria indescritível e plena de glória, por irdes alcançar o fim da vossa fé: a salvação das vossas almas” (1Ped 1, 6.8-9). Está tudo no indicativo, porque existe uma nova realidade, gerada pela ressurreição de Cristo, uma realidade que nos é acessível pela fé. “Esta é uma obra admirável – diz o Salmo (118, 23) – que o Senhor realizou aos nossos olhos”, os olhos da fé.
Queridos irmãos e irmãs, hoje diante dos nossos olhos brilha, na plena luz de Cristo ressuscitado, a amada e venerada figura de João Paulo II. Hoje, o seu nome junta-se à série dos Santos e Beatos que ele mesmo proclamou durante os seus quase 27 anos de pontificado, lembrando com vigor a vocação universal à medida alta da vida cristã, à santidade, como afirma a Constituição conciliar Lumem gentium sobre a Igreja. Os membros do Povo de Deus – bispos, sacerdotes, diáconos, fiéis leigos, religiosos e religiosas – todos nós estamos a caminho da Pátria celeste, tendo-nos precedido a Virgem Maria, associada de modo singular e perfeito ao mistério de Cristo e da Igreja. Karol Wojtyła, primeiro como Bispo Auxiliar e depois como Arcebispo de Cracóvia, participou no Concílio Vaticano II e bem sabia que dedicar a Maria o último capítulo da Constituição sobre a Igreja significava colocar a Mãe do Redentor como imagem e modelo de santidade para todo o cristão e para a Igreja inteira. Foi esta visão teológica que o Beato João Paulo II descobriu na sua juventude, tendo-a depois conservado e aprofundado durante toda a vida; uma visão, que se resume no ícone bíblico de Cristo crucificado com Maria ao pé da Cruz. Um ícone que se encontra no Evangelho de João (19, 25-27) e está sintetizado nas armas episcopais e, depois, papais de Karol Wojtyła: uma cruz de ouro, um “M” na parte inferior direita e o lema “Totus tuus”, que corresponde à conhecida frase de São Luís Maria Grignion de Monfort, na qual Karol Wojtyła encontrou um princípio fundamental para a sua vida: “Totus tuus ego sum et omnia mea tua sunt. Accipio Te in mea omnia. Praebe mihi cor tuum, Maria – Sou todo vosso e tudo o que possuo é vosso. Tomo-vos como toda a minha riqueza. Dai-me o vosso coração, ó Maria” (Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 266).
No seu Testamento, o novo Beato deixou escrito: “Quando, no dia 16 de outubro de 1978, o conclave dos cardeais escolheu João Paulo II, o Card. Stefan Wyszyński, Primaz da Polônia, disse-me: ‘A missão do novo Papa será a de introduzir a Igreja no Terceiro Milênio’”. E acrescenta: “Desejo mais uma vez agradecer ao Espírito Santo pelo grande dom do Concílio Vaticano II, do qual me sinto devedor, juntamente com toda a Igreja e sobretudo o episcopado. Estou convencido de que será concedido ainda por muito tempo, às sucessivas gerações, haurir das riquezas que este Concílio do século XX nos prodigalizou. Como Bispo que participou no evento conciliar, desde o primeiro ao último dia, desejo confiar este grande patrimônio a todos aqueles que são, e serão, chamados a realizá-lo. Pela minha parte, agradeço ao Pastor eterno que me permitiu servir esta grandíssima causa ao longo de todos os anos do meu pontificado”. E qual é esta causa? É a mesma que João Paulo II enunciou na sua primeira Missa solene, na Praça de São Pedro, com estas palavras memoráveis: “Não tenhais medo! Abri, melhor, escancarai as portas a Cristo!”. Aquilo que o Papa recém-eleito pedia a todos, começou, ele mesmo, a fazê-lo: abriu a Cristo a sociedade, a cultura, os sistemas políticos e econômicos, invertendo, com a força de um gigante – força que lhe vinha de Deus –, uma tendência que parecia irreversível. Com o seu testemunho de fé, de amor e de coragem apostólica, acompanhado por uma grande sensibilidade humana, este filho exemplar da nação polonesa ajudou os cristãos de todo o mundo a não ter medo de se dizerem cristãos, de pertencerem à Igreja, de falarem do Evangelho. Numa palavra, ajudou-nos a não ter medo da verdade, porque a verdade é garantia de liberdade. Sintetizando ainda mais: deu-nos novamente a força de crer em Cristo, porque Cristo é o Redentor do homem – Redemptor hominis: foi este o tema da sua primeira Encíclica e o fio condutor de todas as outras.
Karol Wojtyła subiu ao sólio de Pedro trazendo consigo a sua reflexão profunda sobre a confrontação entre o marxismo e o cristianismo, centrada no homem. A sua mensagem foi esta: o homem é o caminho da Igreja, e Cristo é o caminho do homem. Com esta mensagem, que é a grande herança do Concílio Vaticano II e do seu “timoneiro” – o Servo de Deus Papa Paulo VI –, João Paulo II foi o guia do Povo de Deus ao cruzar o limiar do Terceiro Milênio, que ele pôde, justamente graças a Cristo, chamar “limiar da esperança”. Na verdade, através do longo caminho de preparação para o Grande Jubileu, ele conferiu ao cristianismo uma renovada orientação para o futuro, o futuro de Deus, que é transcendente relativamente à história, mas incide na história. Aquela carga de esperança que de certo modo fora cedida ao marxismo e à ideologia do progresso, João Paulo II legitimamente reivindicou-a para o cristianismo, restituindo-lhe a fisionomia autêntica da esperança, que se deve viver na história com um espírito de “advento”, numa existência pessoal e comunitária orientada para Cristo, plenitude do homem e realização das suas expectativas de justiça e de paz.
Por fim, quero agradecer a Deus também a experiência de colaboração pessoal que me concedeu ter longamente com o Beato Papa João Paulo II. Se antes já tinha tido possibilidades de conhecê-lo e estimar, desde 1982, quando me chamou a Roma como Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, pude durante 23 anos permanecer junto dele crescendo sempre mais a minha veneração pela sua pessoa. O meu serviço foi sustentado pela sua profundidade espiritual, pela riqueza das suas intuições. Sempre me impressionou e edificou o exemplo da sua oração: entranhava-se no encontro com Deus, inclusive no meio das mais variadas incumbências do seu ministério. E, depois, impressionou-me o seu testemunho no sofrimento: pouco a pouco o Senhor o foi despojando de tudo, mas permaneceu sempre uma “rocha”, como Cristo o quis. A sua humildade profunda, enraizada na união íntima com Cristo, permitiu-lhe continuar a guiar a Igreja e a dar ao mundo uma mensagem ainda mais eloquente, justamente no período em que as forças físicas definhavam. Assim, realizou de maneira extraordinária a vocação de todo o sacerdote e bispo: tornar-se um só com aquele Jesus que diariamente recebe e oferece na Igreja.
Feliz és tu, amado Papa João Paulo II, porque acreditaste! Continua do Céu – nós te pedimos – a sustentar a fé do Povo de Deus. Muitas vezes, do Palácio, tu nos abençoaste nesta Praça! Hoje nós te pedimos: Santo Padre, abençoa-nos! Amém.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 1 de maio de 2011. Revisado por Paulo R. A. Pacheco.