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terça-feira, 9 de agosto de 2011

Instruções para não sucumbir ao fascínio do nada


Por Giovanni Maddalena

William James dizia que toda filosofia tem um coração secreto, um centro de gravidade a que todo o resto se refere. Se se chegar a isto, todo o resto virá em seguida. Há verdade nesta descrição e, no caso de Costantino Esposito, cujo livro Una ragione inquieta [Uma razão inquieta – em tradução livre –, publicado este ano pela Edizioni Di Pagina, de Bari; ndt] reúne as reflexões “nas dobras do nosso tempo”, o centro é a dramática separação provocada pela modernidade: o eu de um lado, o mundo, o dado, o objeto, os objetos individuais e irrepetíveis do outro. Esposito persegue esta separação, esta distância, esta “patologia que se tornou fisiologia” (p. 16) em contextos aparentemente distantes, fazendo emergir, desta forma, a nossa frequentemente inconsciente mas inevitável pertença ao horizonte da modernidade. Somos modernos não apenas quando pensamos na verdade (p. 114), mas também quando transferimos este pensamento para a política, nas nossas divisões entre fundamentalismo e relativismo (p. 115) ou entre multiculturalismo e integracionismo (p.121), quando resolvemos a educação com cognitivismo ou sentimentalismo (p. 30), quando – como Svevo – viajamos entre “um pensamento sem afetividade e uma afetividade sem pensamento” (p. 142).
Este abismo que se criou entre razão e sentimento, entre sujeito e objeto é a negação da força constitutiva do relacionamento que já somos. É o relacionamento entre sujeito e dado, ou melhor, entre dado e sujeito que é originário. Por isto, Esposito sublinha todas aquelas experiências de pensamento que são verdadeiras e propriamente ditas performances fenomenológicas: Agostinho, Dante, o Descartes da III meditação (lido segundo a recente tradição francesa), Giussani. É uma fenomenologia do relacionamento que nos faz entender que já estamos numa unidade mais profunda do que pensamos, uma unidade que devemos mais descobrir do que inventar de forma moralista.
Diferentemente do que sustentava James, porém, o centro da questão não resolve tudo no caso de Esposito. O contorno, segundo penso, é quase mais importante do que o centro. O aspecto constitutivo do pensamento de Esposito, de fato, não é a condenação da modernidade, mas o fato de considerá-la como uma possibilidade. O relacionamento constitutivo não será obtido com um simples retorno ao passado, mas atravessando toda a dinâmica da modernidade na qual estamos imersos, inclusive no niilismo. São três os fatores mais interessantes deste ponto de vista: o caso, o indivíduo e o nada.
Contrariamente ao que se poderia esperar de um pensamento declarada e corajosamente católico, o livro de Esposito faz vir à tona uma avaliação positiva do drama da casualidade assim como o homem a percebe em sua ausência de pacificação consoladora. Mesmo numa tragédia como a do tsunami de 2004, Esposito sublinha que as circunstâncias fatais nos fazem perceber, por um instante, a nossa situação mortal, marcada por uma fragilidade estrutural, mas também por uma vontade de viver que não pode ser reduzida a nada (p. 234). “A incerteza é o eco de outra coisa” (p. 4). A casualidade que a filosofia e a religião frequentemente tentam reduzir ou suprimir se mantém em toda a sua ambivalência de derrota e, ao mesmo tempo, de paradoxal esperança do repentino aparecer do momento de graça. Nada de mais distante da resignação sentimental ou da argumentação racionalista com a qual, às vezes se explica aquilo que não se compreende com um genérico “desígnio de Deus”. Esposito evidencia a contradição e deixa que ela seja o grito de necessidade de salvação.
O niilismo mesmo, deserto extremo do pensamento moderno, é percebido como um ponto privilegiado por causa desta percepção dramática do ser: “o niilismo é o nosso destino ou é um caminho, tão paradoxal quanto inesperado, para redescobrir que o destino do niilismo é o evento surpreendente do ser?” (p. 196). É melhor, então, ser niilistas? Talvez não, mas ai de quem, parece dizer Esposito, não percebe suas razões e, de algum modo, seu fascínio.
Finalmente, o indivíduo. O relacionamento sujeito-mundo é constitutivo e o dado tem, certamente, uma primazia. Mas, Esposito não tem dúvidas sobre qual seja o lado do qual ele prefere se aproximar: muito modernamente, a sua filosofia é uma elegia do eu, do sujeito e da sua individualidade. “‘Eu’ é a coisa mais minha que possa existir – o meu eu, a minha consciência, a minha liberdade, a minha ação, os meus pensamentos – é a coisa mais próxima de mim que há” (p. 143). A abertura para o outro, mesmo quando o outro é Deus, é exatamente para a salvaguarda deste “eu”, em toda a sua gigantesca dimensão. Tanto que a educação mesma é ligada apenas e exclusivamente à comunicação do eu (pp. 28-29).
Obviamente, trata-se de teses fortes, sobre as quais há muito o que se discutir, a começar pela última: um “eu” que não gera um método é um “eu” realizado? E também: qual é a lógica, se houver, daquele relacionamento constitutivo? Que tipo de epistemologia nasce desta ontologia do relacionamento constitutivo? É a individualidade ocidental ou a comunhão da tradição ortodoxa que se encontra na origem do eu a partir de um ponto de vista social? Como o relacionamento originário com o dado se traduz em política, em educação, em bem para todos?
Vêm à mente muitas perguntas, e muitas mais virão aos leitores, mas é exatamente este início de diálogo sincero que marca o encontro com um verdadeiro “eu”.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A beleza nos curará do niilismo e do fundamentalismo


Por Costantino Esposito

Costantino Esposito enfrenta as raízes culturais do relacionamento entre identidade e diferença e a dificuldade hodierna de pensar um “eu” em relaçõ com o outro. Terceiro de três artigos, depois de De quem somos? Todos os dilemas de uma identidade em indecisa, e As aventuras de um “eu” disputado pela política e pelo nada.

Mas, em virtude do que podemos entender a diferenciação das culturas? Segundo a posição citada no artigo anterior, podemos fazer isso apenas se estivermos sustentados pelo seu caráter comum de “ficção”: set odas são enganos ou auto-enganos, então as diferenças serão variações sobre este único tema. É tão necessário encontrar uma base comum para poder reconhecer, compreender e também justificar as diferenças, que é possível encontrar uma – a única possível, a este ponto – na ilusão, nova “substância” de uma natureza humana dessubstanciada, resíduo de universalidade vista em forma negativa. Mas poderíamos perguntar: a ilusão da ficção é o ponto inicial da interpretação? Ou essa é, por sua vez, o êxito de uma interpretação pré-conceitual do fenômeno que se quer compreender? Se também renunciássemos – considerando-a pretensiosa ou violenta – à pretensão de julgar um identidade cultural como mais ou menos “verdadeira” ou “justa” em relação a outra (“ocidente” versus “oriente”, “cristianismo” versus “islã”, laicidade versus religiosidade, modernização globalizada versus tradição de valores etc.), não podemos, porém, renunciar ao reconhecimento de que é verdadeira e é justa a pergunta mesma ou a exigência estrutural que, em cada uma dessas, age a produção antropológica, mesmo se esta última, ao final, devesse resultar de uma ficção consciente. Para assumir, conscientemente, uma ficção como resposta para a própria necessidade de significado, é preciso que tal necessidade seja percebido como um dado imprescindível da nossa condição de homens. A “natureza” humana é tal que, sobre sua base, o homem pode ser chamado o animal que faz perguntas: e aqui está enraizada aquela simpatia entre as culturas e as diversas identidades que está no fundo de todas as suas possíveis diferenças.
Note-se, entre outras coisas, que a insistência sobre o fato de que o ser humano não tem a identidade de uma substância natural entre as outras, mas é muito mais um processo de autorrealização dinâmica e historicocultural, por si só não anula, de fato, nem teórica nem praticamente, a hipótese de que tal dinâmica seja movida por uma interrogação fundamental – aquela sobre o significado de si, da própria comunidade de pertença e sobre o mundo inteiro. E vice-versa, a verdade da natureza ou da condição humana constitui um nível que, longe de ser predeterminado de uma vez por todas, acontece e se produz historicamente. O perguntar dos homens concretos, de carne e osso, sempre determinado por precisas condições espaço-temporais, é o modo com o qual cada identidade faz experiência de um fenômeno comum, por mais diversas ou opostas que possam ser as tentativas de resposta. Por isso, o confronto entre as identidades e as culturas é possível apenas se estiver continuamente aberto ao confronto, a partir de cada identidade e cultura de pertença, entre as perguntas de fundo e as respostas históricas, levando em consideração, particularmente, a pertinência e a taxa de satisfação que as segundas possuem em relação às primeiras. O jogo deve sempre ser aberto, nunca definido absolutamente ou para sempre, mas sempre reafirmando o acontecer do nexo entre a pergunto de sentido e a sua produção.
Deste ponto de vista, deve ser, talvez, responsabilidade peculiar da escola, sempre mais marcadamente, permitir que se localize na própria experiência os sinais evidentes da exigência de sentido – ou seja, da pergunta pelo ser e pelo ser-feliz ou realizado – que permitam, em primeiro lugar, colocar em questão, outra vez, e verificar criticamente a congruência ou pertinência das respostas fornecidas pela própria tradição (colocar à prova a própria identidade, que por mais que seja recebida exige ser escolhida ou recusada pelo eu individual); em segundo lugar, escolher, exatamente neste nível de verificação, presente como exigência metodológica a partir de dentro de cada identidade, o princípio da compreensibilidade de todas as culturas e, portanto, de todas as diferenças. Certamente, não para reduzir forçosamente as diversidades a uma estrutura imposta artificialmente a partir do alto, mas para verificar as condições segundo as quais os homens podem se compreender (e, de fato, se compreendem) entre si e podem traduzir (e, de fato, traduzem) uma cultura em outra. Na nossa experiência aprendemos, todos os dias, que é possível que homens de culturas e identidades diferentes se entendam. Por quê? O que torna isso possível? Evidentemente deve haver, já presente, ou agindo, um fator ou fatores que o permitam. Esses, segundo a minha hipótese, consistem na pergunta pelo sentido e na exigência de verdade, justiça e bem, não compreendidos como perspectivas vagas ou como indicações de uma ulterioridade utópica, mas como funções operativas do nosso modo de estar no mundo.
3) A terceira questão diz respeito, finalmente, à ideia, hoje bastante difundida, segundo a qual, para salvar as diferenças, é preciso renunciar a toda pretensão de verdade, e que, contra toda afirmação de verdade, está implicada inevitavelmente um “monismo” cultural. Também nesse caso, age de maneira determinante o vocabulário que usamos: se a verdade coincide com algo de absoluto, de intemporal e de fixado de uma vez por todas, aquilo que, pelo contrário, é temporal, histórico, contingente inevitavelmente será a única coisa a escapar da pretensão da verdade de ser imutável. Também aqui chega, por assim dizer, às suas extremas consequências toda uma história do pensamento moderno, segundo a qual o relacionamento entre o eu e a verdade chega à sua máxima problematização. No sentido de que ou a verdade objetiva do real é vista como um valor absoluto que excede e transcende a experiência individual do eu, ou então é reduzida às certezas construídas dentro do eu mesmo. E na cultura contemporânea, esta dificuldade de relacionamento entre o eu e o verdadeiro parece ter chegado a um estado de crise não mais patológica mas fisiológica. O eu parece poder afirmar a si mesmo apenas se for às custas da renúncia do seu relacionamento constitutivo com a verdade; e, pelo contrário, afirmar a verdade parece ser possível apenas às custas de se separar da experiência subjetiva do eu. Consideradas nos seus êxitos extremos, a primeira chance é a que leva tendencialmente ao relativismo niilista, a segunda é a que anima a perspectiva do absolutismo fundamentalista: um eu sem verdade e uma verdade sem eu.
Mas, a verdade é o que se apresenta sempre na experiência como necessidade. Certamente, não quero sustentar que a verdade seja um produto cultural ou artificial das nossas expectativas, mas que a nossa pergunta pelo verdadeiro e pelo real constituem o sinal mais evidente de que estamos já em relação com ela. De onde, de fato, nasceria o nosso desejo de entender qual a relação das coisas todas conosco, com os outros, com o mundo inteiro? E note-se que, mesmo nos casos em que não quiséssemos saber e preferíssemos permanecer suspensos na incerteza ou encerrados na imaginação, nós o faríamos para nos defender de uma verdade que tememos, mas, paradoxalmente, exatamente isso atestaria que não podemos viver sem esta relação. Como escreveu, uma vez, Agostinho de Hipona, todos os homens, sem nenhuma exceção, experimentam prazer no verdadeiro, uma espécie de gosto no conhecer a verdade (gaudium de veritate), e não vale a objeção de que isto não pode ser reconhecido nos mentirosos, visto que também os que enganam os outros pelo menos não gostariam de ser enganados (cf. Confissões, X, 23.33). 
Mas, como podemos descobrir esta relação estrutural com o verdadeiro? Em que medida ele é operativo no nosso eu? Somente em uma comparação densa com os dados da realidade, seja a realidade natural ou a cultural. Somente num confronto assim, o verdadeiro – ou seja, o sentido objetivo, a ratio – pode ser descoberto e colocado à prova: não inventado, construído ou imposto por nós (que é o risco permanente da ideologia), mas acolhido e repensado como um significado trazido pela realidade mesma. Também a este propósito nos pode ajudar Agostinho, que afirma, sempre nas Confissões (X, 6.10) que a realidade nos fala sobretudo através da sua “beleza” (species), que, para o filósofo de Hipona, não é mero valor estético, mas a descoberta de uma ordem, de uma harmonia ou de um logos, ou seja, da razão profunda pela qual as coisas existem. Só que esta beleza “não fala a todos da mesma maneira”, ou melhor: todos a veem, mas nem todos a colhem. Podem colhê-la apenas aqueles que sabem fazer pergunta (homines autem possunt interrogare), ou seja que sabem perguntar com juízo. Esta iudex ratio, como Agostinho a chama, age como uma contínua comparação naqueles que “acolhem a voz recebida de fora e a confrontam com a verdade que está presente neles mesmos”.
E se uma das tarefas mais urgentes, mas também mais fascinantes, da escola fosse educar a buscar o verdadeiro, reconhecendo-o através da beleza da realidade? A experiência da beleza (do que, naturalmente, falo aqui não como objeto de uma disciplina estética específica, mas como a percepção da presença de um significado de mim e das coisas) envolve, de maneira impressionante e totalizante, o nosso eu, mas ao mesmo tempo não pode nunca ser simplesmente produzida ou planejada por nós. Acontece, surpreendendo-nos. Mas, no seu acontecer, acende a nossa verdadeira necessidade. O belo é, por assim dizer, a confirmação mais impressionante de que apenas quando se encontra uma resposta para a nossa pergunta pelo significado que tal pergunta começa, efetivamente, a ser. Talvez, seja exatamente nessa exigência de verdade e de realidade, assim como ela é despertada na experiência da beleza, que podemos encontrar um traço talvez inédito, mas certamente provocante, para enfrentar o problema da relação entre identidade e diferenças numa perspectiva intercultural. Nesta linguagem, de fato, realiza-se o incrível: que se possa não apenas tolerar o outro de nós, ou inclui-lo nos nossos esquemas, mas reconhecê-lo como aquilo do que temos necessidade para sermos verdadeiramente nós mesmos.

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 25 de outubro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O maravilhamento conhece, mas não é suficiente: uma palavra “secreta” nos diz por quê...

Por Costantino Esposito

Uma vez, Espinoza escreveu que quem se esforça por entender as coisas naturais “como um cientista” (ut doctus), para de se maravilhar como faria um ignorante (ut stultus), que camufla com o nome de maravilhamento o simples fato de não conhecer as causas reais do mundo. Por isso, diferentemente do “vulgo”, os cientistas sabem bem que “eliminada a ignorância o maravilhamento diminui” (Ética, parte I, Apêndice).
A ideia espinoziana de um conhecimento perfeito da realidade inteira nas suas causas mecânicas – as únicas que são absolutamente traduzíveis nas demonstrações da geometria – com a exclusão taxativa de qualquer fim ou sentido que transcenda a esta ordem, representa um ideal totalizante e, sem dúvida, fascinante, da pesquisa científica. Um ideal segundo o qual a mente humana é chamada a contemplar a substância objetiva e necessária de todas as coisas, aquilo a que o mesmo Espinoza dá nada menos do que o nome de “Deus ou natureza”.
A pergunta que se faz diante de uma perspectiva como esta é se efetivamente o maravilhamento pode ser entendido como um simples resíduo da ignorância, destinada tendencialmente a ser reabsorvida na medida em que são descobertas e descritas as leis objetivas da natureza, ou se ela não se constituiria muito mais no motor da descoberta e dos desenvolvimentos explicativos da ciência, segundo uma tradição bastante antiga que, desde Aristóteles, chega até aos testemunhos de muitos cientistas contemporâneos, segundo os quais o caminho do conhecimento é, frequentemente, aberto pelo maravilhamento que é despertado quando nos deparamos com uma ordem, ou com aquilo que simplesmente parece “casual”.
Certamente que quando nos surpreendemos diante de algo inesperado ou ainda desconhecido, revelamos a nossa “ignorância”: mas, ao mesmo tempo, esta indicação negativa implica uma referência positiva, ou seja, a emergência ou melhor a manifestação de “algo” na nossa experiência ou de um “dado” do nosso conhecimento. E se é verdade que, daquele momento em diante, o trabalho de conhecer deverá ser o de se apoderar ao máximo, através de nossas categorias, deste hóspede inesperado, transformando-o numa aquisição da nossa mente; é verdade também que esta “redução” do mundo às nossas estruturas mentais (e todo conhecimento científico é sempre tecnicamente “redutivo” do real a invariâncias, estruturas e recursividades) constitui-se em fonte de maravilhamento. Objetivar o mundo nas suas leis pode ser compreendido como o sinal da potência do sujeito conhecedor, mas também como o sinal de uma correspondência não óbvia entre o mundo e as nossas medidas cognoscitivas.
Um recente ensaio do linguista Andrea Moro, intitulado Breve história do verbo ser: viagem ao centro da frase (publicado pela Adelphi), fez-me entender de maneira claríssima a verdadeira questão que estão em jogo nesta alternativa sempre presente no olhar de quem se dedica ao conhecimento rigoroso do mundo. Seguindo os passos do grande Noam Chomsky, Moro aprendeu a olhar e a estudar a nossa linguagem como “o grande escândalo da natureza”, um ponto de “descontinuidade não motivada e imprevista entre os seres vivos” (p. 62), não em sentido frágil, e portanto como expressão de certas representações que se podem transmitir a outros indivíduos (até memso os outros animais fazem isso, não apenas o homem), mas no sentido forte, ou seja, como um código “estruturado” na nossa mente em sentido rigoroso.
A linguagem humana não é uma simples função cognitiva ou um mero instrumento para a comunicação, mas é um sistema formal bem estruturado, isto é, é uma “sintaxe”; e esta última não é explicável como o efeito de uma dada cultura ou de uma sociedade particular, mas como um utensílio ou, se se quer, como um dispositivo que cada homem possui em nível natural e biológico.
A ideia forte é que – como escreveu Chomsky, o fundador da lingüística formal entendida como “gramática generativa” – os seres humanos são “projetados de modo especial”, ou seja, carregam, por assim dizer, uma capacidade bem precisa “de tratar com os dados e de formular hipótese de uma natureza e de uma complexidade desconhecida” (p. 119), como pode ser atestado pela impressionante rapidez com a qual as crianças são capazes de adquirir a gramática muitas vezes bastante complexa de uma língua.
Portanto, estudando a linguagem por este ponto de vista, nos encontramos diante de uma estrutura puramente natural, mas sem cair, com isso, num reducionismo naturalístico, se é verdade que já neste nível o ser-homem é indicador de uma originalidade irredutível. Deste modo, descobrimos um nível da subjetividade que não é, de fato, “subjetivo”, mas plenamente objetivo, a partir do momento em que a “arquitetura” neurobiológica da nossa mente permite capacidades cognitivas dotadas de sensatez e de ordem. E isto pode ser visto não apenas quando buscamos e afirmamos (ou negamos) significados no nosso estar no mundo (dimensão semântica da linguagem), mas já antes, na nossa mesma capacidade de compor uma frase, com uma certa ordem, rigorosamente codificada nas suas variantes, um sujeito, a cópula [é uma categoria da gramática pouco conhecida, entre nós, com este nome, pois é mais usada na Gramática Geral do Trivium; equivale ao verbo de ligação; ndt] e um predicado (dimensão sintática da linguagem). Disso deriva aquela competência específica da mente humana que é a afirmação e a negação, o juízo e a busca pela verdade.
E é exatamente na análise de um problema crucial da lingüística generativa, quer dizer da natureza e da função do verbo “ser”, que Moro prova o quão surpreendente pode ser a descoberta dos dados objetivos, controláveis rigorosamente em sentido formal, e mesmo não dedutíveis em última instância de outras causas. Nesse caso, por exemplo, o fato de a linguagem ser estruturada e programada na nossa mente não quer dizer tanto que ela seja redutível às funções orgânicas do cérebro, mas, pelo contrário, quer dizer que a mente, exatamente na medida em que é estruturada linguisticamente, constitui-se em uma diferença inexplicável quando se pensa em suas outras funções vitais.
Para dizer em poucas palavras aquilo que Moro pretende dizer a partir da filosofia grega até chegar às sofisticadas pesquisas da lingüística do século XX e a contemporânea, o verbo ser, por muito tempo, pareceu ser um elemento da frase privado de propriedades estruturais precisas, pelo fato de exprimir uma identidade (Sócrates é um homem: um nome seguido de outro nome), às vezes um predicado (Sócrates é humano: um nome seguido de um adjetivo), tanto que alguns, como Bertrand Russell, hipotetizaram a existência de dois verbos “ser” diferentes. Se analisarmos, portanto, a sintaxe da frase, notaremos que a cópula não se comporta como os outros verbos transitivos (pelos quais o sujeito permanece sempre diferente do predicado), mas implica também o caso que o sujeito possa ser invertido com o predicado.
O exemplo que Moro dá de uma frase sem o verbo ser é: “esta foto da parede causou a revolta”, que nunca será equivalente a “a revolta causou esta foto da parede”. Porém, usando a cópula posso dizer: “esta foto da parede foi a causa da revolta”, ou então, de maneira equivalente, “a causa da revolta foi esta foto da parede”.
Aqui, parece que sequência canônica das frases copulativas (ou seja, sujeito-verbo-predicado) fique em pedaços, porque, ao menos na metade dos casos, temos uma sequência inversa (ou seja, predicado-verbo-sujeito). Moro propõe a esse respeito uma nova hipótese explicativa, chamada “teoria unificada das frases copulativas”, para resolver a ambiguidade que sempre acompanha esse tipo de frases, sejam as “canônicas” nas quais o sujeito precede o verbo e este vem seguido do complemento objeto, sejam as “inversas”, nas quais primeiro é colocado o complemento objeto e o sujeito vem, porém, depois do verbo. Em outros termos, no nível da sintaxe, ser é sempre o mesmo verbo, cuja estrutura pode se transformar a depender do fato de o nome que preceder a cópula ter a função de sujeito ou de predicado. O ganho dessa teoria consiste, antes de mais, no fato de remeter a “princípios sintáticos universais e independentes” (p. 242) todas as aplicações empíricas das frases copulativas, ou seja, dá conta a partir das estruturas determinadas também dos casos anômalos da frase.
Mas há ainda o significado relevante que tal ganho oferece também para os confins científicos da linguística generativa, contribuindo para a consciência do como é estruturada ou “programada” a nossa experiência, da qual temos consciência sempre e necessariamente de forma linguística (tentem ver se é possível ter consciência de si e do mundo sem afirmar o significado com uma frase e, portanto, segundo regras sintáticas!). A descoberta é que o verbo ser é uma estrutura não arbitrária da nossa mente (mesmo naquelas línguas nas quais ele não é exprimido de forma explícita, como o hebraico), que permite conectar os elementos do mundo de forma sensata, julgando sua identidade ou sua contradição, a verdade ou a falsidade.
E se é lícita uma conclusão filosófica (que talvez não desagradará de todo ao linguista), podemos dizer que a capacidade que os sujeitos humanos têm de se dar conta daquilo que “é” é uma disposição formal, uma espécie de matriz natural (neurobiológica) que estrutura cada um de nossos discursos e nos permite estar conscientemente no mundo. A nossa linguagem não é uma mera interpretação subjetiva ou uma convenção sociocultural, mas constitui-se em uma verdadeira e própria ordem do ser; e o ser das coisas é aquilo pelo que e em vista do que está estruturada a nossa mente. E, nesse ponto, verdadeiramente, não apenas o maravilhamento é causa do conhecimento, mas é o conhecimento a verdadeira causa do maravilhamento.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 04 de agosto de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A nossa razão? Pode descobrir o Mistério porque entende o mundo

Por Costantino Esposito

O problema da racionalidade pareceria um daqueles argumentos que não excitam mais um real interesse, visto que todos (ou quase todos) pensam tê-lo, de alguma maneira, definido e resolvido. A quem, no debate cultural e político dos nossos dias, viria ainda em mente a ideia de verificar a razoabilidade de uma posição ou de uma escolha? Ou melhor, todos (ou quase todos) parecem dar como óbvio que a razão de um argumento ou de uma perspectiva consista na sua coerência, de partida, com alguns pressupostos culturais, ideológicos, políticos, científicos, religiosos. Mas o problema da razão raramente é reaberto a partir daqueles mesmos pressupostos, os quais são assumidos como “válidos” em virtude dos “valores” que os sustentam e que eles exprimem.
Mas, dessa forma, a racionalidade acaba por ser identificada com a capacidade de obter consequências eficazes a partir de posições (e de interesses) assumidas, no mais das vezes, de maneira preconceituosa e, portanto, com a nossa habilidade de medir os efeitos a partir das causas ou (re)modelar as causas em relação aos efeitos. Em suma, a racionalidade seria um procedimento de controle das nossas estratégias cognoscitivas e morais, um instrumento nas mãos de sujeitos (individuais mas também públicos, econômicos, políticos, ideológicos etc.), os quais o utilizam segundo os conteúdos e os objetivos que estabelecem para si a cada vez. Basta pensar em como usamos de forma óbvia – isto é, sem verificar a razoabilidade ou o significado essencial – algumas palavras fundamentais nos nossos discursos públicos, tais como nascimento e morte, vida e natureza, direito e justiça, democracia e mercado,  liberalismo e igualdade, e muitas outras.
Mas é exatamente aqui que se evidencia o problema: o sujeito que detém e usa a razão como uma faculdade sua ou um “poder” seu lhe dará também a orientação que ele já antecipadamente decidiu adotar. É a vontade de que quem a usa que decide qual é a natureza da razão, revirando assim toda uma longa e gloriosa história, segundo a qual é, pelo contrário, a natureza “objetiva” da razão que decide sobre a vontade do sujeito, abrindo, diante dele, todo o horizonte da sua pergunta pelo significado e arrastando a trajetória tendencialmente infinita da sua espera por uma resposta adequada.
Com a consequência que, se a razão (como faculdade humana) ou a racionalidade (como característica dos discursos e das ações dos homens) constituem o domínio da capacidade de mensuração e da produtividade das decisões preconceituosas, elas são condenadas a deixar fora de si todo aquilo que chamamos o “sentimental” ou o “emocional”, o “vital”, ou simplesmente “natural”, tidos “obviamente” como irracionais ou, na melhor das hipóteses, como a-racional, no sentido duplo de que excedem as nossas capacidades de controle natural e não têm uma origem e um fim diferentes do mero acontecimento natural.
Mas, há outra consequência relevante nesta perspectiva da razão como procedimento estratégico decidido pelo sujeito, e é que ela se joga inteira na “delimitação” do seu campo. Certamente,  discurso dos limites da razão (Kant docet!) é absolutamente central, exatamente porque compreende de forma realista o alcance da nossa faculdade cognoscitiva, e evita que ela pretenda definir ou agarrar, de forma idolátrica, aquilo que ultrapassa seus poderes. Mas esta cautela realística, no fim, foi tornada no seu exato contrário, ou seja na convicção de que exista razoavelmente, isto é verdadeiramente, somente aquilo que consegue entrar nos esquemas a priori da nossa mente, enquanto que aquilo que os supera, mesmo que exista, não poderá nunca ser objeto de um conhecimento ou de uma escolha racional.
O problema que se acredita que foi resolvido foi, na realidade, apenas evitado: quando reconheço que a realidade me supera, que o mundo é sempre maior do que os meus esquemas mentais, que os fatores em jogo são sempre mais numerosos do que eu sou capaz de contar, que o ser tem um sentido tendencialmente infinito, realizo um ato racional ou irracional? A razão funciona apenas quando mede e predetermina o mundo, ou também age quando descobre a existência do “mistério”? E vice-versa: esta realidade misteriosa é apenas aquilo que, por definição, escapa da razão humana (pelo menos por enquanto!), ou pode se tornar, enquanto tal, o objeto de um olhar racional que reconheça o outro de si?
Exatamente por isso, é preciso reabrir – desafiando a aparência de ingenuidade ou o veredicto de impossibilidade – a questão da razão. Não se trata, todavia, de perseguir um conceito unívoco de racionalidade, no qual se possa homologar a multiplicidade de perspectivas e a pluralidade dos métodos com os quais, a cada vez, a razão se aplica nos diversos campos do saber e do agir. Porém, não se trata também de repetir o velho auspício de uma integração entre racionalidade “instrumental” da tecno-ciência e a razão “meditativa” da filosofia ou da poesia. Muito mais do que isso, se trata de verificar se pode existir uma “natureza” ou uma “constituição” da razão humana que permita a suas múltiplas e diversificadas aplicações; e também verificar se tais aplicações exaurem, em si mesmas, a função da racionalidade ou necessitam – exatamente para poderem funcionar – um horizonte maior de referência.
A hipótese que pretendo verificar é a seguinte: a razão se apresenta como a experiência de um relacionamento, como um espaço de abertura do sujeito humano (uma abertura que tem o nome de “eu”) no qual a realidade emerge como um “dado”. Antes de todo o subjetivismo e antes de todo objetivismo, os “dois” – o eu e a realidade – não apenas entram em relação entre si, como também eles mesmos são um relacionamento. Deste ponto de vista, cada um de nossos limites, a inevitável delimitação no uso da nossa razão, pode ser entendido também como um confim, uma soleira ou um lugar de abertura a uma “razão” (ou logos) maior da nossa mesma faculdade. A razão é, portanto, uma faculdade cognoscitiva e valorativa, mas também – e indissociavelmente – é um princípio de inteligibilidade, ou seja, é um sentido do mundo, diria quase uma dimensão constitutiva do real.
Tentarei documentar esta hipótese através de quatro casos que, no meu entender, são emblemáticos. Trata-se de “figuras” nas quais está em ação uma verdadeira e própria experiência de pensamento, e que podemos reter deliciosamente como “filosóficas”, ainda que não se trate de filósofos profissionais, mas de individualidades criativas que buscam dar-se conta e comunicar a razoabilidade do seu relacionamento com o ser.
O primeiro caso é o do pintor Paul Cézanne, que, trabalhando sobre nossa capacidade de “perceber” visivelmente a natureza (e de torná-la, assim, uma pintura), chega à descoberta de que o nosso olhar, a nossa visão mesma da realidade que nos circunda, constitui o modo primário no qual a realidade chega à sua mais própria “realização”. Não porque a reduzamos ao nosso modo de ver, mas porque, pelo contrário, o nosso ver coincide com o modo mais próprio de dar-se ao mundo.
O segundo caso é o do poeta e escritor Thomas S. Eliot, e diz respeito àquela estranha “modificação” da história que acontece a cada vez que é criada uma nova obra literária, graças à qual toda a tradição precedente não apenas cresce, continua ou é interrompida, mas também é completamente reformulada. O que acontece com a criação de uma nova obra de arte acontece “contemporaneamente” a todas as obras do passado, e o sentido histórico se realiza exatamente na medida em que se descobre que o passado não “é” apenas passado, mas “é” também presente.
O terceiro caso é o do compositor Igor Stravinski, com a sua teoria da música como o único domínio no qual o homem “realiza” o seu presente, visto que, enquanto em todas as suas outras expressões e atividades, ele é obrigado a sofrer o passar irrevogável do tempo, na experiência musical ele o torna, pelo contrário, “real” e “estável”, na medida em que é capaz de colher e de “construir” a ordem do presente.
O quarto caso, finalmente, é o do físico Erwin Schrödinger, com as suas reflexões sobre o relacionamento entre os objetos da natureza, conhecidos através da pesquisa científica, e a consciência do eu, isto é do autor de todo o complexo de representações que formam a cena da ciência. Enquanto, de fato, esta última tem progressivamente “objetivado” o mundo, ela se revela sempre mais incapaz de conhecer o “sujeito” de tal objetivação. E assim o eu fica como um ponto de fuga, sem o qual toda a ciência não seria possível, mas que a ciência mesma não poderá nunca reduzir totalmente às suas explicações.
Este é, portanto, o enigma fascinante da racionalidade humana: algo totalmente “nosso”, que, porém, nunca poderemos reduzir a nós mesmos. 

* Extraído de IlSussidiario.net, do dia 25 de junho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.