Por Paulo Roberto de Andrada Pacheco
Sou belorizontino e, há 5 anos, por força das circunstâncias, mudei-me para São Paulo. Todos os anos, porém, no fim do ano, vou para minha terra natal, onde reencontro a família e os amigos. Ano após ano, me surpreendo com as mudanças na cidade. E também, ano após ano, sou obrigado a me lembrar de como, “antigamente”, a ideia do “progresso” era vista quase como um contra valor, escravos que éramos não de uma verdadeira tradição, mas de um artificialismo sem raízes.
No final do ano passado, pela primeira vez, eu e minha esposa tivemos o Aeroporto de Confins como meta de nossa viagem – as viagens de avião sempre tiveram Confins como ponto de partida e certeza de retorno. Ali chegando, fomos recebidos por familiares. No caminho para Belo Horizonte, à noite, a surpresa com a Linha Verde e com a Cidade Administrativa, as luzes de Natal aqui e ali. No pensamento, entre comovido, espantado e orgulhoso, se formava uma expressão: “minha cidade está crescendo”... E fui buscando sinais de um crescimento sólido, um crescimento que não fosse sinônimo de abandono de identidade, como tantas vezes se vê por aí.
Mas, os dias passaram e o que vi foi me envergonhando, foi me assustando, foi me entristecendo: na rua com calçamento de pedra, onde fica a casa da família de minha esposa, no Carlos Prates, mato com um metro e meio de altura e a queixa dos moradores de que a Prefeitura, em poucas palavras, estava pouco se importando; fezes de cachorro espalhadas por todas as ruas por onde tive a oportunidade de andar; na Savassi, esperando um ônibus, um rapaz termina sua cerveja e, na maior falta de cerimônia, lança a latinha no meio da rua, e é seguido por outro que, passando de carro, faz o mesmo enquanto o sinal estava fechado; num boteco, ao lado do Minas Centro, uma garçonete, depois de abrir cada garrafa de cerveja ou de refrigerante, joga a tampinha na calçada; pedintes e pessoas sujas e desocupadas vagabundeando pelas ruas; de dentro do ônibus, uma criança, sentada ao lado do que parecia ser sua mãe, com muita naturalidade, vai descascando as balas que come e jogando o papel pela janela; jovens e marmanjos com fone de ouvido, esculhambados, fingindo dormir, refestelados nos assentos reservados dentro dos ônibus, enquanto idosos e gestantes – como é o caso de minha esposa – fazem a viagem de pé; funcionários de bancos, atendentes de loja, grosseiros, ineficientes e mal-educados; desrespeito em todas as filas preferenciais de supermercados e de bancos que tivemos a oportunidade infeliz de enfrentar; sujeiras nas ruas e nas calçadas de todos os bairros por onde andamos; passando pela Avenida Antônio Carlos, em direção à Pampulha – em busca de algum refresco para os olhos –, a tristeza por ver sacos de lixos entulhados em gramados, papéis espalhados por todos os canteiros, lixeiras destruídas, pichações, sujeira e mais sujeira para onde os olhos se viravam; no entorno da Lagoa, asfalto descuidado, calçadas descuidadas, monumentos descuidados; no centro da cidade, o que dizer?, não encontramos uma só calçada limpa; nas ruas, motoristas sem o menor respeito, fazendo conversões sem ligar a seta, ultrapassando sinal vermelho, dirigindo de forma desrespeitosa; motoristas de ônibus que não param no ponto destinado, que arrancam o veículo atabalhoadamente; poluição visual, com placas e outdoors de gosto, no mínimo, duvidoso; faixas espalhadas pela cidade; placas de anúncio em lojas com erros absurdos de português; carrinhos de som, fazendo propaganda em altíssimo volume, no Barro Preto; cidadãos que não respeitam a lei do silêncio após às 22h; bares que invadem calçadas e que passam a noite e a madrugada atendendo clientes, que se embebedam e perdem a noção do respeito e da civilidade; manadas de adolescentes mal-educados que, durante a madrugada, se divertem, no centro da cidade, gritando e soltando fogos de artifício; igrejas pentecostais – católicas e protestantes – que se acham no direito de colocar aparelhos de som do lado de fora para fazer um proselitismo insuportável, ensurdecedor, agressivo e invasivo; uma sensação constante de insegurança ao andar no centro da cidade; tapumes imundos, cheios de cartazes imundos, invadindo calçadas imundas; cheiro de urina e de fezes no adro da Igreja São José; na Feira Hippie, muito – mas muito mesmo – lixo no chão e lixeiras enormes espalhadas por vários pontos da feira absolutamente vazias; buracos e mais buracos nas calçadas... Enfim, senti vergonha! Pela primeira vez em toda a minha vida, senti, de verdade, vergonha de ser belorizontino.
Finalmente, como a vergonha sozinha não significa muito, e como minha indignação já estava se tornando por demais irada, resolvi parar para pensar nos motivos disso tudo, resolvi tentar entender o que estava acontecendo. E me lembrei do que um amigo costumava dizer acerca do belorizontino: “vocês sempre falam de si assim: 'ah! Minha família é de...', 'meu pai nasceu em...', 'minha mãe é natural de...'. Vocês nunca falam de si como sendo 'belorizontinos' ou 'sou de Belo Horizonte'”. Essa frase esconde uma verdade que comecei a entender mais claramente: Belo Horizonte é mesmo uma cidade artificial, é uma cidade que se fundou não sobre a tradição, mas sobre tradicionalismos, é uma cidade sem raízes, é uma cidade sem história. Vejam-se nossos museus... um exemplo claro é o Museu Abílio Barreto, que deveria contar nossa “história”, e no entanto é apenas um simulacro mal-ajambrado. Ou, pergunte-se às novas gerações dados sobre essa “nossa história”. Ou ainda, procurem-se prédios históricos preservados... Por anos, vivemos obstaculizando todo e qualquer crescimento, afirmando, orgulhosos, ainda sermos a “roça iluminada”. De repente, por força das exigências e das decisões políticas de âmbito nacional e estadual e – por que não? – internacional, a cidade cresce... meio sem planejamento, meio com planos monumentais. Mas, no fundo, o “progresso” desejável que chegou, veio acompanhado de um rompimento com a única coisa que dava solidez ao ser-belorizontino, a única tradição que havia realmente fincado raízes profundamente ali (e também no meu coração)... Se o “temível progresso” era para ter chegado daquele jeito, de fato, era preferível aquela sujeição ao tradicionalismo artificial que nos movia. Para progredir, Beagá arrancou do solo aquela tradição de amor à beleza e de respeito que fizeram de mim alguém que se orgulhava em dizer “sou belorizontino”... E a ferida que se abriu no solo dessa cidade, sem dúvida não se cobrirá com asfalto e projetos monumentais... vai ser preciso reeducar o povo. A propósito, educação é, definitivamente, um tema a ser enfrentado... mas, isso é pretexto para um novo texto!
* Este texto foi enviado - com poucas diferenças - para o jornal Estado de Minas, no entanto não foi publicado.
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