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terça-feira, 20 de setembro de 2011

Cartas do P.e Aldo 204


Asunción, 6 de setembro de 2011.

Caros amigos,
Um fato ocorrido nas últimas semanas me colocou diante da contemporaneidade de Cristo e, portanto, se tornaram um grande possibilidade para fixar nos olhos, de maneira intensa, Jesus.
Eu já estava com as passagens aéreas no bolso para ir à Itália, quando, numa tarde, os médicos e o diretor da clínica chegaram no meu escritório e me disseram: “Padre Aldo, seu filho Aldo [meu filho adotivo, portador de gravíssimas deformações físicas] está muito doente e não temos certeza de que conseguirá sobreviver. Gostaríamos que ele permanecesse aqui na clínica e não fosse enviado a um hospital, onde acabaria sendo deixado morrendo, enquanto que nós queremos acompanhá-lo em sua morte”. Vi-me, uma vez mais, diante de uma decisão: estão me esperando no Meeting e, aqui, os médicos me dizem que meu filho está com os dias contados. O que fazer? Fico e atraso em alguns dias a partida, a fim de ver se ele melhora, ou desisto de ir ao Meeting? Uma escolha difícil porque estavam em jogo os últimos dias do meu filho. E um filho, especialmente quando é adotivo, é a sua mesma carne, ainda mais porque é fruto de uma gratuidade total. Alguns me disseram: como é que o senhor pode ir, deixando-o sozinho, ao invés de acompanhá-lo nas suas últimas horas? Eu sentia meu coração em pedaços, sentia em mim um sentimento que me dizia: você deve ficar. Porém, uma vez mais eu me perguntei: o que Cristo pede de mim, neste momento?
E dois juízos me ajudaram a tomar a decisão de ir. O primeiro: aquele filho me foi dado e se Cristo decidiu pedi-lo de volta, quem sou eu para não devolvê-lo? O segundo: a realidade me pede para estar presente no Meeting e em La Thuile, onde acontecerá a assembleia internacional. Ou seja, a realidade me chama a estar onde estão aqueles amigos que mais me lembram que “É o Senhor”, os amigos que mais me mostram o rosto de Jesus. E eu preciso disto porque, do contrário, não consigo enfrentar a vida todos os dias e nem mesmo o dia de meu filho, que, seja como for, não morrerá sozinho, mas na companhia dos meus amigos da clínica. E assim, peguei o avião com a grata surpresa de que me filho se recuperou. É impressionante ver como Deus me educa a ser livre, ou seja, a confiar no seu desígnio que, qualquer que seja, é sempre positivo, mesmo quando, no momento, parece ser injusto e você preferiria se rebelar. Dizer “Tu, meu Cristo” nunca é algo óbvio, mas se dá sempre dentro de um abandono seu, cheio de dor, cujo resultado é uma estranha letícia.
Os filhos não são algo que nos pertence, e só o são quando amamos o desígnio de Deus sobre eles, mesmo quando isso coincide com o fato de eles nos serem tirados. É assim que me acontece todos os dias. Assim como a cada vez a dor é sempre maior, porque quanto mais Cristo o agarra, tanto mais você se descobre vulnerável, tanto mais você sofre. Se antes de encontrar Jesus nem mesmo uma “pedrada na cabeça” movia o meu coração, agora que Cristo me tomou, basta um grão de areia para que eu sinta toda a dor que me circunda.
Amar, ou seja, deixar-se tomar por Cristo é sofrer e sofrer é amar. E quanto mais você é de Cristo, tanto mais você sofre; e tanto mais você sofre, quanto mais você busca Cristo. Ou, para dizer mais claramente, Cristo nos torna mais vulneráveis, mais sensíveis, mais atentos a cada detalhe.
Rezem por mim e por meus filhos.
Com afeto,
Padre Aldo

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

David Foster Wallace: a outra face das coisas


Por Linda Stroppa

No último dia 15 de novembro, um encontro do ciclo “Ex Cathedra” enfrentou um dos maiores escritores americanos. Que nunca deu nada por óbvio. Fazendo emergir, de uma partida de tênis ou de uma fila de carros na estrada, a grandeza do homem

Aquilo que faz de Foster Wallace um grande escritor não é a inteligência ou o estilo. Mas, “num certo sentido, poderíamos falar de piedade. Por si, antes de tudo”. Quem disse foi Luca Doninelli, jornalista e escritor, leitor apaixonado de David Foster Wallace, “um dos maiores autores que a América deu ao mundo”. Originário de meio-oeste, nascido no ano de 1962, morreu em 2008. “Professor de literatura e tenista sem sucesso”: basta isso para apresentá-lo. O resto emerge dos seus contos.
E foi assim o dia 15 de novembro, quando, no ciclo de encontros “Ex Cathedra”, promovido pela Fundação Vita e pela Associação Testori, Luca Doninelli e a atriz Danielle Sassoon deram voz às palavras de This is water (conto não traduzido em língua portuguesa; ndt): a saudação – e o convite – dirigido pelo escrito norteamericano aos formandos do Kenyon College, em Ohio.
Era o ano de 2005. Foster Wallace subiu ao palco. Parabenizou apressadamente os estudantes. E, em seguida, começou. “Há dois jovens peixes que nadam”, assim deu início ao discurso, “e, num certo ponto, encontram um peixe ancião que está nadando na direção oposta, acena saudando-os e diz: ‘Salve, rapazes. Como está a água?’. Os dois jovens peixes nadam um pouco mais, depois um olha para o outro e diz: ‘Mas, que diabos é a água?’”. Dez segundos de silêncio. Onde estava o tom acadêmico? Não estava citando nenhum grande mestre. Surgiram perguntas.
Foi o autor mesmo quem esclareceu as ideias: “As realidades mais óbvias, onipresentes, são frequentemente as mais difíceis de entender”. Uma banalidade, mas apenas aparentemente. Não há nada de óbvio. Foster Wallace nos pega pela mão e nos mostra isso. Seguem-se páginas comoventes: são uma advertência aos seus estudantes, que ainda não sabem o que é que está em jogo. Quanto à vida. “A educação que se deveria receber na universidade”, diz, “não diz tanto respeito à capacidade de pensar, mas muito mais à faculdade de escolher o que pensar”. Segundo obviedade aparente. Mas que, graças à pena irônica, Foster Wallace declina. Até levar o leitor a uma alternativa. Clara. Diante da rotina congelante do “dia após dia”, feita de “intermináveis filas no supermercado e intermináveis filas nas estradas”, podemos escolher. Eis a grandeza do homem.
Podemos escolher ficar perenemente aborrecidos nas “bobagens frustrantes do cotidiano”, ou então... Há um “ou então”. A outra face das coisas. Segunda pausa de silêncio. Em seguida, a conclusão: “Depende do que vocês querem levar em consideração”. Ou seja, dependa do que vocês desejam: do que vocês escolhem venerar. “Porque, para bem dizer – continua o escritor – no mundo dos adultos o ateísmo não existe”. E as alternativas, às vezes, não são possíveis, mas sagradas. Tudo depende do fato de vencer ou não a “modalidade predefinida”, a inconsciência do deixar-se viver. Se é assim, estamos ferrados. Porque “o aspecto traiçoeiro de algumas escolhas não é que sejam malvadas ou pecaminosas. É que sejam inconscientes, e ponto final”.
Foster Wallace é categórico. Como no romance Infinite Jest (também sem tradução para o português; ndt) e nos outros contos que ele escreveu. Ele só dá aquilo que pode oferecer: a si mesmo. “Para ele, a literatura é um modo de entregar-se inteiro aos outros”, explica Doninelli. “E não pergunta qual deve ser a resposta, mas exige que se responda”. O que implica numa escolha. É este o augúrio que dirige a seus estudantes. Para que aprendam a julgar. Se esta é a água.

* Texto extraído de Tracce.it, do dia 18 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Quem paga a música escolhe a dança?

Por Marisa Lajolo *

Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, está em pauta e é bom que esteja, pois é um livro maravilhoso. 
Narra as aventuras da turma do sítio de Dona Benta primeiro às voltas com a bicharada da floresta próxima e, depois, com uma comissão do governo encarregada de caçar um rinoceronte fugido de um circo. Nos dois episódios prevalecem o respeito ao leitor, a visão crítica da realidade, o humor fino e inteligente. 
Na primeira narrativa, a da caçada da onça, as armas das crianças são improvisadas e na hora agá não funcionam. É apenas graças à esperteza e inventividade dos meninos que eles conseguem matar a onça e arrastá-la até a casa do sítio. A morte da onça provoca revolta nos bichos da floresta e eles planejam vingança numa assembléia muito divertida: felinos ferozes invadem o sítio e - de novo - é apenas graças à inventividade e esperteza das crianças (particularmente de Emília) que as pessoas escapam de virar comida de onça. 
Na segunda narrativa, a fuga de um rinoceronte de um circo e seu refúgio no sítio de dona Benta leva para lá a Comissão que o governo encarregou de lidar com a questão. Os moradores do sítio desmascaram a corrupção e o corpo mole da comissão, aliam-se ao animal cioso da liberdade conquistada e espantam seus proprietários. E, batizado Quindim, o rinoceronte fica para sempre incorporado às aventuras dos picapauzinhos. 
Estas histórias constituem o enredo do livro que parecer recente do Conselho Nacional de Educação (CNE), a partir de denúncia recebida, quer proibir de integrar acervos com os quais programas governamentais compram livros para bibliotecas escolares. O CNE acredita que o livro veicula conteúdo racista e preconceituoso e que os professores não têm competência para lidar com tais questões. Os argumentos que fundamentam as acusações de racismo e preconceito são expressões pelas quais Tia Nastácia é referida no livro, bem como a menção à África como lugar de origem de animais ferozes. 
Sabe-se hoje que diferentes leitores interpretam um mesmo texto de maneiras diferentes. Uns podem morrer de medo de uma cena que outros acham engraçada. Alguns podem sentir-se profundamente tocados por passagens que deixam outros impassíveis. Para ficar num exemplo brasileiro já clássico, uns acham que Capitu (D. Casmurro, Machado de Assis, 1900) traiu mesmo o marido, e outros acham que não traiu, que o adultério foi fruto da mente de Bentinho. Outros ainda acham que Bentinho é que namorou Escobar! 
É um grande avanço nos estudos literários esta noção mais aberta do que se passa na cabeça do leitor quando seus olhos estão num livro. Ela se fundamenta no pressuposto segundo o qual, dependendo da vida que teve e que tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação na qual lê o que lê, cada um entende uma história de um jeito. Mas essa liberdade do leitor vive sofrendo atropelamentos. De vez em quando, educadores de todas as instâncias - da sala de aula ao Ministério de Educação - manifestam desconfiança da capacidade de os leitores se posicionarem de forma correta face ao que lêem. 
Infelizmente, estamos vivendo um desses momentos. 
Como os antigos diziam que quem paga a música escolhe a dança, talvez se acredite hoje ser correto que quem paga o livro escolha a leitura que dele se vai fazer. A situação atual tem sua (triste) caricatura no lobo de Chapeuzinho Vermelho que não é mais abatido pelos caçadores, e pela dona Chica-ca que não mais atira um pau no gato-to. Muda-se o final da história e re-escreve-se a letra da música porque se acredita que leitores e ouvintes sairão dos livros e das canções abatendo lobos e caindo de pau em bichanos. Trata-se de uma idéia pobre, precária e incorreta que além de considerar as crianças como tontas, desconsidera a função simbólica da cultura. Para ficar em um exemplo clássico, a psicanálise e os estudos literários ensinam que a madrasta malvada de contos de fada não desenvolve hostilidade conta a nova mulher do papai, mas - ao contrário - pode ajudar a criança a não se sentir muito culpada nos momentos em que odeia a mamãe, verdadeira ou adotiva... 
Não deixa de ser curioso notar que esta pasteurização pretendida para os livros infantis e juvenis coincide com o lamento geral - de novo, da sala de aula ao Ministério da Educação - pela precariedade da leitura praticada na sociedade brasileira. Mas, como quem tem caneta de assinar cheques e de encaminhar leis tem o poder de veto, ao invés de refletir e discutir, a autoridade veta. E veta porque, no melhor dos casos e muitas vezes com a melhor das intenções, estende suas reações a certos livros a um numeroso e anônimo universo de leitores. . 
No caso deste veto a Caçadas de Pedrinho, a Conselheira Relatora Nilma Lino Gomes acolhe denúncia de Antonio Gomes da Costa Neto que entende como manifestação de preconceito e intolerância de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas; (...) aponta menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano , que se repete em vários trechos do livro analisado e exige da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura
Independentemente do imenso equívoco em que, de meu ponto de vista, incorrem o denunciante e o CNE que aprova por unanimidade o parecer da relatora, o episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de uso. 
O que a nota exigida deve explicar? O que significa esclarecer ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos na literatura? A quem deve a editora encomendar a nota explicativa? Qual seria o conteúdo da nota solicitada? A nota deve fazer uma autocrítica (autoral, editorial?), assumindo que o livro contém estereótipos? A nota deve informar ao leitor que Caçadas de Pedrinho é um livro racista? Quem decidirá se a nota explicativa cumpre efetivamente o esclarecimento exigido pelo MEC? 
As questões poderiam se multiplicar. Mas não vale a pena. O panorama que a multiplicação das questões delineia é por demais sinistro. Como fecho destas melancólicas maltraçadas aponte-se que qualquer nota no sentido solicitado - independente da denominação que venha a receber, do estilo em que seja redigida, e da autoria que assumir - será um desastre. Dará sinal verde para uma literatura autoritariamente auto-amordaçada. E este modelito da mordaça de agora talvez seja mais pernicioso do que a ostensiva queima de livros em praça pública, número medonho mas que de vez em quando entra em cartaz na história desta nossa Pátria amada idolatrada salve, salve. E salve-se quem puder... pois desta vez a censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê! 

* Marisa Lajolo é Professora Titular (aposentada) da UNICAMP; professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pequisadora Sênior do CNPq.; Ex-Secretária de Educação de Atibaia (SP); Organizadora (com João Luís Ceccantini) do livro Monteiro Lobato livro a livro (obra infantil), obra que recebeu o Prêmio Jabuti 2009 como melhor livro de Não-Ficção.