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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Gramsci tinha razão: somos uma geração mesquinha



Por Mauro Grimoldi

Caro editor,
Escreve quase que movido por um instinto, depois de um diálogo com uma colega minha, mãe de família, que me contou uma confidência recebida de sua filha mais velha.
A menina frequenta o sexto ano e contou à sua mãe a dor que está sentido por uma companheira de sala que revelou a ela, alguns dias antes, o seu sofrimento pela iminente, provável, separação dos pais e o temor de ser afastada da irmã. Que peso é injustamente lançado nas costas de nossos pequenos! Não se trata de um episódio isolado, mas da enésima confirmação de uma inimizade para como nossos próprios filhos, uma verdadeira e propriamente dita hostilidade que nos leva, se se pode dizer assim, a devorá-los, como nos piores pesadelos evocados da literatura mais antiga. Um dos maiores sucessos editoriais japoneses, recentemente traduzido para o italiano (Confissão de Kanae Minato, sem tradução para o português; ndt), conta a vingança, minuciosamente preparada, de um professor do ensino médio contra dois alunos que mataram sua filha de quatro anos. 
Este trecho de Michael Pye, retirado do romance  A camara de inverno, descreve bem uma situação bastante difundida: “No quarto dia em que estavam na estrada, Gretje teve sua primeira menstruação e sua mãe lhe disse que não importava. Sua mãe nunca lhe explicava as coisas, e Gretje era a obrigada a colocar junto o mundo, colando todos os fatos ou as noções nas quais tropeçava”.
Os tempos que estamos vivendo parecem-me marcados por uma dolorosa contradição: o relacionamento com os filhos é distorcido até a uma verdadeira e propriamente dita inversão de papéis. Os adultos se vestem, falam e pensam como criancinhas e as crianças são jogadas, desde a mais tenra infância, nas realidades próprias do mundo adulto (sexo, dinheiro, poder, guerra...), mesmo após uma exposição midiática contínua. A história de Pin, a criança perdida, sem gosto entre os adultos de uma distante brigada parisiense, contada no romance A trilha dos ninhos de aranha de Italo Calvino, poderia ser lida hoje a partir desta chave de interpretação.
A predileção pelos pequenos tantas vezes repetida por Cristo e a advertência peremptória de não escandalizar o distanciar da Sua Pessoa as crianças nos alcançam a partir de uma faceta da experiência humana que se encarrega de uma responsabilidade urgente e dramática, que ilumina a nossa missão de homens para que a educação seja a obra da vida, até ao ponto de nos consumir. Acho que começo a entender de uma maneira totalmente nova a dedicatória que se encontra anotada num dos primeiros livros de Dom Luigi Giussani: “Aos grandes que nos sabem falar, aos pequenos que nos sabem escutar” (Gioventù Studentesca, 1960), assim como o seu célebre apelo: “Obriguem-nos a andar nus, mas nos deixem a liberdade de educar”.
Certamente, a esta urgência não responderá a ênfase, também ela opressiva, hiperprotetora que defende, justifica e preserva os filhos de todos os orcs malvados que povoam o planeta (quem quiser, pode ler The slap, romance do greco-australiano Christos Tsiolkas) ou o fingimento ostentado de uma cumplicidade amigável muito mais do que a redução da educação a psicologia ou a prática normativo-penal. 
É necessário, vice-versa, que os adultos ajam como adultos, coloquem em ação a sua consistência de homens, que não é nem econômica nem muscular, mas é, em primeiro lugar, a consistência da sua esperança; a que não se alimenta da presunção de ter entendido tudo, mas do ideal que se segue. Por isto, precisamos de um lugar onde possamos seguir homens que seguem o Ideal: em suma, precisamos que a Igreja exista.
Tenho vivo na memória o momento do funeral copta realizado para uma menina egípcia, companheira de sala de aula de minha filha Anna, quando a autoridade mais antiga se inclinava em direção à menor das crianças, que, cantando, a interrogava, para responder, também cantando, às suas perguntas. Parece-me uma boa representação da autoridade, que se apoia sobre si mesma, mas só é segura em virtude da tradição, sólida, duradoura e viva, que recebeu e tornou sua. Como Gramsci escreveu: “Uma geração que deprime a geração anterior, que não consegue ver suas grandezas e o seu significado necessário, só pode ser mesquinha e sem confiança em si mesma. (...) Na desvalorização do passado está implícita uma justificação da nulidade do presente”.
Perto do fim do romance A estrada de Cormac McCarthy, no qual se narra a relação entre um pai e um filho num mundo devastado por uma tragédia que reduziu tudo a cinzas, onde a vida animal desapareceu e muitos homens regrediram a uma forma bestial de canibalismo, o filho pergunta ao pai, moribundo, sobre uma criança encontrada na estrada e que nunca mais foi vista outra vez: “Mas, que o encontrará se ele tiver se perdido? Quem encontrará aquele menino?”. A resposta do pai foi: “A bondade o encontrará. Sempre foi assim. E será ainda assim”.
É preciso dizer que esta resposta vem de um homem que, surpreso com a inclinação natural do filho pelo bem, não a mortificou, julgando-a uma fantasia infantil, mas a acompanhou, guiou e fez crescer, reconhecendo na natureza do filho a única possibilidade de salvaguarda da humanidade não só da criança, mas também da sua, até ao legado esperançoso das palavras que eu mencionei, que se demonstrarão verdadeiras e confiáveis.
Emerge uma imagem da educação que não consiste no encher a criança com as próprias opiniões, mas que se realiza no serviço à sua natureza, para fazê-la crescer e dar a ela aquela segurança que a criança, assim como o jovem, é impulsionado a buscar na pessoa e na vida do adulto.
De outro lado, parece-me que seja possível dizer que o movimento amoroso de Deus que se inclina sobre nós, fazendo-Se homem, nasça da urgência de nos assegurar que aquilo que somos é destinado a se realizar: em virtude da ressurreição podemos dizer com a mesma convicção de Paulo e Timóteo: “estou certo de que Aquele que começou em vós esta boa obra, a levará a realização até ao dia de Cristo Jesus”.
A urgência que os tempos põem a nós adultos – qual seja: a de sermos capazes de gerar, educar, fazer crescer na vida aqueles que colocamos no mundo – parece-me decisiva.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 23 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Nenhuma teoria (e laboratório) nos faz nascer outra vez...


Por Salvatore Abbruzzese

Para o homem contemporâneo, ou seja, aquele que frui – pelo menos potencialmente – do capital informativo e cultural que caracteriza a atual sociedade global, a lista das escolhas possíveis só se tem alongado, estendendo-se dia após dia para além de todo confim tradicionalmente herdado. E possível escolher aquilo que até ontem parecia imutável, pensando que, assim, seja possível, razoavelmente, modificar não apenas as condições materiais de vida e os modelos de expressão, mas também as próprias características físicas e o mesmo o próprio gênero.
O problema encontra-se, portanto, aberto, mas as suas raízes não são, de fato, inéditas. A extensão ilimitada das oportunidades e o consequente aumento das potencialidades de escolha do indivíduo não datam de hoje, mas estão no centro da modernidade como projeto cultural. Nos fatos é a modernidade na qual nascemos que alimenta constantemente a esperança de uma extensão crescente e potencialmente ilimitada das opções, ou seja, das escolhas à disposição. Estender ao máximo as ocasiões de escolha – como recordava Dahrendorf, em 1979 – é um objetivo que se situa no coração do projeto moderno, e constitui o seu verdadeiro motor motivacional, o que alimenta incessantemente sua dimensão projetual. Para um mundo fundado sobre a liberdade, esta última tem tanto sentido quanto mais o sujeito puder escolher entre uma série crescente e potencialmente ilimitada de oportunidades de vida.
O dado inédito, que é alimentado pelos recentes desenvolvimentos da ciência contemporânea, constitui-se da possibilidade de deixar entrar na rede das opções à disposição também os dados da bagagem natural que, até ontem, eram entendidos como o mais incontroverso dos dados de fato. Uma tal possibilidade de escolha também das características vinculadas à própria natureza psíquica e física não tem apenas problemas no plano ético e político, mas transforma também completamente os termos mesmos do confronto entre modernidade e tradição.
A primeira, de fato, vê transitar a própria dimensão projetual do plano social e político para o das características físicas e psíquicas. Tendo emergido a partir da afirmação de um projeto de emancipação no plano social, a sociedade moderna declina, apresentando um programa de transformação genética. Nascida como direito coletivo à palavra, a modernidade vê o seu declínio no direito do sujeito à redefinição de si mesmo. Estabelecida no laboratório político, descobre a resolução no acomodar-se no laboratório genético.
Mas, também a tradição, de modo quase automático, muda decididamente o seu perfil, passando da subscrição de um código ético e normativo já dado, para a definição de um novo modelo de realização. O sujeito, mais do que tender à multiplicação das oportunidades, se volta aqui para a recuperação e para  a reconstrução dos vínculos e das relações significativas. A dinâmica da tradição se desenrola passando da simples subscrição do statu quo para a busca dos pertencimentos vinculantes. Contra a reversibilidade das escolhas propostas pela modernidade, a tradição replica com a irreversibilidade das relações significativas. Não se trata, aqui, apenas das escolhas do vínculo paterno e materno que se revelam, uma vez efetuadas, completamente não modificáveis, mas todas as escolhas afetivas e vocacionais revelam a mesma dinâmica de irreversibilidade: prova disso é a ferida que continua aberta para sempre, todas as vezes em que tais “escolhas de vínculo” são anuladas por uma renúncia pessoal. Não há escolha de vida verdadeiramente autêntica que não envolva a radicalidade do ser e, nesse mesmo caminho, se preste a ser pensada e vivida como implicitamente irreversível.
O deslocamento da modernidade do plano das reivindicações sociais para o da autodeterminação pessoal provoca, assim, uma transformação radical da forma como enfrenta a tradição.
No passado, o confronto entre tradição e modernidade se realizava ao redor da questão ética socialmente dada e juridicamente codificada. A distinção se desenvolvia entre duas leituras da realidade: a primeira, que tendia a uma adesão incondicional à autoridade do “eterno ontem” que, dessa forma, se constitui na premissa legitimadora, a segunda dirigida à busca também incondicional da mudança e à consequente exaltação do novo entendido como senso normativo da história.
Na presente linha de separação entre modernidade e tradição, e portanto o elemento estrutural de diferenciação, desenvolve-se, pelo contrário, na lacuna crescente entre quem persegue um extensão ilimitada das escolhas à disposição e quem, por outro lado, tem como objetivo também uma busca estendida de relações significativas. 
Desenvolve-se assim uma diferenciação cada vez mais clara entre duas antropologias distintas: uma, própria da modernidade, que vê o sujeito tendido a se libertar de todo vínculo e a se voltar para uma busca de uma cada vez maior e mais completa afirmação de si mesmo; a outra, própria da tradição, onde o sujeito, pelo contrário, está sempre mais atento a uma plena e bem definida afirmação das relações significativas, a partir das quais ele se situa e se define. A uma emancipação do sujeito, consequente ao reconhecimento do “direito aos direitos” e, portanto, tendido à autodeterminação radical daquilo que escolhe ser, se contrapõe uma realização da pessoa voltada ao reconhecimento dos vínculos e das redes de relações às quais escolhe se ligar. Na primeira, o sujeito coroa o próprio sucesso na medida em que tem acesso a uma rede cada vez mais vasta de opções, na segunda ele vê a própria realização na localização e no reconhecimento dos vínculos que o definem. Nestes vínculos, o sujeito descobre seu próprio rosto, aquele que, de fato, ele não quer modificar e para o qual toda potencial transformação genética é simples loucura.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 14 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 21 de junho de 2011

E este é o Rosto de Deus: seu amor misericordioso

Visita Pastoral à Diocese de San Marino-Montefeltro

Concelebração Eucarística

Homilia do Santo Padre Bento XVI

Estádio de Serravalle – República de San Marino
Domingo, 19 de junho de 2011
Solenidade da Santíssima Trindade

Caros irmãos e irmãs,
É grande a minha alegria ao poder partir convosco o pão da Palavra de Deus e da Eucaristia e poder dirigir a vós, caros san-marinenses, a minha mais cordial saudação. Dirijo um pensamento especial aos Capitães Regentes e às outras autoridades políticas e civis presentes nesta celebração eucarística; saúdo com afeto o vosso Bispo, Dom Luigi Negri, que agradeço pelas cordiais palavras a mim dirigidas, e, com ele, todos os sacerdotes e fiéis da diocese de San Marino-Montefeltro; saúdo a cada um de vós e vos expresso o meu vivo reconhecimento pela cordialidade e o afeto com o qual me acolhestes. Vim para compartilhar convosco alegrias e esperanças, fadigas e compromissos, ideais e aspirações desta Comunidade diocesana. Sei que também aqui não faltam dificuldades, problemas e preocupações. A todos quero assegurar a minha proximidade e a minha recordação na oração, à qual uno o encorajamento para perseverarem no testemunho dos valores humanos e cristãos, tão profundamente radicados na fé e na história deste território e da sua população, com a sua fé resistente como pedra da qual falou Sua Excelência.
Hoje, celebramos a festa da Santíssima Trindade: Deus Pai e Filho e Espírito Santo, festa de Deus, do centro da nossa fé. Quando se pensa na Trindade, quase sempre vem em mente o aspecto do mistério: são Três e são Um, um só Deus em três Pessoas. Na realidade, Deus não pode ser outra coisa senão um mistério para nós, na sua grandeza, e todavia Ele se revelou: podemos conhecê-Lo no seu Filho, e assim também conhecer o Pai e o Espírito Santo. A liturgia de hoje, pelo contrário, chama a nossa atenção não tanto para o mistério, mas para a realidade de amor que está contida neste primeiro e supremo mistério da nossa fé. O Pai, o Filho e o Espírito Santo são um, porque amor e amor é a força vivificante absoluta, a unidade criada pelo amor é mais unidade do que uma unidade puramente física. O Pai dá tudo ao Filho; o Filho recebe tudo do Pai com reconhecimento; e o Espírito Santo é como que o fruto deste amor recíproco do Pai e do Filho. Os textos da Santa Missa de hoje falam de Deus e, por isso, falam de amor; não se dedicam tanto ao mistério das três Pessoas, mas sobre o amor que constitui a sua substância e a unidade e trindade ao mesmo tempo.
O primeiro trecho que escutamos é tirado do Livro do Êxodo – sobre ele eu me dediquei numa recente Catequese da quarta-feira – e é surpreendente que a revelação do amor de Deus aconteça depois de um gravíssimo pecado do povo. Acabou de ser concluído o pacto de aliança junto ao monte Sinai, e o povo já peca contra a fidelidade. A ausência de Moisés se prolonga e o povo diz: “Mas, onde está Moisés, onde está o seu Deus?”, e pede a Aarão que lhe faça um deus que seja visível, acessível, manobrável, ao alcance do homem, ao invés daquele misterioso Deus invisível, distante. Aarão consente e prepara um bezerro de ouro. Descendo do Sinai, Moisés vê aquilo que aconteceu e quebra as tábuas da aliança, que já era partida, quebrada, duas pedras sobre as quais estavam escritas “Dez Palavras”, o conteúdo concreto do pacto com Deus. Tudo parece perdido, a amizade, de repente, desde o início, já partida. E no entanto, não obstante este gravíssimo pecado do povo, Deus, por intercessão de Moisés, decide perdoar e convida Moisés a subir outra vez ao monte para receber de novo a sua lei, os dez Mandamentos e renovar o pacto. Moisés pede, então, a Deus que se revele, que lhe permitisse ver o seu rosto. Mas Deus não mostra o rosto, revela sim o seu ser pleno de bondade com estas palavras: “Senhor, Senhor! Deus misericordioso e clemente, lento na ira e rico de amor e de fidelidade” (Ex 34, 6). E este é o Rosto de Deus. Esta autodefinição de Deus manifesta o seu amor misericordioso: um amor que vence o pecado, o cobre, o elimina. E podemos estar seguros desta bondade que não nos deixa. Não pode haver revelação mais clara. Temos um Deus que renuncia a destruir o pecador e que quer manifestar o seu amor de maneira ainda mais profunda e surpreendente exatamente diante do pecador, para oferecer a possibilidade da conversão e do perdão.
O Evangelho completa esta revelação, que escutamos na primeira leitura, porque indica até que ponto Deus mostrou a sua misericórdia. O evangelista João faz referência a esta expressão de Jesus: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que não morra todo o que nele crer, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). No mundo há o mal, o egoísmo, a maldade e Deus poderia vir para julgar este mundo, para destruir o mal, para castigar aqueles que agem nas trevas. Ao contrário, Ele demonstra amar o mundo, amar o homem, não obstante o seu pecado, e envia aquilo que tem de mais precioso: o seu Filho unigênito. E não só O envia, mas o doa ao mundo. Jesus é o Filho de Deus que é nascido para nós, que viveu para nós, que curou os doentes, perdoou os pecados, acolheu a todos. Respondendo ao amor que vem do Pai, o Filho deu a sua vida por nós: na cruz, o amor misericordioso de Deus atinge o seu ápice. E é na cruz que o Filho de Deus nos obtém a participação na vida eterna, que nos é comunicada com o dom do Espírito Santo. Assim, no mistério da cruz, estão presentes as três Pessoas divinas: o Pai, que dá o seu Filho unigênito para a salvação do mundo; o Filho, que realize até ao fim o desígnio do Pai; o Espírito Santo – derramado por Jesus no momento da morte – que vem para nos tornar partícipes da vida divina, para transformar a nossa existência, para que seja animada pelo amor divino.
Caros irmãos e irmãs, a fé no Deus trinitário caracterizou também esta Igreja de San Marino-Montefeltro, no curso da sua história antiga e gloriosa. A evangelização desta terra é atribuída aos Santos pedreiros Marino e Leão, os quais, na metade do século III depois de Cristo, teriam desembarcado em Rímini, vindos da Dalmácia. Por causa de sua santidade de vida foram consagrados um como sacerdote e outro como diácono do Bispo Gaudêncio e foram por ele enviados ao interior, um ao monte Feretro, que depois assumiu o nome de San Leo, e outro ao monte Titano, que depois tomou o nome de San Marino. Para além das questões históricas – que não é nossa tarefa aprofundar – interessa afirmar como Marino e Leão trouxeram ao contexto desta realidade local, com a fé no Deus revelado em Jesus Cristo, perspectivas e valores novos, determinando o nascimento de uma cultura e de uma civilização centrada na pessoa humana, imagem de Deus e, por isso, portadora de direitos precedentes a toda legislação humana. A variedade das diversas etnias – romanos, godos e depois lombardos – que entravam em contato entre si, algumas vezes até de modo conflituoso, encontraram na referência comum à fé um fator poderoso de edificação ética, cultural, social e, de algum modo, política. Era evidente a seus olhos que não era possível ter como realizado um projeto de civilização enquanto todos os componentes do povo não se tivesse tornado uma comunidade cristã viva e bem estruturada e edificada sobre a fé no Deus Trinitário. Com razão, portanto, se pode dizer que a riqueza deste povo, a vossa riqueza, caros san-marinenses, foi e é a fé, e que esta fé criou uma civilização verdadeiramente única. Ao lado da fé, é preciso também recordar, a absoluta fidelidade ao Bispo de Roma, ao qual esta Igreja sempre olhou com devoção e afeto; como mesmo a atenção demonstrada pela grande tradição da Igreja oriental e a profunda devoção pela Virgem Maria.
Vós sois justamente orgulhosos e gratos pelo que o Espírito Santo operou através dos séculos na vossa Igreja. Mas, vós sabeis também que o melhor modo para apreciar uma herança é cultivá-la e enriquecê-la. Na realidade, vós sois chamados a desenvolver este precioso depósito num momento entre os mais decisivos da história. Hoje, a vossa missão se encontra no confrontar-se com profundas e rápidas transformações culturais, sociais, econômicas, políticas, que determinaram novas orientações e modificaram mentalidades, costumes e sensibilidades. Também aqui, de fato, como em outros lugares, não faltam dificuldades e obstáculos, devidos sobretudo a modelos hedonistas que obscurecem a mente e arriscam anular toda moralidade. Insinuou-se a tentação de achar que a riqueza do homem não seja a fé, mas o seu poder pessoal e social, a sua inteligência, a sua cultura e a sua capacidade de manipulação científica, tecnológica e social da realidade. Assim, mesmo nestas terras, começou-se a substituir a fé e os valores cristãos com presumidas riquezas, que se revelam, no fim, inconsistentes e incapazes de manter a grande promessa do verdadeiro, do bom, do belo e do justo que, por séculos, os vossos antepassados identificaram com a experiência da fé. Não são, pois, esquecidas a crise de não poucas famílias, agravada pela difusa fragilidade psicológica e espiritual dos cônjuges, como também a dificuldade experimentada por muitos educadores na obtenção da continuidade formativa dos jovens, condicionados por múltiplas precariedades, a primeira das quais pode ser apontada como a do papel social e da possibilidade de trabalho.
Caros amigos! Conheço bem o compromisso de cada componente desta Igreja particular na promoção da vida cristã nos seus vários aspectos. Exorto a todos os fiéis a serem como fermento no mundo, mostrando-vos, tanto em Montefeltro como em San Marino, cristãos presentes, empreendedores e coerentes. Que os Sacerdotes, os Religiosos e as Religiosas vivam sempre na mais cordial e ativa comunhão eclesial, ajudando e escutando o Pastor diocesano. Também junto de vós se percebe a urgência de uma retomada das vocações sacerdotais e de consagração especial: apelo às famílias e aos jovens, para que abram o espírito para uma resposta pronta ao chamado do Senhor. Nunca nos arrependemos de ser generosos com Deus! A vós leigos, recomendo que vos empenheis ativamente na comunidade, de forma que, ao lado de vossas peculiares tarefas civis, políticas, sociais e culturais, possais encontrar tempo e disponibilidade para a vida da fé, a vida pastoral. Caros san-marinenses, permanecei fortemente fiéis ao patrimônio construído nos séculos sob o impulso dos vossos grandes Padroeiros, Marino e Leão. Invoco a bênção de Deus sobre vosso caminho de hoje e de amanhã e recomendo todos “à graça do Senhor Jesus Cristo, ao amor de Deus e à comunhão do Espírito Santo” (2Cor 13, 11). Amém!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 19 de junho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A tradição é mais moderna do que a modernidade


Não é preciso conservar tudo aquilo que se fazia ontem, mas transmitir o essencial
No âmbito do ciclo de encontros organizados pelo Centro Cultural de Milão sobre o tema “O desejo e o homem contemporâneo. Confrontos”, na noite de quinta-feira, 3 de março, em Milão, na Aula Magna da Universidade Católica do Sacro Cuore, foi proferida uma conferência da qual antecipamos alguns trechos 

Por Fabrice Hadjadj
A modernidade da época de Péguy tinha ainda ambições humanistas. Agora, tudo isso acabou. O século passado entre a época de Péguy e os nossos tempos colocou as condições para um desaparecimento completo do humanismo. O fato novo está no conhecimento da finitude não mais individual mas coletiva da espécie humana. O século XX, com Kolyma, Auschwitz e Hiroshima (uso especificamente esses nomes próprios, porque sei que os nomes comuns não seriam suficientes para definir estes eventos), o século XX foi, ao mesmo tempo, a era da apoteoso e da morte das ideologias do progresso. Por quê? Porque o progressismo foi para o poder e, ao invés de dar vida a uma sociedade mais justa, produziu o totalitarismo. Portanto, como disse Rimbaud em Uma temporada no inferno: “De que serve um mundo moderno, se for para inventar venenos semelhantes!”. Se depois se coloca por cima de todas estas catástrofes o darwinismo que nos explica como a humanidade não pode ser outra coisa a não ser uma bricolage devida à casualidade e à competição, se torna difícil acreditar no futuro, na história e na posteridade.
É este o motivo pelo qual assistimos a uma crise da modernidade e estamos indo em direção ao pós-humano. Um pós-humano que pode assumir três formas: uma tecnocrática, uma teocrática e uma ecológica.
No primeiro caso, trata-se de criar um super-homem. No segundo caso, promove-se um fundamentalismo que esmaga a cultura humana, enquanto que no terceiro assistimos a um retorno à chamada Mãe Natureza. Em cada um destes casos, perdemos toda esperança para o homem histórico, aquele que promovia a modernidade. Não acreditamos mais na continuidade, na cultura de longa duração. A tecnocracia, desde que exige a eficiência, nos esmaga imediatamente. A teocracia nos projeta no além. O ambientalismo nos faz retornar aos ciclos naturais.
Estes três erros se contrapõem uns aos outros, mas somente para nos fazer cair mais facilmente numa armadilha. Denunciando um, arrisca-se sempre em cair num outro. É assim que o demônio joga em todos os lados da mesa de pôquer.
Esta situação nova de crise da modernidade, todavia, tem algumas vantagens notáveis: desloca as barreiras de antes. O filho da Igreja e o partidário das Luzes podem se tornar aliados diante desta destruição maciça da cultura humana. O moderno pode admitir que a tradição cristã tinha algo de bom. Além disso – e vou apenas mencionar isso –, a primeira ocorrência conhecida do adjetivo modernos se encontra no século V e servia para designar os cristãos. Eis por que assistimos na França a uma certa defesa da história e da tradição por parte dos intelectuais exatamente da esquerda (Max Gallo, Régis Debray, Alain Finkielkraut, e assim por diante).
Como é possível esta nova aliança? Poderíamos explicá-la através de um artifício lógico e psicológico simples: diante do pós-moderno, que representa o inimigo comum, os modernos e os apoiadores da tradição formam uma frente comum.
Mas, existe uma razão mais profunda, ligada à língua. O amor pela palavra, o gosto pela linguagem, a certeza de que não é um meio de comunicação mas um lugar de verdade e comunhão, um espaço no qual o mundo se recolhe e que, portanto, devemos nos esforçar por cuidar e falar bem, é isto que une antigos e modernos contra a com dos tecnocratas, as bombas dos teocratas e os nitritos dos fanáticos ambientalistas. A linguagem tem isto de singular: na sua essência é, ao mesmo tempo, tradicional e moderna. É tradicional porque a linguagem é sempre recebida: falo porque alguém falou para mim e falo uma língua cujo nome remete a uma nacionalidade e, portanto, a uma comunidade que existe através dos tempos. A linguagem, porém, é também moderna, porque é através dela que é possível dizer “Eu”, que é possível afirmar-se aqui e agora, que é possível protestar, que é possível inventar novas formas.
Não falamos apenas para repetir, mas para cantar e, portanto, para variar, renovar, fazer ressoar a linguagem de um modo novo. “Cantai ao Senhor um canto novo”, disse o rei Davi. Esta é a essência da palavra: permite-nos ouvir um mandamento antigo e cantar um canto novo, e é recebida para, depois, ser novamente dada de maneira única e pessoal.
O que é precípuo de uma verdadeira novidade é que não precisa romper com aquilo que a precede para se afirmar. Se fosse nova apenas pelo espírito de vanguarda ou de ruptura, pertenceria àquela forma mutilada de modernidade que chamamos “moda”. A moda propõe novidades de ruptura com aquilo que a precede.
Eis por que estas novidades se torna muito rapidamente velharias: outras novidades aparecem no horizonte e a moda sai de moda. A novidade mantém o seu frescor e a sua juventude não se afastando daquilo que a precede, mas se aproximando da fonte. Não é excêntrica: é original. Isto quer dizer que não se afasta do centro, que não buscar um lugar apenas em relação àquilo que a precedeu (ainda que seja para tomar distância ou para se aproximar). A novidade se volta para a origem.
Falar de uma maneira verdadeiramente nova, como fez Dante por exemplo, não quer dizer romper mas colocar-se em comunicação com a origem da palavra, e esta origem reside num duplo silêncio: o silêncio da morte e o silêncio do Eterno. Todos aqueles que falaram com uma força nova, todos aqueles que cantaram um canto novo, foram capazes de se colocar entre a angústia diante do silencia da morte e a esperança diante do silêncio do Eterno: atravessaram o inferno e foram cegados pelo paraíso. Permanece o fato de que a modernidade da língua é secundária em relação a sua tradição. É preciso, antes de tudo, aprender as regras antes de começar a jogar. Aquele que ataca os próprios pais só pode fazê-lo se, primeiro, os escutou e se ainda se dirige a eles.
No entanto, também a tradição da língua existe em função da sua modernidade: a aprendizagem das regras não é fim em si mesma, mas existe em função de uma nova partida a ser jogada. Não vimos ao mundo para repetir aquilo que nos disseram os nossos pais, muito menos para insultá-los, mas para dialogar com eles, para responder, para enriquecer com a nossa melodia o grande coro da vida.
Esta estrutura da palavra, ao mesmo tempo moderna e tradicional, permite compreender a tese de Romano Guardini em O fim da idade moderna. Segundo Guardini, a modernidade retomou essencialmente algumas realidades cultas do cristianismo para jogá-las contra o cristianismo mesmo. Sobre a base da revelação da dignidade da pessoa construiu-se o individualismo. Sobre a base da verdade do livre arbítrio construiu-se o liberalismo. Sobre a base da exigência de justiça social construiu-se o socialismo, e assim por diante.
A modernidade reconhece uma flor evangélica, colhe-a e a coloca num vaso. A flor, então, é valorizada, a ponto de parecer até mais maravilhosa do que é. O isolamento lhe dá uma luminosidade especial, um perfume extasiante, a ponto de fazer pensar que a flor não tenha mais nada que ver com as suas raízes. A verdade é, pelo contrário, que ela é condenada a murchar.
O esquecimento pode funcionar apenas por um certo período de tempo, o suficiente para que o progressismo chegue a fingir ser apenas um substituto da esperança teologal. 
Mas, o que vemos hoje? Eu já o disse: o desmoronamento dos progressismos e, pelo contrário, a moda de um catastrofismo generalizado, e portanto a crise radical da modernidade. Ela teria chegado cedo ou tarde a esta crise, visto que todas estas noções vindas de suas raízes e do seu sol serviram apenas para colocar a perder, pouco a pouco, a linfa vital. Paradoxalmente, hoje, a modernidade pode ser salva somente na medida em que se recorra à tradição, e mais especificamente à tradição judaico-cristã.
As esperanças mundanas morreram. E impossível partir delas e conseguir ainda crer numa saída para o humano. Mas a esperança teologal não pode morrer. Não depende do futuro: depende do eterno. Sempre me lembro disso: quando me advertirem que, para o fim do ano, só falta um ano, não renunciarei a amar minha mulher, a ter com ela outro filho, a ajudar que meus outros cinco filhos descubram a poesia de Dante... Porque sei que esta vida não serve para ter um futuro, mas para que cada um tenha a vida eterna.
O modernismo, ou seja, a modernidade que pretende abaixar-se sobre si mesma, pode portanto apenas destruir a modernidade. É sempre varrida pelo pós-humano. Porque não é possível jogar sem antes ter aprendido as regras. Num instante, o protesto se apaga e deixa o lugar ao programa em código ou ao verso do animal, porque saímos da tradição e da tradição da palavra. Deste momento em diante a modernidade deve voltar-se contra o modernismo e a modernização sistemática se quer permanecer viva e humana. Deve reencontrar a sua tradição, aquela tradição que ecoa no mandamento da Bíblia: “Cantai ao Senhor um canto novo”.
A tradição não é, dessa forma, tão contraposta à modernidade quanto se poderia imaginar, já que a tradição não é nem conservadorismo nem fascínio pelo passado histórico.
O que levou à destruição de toda tradição foi exatamente o conhecimento histórico como fim em si mesmo: multiplica as informações sobre o passado, mas apenas para colocá-las numa vitrine. Nada é mais distante da tradição do que um museu do folclore. A verdade é que a tradição não consiste numa simples transmissão do saber: é a transmissão de um saber vivo.
Eu posso conhecer com grande precisão tudo aquilo que Jesus fez e posso até mesmo saber a Bíblia de cor; posso também ser o curador de um grande museu do cristianismo. Mas esta relação com o museu não é uma relação com a tradição: a cultura não tem nada que ver com o culto. O erudito conhece a tradição perfeitamente, mas não vive na tradição.
A velhinha que fala de Jesus vive na tradição, mesmo se não conhece da tradição nada do que o erudito conhece. Na tentação de Jesus no deserto, Satanás cita de cor o Deuteronômio, demonstrando ser um especialista de exegese histórico-crítica: vive na erudição para evitar entrar na tradição viva. De outro lado, a tradição não é um conservadorismo. Um bom exemplo nos é dado pelo motu proprio de João Paulo II, Ecclesia Dei afflict. Este texto fala do cisma provocado por D. Marcel Lefebvre e dos que chamamos “integralistas” ou “tradicionalistas”.
Qual é o princípio deste cisma? Não é o amor pela tradição, diz João Paulo II, mas o amor pelo conservadorismo, ou seja, por uma forma de conservação que quer manter tudo absolutamente intacto, e que, portanto, petrifica ao invés de conservar em vida. Vocês sabem bem: se quiserem conservar tudo de um ser vivo, vocês não podem mantê-lo em vida e são obrigados a congelá-lo. “A raiz desse cisma é identificado numa noção de tradição incompleta e contraditória. Incompleta porque não leva em conta suficientemente o caráter vivo da tradição que – como o Concílio Vaticano II ensinou claramente – progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo”. O tradicionalismo se contrapõe à tradição porque mata o organismo vivo para se tornar um adepto do fóssil. A verdadeira tradição não consiste em conservar tudo daquilo que se fazia ontem, mas no transmitir o essencial disso. E para poder transmitir o essencial é preciso saber reconhecer os sinais do tempo e, portanto, adaptar-se a certas novas condições de transmissão. Josef Pieper escreve: “Uma consciência autêntica da tradição nos torna livres e independentes diante daqueles que pretendem ser os ‘guardiães’. Pode acontecer que estes famosos ‘defensores da tradição’, exatamente pelo fato de que se limitem a formas históricas, obstaculizem aquela que, pelo contrário, é a verdadeira e necessária transmissão (que não pode acontecer senão como formas históricas mutáveis)”.
A verdadeira tradição é uma relação viva com o mistério, na medida em que esta relação é recebida e transmitida como a palavra e a vida, através da palavra e da vida, desde a origem. A tradição é, portanto, ainda mais crítica, porque é confronto com aquilo que escapa à crítica, com aquilo que nos supera, com aquilo que nos traz mais interrogações do que normalmente nos fazemos, com aquilo que nos chama mais do que saibamos responder.
Mesmo nisso a tradição é mais moderna do que a modernidade : está sempre à frente, na medida em que é fundada sobre a esperança; não se rege sobre o futuro próximo, mas sobre o eterno e, portanto, sobre aquilo que ressurge mesmo depois do fim dos tempos. Nisto, a tradição é ainda mais jovem do que a modernidade, porque a tradição pressupõe que os pais seja também e antes de tudo filhos e, portanto, crianças: não tiveram a iniciativa da palavra, não inventaram a vida, sobretudo a receberam.
O complexo de Édipo existe apenas fora da tradição. A revolta dos Titãs existe apenas fora da tradição. No seio da tradição o filho não tem nenhuma razão para matar o pai porque descobre que seu pai é também um filho, que toda originalidade pura, todo verdadeiro gênio, é sempre filial. Porque ser filho do Eterno é infinitamente maior do que ser pai por um breve momento.
Josef Pieper escreve também, a respeito da esperança: “A juventude do homem que aspira ao eterno é, por sua natureza, indestrutível. Não é exposta nem ao envelhecimento nem à desilusão”.

* Extraído de L'Osservatore Romano, do dia 4 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Com “Jesus de Nazaré” Bento XVI defende a fé do povo de Deus


Por Massimo Camisasca

O Papa, todo Papa, é vigário de Cristo. A sua eleição, o seu ministério, a sua pessoa não podem ser compreendidos se não em relação com a pessoa de Jesus de Nazaré, o Verbo de Deus feito homem. É no diálogo com o seu Senhor que ele aceitou a sua nomeação como sucessor de Pedro, é na continuidade de tal relação que, todos os dias, busca o significado e a força do que realiza e diz.
Se há um dever do Papa, este é o de se interrogar sobre quem é Cristo para ele, para os homens e para o mundo. É o que Bento XVI quis fazer trabalhando nestes primeiros seis anos de pontificado na obra que certamente permanecerá como uma das mais importantes de sua vida. Começada quando era ainda cardeal, constituiu o conteúdo de tantas de suas reflexões, estudos, pesquisas, orações ao longo destes anos. Por ela, sacrificou horas e dias de repouso.
Depois de uma primeira parte dedicada aos três anos da pregação de Cristo, eis agora uma segunda dedicada aos dias da Paixão e, particularmente, ao Tríduo que compreende também a morte e a ressurreição. Sabemos que está já esboçada uma terceira parte, talvez já toda escrita, dedicada ao comentário dos evangelhos da infância, o de Mateus e o de Lucas. Estes últimos são textos com um padrão particular, que podem ser lidos, estudados e meditados com uma atenção específica, anterior ou posterior à meditação das outras páginas do evangelho.
A vida de Jesus, como é narrada pelos evangelhos, pode ser vista como um processo de progressiva concentração: depois de longos anos de preparação, o tempo breve da pregação e, depois, os dias brevíssimos da paixão, morte e ressurreição. E no entanto é exatamente destas últimas horas que parte a reflexão comovida dos primeiros cristãos e a coletânea dos testemunhos sobre Jesus de Nazaré, que se alargou posteriormente aos outros tempos da vida do Messias.
São Paulo podia dizer: não conheço outra coisa, a não ser Cristo e este crucificado (cf. 1Cor 2, 2). É compreensível portanto porque Bento XVI quis dedicar um volume inteiro a estas horas decisivas. A intenção, seguramente, é análoga à que já encontramos expressa na primeira parte da obra publicada em 2007: mostrar que o Jesus da fé e o da história não são duas pessoas diferentes, como muitos exegetas quiseram fazer, sobretudo no século passado. O Jesus que a fé, ou seja, a tradição da Igreja, nos transmitiu não é um personagem inventado, o fruto de um sentimento irracional que não sabe voltar-se para os fatos. Ele existiu verdadeiramente e dele temos tantos testemunhos quase contemporâneos à sua existência, escritos para transmitir os eventos da sua vida, mas também o conteúdo salvífico que traziam aos homens. Assim, fé e história não se excluem, mas se integram e se explicam mutuamente.
A obra de Bento XVI sobre Jesus de Nazaré mostra-se, portanto, como fruto de um longo trabalho de exegese, que não esquece nem as antigas, mas sempre vivas, leituras dos Padres, nem o trabalho do método histórico-crítico ou das mais recentes teorias sobre as estruturas literárias. Seguindo a exegese do Papa que, entre outras coisas, com esta obra não pretende impor um ato magisterial, encontramos as várias etapas que a leitura crítica e meditativa da Escritura percorreu em dois mil anos de história da Igreja. Estamos, nesse momento, no ponto de virada, num momento novo e extremamente simples. Um momento que quer unir a sabedoria dos antigos padres à acuidade crítica da exegese moderna. Uma obra que mira sobretudo a fé do povo de Deus, a que quer alimentar e defender e de onde pretende tirar as certezas fundamentais, os pontos que servirão de guia para a própria busca. 

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 3 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Beagá: uma decepção...

Por Paulo Roberto de Andrada Pacheco

Sou belorizontino e, há 5 anos, por força das circunstâncias, mudei-me para São Paulo. Todos os anos, porém, no fim do ano, vou para minha terra natal, onde reencontro a família e os amigos. Ano após ano, me surpreendo com as mudanças na cidade. E também, ano após ano, sou obrigado a me lembrar de como, “antigamente”, a ideia do “progresso” era vista quase como um contra valor, escravos que éramos não de uma verdadeira tradição, mas de um artificialismo sem raízes.
No final do ano passado, pela primeira vez, eu e minha esposa tivemos o Aeroporto de Confins como meta de nossa viagem – as viagens de avião sempre tiveram Confins como ponto de partida e certeza de retorno. Ali chegando, fomos recebidos por familiares. No caminho para Belo Horizonte, à noite, a surpresa com a Linha Verde e com a Cidade Administrativa, as luzes de Natal aqui e ali. No pensamento, entre comovido, espantado e orgulhoso, se formava uma expressão: “minha cidade está crescendo”... E fui buscando sinais de um crescimento sólido, um crescimento que não fosse sinônimo de abandono de identidade, como tantas vezes se vê por aí.
Mas, os dias passaram e o que vi foi me envergonhando, foi me assustando, foi me entristecendo: na rua com calçamento de pedra, onde fica a casa da família de minha esposa, no Carlos Prates, mato com um metro e meio de altura e a queixa dos moradores de que a Prefeitura, em poucas palavras, estava pouco se importando; fezes de cachorro espalhadas por todas as ruas por onde tive a oportunidade de andar; na Savassi, esperando um ônibus, um rapaz termina sua cerveja e, na maior falta de cerimônia, lança a latinha no meio da rua, e é seguido por outro que, passando de carro, faz o mesmo enquanto o sinal estava fechado; num boteco, ao lado do Minas Centro, uma garçonete, depois de abrir cada garrafa de cerveja ou de refrigerante, joga a tampinha na calçada; pedintes e pessoas sujas e desocupadas vagabundeando pelas ruas; de dentro do ônibus, uma criança, sentada ao lado do que parecia ser sua mãe, com muita naturalidade, vai descascando as balas que come e jogando o papel pela janela; jovens e marmanjos com fone de ouvido, esculhambados, fingindo dormir, refestelados nos assentos reservados dentro dos ônibus, enquanto idosos e gestantes – como é o caso de minha esposa – fazem a viagem de pé; funcionários de bancos, atendentes de loja, grosseiros, ineficientes e mal-educados; desrespeito em todas as filas preferenciais de supermercados e de bancos que tivemos a oportunidade infeliz de enfrentar; sujeiras nas ruas e nas calçadas de todos os bairros por onde andamos; passando pela Avenida Antônio Carlos, em direção à Pampulha – em busca de algum refresco para os olhos –, a tristeza por ver sacos de lixos entulhados em gramados, papéis espalhados por todos os canteiros, lixeiras destruídas, pichações, sujeira e mais sujeira para onde os olhos se viravam; no entorno da Lagoa, asfalto descuidado, calçadas descuidadas, monumentos descuidados; no centro da cidade, o que dizer?, não encontramos uma só calçada limpa; nas ruas, motoristas sem o menor respeito, fazendo conversões sem ligar a seta, ultrapassando sinal vermelho, dirigindo de forma desrespeitosa; motoristas de ônibus que não param no ponto destinado, que arrancam o veículo atabalhoadamente; poluição visual, com placas e outdoors de gosto, no mínimo, duvidoso; faixas espalhadas pela cidade; placas de anúncio em lojas com erros absurdos de português; carrinhos de som, fazendo propaganda em altíssimo volume, no Barro Preto; cidadãos que não respeitam a lei do silêncio após às 22h; bares que invadem calçadas e que passam a noite e a madrugada atendendo clientes, que se embebedam e perdem a noção do respeito e da civilidade; manadas de adolescentes mal-educados que, durante a madrugada, se divertem, no centro da cidade, gritando e soltando fogos de artifício; igrejas pentecostais – católicas e protestantes – que se acham no direito de colocar aparelhos de som do lado de fora para fazer um proselitismo insuportável, ensurdecedor, agressivo e invasivo; uma sensação constante de insegurança ao andar no centro da cidade; tapumes imundos, cheios de cartazes imundos, invadindo calçadas imundas; cheiro de urina e de fezes no adro da Igreja São José; na Feira Hippie, muito – mas muito mesmo – lixo no chão e lixeiras enormes espalhadas por vários pontos da feira absolutamente vazias; buracos e mais buracos nas calçadas... Enfim, senti vergonha! Pela primeira vez em toda a minha vida, senti, de verdade, vergonha de ser belorizontino.
Finalmente, como a vergonha sozinha não significa muito, e como minha indignação já estava se tornando por demais irada, resolvi parar para pensar nos motivos disso tudo, resolvi tentar entender o que estava acontecendo. E me lembrei do que um amigo costumava dizer acerca do belorizontino: “vocês sempre falam de si assim: 'ah! Minha família é de...', 'meu pai nasceu em...', 'minha mãe é natural de...'. Vocês nunca falam de si como sendo 'belorizontinos' ou 'sou de Belo Horizonte'”. Essa frase esconde uma verdade que comecei a entender mais claramente: Belo Horizonte é mesmo uma cidade artificial, é uma cidade que se fundou não sobre a tradição, mas sobre tradicionalismos, é uma cidade sem raízes, é uma cidade sem história. Vejam-se nossos museus... um exemplo claro é o Museu Abílio Barreto, que deveria contar nossa “história”, e no entanto é apenas um simulacro mal-ajambrado. Ou, pergunte-se às novas gerações dados sobre essa “nossa história”. Ou ainda, procurem-se prédios históricos preservados... Por anos, vivemos obstaculizando todo e qualquer crescimento, afirmando, orgulhosos, ainda sermos a “roça iluminada”. De repente, por força das exigências e das decisões políticas de âmbito nacional e estadual e – por que não? – internacional, a cidade cresce... meio sem planejamento, meio com planos monumentais. Mas, no fundo, o “progresso” desejável que chegou, veio acompanhado de um rompimento com a única coisa que dava solidez ao ser-belorizontino, a única tradição que havia realmente fincado raízes profundamente ali (e também no meu coração)... Se o “temível progresso” era para ter chegado daquele jeito, de fato, era preferível aquela sujeição ao tradicionalismo artificial que nos movia. Para progredir, Beagá arrancou do solo aquela tradição de amor à beleza e de respeito que fizeram de mim alguém que se orgulhava em dizer “sou belorizontino”... E a ferida que se abriu no solo dessa cidade, sem dúvida não se cobrirá com asfalto e projetos monumentais... vai ser preciso reeducar o povo. A propósito, educação é, definitivamente, um tema a ser enfrentado... mas, isso é pretexto para um novo texto!

* Este texto foi enviado - com poucas diferenças - para o jornal Estado de Minas, no entanto não foi publicado.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Quem defenderá uma criança de um adulto cético?


Por Carlo Fedeli 

No clima geral de discussão que, nos últimos meses, investiu o sistema escolar e formativo, voltou às primeiras páginas dos jornais e para a boca da opinião pública a ideia de “cursos de filosofia”, propostos às crianças desde a infância. A França parece estar na vanguarda, se for verdade que estão encontrando um certo sucesso os “atelier filo” [atelier de filosofia"; ndt] e as coleções de livros para “Petits Platons” ["Pequenos Platões"; ndt].
Do que se trata? Em poucas palavras, trata-se da difusão de projetos didáticos e formativos que declinam, em várias modalidades, a proposta da philosophy for children, trazida à baila pelo estudioso americano Matthew Lipman nos anos 1970. Essa proposta objetiva preparar, desde a mais tenra infância, a criança para o “filosofar”, ou seja, para a arte de pensar criticamente a si mesmo e à própria relação com a realidade e com os outros, num contexto de relações sociais e intelectuais que deveriam promover, a partir da escola, uma reforma e um projeto da toda a sociedade na direção de uma ideal “comunidade de pesquisa”.
O que está na origem de tais projetos? Essencialmente, uma “filosofia da educação” que afunda as próprias raízes no pragmatismo e no cognitivismo do século XX, particularmente nas teorias de seus grandes mestres – Dewey e Piaget. Podemos resumir assim (perdoem-me a simplifiação) os princípios fundamentais: a natureza convencional do conhecimento; a concepção da mente humana como refinado elaborador de informações; os critérios e as metodologias do construtivismo social e da hermenêutica como linhas-guias do diálogo entre as gerações; a fé na comunicação e na pesquisa como vias mestras da construção de uma verdadeira democracia – entendia, sob o ponto de vista tanto intelectual quanto político, como processo contínuo de reconstrução crítica da experiência individual e coletiva. 
Até este ponto é que chega o núcleo teórico e a profundidade de campo, histórico-cultural, da philosophy for children – sobre a qual existe uma literatura científica, à qual é possível se remeter para eventuais aprofundamentos. Agora, vejamos duas ideais de reflexão sobre a pertinência educativa de propostas deste tipo, ou similares.
A primeira vem da verificação do “alcance” de que seria capaz, segundo as tradições de pensamento recordadas, o nosso conhecimento. De acordo com a matriz deweyana, os projetos da philosophy for children movem-se principalmente por dois pressupostos de métodos, que se podem resumir nas seguintes equivalências: “conhecer” significa “pensar”, e “pensar” significa “pesquisar”. Agora, porém, estaremos seguros de que estes dois atos ou momentos sejam capazes de esgotar toda a inteira gama cognoscitiva da razão humana e representar a fonte única que está no centro do seu dinamismo? Não seria necessário que se apontassem outros atos ou dimensões suas, também constitutivos, fecundos e expressivos da sua tensão estrutural para o conhecimento? E, por isso mesmo, tão dignos de serem colocados como fundamentos de um programa – mesmo escolar – de educação intelectual? 
Talvez, a nossa inteligência tenha um espectro cognoscitivo mais amplo do que apenas “pensar” e “pesquisar” – flexões, deve se dizer, nobilíssimas da razão. Sem ser filósofo, Alessandro Manzoni chegou mais perto do que muitos, naquele trecho de Os Noivos que tem valor de tratado de gnoseologia e de lógica: “observar, escutar, comparar, pensar, antes de falar”. Eis uma bela criteriologia para o exercício racional de que tem necessidade o homem desde a mais tenra infância (porque é verdade: o peso do conformismo, das convenções e do preconceito se faz sentir desde pequenos) e para um programa de educação intelectual equilibrado, que não corra o risco de enfatizar o papel do raciocínio ou da dialética, em detrimento da importância insubstituível, de um lado, da atenção, da observação e da exploração do real, de outro lado, da escuta das civilizações e das culturas do passado, que nos falam através da tradição. Risco de enfatizar, que seja dito entre parênteses, tanto mais deletério e perturbador na infância, sobretudo se for verdade, como demonstraram Piaget e Bruner, que, para se desenvolver, a inteligência precisa do relato, da representação e da ação, antes que do conceito lógico-formal.
A segunda ideia de ponderação crítica nasce da consideração de que, por mais que seja formalmente semelhante, a pergunta sobre o “por que” e o “pensar através das palavras” (ou seja, segundo a etimologia, o “dialogar”) podem assumir formas e direções diversas na boca e na mente de uma criança e de um adulto, e conduzir a sua conversa a resultados também muitos diferentes.
Na criança, a pergunta nasce, normalmente, como movimento de busca por uma explicação, diante de coisas ou acontecimentos para ela ainda parcialmente “desconhecidos”: ou seja, sem causa evidente, nem manifesta. Sem a comunicação e o relato, por parte do adulto, de uma evidência mediata, “raciocinada”, realmente percebida como hipótese de explicação adequada, a criança continuará inexoravelmente a pedir. Nela, a pergunta – certamente que com todo o “realismo ingênuo” do caso; mas também “a partir de dentro” de um relacionamento de confiança com o adulto (ao qual, de outra forma, não se voltaria) e com uma exigência, uma instância de verdade que não admite traição (quem, ainda que apenas uma vez, desiludiu uma criança sabe muito bem disso) – exprime a tensão ao verdadeiro, própria e constitutiva da razão comum a ambos.
Como tal, por isso, do ponto de vista pedagógico, toda pergunta da criança é uma graça para o início do processo cognoscitivo e do relacionamento educativo. Como primeiríssimo “movimento” pedagógico, a pergunta solicita que o adulto leve a sério a provocação de busca expressa “pela” e “na” pergunta: recolhendo humildemente a antecipação de verdade que urge nela, como indicação de percurso (ou seja, da direção na qual a inteligência é provocada a se mover), e valorizando cada outro sinal proveniente do contexto no qual a pergunta se acendeu, ou da realidade que a suscitou.
Exatamente neste ponto se coloca a questão mais delicada – que, obviamente, vale não apenas para a “filosofia para crianças”, mas também para qualquer outro ensinamento ou prática formativa; e também, se pensarmos bem, para todo pai e mãe. Exatamente porque desenvolvido cognitivamente (ou seja, equipado com competências reflexivas, críticas e metodológicas) e eticamente (por isso, melhor dotado de poder e de planejamento), o adulto pode sim acolher o desafio da pergunta da criança, e acompanhá-la na busca pela verdade. Então, mesmo ela se tornará “filósofa”, mesmo quando você não ensinar filosofia, mas ensinar português, aritmética, música, história (e assim por diante), ou mesmo quando você desenvolver com ela qualquer outra ocupação (mesmo a mais humilde).
Mas, as coisas podem seguir outro caminho. O nosso adulto poderia escapar, de um modo ou de outro, da pergunta da criança. Poderia lhe dar uma resposta puramente conveniente. Poderia também tentar desativar o seu potencial de verdade, tentando fazê-la parecer algo “relativo” (à época histórica, ao contexto cultural, ao nível social etc.) ou “funcional” (à realização do interesse individual ou coletivo, ao progresso da sociedade, à afirmação de uma ideia política, ao crescimento do “saber crítico”, e assim por diante).
Agora, na medida em que se reporta aos seus pais e, dentro e fora da escola, aos adultos (professores ou não), um pré-adolescente ou um adolescente pode contar com a consciência de si e do verdadeiro, amadurecida aos poucos em si, para poder reconhecer nesse ou naquele adulto um “interlocutor credível” para a própria educação, e estabelecer livremente, sobre este fundamento, os vínculos necessários e as defesas oportunas. Ele, certamente, será tanto mais afortunado quanto mais “Sócrates” encontrar (parece-me, porém, que figuras desse nível intelectual e moral, hoje em dia, sejam bastante raras, um pouco em todos os campos...). Mas se se tratar de uma criança da educação infantil ou fundamental?
Como exercitar a liberdade de busca intelectual e o exercício do discipulado, se as perguntas a serem colocadas, os conceitos a serem analisados e discutidos, os métodos de pensamento predispuseram e compuseram neles outros? Se o seu relacionamento com a realidade é “filtrado a priori” por um esquema adulto (muito seletivo ou decididamente orientado), sem que ele tenha tido a possibilidade de avaliá-lo criticamente? Por causa da evidente assimetria, a criança não pode competir em pé de igualdade com o professor que conduz o jogo; nem tem a possibilidade de se libertar, quando pressentisse que, na sua busca pela verdade, ele não foi leal até ao fundo com a exigência de significado, mas se afirmou um pouco antes – já perto das Colunas de Hércules do ceticismo, do relativismo, do “politicamente correto”.
Se não se leva realmente a sério, até ao fundo, o mote que marcou a fundação do Instituto J. J. Rousseau em Genebra, em 1912 (Discat a puero magister – O mestre aprenda da criança), e todas as formas de ensino e de educação, correr-se-á o risco, mesmo com as melhores ou “mais filosóficas” boas intenções, do autoritarismo (mesmo na forma mais branda e mascarada do paternalismo iluminado). A menos que tomemos igualmente a sério (e contra sua própria opção imanentista) a aguda intuição que fez Dewey dizer, em Democracia e educação, que “toda pesquisa é nativa, originária, para aquele que a efetua, mesmo se o resto do mundo já esteja seguro daquilo que ele ainda está buscando”. Ou seja, mesmo se a geração adulta estivesse de tal forma segura de si, a ponto de se esquecer, ou de se ter esquecido, de que “todos os grandes foram pequenos uma vez” e de que “há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que pensa a tua vã filosofia”.

* Texto extraído do IlSussidario.net, do dia 15 de dezembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Na educação para a fé, a relação vital com Deus

Por Angelo Bagnasco

Um renovado empenho com o ensino dos valores cristãos
Publicamos trechos da palestra "Jesus, educador da fé", proferida pelo cardeal presidente da Conferência Episcopal Italiana, na terça-feira pela manhã, por ocasião do Encontro Nacional dos Diretores do Ofício Catequistas Diocesanos, que está acontecendo em Bolonha

A paixão educativa de Jesus é evidente. Ele tem plena consciência que todos aqueles que encontra têm uma necessidade urgente não apenas de salvação física, mas, mais radicalmente, de uma orientação interior. Poder-se-ia dizer - perdoem-me o anacronismo - que Ele viveu em um contexto de "emergência educativa". A paixão educativa que Jesus mostra em cada um de seus encontros não pode ser compreendida de outra maneira que a partir do Seu amor, do Seu amor pela vida, pela vida de todos os homens. A Igreja, escolhendo refletir sobre a tarefa da educação, não tem outra motivação diferente dessa: o amor pela vida que aprendeu do seu Senhor. Educa-se, porque se entende que a vida do outro merece atenção, cuidado, porque se entende que é preciosa, mais preciosa que a própria vida.
O consenso que se criou espontaneamente em nosso país sobre o tema da educação não deve ser desvalorizado: a descoberta dos fundamentos de uma boa educação é um desejo de tantos, dentro e fora da Igreja. As famílias declaram ter, frequentemente, descuidado dos pontos de referência educativos necessários, a escola declara ter, às vezes, perdido a coragem de apostar na paixão e na qualidade da educação, os catequistas declaram ter sido desencorajados: todos se dão conta, porém, da exigência de um empenho renovado com o amor que têm pela vida das novas gerações.
Os catequistas, por quem vocês são responsáveis nas diversas dioceses, são um importante testemunho do amor que a Igreja tem pela vida. É através do serviço deles que os pais compreendem que não foram abandonados pela Igreja, quando se descobrem enfrentando o crescimento dos filhos. Nós estamos preocupados com o vínculo tênue que pode existir entre as famílias e a Igreja, mas devemos aprender a ser ainda mais preocupados com o vínculo mesmo que há entre os pais e os filhos. As famílias - frequentemente de forma silenciosa, como no tempo de Jesus - pedem, hoje, um sustento educativo, desejam amadurecer pontos de referência para não se desencorajarem na sua missão e para não serem vencidas pela mentalidade corrente. O decênio que começa sobre o tema da educação não pode esquecer a importância da catequese aos adultos. Pelo contrário, quer sublinhar precisamente que uma das responsabilidades mais importantes dos adultos - pais, docentes, catequistas, o conjunto da sociedade civil - é precisamente a de transmitir a vida, a cultura, os valores, a fé que recebemos como dom.
Jesus anuncia que a maturidade humana não consiste em um fechamento da pessoa em si mesma e no próprio mundo, mas na abertura ao diálogo com Deus. A catequese, como prolongamento vivo da obra de Jesus, tem exatamente a tarefa de servir a esta relação do homem com Deus: essa relação existe em vista da fé. A Igreja propõe a fé às novas gerações, porque sem ela faltaria a eles aquela relação vital com Deus. As famílias, mesmo que às vezes inconscientemente, sabem bem que o Evangelho é para os jovens uma âncora de salvação.
Jesus escancara as portas da relação com Deus, convida a reconhecer que exatamente no relacionamento com o Pai está a beleza e a dignidade da vida humana: crer, reconhecendo o Pai, quer dizer entrar no reino.
Descuidar da dimensão da fé no âmbito educativo quer dizer ferir a dignidade mesma do homem. Promovê-la quer dizer, pelo contrário, exaltar a dignidade do homem: a educação da fé não é um elemento acessório quando pensado dentro do processo educativo como um todo, mas pertence a este mesmo processo com um papel muito importante. Eis o grande valor da catequese, como também do ensino da religião na escola que apresenta, de forma orgânica, o "fato" religioso e católico assim como se configurou na história e na nossa cultura.
A fé não pode nascer e se desenvolver simplesmente como automaturação ou como autoformação do homem: é em Cristo que se oferece e se dá ao homem. Não é suficiente a liberdade para se alcançar a fé, aliás, é exatamente o encontro com a fé que gera a liberdade. A dependência que a liberdade tem do dom que a precede deve ser colocada novamente em relevo se se quer que cresça uma nova paixão educativa. Não existe verdadeira educação, nem verdadeira liberdade, sem um dom que a preceda. Bento XVI não tem medo de utilizar, para designar este dom que precede a liberdade e a funda, o termo "autoridade". Recentemente, aliás, falando em uma assembléia da CEI (Conferência Episcopal Italiana; ndt), lembrou que o homem tem necessidade da "autoridade" exatamente no amadurecimento das relações mais importantes.
Jesus oferece originariamente a vida para o homem, para que o homem se torne capaz de levar a própria cruz. E o que é verdade para a fé, toca transversalmente cada âmbito educativo. Pense-se, sobretudo, no fato muito simples de que os pais sãos os auctores de seus filhos. Eles são uma autoridade em relação à descendência, visto que, sem os pais, ela nem mesmo existiria. Se os pais renunciassem a ensinar aos seus pequenos não só o bem, o respeito, a responsabilidade, a fé, mas também a língua com todas as referências culturais a ela ligadas, seus filhos não cresceriam.
A fé, mesmo sendo profundamente presente no povo italiano, é, ao mesmo tempo, também enfrentada com uma crítica que não olha simplesmente para isso ou para aquele aspecto moderno da Igreja, mas a põe em discussão desde os seus fundamentos, desde a relevância da questão de Deus, da oportunidade que se fale dEle na esfera pública, da credibilidade dos relatos evangélicos e assim por diante. Estas críticas, mas talvez também a ainda mais difundida ignorância no assunto, tornam evidente que a educação para a fé deve partir não de argumentos secundários, mas precisamente dos temas mais importantes do anúncio cristão. Uma educação à fé que não ajudasse à inteligência a se orientar sobre estes temas não ajudaria às novas gerações a compreender o valor e a dignidade da fé cristã. É a experiência mesma que mostra que exatamente a fragilidade de uma "pastoral da inteligência" é que faz com que muitos jovens, terminado o percurso da iniciação cristã, se afastem da Igreja se não encontrem comunidades cristãs cuja proposta educativa lhes torne capazes de enfrentar a leitura que outras agências e a escola mesma propõem dos temas da fé.
Esta grande atenção aos temas da fé cristã não deve, porém, de forma alguma, se contrapor ao amadurecimento daquele contexto que torna experiencialmente perceptível aquela confiança e aquele amor tão típicos da fé cristã. A tradição italiana se caracteriza - e deve continuar a se caracterizar - pela sua capacidade de propor às jovens gerações a Igreja como companhia confiável, como ambiente no qual amadurecer a confiança e o amor.

* Extraído d'O Observatório Romano, do dia 16 de junho de 2010 (p. 7). Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Aos jovens são necessárias medidas altas...

... para indicar o caminho rumo à felicidade.

Por Marina Corradi

Educar, o que é? É suscitar a paixão do eu por aquilo que o cerca: pelo outro, portanto pelo "tu"; pelos homens, por Deus - disse o Papa. Educar é cultivar o desejo que nos impulsina rumo ao real. É, no fundo, se deixar contagiar pela paixão pelo homem. Aquela paixão, disse o Papa, que devemos despertar entre nós. Na Sala do Sínodo, Bento XVI falou aos bispos italianos reunidos em assembleia geral. Dois anos se passaram desde quando denunciou a profundidade da "emergência educativa". Hoje, a CEI (Conferência Episcopal Italiana, ndt) coloca a educação no centro da atividade pastoral da Igreja italiana para os próximos dez anos (como quem, diante de uma casa que parece instável, resolve se ocupar dos fundamentos, daquilo que está por baixo, daquilo que vem antes).
E, ao mesmo tempo, Bento - num discurso que é uma palestra magistral e um augúrio - vai até às raizes daquela dificuldade obscura que, porém, quem tem filhos, conhece muito bem. Aquela estranha resistência a transmitir o que temos de bom, e antes de mais nada o sentido do viver; como se algo confusamente remasse contra nós, como se o vínculo entre as gerações tivesse se rompido. O que aconteceu para que se rompesse uma transmissão, de pai para filho, antiga, de tal forma que os pais de hoje gaguejam, e os filhos parecem frequentemente incapazes de continuar a história que os pais começaram? Para Bento XVI - mas seria preciso dizer mais corretamente para o professor Ratzinger, tal é a lucidez da análise mesmo que em poucas linhas -, as raízes deste mal sombrio são duas. Primeiro, "uma falsa ideia de autonomia do homem", como de um "eu completo em si mesmo"; segundo, "a exclusão das duas fontes que, desde sempre, orientaram o caminho humano": natureza e Revelação. Se a natureza não é mais criação de Deus, e a Revelação é apenas uma imagem de um remoto passado, as bases mesmas do Ocidente vacilam. E não é de se estranhar se, neste humus herdado, os filhos desorientados buscam - sem encontrá-las - uma direção e represas, e ficam como rios que não encontram o caminho para o mar.
Mas, nesse ponto, o professor Ratzinger se remete à figura do pai: e solicita que se reencontre a paixão pelo educar. Para libertar o eu da gaiola da falsa autonomia na qual a modernidade o encerrou, para impulsioná-lo outra vez no rumo do seu destino. Que é diferente de si: é o rosto, antes, da mãe e, depois, os mil rostos dos outros, e aquele Deus que está por trás daqueles rostos, e que pede para ser livremente reconhecido. E não, educar "não é uma didática, ou uma técnica": é habitar famílias, escolas, paróquias onde se encontrem rostos nos quais se possa acreditar, rostos que anunciam que há um destino para cada um, e um destino que é bom.
Na sequência, a palestra de Bento se faz ainda mais audaz. Voltemos - ele disse - "a propor aos filhos a medida alta e transcendente da vida, entendida como vocação". Vocação ao matrimônio e ao sacerdócio; "vocação", seja lá como for, no sentido de que a vida é resposta a um chamado, é adesão a um desígnio que não é nosso. E certamente esta é a antiga visão da Igreja; mas experimentem, hoje, no meio de um grupo de jovens fora da escola, afirmar que a vida não é "auto-realização" mas vocação, adesão ao desígnio de Deus sobre cada um de nós. Tantos olhariam para vocês como se fossem loucos; porque, crescidos na ideia de homem "como um eu completo em si mesmo", os jovens são talvez até generosos, entusiastas, altruístas; porém o são apenas na medida em que, de alguma maneira, expande-se neles a ideia de um eu que se concebe como origem e horizonte de cada gesto. Poucas coisas estão tão distantes de nós, gente do terceiro milênio, como a palavra "vocação"; como a ideia de que a felicidade possa estar na adesão aos planos de um Outro.
E, porém, não seria talvez exatamente este o nó mais profundo da obscura dificuldade de educar? Somos "nossos", ou pertencemos a um Pai? Somos mónadas proprietárias de si, ou filhos, e irmãos, chamados juntos a um destino? O desafio acolhido pela Igreja italiana ao colocar a educação na frente de tudo, por dez anos, é grande. A esta Igreja o Papa indica um horizonte radical. Educar cristãmente é testemunhar aos filhos, na ditadura do eu, no triunfo orgulhoso de uma ciência e de uma potência humanas: "filho, você é de Deus, e aquela felicidade que, desde os primeiros passos, você persegue e busca - como que às apalpadelas, obstinadamente - habita, de fato, somente nEle".

* Extraído do Jornal Avvenire, do dia 28 de maio de 2010 (p. 1). Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.