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quarta-feira, 20 de julho de 2011

Cartas do P.e Aldo 201

Asunción, 13 de julho de 2011.

Caros amigos,
A desproporção entre o meu nada e o Mistério de que é feito o meu coração aumenta na medida em que vejo a minha impotência diante da minha necessidade e a de tantos que, sofrendo, desamparados, batem à minha porta. Que dor, que grito, dentro de mim, dirigido ao Mistério para que mostre o Seu terno rosto diante de três jovens mães internadas com câncer em estado terminal. Maria tem 29 anos e 5 filhos, Josefina tem 32 anos e 6 filhos, Cíntia tem 42 anos e 3 filhos. Três mulheres solitárias, sem maridos, que as abandonaram sozinhas com os 14 filhos. Enquanto eu celebrava a missa, achava que Josefina estava morrendo. Um câncer no pulmão parecia sufocá-la. Eu via a sua respiração difícil e olhava para a hóstia entre as minhas mãos. Sentia toda a sua dor e pedia a Jesus para olhá-la nos olhos, e pedia para dividir com ela a sua dor. Num certo momento, me aproximei dela e a acariciei e, depois de lhe ter dado a unção dos enfermos, logo depois de comungar, repousou. Quem sou eu, Senhor? Perguntava Santa Catarina. Nada. E quem és Tu? Tudo.
Ver a cada dia quem é o humano é dramático, e no entanto aquele homem que, num certo momento, para de viver é Cristo e, olhando para ele assim, não é possível não se ajoelhar. Porque, se aquilo de mais caro que você tem é Cristo, é verdade que aquele homem é aquilo de mais caro que você tem naquele momento. E ele é aquilo de mais caro que você tem porque ele, como eu, é aquilo de mais caro que existe para Cristo. E eu vi isto pela enésima vez neste sábado à noite, quando uma família, para se desfazer de uma parente idoso, com uma perna cheia de vermes numa grande ferida, passando de uma mentira para outra para nos enganar, conseguiu largar este pobre homem na frente da Clínica. Tinham nos procurado, enganando-nos, com o velhinho na carroceria aberta da camionete, enquanto eles estavam bem protegidos do frio na cabine. O motivo? Fede.
Nós o pegamos e eu vi naquele rosto triste a Presença do Mistério e, sem esperar nenhum médico e muito menos a assistente social (vocês sabem bem como, muito frequentemente, estes profissionais, antes de qualquer coisa, olham para a ficha clínica: se tem um diagnóstico e tudo preenchido corretamente). Jesus, que era um médico, caminhando pelas estradas e encontrando milhares de pacientes, olhava para quê? Para o diagnóstico? Para a ficha clínica? Ou escutava a dor dessas pessoas, olhava para sua fé e as curava imediatamente? Quanto a isto, sou um grosso: mando todos à merda muito facilmente. Eu olhava para ele e pensava: Deus se serviu também do engano dos parentes – que, há um tempo, o haviam abandonado num galinheiro – para mostrar a eles, para me mostrar que Ele não havia se esquecido daquele homem, daquele pobrezinho cuja realeza é objetiva, porque é relação com o Mistério.
Eu o beijei, levei para a Clínica. Os enfermeiros o transformaram. Porém, não havia leito livre e já era noite. Então, o Espírito Santo, sabendo que sou fraco de memória, me lembrou que, na Capela onde o Santíssimo fica exposto, onde já tem um mendigo doente, ainda havia um lugar. Assim, nós o levamos para ali e acho que Jesus gostou disso, porque agora Ele tem dois coroinhas cuidando dEle.
Enquanto isso, os parentes fugiram. Outra vez vi acontecer aquilo que o Salmo de Laudes do sábado diz: “pode uma mãe abandonar o seu filho?”, “Porém, eu não te abandonarei nunca”.
Experimentei isto na segunda-feira, quando uma adolescente que matou o seu companheiro quis renunciar ao seu filho, nascido aos 7 meses e que, agora, tem já 3 meses de vida. Ela vive na nossa casa de acolhida para meninas e adolescentes grávidas. Tive que ir ao juizado de menores com ela e com a advogada. Que dor ouvir a menina dizer ao juiz que me cedia o seu filho para poder voltar para a prisão de menores. Falava com uma frieza terrível e, comovido, eu olhava para o bebê entre os meus braços. O menino era como um lixo, e era maltratado por ela.
Terminada a aventura da adoção, voltamos para casa. Agora, Deus me fez, pela enésima vez, pai deste pequeno. E ela, esta pobre garota, voltará para a prisão para terminar a pena que poderia ter sido descontada aqui, conosco, na companhia do seu filho. Padre Paolino, depois do que aconteceu, me disse, pensando no que perde e ganha: “Nem mesmo a beleza sem Cristo consegue mover o coração de uma pessoa”. Você pode oferecer a ela o lugar mais bonito do mundo, mais limpo, mas sem o encontro com Cristo até mesmo uma campo de concentração é mais atraente.
Finalmente, uma notícia interessante no dia de São Bento: apresentou-se um jovem de 24 anos, rico, deserdado pela família e expulso de casa porque queria se tornar padre. Graduado em filosofia e com outros títulos. Chegou aqui graças ao semanário que publicamos e que ele lê (como é importante ter um espaço nos jornais laicos com um semanário “leigo”, ou seja, católico). Quer ser sacerdote porque está fascinado com a experiência que vibra no jornalzinho que publicamos.
Olhei para ele com muito distanciamento, mesmo porque, nestes anos, muitos chegaram aqui com este desejo, mas depois, diante da minha proposta, não voltaram mais. Eu o escutei e, em seguida, lhe perguntei: “Você gosta das garotas?”. Ele olhou para mim surpreso. E eu lhe disse: “Nesses tempos, esta é uma pergunta importante porque a condição, como dizia Giussani, para ser padre é ser homem”. “Padre, é claro que sim”, ele me respondeu. Bem, então eu lhe propus: “Por três meses... não apenas porque você é formado em filosofia e gosta de estudar e de cantar (ele cantava na ópera de Asunción), falar italiano etc. (um monte de dons que eu nunca tive, já que eu era um burro na escola), mas para que você possa aprender a prestar contas com o ‘morder a pedra’, como dizia o frei a Miguel Mañara. Hoje, você virá conosco – Padre Paolino e eu – à fazenda onde estão os doentes de AIDS, recusados por todos. Por três meses, você vai viver com eles: vai dormir num de seus quartos, numa beliche, comerá com eles, trabalhará a terra e, obviamente, terá o espaço necessário para a oração, a leitura, o silêncio etc. Depois, terminados os três meses, vai ficar com os ‘ex-mendigo’ da casa de São Joaquim e Sant’Anna, para dar banho e limpar estes filhos prediletos de Deus, vivendo com eles. E, então, finalmente, mais alguns meses na Clínica... Amigo, para ser padre, é preciso ter culhões, porque, de outra forma, amanhã, bastará que uma garota olhe para você, para que você desapareça, ou então você acabará vivendo no orgulho, nas lamentações e no burguesismo de tantos padres novos e nem tão novos assim que eu conheço. ‘É preciso sofrer para que a verdade não se cristalize numa doutrina’, dizia Mounier”. Ele olhou para mim e, com um sorriso, me disse: “Padre, obrigado. É isto que eu quero, aceito o desafio”. Subimos no carro, fomos para a fazenda e, desde o dia de São Bento, com o seu “ora et labora”, ele está ali, dando início a uma aventura que, se Deus quiser – quem sabe – será aquele que me substituirá, porque a vida passa e eu sempre pedi ao Senhor um substituto, mas que fosse alguém com culhões e que ame Cristo e os pobres muito mais do que um apaixonado ama a mulher com quem se casou, muito mais do que um apaixonado ama a sua namorada. 
Rezem, portanto, amigos, para que, se Jesus quiser, seja, para esse rapaz, de verdade, a possibilidade de viver a graça que me foi dada para viver. A regra é sempre a mesma: “calos nos joelhos, calos nas mãos, calos na mente”. Padres, ou seja, homens viris!
Ciao,
Padre Aldo

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Cartas do P.e Aldo 200

Asunción, 6 de julho de 2011.

Caros amigos,
É impressionante como a Presença do Mistério se impõe na minha vida, na medida em que olho e vivo a realidade como sinal! Não existe coisa, circunstância, fato que não seja a evidência da desproporção entre o meu nada e o Mistério que a realidade me revela continuamente. Viver suspensos na certeza de sermos queridos agora, agora que posso estar mal ou estar bem, estar emocionalmente no alto ou embaixo, ser simpático ou não. Ser querido por um Outro, assim como sou, e olhar com ironia para os meus limites. Dar-me conta e me surpreender, a cada dia, com o imprevisto que desfaz os meus projetos, as minhas programações, fazendo-me ver como é a realidade de fato e descobrir como a Providência Divina me faz vibrar pelo cêntuplo evidente em cada instante da vida. Um cêntuplo que não apenas é um a mais de vida, de humanidade, mas também é um a mais econômico e também de ação.
Hoje, por exemplo, chegaram-me dois emails: um de Barcelona, e outro de Reggio Emilia.
O primeiro me comunicava a feliz notícia de que Jordi (o arquiteto-chefe da “Sagrada Família” de Barcelona) e  Sotoo – que alguns dias faz, num fim de semana, havia se retirado para rezar, meditar, estudar o projeto, na belíssima Basílica de Nossa Senhora de Montserrat – terminaram tanto os cálculos estruturais, como odesejo do conjunto de imagens esculpidas em pedra e que estarão na fachada da nova clínica. Trata-se de comentar, na pedra, a frase de São Paulo aos Romanos: “A natureza mesma geme as dores de parto, esperando a ressurreição do Filho de Deus”. Assim, a nova clínica terá como base a Capela toda incrustada em madeira revestida com o “pão de ouro” do Santíssimo Sacramento e, no ponto mais alto, a imagem de Cristo saindo da terra, como num parto, traz consigo (“arrastra”: em espanhol é mais profundo) toda a realidade na plenitude da vida, no paraíso que será a realidade na sua perfeição máxima. Por isso, em breve o braço direito de Sotoo, Manolo, virá para dar início à obra.
Hoje, Francisco morreu de AIDS, um jovem abandonado por todos, mas que morreu entre os nossos braços. Tudo isto só é possível porque, quando o eu é agarrado pelo Mistério, gera uma cadeia de relações, como me escreve de modo comovente esta minha amiga de Reggio Emilia:
Caro Padre Aldo,
Quando as suas cartas nos chegam, fico me perguntando como é que chegam exatamente quando precisamos! Obrigada.
Assim, queríamos que você soubesse que, entre as tantas, aquela do “testamento da viúva” (de 27 de março de 2011) nos comoveu tanto que nos sentimos cobrados e organizamos uma venda extraordinária de “cappelletti” (você sabe, somos de Reggio Emilia, e aqui, eles são bem quistos!) feitos em casa. Apresentamos a proposta aos nossos amigos e algumas mulheres nos encontramos (de todas as idades!) para fazê-los. Aquilo que foi arrecado foi enviado para você nesses dias, num depósito de 500 euros.
Não é muito, uma gota no mar de necessidade, mas nasce de uma comoção depois de outro, porque foi assim aquilo que vimos brotar deste nosso pequeno “movimento”, nascido de forma impetuosa, porque ficamos tocados pela simplicidade da pertença daquela mulher que, tendo encontrado “a verdade da sua vida”, quis deixar tudo o que tinha.
Obrigada! Em anexo vão algumas fotos do nosso trabalho e, abraçando-o, pedimos-lhe que se lembre de nós na sua oração, junto de todos aqueles que trabalharam conosco.
Maura Bezzecchi
Maura Caprari
P.S.: Da próxima vez que vier à Itália, será nosso convidado para comer “cappelletti” conosco.
Como podem ver, não se trata de dotes particulares ou de capacidades, mas tão somente de deixar-se tomar pelo Mistério que, numa das leituras da semana passada, na Missa, dizia, através de Moisés, ao povo judeu: “Tu és a minha propriedade”, “eu me apaixonei por ti, por ti que és o menor de todos os povos”.
Amigos, espero que vocês vivam juntos este tempo, comovidos, rezando, como dizia a oração da coleta do último domingo, “Deus, que por meio da humilhação do Teu Filho, levantou a humanidade decaída, concedei-nos a VERDADEIRA ALEGRIA, para que, libertos da escravidão do pecado, possamos atingir a plenitude da felicidade” (em espanhol, “a felicidade sem fim”), como que dizendo de plenitude em plenitude.
Padre Aldo.

domingo, 12 de junho de 2011

Cartas do P.e Aldo 196

Asunción, 10 de junho de 2011.

Caríssimos,
Levando a sério aquilo que Carrón nos diz, fazendo um trabalho permanente, verificando em cada momento a razoabilidade da fé, a dúvida desaparece, deixando lugar para uma certeza de ferro que nem mesmo a pior condição na qual uma pessoa possa se encontrar a fará tremer. Isto não significa – e eu experimento isto todos os dias, há mais de 20 anos – que me seja poupada a experiência da solidão, da dor que Jesus mesmo viveu no Getsêmani ou na cruz.
Quantas vezes eu gritei e grito: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice”. Ou quantas vezes busquei inutilmente uma companhia que “vigiasse” comigo! Porém, dentro deste deserto, desta batalha, a luz da fé sempre venceu e mesmo que em certo momentos o grito de Jesus se tenha feito vivo – “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” –, é como se imediatamente a posição da fé vencesse sempre: “Não a minha, mas a tua vontade seja feita” ou “nas tuas mãos eu me confio”.
Ver todos os dias pessoas morrendo ou tanta dor inocente me permite viver continuamente esta experiência. Digo experiência porque fica sempre mais claro que Deus é tudo, que Deus se ocupa de mim e de cada um de nós com uma ternura infinita.
Ontem, morreu Domenica, uma garota lindíssima doente de AIDS. A sua jovem vida tinha sido destruída pela prostituição a que tinha sido obrigada por seu companheiro, um alemão, que desapareceu depois que ela ficou doente. Ler o seu prontuário médico é assustador, quando se vê aonde pode chegar uma pessoa quando em seu coração não há Deus. Nestes últimos meses, vivia numa casa cujas paredes eram de papelão. Nós a encontramos abandonada no chão de terra, sozinha. Vivia com um homem, na miséria absoluta. Nós a trouxemos para a clínica, mas ela já havia decidido morrer. Não queria mais saber de nada: nem comer, nem tomar remédios. Num momento de crise, teve uma reação muito feia com uma enfermeira que acabou machucando o dedo com uma seringa com a qual lhe havia aplicada uma injeção. Um drama no drama.
A enfermeira, uma bela garota, mãe de quatro filhos, dos quais três são gêmeos, depois de um primeiro momento de medo, colocou-se em contato com o médico responsável pela clínica na qual, um tempo antes, havia acontecido a mesma coisa, e escreveu estas palavras: “tão logo me dei conta do que havia acontecido, tirei minhas luvas, lavei minhas mãos, chamei o médico para ver o que podia ser feito e experimentei uma grande angústia. Mas, imediatamente, entreguei tudo a Deus e me lembrei daquilo que me havia sido dito num encontro de catequese: ‘O demônio favorece estas coisas para que nasça em nós a dúvida: por que Deus permite estas coisas’. Mas, eu tenho a certeza de que mesmo esta provação é uma Graça de Deus que me ama, de forma que deixo tudo em Suas mãos, para que se faça a Sua vontade, e isto me dá tanta paz”.
Domenica, olhando-a com amor, começou a se acalmar, tomou o remédio e quando lhe perguntava se queria um sorvete, ela me respondia: “Sim, padre, quero de baunilha”.
A depressão pareceu se acalmar um pouco e foi bonito quando pediu o Batismo e a Primeira Comunhão. Foi um momento que significou mesmo uma melhora do seu estado de saúde. Recebeu a Eucaristia até a manhã do dia em que morreu. Eu a olhei e ainda era bela. O seu corpo nunca amado e sempre usado tinha reencontrado uma harmonia suprimida por anos de prostituição. Uma vez mais Deus venceu, uma vez mais a evidência de que Deus não abandona os seus filhos, por mais desesperados que sejam, se impõe aos olhos de todos.
Era o reacontecer do fato da adúltera, da Samaritana. Então, como não se render à evidência, à razoabilidade da fé?
E todos os dias é assim, amigos. De fato, somos os vivos, de fatos Cristo já venceu tudo. Amigos, vejo como Deus é atento a quem não tem nada, vejo como Deus ama e recolhe aqueles que o mundo chama de lixo humano. De fato, para Deus, não existe o filho bom ou o mal, existe apenas o filho.
Padre Aldo

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Cartas do P.e Aldo 195

Asunción, 3 de junho de 2011.

Caros amigos,
É belo se surpreender sempre mais com o olhar fixo no Mistério e os pés bem plantados na realidade, não importando se devo suar as proverbiais sete camisas, porque o suor é a dramaticidade com a qual se enfrenta a vida.
De volta à casa, como acontece em toda família, a pessoa se encontra com a realidade que, no meu caso, é aquela onde a dor transborda de todos os lados: moribundos, jovens com câncer e com AIDS, velhos abandonados, meninas grávidas ou violentadas, filhos que fogem ou se opõem ao caminho educativo das Casinhas de Belém, colaboradores com tantos problemas pessoais e familiares, pessoas que com a desculpa de ajudar criam mais problemas do que soluções. Nem mesmo coloquei os pés na terra, saindo do avião, e eis o cenário. O meui coração sentiu imediatamente que Deus me pede tudo, que a realidade já é amiga e, por isso mesmo, está sempre pronta a me provocar. Não tive tempo nem mesmo para a saudade do que encontrei na Itália, porque a realidade me faz formigar de uma nostalgia muito maior, infinitamente mais bela: a nostalgia de fixar bem nos olhos do Mistério, aquele Tu que me fazes. No avião eu tinha lido a introdução dos exercícios de Carrón. Imediatamente reconheci descrito, de forma operativa, o meu eu tornado ainda mais inquieto, desejoso, saudoso de vê-Lo. Eu estava cansado, o fuso horário, as confusões... as perguntas, a súplica, a necessidade urgente de não perder de vista, um instante sequer, a alegria pascal, ou seja, a companhia dos “vivos”: Julián de la Morena, Paolino, Padre Martino do Chile e visitor da São Carlos Borromeu na América Latina.
Dor, sofrimento, suor, alegria pascal. Sim, porque a alegria pascal é uma companhia na qual é evidente, claro, luminoso, o carisma que nos foi dado. O abraço destes amigos tornou ainda mais potente para mim a pergunta pelo Infinito que trago dentro de mim.
Assim, pude, tão logo cheguei em casa e desfiz as malas de presentes para as minhas crianças, visitar os doentes, os idosos, os meus filhos mais novos, o pessoal que estava trabalhando, vendo neles, mesmo se os olhos estavam anuviados pelo cansaço, a beleza radiante do rosto de Cristo. Aquele rosto que vi, em cada dia, na Itália, em cada lugar por onde passei.
Há, de fato, em todos os lugares, uma vida que desabrocha, um surplus de vida, de vontade de viver. E é esta vontade de viver que tão logo encontrei Isabel, uma garotinha de 15 anos – e que, numa carta, se define como um “vírus” –, me coloquei de joelhos diante do Mistério, suplicando-lhe que me dê aquela paternidade necessária para comunicar a ela a alegria de ser um dom. Um fato que me obriga a estar diante dEle, se verdadeiramente amo esta filha, porque sem esta minha posição não conseguirei lhe comunicar nada, não poderei lhe mostrar que também para ela existe a possibilidade de passar da consciência de ser um “vírus” à certeza “de amei-te com um amor eterno, tendo piedade do teu nada”.
A mesma posição eu senti como necessária quando, visitando a casa onde vivem algumas garotas grávidas (uma de 12 anos está no oitavo mês) e outras que acabaram ter seus filhos, saudando-as com afeto, depois de 15 dias sem as ver, não obtive sequer um olhar delas. Uma vez mais, vi em seus rostos a raiva da vida, de todos. Senti ternura por elas, da mesma forma que o Mistério sente por mim, olhando-me continuamente, acolhendo-me, porque “antes de ser concebido no ventre de minha mãe, Ele pronunciou o meu nome, fez de mim sua propriedade, teve piedade do meu nada, amando-me de um amor eterno”. E, então, eu as saudei dizendo: “Voltarei amanhã e vamos ficar juntos”.
No dia seguinte, o milagre: uma delas, depois de três meses conosco, se aproximou e me deu um beijo. Não somente isso, mas mesmo a sua feminilidade, antes destruída, se refez. Quando ela chegou aqui, com a sua barriga maior do que ela (que tem apenas 15 anos), estava suja, desarrumada, destruída pelo crack; agora, não tem mais nem sinal daquela menina perdida. Bonita, cabelos longos bem penteados, unhas pintadas, vestida como as garotas de hoje etc. Além do mais, vive para a sua filha.
Veio-me em mente aquilo que Dom Giussani disse em “É possível viver assim?”: a moralidade é olhar no rosto a Jesus... então, tudo se torna ordenado, a pessoa se penteia de certa maneira, abotoa seus botões, tem vergonha se está com sapatos sujos e diz “perdoe-me por estar assim desarrumado”.
Hoje, chegou outra garota que está no terceiro ano do ensino médio e está no terceiro mês de gravidez. Esta noite, faremos a festa com as outras para lhe dar as boas vindas. É Jesus que chegou com uma trouxinha na barriga. Olho para ela, é pequena, magra, os olhos verdes, e sinto uma ternura infinita. Outro caso de pedofilia. Mas, tenho a certeza – porque há anos a toco com a mão – que também para ela a certeza do Cristo ressuscitado triunfará. Não existe problema, por mais violento, que não encontre em Cristo a vitória
Certamente, trata-se de uma luta e de uma dor contínuas, mas esta é a condição para estar, instante após instante, diante do Mistério. A dor é tanta (também hoje, na clínica, morreu uma jovem mãe com quatro filhos) e, às vezes, parece me arrastar, no entanto, dentro de tudo isto encontro o repetir contínuo de “eu sou Tu que me fazes”, que muda tudo, e tudo se torna motivo de letícia, porque tudo, exatamente tudo, se torna positivo, porque tudo se torna grito, reconhecimento do Ser que me faz em cada momento, e por quem bate o meu coração.
Padre Aldo

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Cartas do P.e Aldo 175

Asunción, 06 de janeiro de 2011.

De fato, o homem é apenas relação com o Infinito e, desta certeza, nasce aquele dinamismo incansável da vida que é a gratuidade.
Que graça chegar ao fim de um dia cujo calor úmido dos trópicos parece apagar toda energia e se encontrar com o coração fresco pela paixão por Cristo, que se torna paixão pelo homem.
Nesta noite, estive na Casinha de Belém, como tento fazer todos os dias, e Rose, a menina de três anos que tão logo me ouve corre para entre os meus braços, quis – sim ou sim – mesmo que já tarde, vir comigo para casa. Assim, enquanto escrevo, ela está sentada diante de mim com um sorvetinho e fala olhando para as fotografias dos seus irmãozinhos da Casinha. E pensar que quando chegou nós acreditássemos que ela morreria, visto o tanto que havia sofrido. Hoje, ela é como todas as crianças: alegre e brinca. Vejo nela a evidência daquele Mistério que me faz e, consequentemente, faz também ela. Sempre mais experimento que somente vivendo com a certeza do “eu sou Tu que me fazes” é que é possível salvar tudo e todos. Como explicar de outra forma que estes meus filhos, com todas as violências sofridas e os problemas conseqüentes, sejam felizes?
O homem, tanto a criança violentada quanto o violentador, quanto cada um de nós, tem necessidade de encontrar homens definidos pelo Mistério. Somente assim nasce a gratuidade. Aquela gratuidade que vi em ação, nesses dias, quando a doutora especialista em AIDS, Cristina, me chamou, enquanto cuidava do corpo de um doente de AIDS já apodrecido em várias partes e cheio de vermes. Eu estava assustado, enquanto que ela, com as pinças, arrancava daquele corpo apodrecido, um por um, aquelas misérias. A um certo ponto, perguntei-lhe: como você consegue resistir, Cristina? E ela: “Padre, estou tirando os vermes do corpo de Jesus”.
Um minuto depois, o doente, aquele pobre homem que também tem uma psoríase terrível, conseguiu dizer: “Eu sou Jesus”. Veio-me em mente a pergunta de Jesus a Marta, diante do cadáver mal-cheiroso de Lázaro – como o deste meu filho: “Crês isto?”. “Sim, Senhor, eu creio.” E assim consegui até mesmo jantar, não obstante a minha cabeça estivesse fixa sobre aquilo que eu tinha visto.
Amigos, esta é a contemporaneidade de Jesus de que fala Carrón na sua intervenção natalícia.
Estes dias têm sido muito difíceis. O calor me nocauteia. O meu corpo está sempre úmido. A tensão nervosa que isso me cria é enorme, assim como a irritabilidade; e no entanto não é o Alprazolan que me torna sereno e calmo, mas o repetir contínuo “eu sou TU que me fazes”, “Senhor, te ofereço”, “Tu, meu Cristo”. Amigos, vocês entendem como tudo é possibilidade para dizer “Tu, meu Cristo”? Assim, o lamento deixa lugar para a oferta. Mas, sozinho é impossível. Por isto, no fim do ano, peguei o avião e passei três dias com os amigos Marcos, Cleuza, Bracco e Julián de La Morena. Eu precisava urgentemente ver os amigos, aqueles rostos com os quais a familiaridade com Cristo é mais evidente. Não fizemos nada de especial. Ficamos juntos como Jesus com os seus amigos, retomando aquilo que Carrón nos disse no Natal, e a partir disso julgando a nossa vida. Mandei o resultado desse diálogo para “Tempi”, porque desejo que todos, mesmo quem não conhece a nossa experiência, possam perceber que o cristianismo é uma amizade e entendam o que quer dizer que os cristãos sejam os amigos de Jesus.
Amigos, de verdade, tenho o coração queimando por Cristo, e este fogo me torna criativo, atento, para responder a toda provocação da realidade. Exatamente como, nesse momento em que devo levar Rose para dormir com as outras crianças, mesmo que ela não esteja cansada e esteja mexendo em tudo no meu escritório. Olho para ela que está virando de ponta cabeça tudo, o aparelho de fax e o CD player. É isto que passa, para mim, com Jesus: basta estar com Ele, porque, depois, é Ele quem faz, que leva adiante a obra.
Um abraço no Senhor a todos.
Com afeto
Padre Aldo

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 172

Asunción, 20 de dezembro de 2010.

Caros amigos,
No jornal local “Ultima Hora” foi publicado este artigo assinado pelo jornalista Cristian Cantero.
Desejo a todos um Bom Natal!!!

“No meio do correio eletrônico e dos votos de Natal e tantos outros cumprimentos, encontrei um que me chamou a atenção pelo seu título ‘De zero a um’.
Lendo o conteúdo, descobri que se trata de uma associação sem fins lucrativos, fundadas por amigos do Padre Aldo Trento, para ajudar as obras que se desenvolvem na paróquia San Rafael, neste caso em particular da Casinha de Belém. Para relatar a história da origem desta denominação, Padre Aldo, um dia, disse que, tendo recebido os boletins escolares de seus ‘filhos’ da Casinha de Belém, deu-se conta de que quase todos tinha tomado bomba; e, então, pensou que, ao invés de chamar a atenção deles e censurá-los, como qualquer pai de família faria, deveria organizar uma festa.
Segundo o relato do mesmo Padre Aldo, ele disse aos garotos naquele momento: ‘Meus filhos, eu os cumprimento porque a coisa mais importante da vida não é ter nota 5; ou seja, vocês eram considerados ‘ninguém’ e passaram a ser protagonistas da própria vida!’.
Para entender isto, é necessário recordar quem são estas crianças recolhidas por Padre Aldo: estão com ele porque foram abandonadas pelas suas famílias e esquecidas pela sociedade. Alguns são filhos órfãos dos doentes de AIDS que morreram na clínica Divina Providência ‘São Riccardo Pampurri’.
Poder-se-ia dizer que são crianças a quem a vida deu uma segunda oportunidade, por que encontraram um lugar, um lar, onde são valorizados e tratados com dignidade; um lugar onde aprendem a ser protagonistas da própria vida.
No mundo onde os parâmetros com os quais se medem as pessoas são o êxito, o poder, o dinheiro ou a fama a que se pode chegar, escutar ou ler histórias deste tipo nos permite compreender qual é o valor e o sentido verdadeiro da vida.
Tantas vezes, os pais nos preocupamos demais com o assegiurar o bem-estar material aos nossos filhos, reduzindo a educação à simples instrução ou à transmissão de dados, e é por isso que nos habituamos a medir a capacidade das crianças a partir dos resultados que obtêm, como se fosse uma simples fórmula matemática.
Mas, educar é muito mais ajudar uma pessoa a se tornar verdadeiramente homem. qualquer pessoa pode gerar filhos, mas poucos são aqueles que educam verdadeiramente os próprios filhos, isto quer dizer que o educam a enfrentar a vida, as circunstâncias de modo adequado e razoável. Se queremos educar, devemos respeitar e usar a razão e a liberdade dos nossos filhos, conscientes de que são pessoas diferentes de nós; o seu futuro não nos pertence.
É revelador o testemunho do psiquiatra vienense Viktor Frankl, que contava a confidência que um estudante americano lhe fez: ‘Tenho 22 anos, sou graduado, tenho um carro de luxo, sou economicamente independente, e tenho à disposição mais sexo e prestígio do que eu precisaria. Mas, apesar de tudo isso, me pergunto: que sentido tem ter tudo isto?’.
A educação verdadeira é ajudar a pessoa a entender o sentido da realidade em geral e o seu significado último. Mas, para fazer isto, é preciso que existam genitores que se deixem educar mesmo se tiverem 50 anos! Porque este processo dura a vida inteira e ninguém nunca termina de aprender. Como disse Padre Aldo, ‘apenas a partir da experiência de um abraço humano é que o meu eu desperta, se comove e se move’. E, assim, se converte em um desafio o passar de zero a um.
Cristian Cantero”

Ciao
Padre Aldo

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 169

Asunción, 28 de novembro de 2010.

Caros amigos,
gostaria de comunicar a vocês alguns fatos que aconteceram e que testemunham com Cristo está presente na minha vida e, por isso, tudo é positivo, mesmo a dor que, de uma desgraça, se torna graça, como nos lembra a Escola de Comunidade.
1. Ontem (sexta-feira), tivemos a surpresa da visita de Marcos e Cleuza. Uma visita relâmpago, que foi, para eles, uma aventura única: 7 horas de viagem de avião para chegar aqui e 4 horas para voltar. Nunca aconteceu algo assim. Somente uma grande amizade, fruto da familiaridade com Cristo, permite este olhar entre nós. Marcos, ontem, tinha uma reunião importante na Assembléia Legislativa, mesmo porque lhe estão fazendo propostas interessantes. Mas, preferiu vir para festejar o aniversário de Padre Paolinio e encontrar os amigos da fundação, responsáveis pelas obras. O encontro foi muito bonito, as experiências contadas foram como um vibrar do eu diante de Cristo. A genialidade de Cleuza nos lembrou o que Carrón nos dizia comentando o Monologo di Giuda (Monólogo de Judas, canção de Claudio Chieffo; ndt) em La Thuile: “Judas era um apóstolo, eu não sou um apóstolo; Judas fazia parte dos grupinho de amigos de Jesus, e eu também faço parte dos amigos de Jesus, como Judas, como Pedro. Porém, Judas participava daquela amizade, mas diferentemente de Pedro e de mim, não pertencia àquela amizade. Uma coisa é participar, outra coisa é pertencer. Judas traiu Jesus, mas também Pedro, assim como também eu. Porém, uma coisa foi a traição de Judas, outra a de Pedro e a minha. Judas, diante do seu pecado, sendo apenas participante daquela amizade, e não pertencente, se suicidou. Pedro, porém, que pertencia àquela amizade, reconheceu o seu pecado e se deixou abraçar por aquele olhar. Assim é para mim e para Marcos. Nós não viemos porque participamos do que acontece aqui, desta obra, mas porque pertencemos a esta obra. Uma pessoa pode até fazer milagres, mas se a sua natureza não for a do Pai, tudo morrerá. O filho pródigo voltou não porque quisesse participar do banquete, ou porque estava cansado da miséria, mas porque, no meio de toda as misérias, ele pertencia ao Pai, era da sua mesma natureza. O nosso problema é apenas um: participamos ou pertencemos? Seguimos Carrón ou olhamos para onde Carrón olha? Uma coisa é participar do movimento, participar daquilo que Carrón nos diz, outra coisa é pertencer ao movimento, pertencer ao olhar com o qual Carrón nos guia e olha para a realidade. Eu venho aqui, do Brasil, porque decidi pertencer àquilo que vi, como Pedro. Eu venho do Brasil porque pertenço a vocês. Assim, vocês trabalham aqui porque pertencem a esta obra. E o sinal desta pertença é a alegria com a qual vocês trabalham e é o que marca a diferença com quem não pertence”
2. Tão logo chegaram, celebramos a missa para eles na clínica. Alguns doentes terminais, incapazes de se moverem, participaram também. Grande foi a surpresa quando um doente de câncer, com a parte direita do rosto toda vendada, porque literalmente estava “comida” pelo câncer, e o outro lado todo inchado, tomou o violão e, com uma alegria nos olhos que nos comover a todos, acompanhou os cantos. Cleuza, a um certo momento, disse: “como pode um doente naquelas condições, nas vésperas da morte, tocar com tanto ímpeto o violão? A resposta é apenas uma: porque, nele, é clara, é evidente a pertença ao Mistério... e era visível como ele estava identificado com Cristo eucarístico. Ele tocava assim e naquelas condições, porque olhava para Cristo, pertencia a Cristo. Desafio a qualquer prêmio Nobel de oncologia a dar a este doente aquilo que somente Cristo pode dar. Nenhum prêmio Nobel pode dar um doente terminal a força, naquelas condições, de tocar o violão. Quem lhe dá a força é apenas Cristo, que passa através de vocês, que estão próximos e veem nele Cristo. Eu venho de São Paulo porque preciso ver como também a vida que está morrendo refloresce na pertença. Não venho aqui para ver as pessoas morrendo e nem mesmo para ver o hospital, porque tudo isto posso ver também em São Paulo, mas para ver os milagres da pertença a Cristo, porque não é uma coisa deste mundo ver um moribundo tocando violão. Venho aqui para que a certeza que hoje me acompanha seja a certeza que me acompanhe também amanhã. Não me basta o passaporte para hoje, eu o quero também para amanhã. E sem vocês não tenho esta garantia. O passaporte para o amanhã eu não tenho, mas esta pertença o tem. Então, o problema é não ter uma reserva na pertença, reserva que é o caruncho que destrói tudo. Quanto mais pertenço, tanto mais cai a reserva. A outra face da reserva é a pretensão. Por que prevalece a pretensão? Porque nos esquecemos do destino do outro. Por este motivo, não estamos juntos para fazer obras, mas para que floresça o nosso eu e as pessoas conheçam a Cristo, encontrem a Cristo. E se o ponto não está claro, a obra já está morta. Quando alguém tem este olhar é livre. Não é definido pelos resultados, pelos êxitos. Pensem, por exemplo, nos pais: que respiro começam a viver quanto aos filhos, sobre os quais temos tantas pretensões. Eu posso abraçar, sustentá-los, mas não me posso substituir a eles, ao drama deles. O violeiro que escutamos é uma evidência. Eu não posso tirar-lhe o câncer, não me posso substituir a ele, o drama é todo seu, não posso fazer com que a proximidade da morte se afaste. Posso sim abraçá-lo, amá-lo, mas o drama é entre ele e Cristo, e se vê bem como a sua liberdade, que se deixa abraçar por Cristo, lhe permite até mesmo de ‘tirar sarro’ do câncer, aproveitando plenamente daquilo que está tocando”
Amigos, vocês entendem por que somos amigos e por que não conhecemos distância, e como mesmo os “problemas” provocados pelas companhias aéreas não nos distraem?
Para terminar e assim começar bem o Advento, um último fato que mostra como nada impede que a realidade, a doença, seja um dom. Outro dia, a doutora Cristina, infectologista, me descreveu as condições de um paciente de AIDS, encontrado num lixão. Ele é uma ferida só. Os vermes saem de uma orelha apodrecida e também dos genitais. Chamou-me para perto dele para que eu me desse conta de onde pode chegar a miséria humana e também do que seria do homem se não fosse de Cristo. Vi como ela, com tanto amor, com uma pequena pinça, tirava os vermes um a um – e isso todos os dias – e fiquei abalado e comovido. Perguntei-lhe: “Mas, Cristina... como consegue?”. E ela: “Mas, padre, é Jesus... este homem cheio de feridas é Jesus; e, por isso, faço este trabalho com alegria”. Fiquei sem palavras, maravilhado, comovido, enquanto ela, com as pinças, acompanhada por outra jovem médica e uma enfermeira, continuavam, com o sorriso nos lábios, a tirar aqueles vermes de cabeça preta e corpo branco.
Vocês entendem o que quer dizer “contemporaneidade de Cristo”? Se Cristo fosse um “ontem”, uma pessoa não seria capaz de estar diante de um homem que traz no corpo os sinais do apodrecimento.
Rezem por mim e por meus amigos sãos e doentes.
Padre Aldo

domingo, 17 de outubro de 2010

Cartas do P.e Aldo 166

Asunción, 16 de outubro de 2010.

Caros amigos,
“Padre, sou feliz de estar aqui, neste hospital. Desde que cheguei e vi tanta beleza – flores, jardins, plantas, ordem, limpeza – e, particularmente, tanto amor, me senti como se estivesse no paraíso. Mesmo o câncer assumiu um rosto diferente”. Foi o que Josefina me disse antes de morrer, esta noite.
A clínica está sempre cheia. Moribundos sozinhos, da rua, que chegam para receber um gesto de amor puro que encontra nos sacramentos o coração e, depois, partem para o Paraíso. Frequentemente, damos o batismo sub conditio, porque não sabemos nada sobre eles, apenas algo muito bonito que Carrón nos repete sempre: “amei-te de um amor eterno, tendo piedade do teu nada...” ou, como disse Giussani na Escola de Comunidade, “comovo-me porque tu me odeias”.
Olho para aquele meu filho, de quem sou também o padrinho, batizado no domingo passado, sempre sub conditio (significa que pode ser dado mesmo a quem já foi batizado), mongoloide, encontrado na rua, doente de AIDS porque foi abusado sexualmente, e não posso não me comover pensando, hoje, em como rezamos nas laudes (como eu gostaria que vocês, meus amigos, rezassem o livro das horas todos os dias, como quando estavam em GS [Gioventù Studentesca, equivalente, na Itália, aos Colegiais de Comunhão e Libertação; ndt], para descobrirem aquilo que, há 17 anos, intuíamos mas não se tinha feito carne ainda): “Pode uma mãe abandonar seu filho? Não se comover pelo filho do seu ventre? Bem, mesmo se se esquecesse, Eu não te esquecerei nunca”. Amigos, pobres de nós se introduzíssemos uma suspeita que fosse de que, na nossa vida, não seja assim, quaisquer que sejam as circunstâncias! Imaginem que desespero seria a nossa vida se esta certeza não fosse granítica como conteúdo do eu, quando um dia adoecéssemos de câncer ou quando a depressão nos pegasse!! Amigos, o pecado mais grave é a suspeita, a dúvida, quase como se Deus fosse capaz de nos enganar quando nos diz “amei-te de um amor eterno, tendo piedade do teu nada”.
Quantos momentos dramáticos aconteceram nestas semanas... cheguei mesmo a ficar com raiva (porém, há muito tempo, a minha raiva com Deus é cheia de ternura) dEle, mas não há nada que possa fazer nascer a suspeita de que tudo o que me aconteceu não seja uma ternura de Deus. Se eu não sofresse, não viveria aquela familiaridade com Ele que torna a vida tão bela e que me permite transmitir aos meus filhos a alegria do perdão.
Uma noite dessas, as minhas filhas da Casinha de Belém, as adolescentes, vieram até ao meu escritório para conversar comigo, confiando-me seus problemas (é um fato normal, mas sempre novo). Entre as tantas coisas que disseram, algumas me tocaram e foi quando elas, abusadas sexualmente pelo companheiro da “mãe” e com o consenso da mesma, me disseram: “papai, não queremos mais viver com a mamãe por causa daquilo que ela nos fez, porém nós a perdoamos”. E uma me disse: “eu queria vê-la, mas sei que ela não quer saber nada de mim”. “Por isso, precisamos que o senhor e Diana, a mamãe de fato, fiquem conosco quando temos tempo livre na escola, porque somos uma família”.
Numa outra noite, tentei ensinar para Noelia (de 5 anos) como se dobram as roupas. Eu a olhava e ela, muito empenhada, de vez em quando me olhava para ver se eu estava ou não de acordo. Que ternura! Porém, se Jesus não estivesse vivo, aqui, eu não seria capaz disso, eu ficaria impaciente. É a contemporaneidade de Cristo que permite às crianças que perdoem, e permite a mim ensinar como se dobram as roupas. Esta contemporaneidade é aquilo que deu a liberdade cheia de amor a César e Lorena que, tão logo se casaram, alguns meses atrás, decidiram vir viver com os homens na primeira Casinha de Belém. Já na primeira noite de casados, se viram com o quarto dos 11 meninos assustados, que se tornaram seus filhos, ao lado do seu quarto. Agora, Lorena está grávida e a felicidade para todos é ainda maior. Os filhos que eram de uma violência sem precedentes – eles estariam todos na rua, semeando violência –, hoje estão mudados e são muito bonitos. Mesmo Gabriel, para quem demos e se deu o meu sobrenome, que viveu apenas violência (fugia de todas as casas por onde passou, jogava pedras em vidros de carros, era respondão e tinha um cinismo terrível), agora é o melhor da sua sala.
Amigos, é o milagre da gratuidade, assim como nos descreve Giussani na Escola de Comunidade. Os meus educadores são todos pessoas que têm apenas a quinta série e, alguns, terminaram o ensino médio, e todos são os protagonistas deste milagre... mas, por quê? Porque, a cada dia, nos lembramos da nossa origem, que é a mesma das crianças: “eu sou Tu que me fazes”, ou “quem és Tu, ó Cristo, que me amaste de um amor eterno, tendo piedade do meu nada?”.
Amigos, a vida é uma grande aventura.
Com afeto
Padre Aldo

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 163

Asunción, 20 de setembro de 2010. 

Caros amigos,
desejo agradecer a todos os que nos sustentam naquilo que a Providência, todos os dias, tem operado entre nós, mesmo com a ajuda econômica.
Um dos milagres mais bonitos dos últimos meses está acontecendo com os doentes de AIDS. O médico responsável pelo setor de infectologia, que também trabalha no único hospital nacional em que há um programa anti-AIDS e interna os doentes, me dizia: “Padre, aqui, entre nós, os doentes chegam no fim da vida e, porém, ninguém morre. No hospital nacional, pelo contrário, onde trabalho, há uma ala que foi destinada somente para eles, já que normalmente todos morrem. Trata-se dos mesmos cuidados e de resultados tão diferentes. Para falar a verdade, são eles que nos fornecem os remédios necessários. Padre, a diferença está naquela ternura que nasce daquele ‘eu sou Tu que me fazes’ e que permite um relacionamento humano e totalizante”.
Por isso, agora, estamos pensando em uma casa onde possamos manter as garotas com AIDS, enquanto que os rapazes, há anos, têm a fazendo de quatorze hectares onde vivem. Tristemente, por serem doentes de AIDS, são como que amaldiçoados e não são mais acolhidos em suas casas. Além do mais, as garotas, por óbvias razões, querem estar perto de nós, de forma que estamos vendo como construir a casa.
O novo hospital – muito belo e essencial (porque a beleza é o vértice da caridade) – está 70% concluído. Depois, Sotoo será o responsável por dar a pincelada final. Todos os quartos terão o teto pintado como o belíssimo céu do Paraguai, para que todos morram olhando para cima, ou seja, para o Paraíso que, certamente, não é branco, mas é como o céu belíssimo dos trópicos. A ideia é de Sotoo.
Agradeço a todos os que continuam nos ajudando, particularmente levando em consideração o Outubro Missionário.
Lembro que Padre Paolino, meu grande amigo e companheiro de aventura, estará na Itália entre os dias 29 de novembro e 28 de dezembro. Quem quiser conversar com ele, me avise, por favor.
Com profunda gratidão
Padre Aldo

domingo, 5 de setembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 160




Asunción, 5 de setembro de 2010.

Caros amigos,
Eis-me de volta a casa. Os meus filhos muito felizes. Vejam o que uma menina me escreveu: “Quero dizer que estou feliz com o seu retorno. Que graça saber que você voltou. Senti muito a sua falta. Agora, não quero mais chamar você de Padre Aldo, mas de papai Aldo. Papai Aldo, você é o melhor papai e eu o amo muito, e fico feliz por saber que você quer o meu bem, porque nem minha própria família me trata tão bem como me tratam na Casinha de Belém, que é a minha verdadeira família. Elizabeth”.
Deixo a vocês imaginarem o que significa para mim ver que tão logo pisei o solo dessa terra todos vieram ao meu encontro, dizendo: “Finalmente”. A minha alegria chegou às estrelas, mesmo porque o mais violento deles (há um tempo atrás), mostrando-me o boletim do segundo trimestre, tinha tirado 5 em todas as matérias, que é a nota máxima no Paraguai. Milagre do amor – “eu sou Tu que me fazes” – que penetra as fibras mais íntimas das minhas crianças e as muda.
Ao mesmo tempo, não vi mais o pequeno Alberto (vejam a foto), de dois anos, que morreu durante a minha ausência, deixando-nos todos cheios de dor.
Assim também, não encontrei mais o jovem Abraão, que tinha se casado antes de eu partir, doente de AIDS e com um câncer. Eu o havia deixado feliz, em lua de mel, na clinica, obviamente junto com Susana, a garota com a qual convivia e que tinha contagiado com AIDS e com a qual se tinha casado antes que eu partisse (vejam as fotos).
Ela me esperava com sua carga de amor e dor. Deu-me este bilhete comovente que é um soco no estômago, bilhete comovente, particularmente, para quem tem problemas (frequentemente infantis) de relacionamento no matrimônio: “Abraão se realizou como cristão e eu estou em paz, porque graças à AIDS pude conhecer a Deus, toda a Sua bondade, todo o Seu amor. Agora, fiquei sozinha, mas com um grande desejo de continuar vivendo, lutando por um novo amanhecer. Aqui, na Clínica Divina Providência, conheci pessoas capazes de tanto amor que espero que existam outros lugares como este para todos os doentes como eu, para que possam conhecer a Jesus. Tenho AIDS e não tenho medo dela. Não tenho medo de contar a minha história, porque encontrei a Jesus. Os meus pais, desde quando souberam disso, estão sofrendo muito, mas eu lhes digo, como a todos, que a morte é uma realidade que todos devemos enfrentar e, por isso, somos chamados a nos preparar bem, na certeza de que Deus nosso Pai está se preocupando por nós”.
Amigos, isto é o cristianismo, esta é a fé. Se os nossos olhos estivessem fixos nestes fatos, como seríamos livres e capazes de gratuidade!
Carrón, introduzindo o encontro de responsáveis em La Thuile nos chamava a atenção, na primeira noite, para a conversão e lembrava as palavras do profeta: “Amei-te com um amor eterno, atraindo-te para mim, tendo piedade do teu nada”.
Tudo o que acontece aqui é esta consciência, que, porém (isto é essencial e devemos pedir a Nossa Senhora para entender isso) pode acontecer, como vi em tantas pessoas humildes e que seguem a Carrón como filhos, olhando como ele vive esta certeza, mesmo na Itália. Ao invés, quem, estando na Itália não a vive, não a viverá em lugar algum.
Rezem por mim e por nós. É o gesto mais belo de amizade e somente disso temos necessidade porque, com isso, Jesus nos dá o resto.
Com afeto.
Padre Aldo

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

“Morrer cantando, quero morrer cantando...”


Editorial do Observador Semanal

Carlos, antes de morrer, entoou seu último canto

A morte chega de repente, afirma o Evangelho, como um ladrão. Não envia um aviso, mesmo que, na maioria dos casos, os sinais de sua visita iminente sejam evidentes. Em nossa clínica, porém, ela tem uma presença contínua. Só em um dos últimos dias cinco pessoas morreram e, entre elas, apenas uma tinha mais de cinquenta anos. Os demais tinham entre trinta e quarenta anos, quatro eram vítimas do câncer e o outro de AIDS. A morte convive comigo vinte quatro horas por dia. Todavia, não me assusta. Porque sua presença me remete – e isso é algo maravilhoso – ao motivo último pelo qual vale a pena viver.
Vejo-a caminhando por todos os quartos da clínica, entre as camas onde, lentamente, meus filhos vão se apagando. Vejo-a pelos corredores, quando escuto o ruído já familiar das rodinhas da maca que acompanha ao necrotério o recém-falecido. Não existe esquina ou detalhe que não me recorde o que disse Cesare Pavese: “a morte virá e tomará teus olhos”.
Existe algo de mais belo do que uma companhia que, em cada momento, tira-o da anestesia que facilmente toma conta da vida? Haverá uma motivação mais humana do que uma companhia que desperta a razão com suas grandes interrogações e consegue que, a cada instante, assumamos o Infinito? Não existe aventura mais humana do que conviver com quem permite viver tendido em direção à eternidade.
Quando estou ao lado de um moribundo, escuto sua respiração difícil que, progressivamente, diminui de intensidade até acabar; quando vejo o moribundo com a boca aberta, como na pintura “O grito” de Munch, como que para, finalmente, permitir que a alma saia do corpo; quando vejo os olhos abertos, de par em par, fixando o desconhecido, o incognoscível, não consigo não me identificar com este meu filho que está se adiantando para preparar-me um lugar no Paraíso.
A última batalha da vida, a decisiva, é duríssima, porque, de seu êxito, depende toda a vida, depende a eternidade. E é bonito ver como a maioria absoluta dos que morrem perderam todas as batalhas da vida, mas ganharam a última e, com ela, a guerra. A morte convive conosco, parece a rainha entre nós, todavia é derrotada sempre porque Cristo Eucarístico, o “Pantocrator”, domina a clínica. Ele mesmo é que acompanha a cada um dos que morrem ao Paraíso.
Enquanto a batalha toma corpo e a morte parece prevalecer, é Cristo o protagonista que, diante de um mínimo de consciência do paciente que lhe permita dizer “SIM”, se apieda, o agarra pela mão e o leva consigo. A evidência deste fato é o rosto sorridente do cadáver. É impressionante ver como a pele, antes enrugada, torna-se jovem, os lábios, antes tensos pela dor, se transformam num sorriso celestial.
“Creio na ressurreição da carne e na vida eterna. Amém”. É o último artigo do Credo e é o mais esquecido mesmo pelos padres. No entanto, que sentido teriam os demais artigos se este último? São Paulo nos lembra disso em uma de suas cartas: se os mortos não ressuscitam, tampouco Cristo ressuscitou, e nós seríamos o mais loucos do mundo por seguir uma ilusão que não resolve o problema da morte. Porém, Cristo ressuscitou e nós também com Ele. Por isso, ao longo dos séculos, a Igreja sempre nos educou a uma familiaridade com a morte, aquela familiaridade que permitiu a São Francisco dizer: “louvado seja meu Senhor por nossa irmã morte corporal”. A experiência de Francisco acontece diariamente na clínica. Em seis anos, faleceram mais de setecentas pessoas, a maioria delas jovens, depois de um longo calvário.
Carlos, com um estilo de vida boêmio, de origem argentina, passou sua vida vagabundeando por todos os lados, cantando, farreando, distante de Deus. E como a todos os que pensam que a vida é uma farra, durante a qual se colecionam mulheres, se bebe, se faz o que se quer, quando alguma enfermidade chega, a única companhia que lhes resta é a solidão. E assim aconteceu que Carlos, trazido a nossa clínica por umas pessoas piedosas, se encontrou sozinho diante da morte. Porém, estando em nossa companhia, quer dizer, na companhia de Cristo, conheceu o cristianismo, encontrou a Ele.
O dia em que, depois de décadas longe dos sacramentos, pediu a confissão foi uma festa para ele e para todos. A morte perdeu sua cara feia e se tornou desejável, como para um noivo que, depois de muitas lutas, pode coroar seu sonho de amor. Desde aquele dia, retomou o violão e, ainda que todo carcomido pelo câncer, continuou tocando e cantando na clínica até ao último dia, tornando-se a alegria de todos. Alguns dias antes de morrer, compôs uma canção maravilhosa, através da qual expressou toda a sua paixão por Cristo e a espera gozosa de encontrá-Lo. Música e palavras suas.
O título de sua última canção descreve a modalidade com a qual se preparou para morrer e morreu: “Morrer cantando”

“Envolveu-me a escuridão, com seu escuro manto,
tive uma sensação de medo que fez meus passos tremerem
tratei de me afastar e fugir de suas mãos,
mas uma luz potente me arrebatou num choro.

Veio ao meu encontro e iluminou meus anos
voltei a dizer: Cristo, de olhar manso,
senti um amor diferente, a que abracei chorando,
depois da noite sei que existe algo.

Morrer cantando, quero morrer cantando,
Para encontrar a Cristo
quero morrer cantando.

Aquela escuridão que eu temia tanto
Era uma luz viva, era Deus que se aproximava,
um encontro amigo que me está dando
felicidade eterna, alegria e canto.

Já estou na luz e, com Cristo, a salvo
Meu futuro, um presente que me está passando.
Não fujam da morte, não temam seus dentes
Temam apenas perder-se sem Cristo, irmãos.

Morrer cantando, quero morrer cantando,
Para encontrar a Cristo
quero morrer cantando.

Recordo-me do momento, alguns dias antes de morrer, em que, com um esforço grande, colocando todas as suas energias, quis se despedir, presenteando-nos com este canto que testemunha a mudança de sua vida. Uma mudança que aconteceu graças ao encontro com Cristo, aquele Cristo que havia permanecido no fundo de sua memória, como um tesouro que espera ser reconhecido. Toda a clínica vibrou de comoção porque era evidente a vitória de Cristo.
Aquela mesma comoção que vivemos alguns dias atrás, quando Maria, uma mulher brasileira, sozinha, de origem italiana, que, antes de morrer pronunciando o doce nome de Jesus, pediu um sorvete. “Desejo saborear um sorvete antes de morrer”, nos disse. E, enquanto a enfermeira foi comprá-lo, lhe pedi: “Maria, daqui a pouco você vai estar no Paraíso. Peço que você cumprimente a Jesus, José e Maria e a Santíssima Trindade por mim”. E ela: “Sim, padre”. Uma coisa do outro mundo, neste mundo. Que alguém possa se despedir dessa maneira, quando cotidianamente até mesmo a palavra “morte” é censurada. Quando a enfermeira chegou, conseguiu saborear um pouquinho do sorvete, seus olhos já prontos para se apagarem se iluminaram e, pronunciando o doce nome de Jesus, se foi para o céu.
Sua vida tinha sido uma aventura dolorosa, como é a vida de todos aqueles que morrem na clínica, porém o final foi glorioso. O que pode haver de mais bonito do que morrer saboreando um sorvete e dizendo “Tu, meu Cristo!”? Sim, “Tu, meu Cristo!”, porque quando a pessoa chega aqui, normalmente, não conhece a Jesus. Porém, com o tempo, graças à ternura do pessoal (todos, sem exceção, sentem-se abraçados por Cristo), a liberdade de cada paciente adverte a urgência de pronunciar mesmo com palavras “Tu, meu Cristo!”.
É algo paradisíaco ver como, quando pronunciam o doce nome de Jesus, toda a sua personalidade vibra de comoção até às lágrimas. Não é que desapareça a dor, ou reduzamos a dose de morfina, mas é que o nome de Jesus, apenas pronunciado, faz o milagre de devolver a cada um a paz e a serenidade a que aspira o coração.
Amigos, para mim, é uma graça indizível ver, todos os dias, a potência do nome de Jesus... e sinto uma dor muito grande no coração quando vejo quanta falta de fervor há em nós, quão distantes estamos do que significa vibrar pelo simples fato de pronunciar o nome santo de Jesus. Para mim, é uma doçura e uma fortaleza únicas, desde o momento em que desperto até a hora de dormi, afirmar continuamente “Tu, meu Cristo!”, não apenas com o pensamento como também com a boca. Nesta consciência de ser propriedade de Cristo, brota a liberdade de aceitar minha dor e a dor de todos.
Olhando como morrem meus pacientes, com os olhos fixos no Mistério, para cima, para o Infinito, não posso não sentir que esta é a única postura totalmente humana, porque o homem é feito para o Infinito. Recentemente, me comovi quando Etsuro Sotoo, visitando nossa nova clínica, me disse: “Padre, é importante que o teto de cada quarto não seja branco, mas como o belíssimo céu do Paraguai, azul com linhas de nuvens, para que o paciente, quando estiver por morrer, esteja olhando para o céu, sinal do que é o Paraíso”.
E é verdade, porque todos morremos de morte natural, olhando para o Infinito; e quando o Infinito, que se fez carne, é a vida de quem assiste o moribundo, o moribundo mesmo, ao escutar “Tu, meu Cristo!”, mudará sua atitude, às vezes cheia de angústia, em uma entrega total a Cristo e morrerá saboreando a paz de quem alcançou a meta depois de tanto navegar. 
“Sob o denso azul
do céu, uma ave marinha voa;
nunca descansa, porque todas as imagens têm escrito:
mais além”.
Como são verdadeiros estes suspiros dramáticos de Montale, e que intensidade de esperança vibra em nós só de ouvi-los! Meus pacientes tocam já com a mão aquele “mais além” a que tudo remete.

Padre Aldo

* Extraído do Observador Semanal, do dia 03 de setembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 15 de agosto de 2010

Cartas do P.e Aldo 158





Asunción, 15 de agosto de 2010.

Caros amigos,
não posso não compartilhar com vocês a comoção do milagre que aconteceu hoje na clínica.
Os dois jovens que vocês veem nas fotos se casaram. Ele, 28 anos, é doente de AIDS e tem câncer. Ela, infectada por ele, tem AIDS. O que nós teríamos feito? Não apenas não nos teríamos casado, como, se fôssemos ela, o teríamos odiado, visto que ele a contagiou.
Vocês entendem, agora, o que quer dizer - como ela me dizia hoje - levar a sério o próprio coração, critério infalível e objetivo para viver moralmente bem, como sempre nos recorda Carrón?! Vocês entendem o que quer dizer encontrar Cristo, dizer "TU" a Cristo?! Dá para entender o absurdo do divórcio, quando se vê essa bela garota dizer sim para sempre para o rapaz que a contagiou, porque ele é Cristo, mas antes de mais porque, como ela me disse, "eu o amo". Agora, se casam apenas para se ajudarem, enquanto a doença o permitir, a amar a Cristo! Amigos casados, chega de falação: este é um fato, este é o matrimônio, esta é a virgindade.
Boas férias
Padre Aldo

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Cartas do P.e Aldo 149

Asunción, 16 de junho de 2010.

Caros amigos,
Esta noite, enquanto eu passava com o Santíssimo Sacramento diante de cada doente, chegando ao leito de Ermínia (uma jovem bela mulher, mãe de duas crianças, gravemente doente de AIDS, câncer e vítima de uma terrível depressão), depois de tê-la abençoado com Jesus, acariciando-a com ternura, lhe disse: “Ânimo! Jesus ama você, quer que você sorria”. Uma frase simples, mas dita com a consciência daquele “Tu” que domina tudo, de que fala Carrón nos exercícios (refere-se aos Exercícios Espirituais da Fraternidade de Comunhão e Libertação; ndt), mudou o rosto desta minha filha. Ela me respondeu com uma ternura tipicamente feminina, olhando-me nos olhos: “Obrigada”. Quis contar isso para vocês porque aquele “obrigada”, dito devagarzinho, continha toda a ternura de Cristo.
Joana é uma jovem que viveu na rua e, de relacionamentos ocasionais, teve dois filhos. Tem 26 anos, é doente de AIDS. Chegou “desfeita”: queria morrer, recusou comida etc. Dias imprevisíveis. A única coisa que eu podia fazer foi fazer aquilo que a pecadora fez com Jesus, quando entrou na casa de Simão. Eu a acariciei, beijei com ternura, alisei seus cabelos pretos, disse a ela que a amo. Vi nela a ternura do Mistério. Depois, aconteceu o milagre: à proposta de confessar-se, me respondeu “sim”. Daquele momento em diante tudo mudou. Fez a comunhão, voltou a comer e a sorrir. Ela também é dependente de droga, mas a caridade, a ternura fez o milagre. Uma vez mais aquele “Tu, meu Cristo”, que fez uma coisa só do meu eu com Ele, me mostrou que o problema é apenas a fé. Desejo a todos, meus amigos, que nunca duvidem da Sua ternura, mesmo se acontecesse o pior terremoto.
Um rapazinho da Casinha de Belém é insuportável. O pensamento de mandá-lo embora foi se aninhando na minha mente. A diretora da escola me disse: “Padre, mas este menino é Jesus e, então, olhemos para ele na sua totalidade”. Como dizer: não vê o caminho que ele fez durante estes dois anos? Bastou aquele “o menino é Jesus” para que a minha mente revesse a possível decisão e mantê-lo comigo ainda mais. Um sinal claro do que é uma amizade entre educadores.
O grande escultor da “Sagrada Família” de Barcelona veio me encontrar para ver como finalizar a nova clínica. Que comoção! “Esta obra é maior do que a Sagrada Família porque, aqui, eu vi Cristo que morre e ressuscita. Padre, não faz o teto dos quartos de branco. Os doentes, em particular os moribundos, olham para o teto, olham para o alto e, por isso, o teto de cada quarto deve ser da cor do céu, com sutis nuvens brancas, assim como é belo o céu do Paraguai. O doente tem necessidade de ver sempre o céu com algumas nuvezinhas brancas e, quem sabe até, com o sol que nasce. Padre, eu o ajudarei a pensar o teto de cada quarto, olhando para este belíssimo céu paraguaio”.
Depois, ele me explicou como deseja terminar a clínica, explicando uma frase de que eu gosto muito, de São Paulo: “A natureza geme as dores do parto, esperando a ressurreição dos filhos de Deus”. De repente, se mostrou a genialidade deste homem. De fato: meu Jesus, quem sou eu para que Sotoo tenha vindo, de propósito, visitar-me, encontrar-me? Nós nos havíamos conhecido junto com Marcos, Cleuza e Julián de la Morena, no ano passado, em Barcelona. Foi suficiente um olhar cheio de ternura de Cristo para nos tornarmos amigos por toda a eternidade. Assim como é cada dia com os meus doentes, velhos e crianças, vítimas das violências.
Há uma última graça recebida hoje que não posso omitir. Acompanhando Marcos e Cleuza ao aeroporto (em quinze dias, nós nos vimos três vezes – duas no Brasil e uma aqui... potência do afeto por Carrón, da paixão por viver aquilo que ele nos testemunha e do grito humano que trazemos no coração), eles me dizem: “Esta não é mais a clínica do padre Aldo... esta é a nossa clínica. Estas não são mais as obras do padra Aldo e de Paolino, são as nossas obras”. Que comoção, para mim, e que resposta para quem se preocupa com o que acontecerá quando eu morrer!
Amigos, destes dias que passei com eles terei a oportunidade de falar depois... porque o segredo do milagre que vivemos é fruto apenas da nossa liberdade que vive uma estreita filiação com Carrón. Sem esta posição, o carisma de Dom Giussani se tornaria velho, morreria e não seria capaz de gerar um povo, filhos novos como está acontecendo por aqui. Nós nos encontramos apenas para aprender a olhar para o Carrón, como ele vive o carisma que Giussani lhe confiou. Garanto a vocês que cada instante é a experiência do homem novo.
Um abraço a todos,
Padre Aldo

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Cartas do P.e Aldo 147

Asunción, 9 de junho de 2010.

Caros amigos,
Que bonito o artigo de Carrón que foi publicado no Observatório Romano de hoje (leia a íntegra do artigo, em português, clicando aqui; ndt).
Enquanto o “devorava”, pensava no diálogo que tive, ontem à noite, com minha filhinha Verônica, de oito anos, que me havia pedido para conversar. Ela ficou órfã porque os pais morreram de AIDS na minha clínica e, antes de a mãe morrer, me confiaram Verônica como minha filha.
Verônica está diante de mim, sentada. Olha-me com os olhos úmidos e me diz: “Estou com saudade da mamãe, sinto sua falta. Estou triste e não sei por quê”. Peço-lhe que tente responder o “porquê”. Depois de alguns minutos, chorando, me disse: “porque sinto que me falta alguém e não sei quem é”.
Imaginem vocês a minha surpresa e comoção. Somente o gênio, somente a criança provada por tanta dor é capaz desta intuição. Que soco no estômago para nós burgueses, anestesiados pela carreira, pelo sucesso, pelo trabalho! E no meio disso, Carrón nos reconduz, em cada momento, a Verônica... inclusive a nós padres, que pensamos em educar à força de uma psicologia ou da psicanálise, ou insistindo sobre as consequências éticas ao invés de nos mantermos diantes do Mistério, tal como fomos provocados pelo caso Eluana, pela questão dos crucifixo, pelo artigo de Natal e o belíssimo juízo “Feridos, voltamos a Cristo”.
Sem este juízo estaríamos terrivelmente sozinhos, vítimas das regras (mesmo que importantes) e cheios de medo, especialmente nós que vivemos 24 horas por dia com crianças. Porém, Verônica, com seus oito anos, me fez reviver o percurso deste último ano, fazendo-me entender que ou retornamos à originalidade do nosso coração, ou nos descobriremos tristes e perdidos.
Partilhei, no Brasil, alguns dias com Marcos e Cleuza e os responsáveis últimos da América Latina. Uma festa cujo centro foi o drama de Verônica, com suas perguntas... mas também a pergunta sobre o que significa seguir Carrón. Cleuza dizia: “só se, em nós, existir uma célula de Giussani, poderemos entender o que significa o movimento, e então viver como filhos de Carrón”.
Se for o contrário disso, o Movimento será sempre algo eficaz agora que, porém, tornará a vida triste, metendo-nos no grupo dos ex-combatentes, dos aposentados... Talvez até com muitas medalhas, porém tristes e nostálgicos.
É mesmo belo o desafio.
Ciao
Padre Aldo.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Cartas do P.e Aldo 142

Asunción, 30 de abril de 2010.

Caros amigos,
vários me têm perguntado por que eu não escrevo mais como antes. A resposta é muito simples: é sempre mais necessário que nos eduquemos a seguir e a levar a sério o que Carrón nos ensina com o seu modo de viver o carisma de Giussani, enriquecido com o seu dom pessoal de entrar no coração da realidade, fazendo-nos colher toda a espetacular positividade que contém. É como se, olhando para ele, para a sua liberdade, para o seu modo de estar diante de Cristo, se percebesse sempre mais que, também para mim, é o mesmo.
“Olhar Cristo no rosto”: eis que nesta afirmação está contido todo o meu viver, estar diante dEle da manhã à noite. Estar diante dEle quando me levanto com mau humor e imediatamente preciso me colocar de joelhos para olhar no rosto a alvorada que desponta com um sorriso. Estar diante dEle para sair, fazer minha corridinha de meia hora para permitir que minha diabetes não brinque comigo... estar diante dEle rezando, possivelmente, os quatro mistérios do rosário para poder, mesmo que distraidamente, gozar da Sua vida tão bem sintetizada no rosário. Estar diante dEle tomando o café e, depois, correr, às 7h da manhã, para pegar as minhas crianças e levá-las para a escola, depois de ter dado um beijo em cada um delas - que tanto esperam - e depois de ter rezado com elas as orações diante de Nossa Senhora. Estar diante dEle quando, deixadas as crianças na escola, corro para a clínica onde, às 7h15, todos os dependentes da Divina Providência, a Chefe do hospital, esperam pela meia hora de adoração, dividida entre a procissão e a comunhão aos doentes, as leituras do evangelho e um pensamento que desperte em cada um a mesma posição do coração que há já mais de uma hora e meia enche o meu. Estar diante dEle quando me ajoelho diante de cada doente, dando-lhe um beijo no rosto e fazendo-lhe um carinho. É o momento mais bonito do dia: com a Eucaristia nas mãos, de joelhos diante de cada paciente. É reviver, em cada momento, o Mistério da paixão, morte e ressurreição. Este Mistério tão concreto do meu cotidiano, um cotidiano que começa cedo e termina tarde, quando, depois de ter dado um beijinho de boa noite nas minhas crianças (nem sempre consigo ir à Casinha de Belém, porque sempre tem um imprevisto), retorno para a clínica, para saudar as minhas pequenas hóstias brancas (Vítor, Cristina, Celeste, Aldo, Mário), frequentemente ainda acordados. Beijo-os, me ajoelho diante de cada um e, depois, tocando o rosto de um por um, faço o sinal da cruz. São o meu Jesus, o que mais sofre e que mais me conforta. Só depois de ter saudado este Crucifixo que são os meus pequenos doentes, é que saúdo Jesus Eucarístico e vou para a cama, tentar dormir... porém, olhando para Ele.
Vocês sabem quantas vezes eu retomo esse trecho da Escola de Comunidade no qual Giussani fala de olhar Cristo no rosto, e quantas vezes leio, releio as coisas que Carrón nos diz.
A surpresa mais bonita (vocês podem ler isso em Tempi) foi a visita de Marcos, Cleuza e Bracco (responsáveis do Brasil) na semana passada. Eu tinha voltado de uma longa viagem e todos sentíamos um grande desejo de nos vermos. Assim, eles pegaram o primeiro avião e vieram para cá. Eu estava muito cansado e precisava vê-los, estar com eles, porque, como diz Cleuza, “frequentemente, na vida, podemos nos encontrar no fundo de um poço. Então, você tem duas possibilidades: ou olhar em volta e se sentir sufocando, ou levantar os olhos e ver aquele metro quadrado de céu azul que lhe faz pedir, gritar por ajuda”. E, de fato, aconteceu assim: eles foram, para mim, aquele pedaço de céu azul. Mas, não porque tivéssemos feito um dia de retiro espiritual, mas pelo simples fato de que nos fizemos companhia, ajudando-nos com o texto de Carrón, publicado no jornal Repubblica, na Páscoa: “Feridos, voltamos a Cristo”. Todos somos feridos e, por isso, somos necessitados de voltar àquele Tu, àquele estar diante dEle.
Foi muito bonito, porque, vivendo com eles o que eu vivo todos os dias, foi como entrar ainda mais no coração da questão: a paixão pela glória de Cristo. E além do mais foi bonito porque mesmo os meus confrades vibram sempre mais com esta beleza. Porém, em Tempi, vocês vão encontrar todos os detalhes daqueles dias.
No dia primeiro de maio, a clínica faz 6 anos. Acompanhei mais de 700 pacientes para a morte entre os braços de Jesus. Em seis anos, a morte se tornou minha amiga e não tem mais o rosto feio como sempre eu a vi. Pensem: é o momento no qual você está para encontrar Jesus, aquele Jesus pelo qual eu acabei aqui, aquele Jesus pelo qual, graças a tantas misérias vividas, aprendi a tocar com a mão o significado do Horto do Getsemani, aquele Jesus que se serviu e se serve de um pobrezinho como eu, com um temperamento único e, frequentemente, com uma emotividade tão variada, mas que está bem ancorada na certeza de que nenhum problema é maior do que a resposta. Que nenhum problema é maior do que Jesus.
Uma enfermeira me dizia ontem: “O que move a minha vida é o milagre: tudo é, para mim, um milagre... do modo com o qual tiro uma fralda dos idosos ao modo como os limpo etc. A fé não é dizer ‘ou conta só até aqui’, mas a certeza de que Deus cumpre e, por isso, pede ajuda para você. Se eu estou aqui é porque o Senhor me quer aqui. A fé é a esperança que se cumpre. Por exemplo, quando chegam os mendigos, alguém poderia dizer: ‘Mas, estes não mudarão nunca, é inútil querer educá-los’. Porém, para mim, não é assim, porque tenho a certeza que nasce da fé de que, com o meu afeto, a esperança que algo lhes aconteça se tornará verdadeira. De fato, depois de meses, aprenderam a usar o banheiro, a aceitar os remédios, a ficar juntos na mesa usando mesmo o guardanapo. O milagre é o fruto da insistência da fé que é a esperança. Depende de mim que isso aconteça, porque se a minha liberdade não deixa uma fissura aberta para a graça, nem mesmo Deus pode fazer alguma coisa”.
E é belo ver como estas 150 pessoas que trabalham aqui, dependentes diretos do Pai Eterno, aprendam a viver assim o trabalho, aprendam a estar diante de Cristo e vejam, cada dia, os sinais da Sua Vitória. Chegam cheios de confusões e, no tempo, educados a estar diante dEle, mudam, se tornam humanos.
O mês de maio está às portas, e eu peço a vocês que rezem a Nossa Senhora para mim e para os meus doentes e para todos este povo que vive e sofre aqui.
Uma nota final: ontem, como a cada 15 dias, encontramos os doentes de AIDS para ficar com eles, porque o homem é uma companhia. Este é um índio, transexual com cabelos (tingidos) louros. É meu afilhado de crisma. É um daqueles que, graças ao afeto e aos remédios, de moribundo que era recomeçou a viver. Pois bem, veio de longe, tão pobre que disse: “Para vir ficar com vocês, em companhia, peguei emprestado um par de sapatos, porque, há meses, que ando descalço, porque não tenho nada, muitas vezes nada nem para comer”. Que comoção! É verdade: quando se há uma pergunto grande na vida, se busca uma companhia adequada e, não havendo sapatos para alcançá-la, pede-se emprestado a quem tem. Pergunta pequena, homens anãos. Pergunta grande, encontram-se gigantes.
“Feridos, buscamos Cristo”... levemos isso a sério... se não se está ferido... não se pede sapatos emprestado...
Com afeto,
Padre Aldo

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Fazer o Cristianismo 03

"Se uma pessoa não entende o que é a vida, não chega nunca a este nível de desafio [refere-se à resposta dada por um professor a um jovem que lhe perguntou por que ele o convidava a um determinado gesto realizado por CL: "Porque você tem uma ferida", referindo-se ao fato de que seu pai morrera, alguns anos antes, vítima da AIDS. Daquele momento em diante, o aluno não parou mais. E o professor terminou seu testemunho dizendo: "Por que digo isso? Porque a companhia não deve nunca se tornar uma anestesia para a ferida"; ndt]. A pessoa deve ter uma familiaridade com a vida para isso. Na medida em que a pessoa vive a vida, tem uma familiaridade, pode saber onde se encontram de verdade os nós para serem desfeitos. Então, é inútil insistir. Como quando você prende o pé e lhe dizem: 'Corre! Corre!'... A questão é soltá-lo, porque então conseguirá correr! Encontrar a modalidade - se o Senhor nos dá a luz - para fazer o movimento justo para soltá-lo: este é o verdadeiro desafio! Porque então você conseguirá correr. [...] O que isso quer dizer? Que o nosso movimento não nasce do êxito! Nasce do termos sido olhados assim! A questão é que, pelo contrário, tantas vezes o nosso movimento nasce da tentativa de sucesso. E quando não acontece segundo as nossas medidas, paramos de tentar. Porque tínhamos um projeto! Os jovens, que são mais inteligentes que nós, sabem disso muito bem. A questão é: qual é a fonte do movimento? Se eles percebem que é um movimento verdadeiramente gratuito, como estamos aprendendo na Escola de Comunidade [refere-se ao texto que, no momento, está sendo trabalhado nos encontros de Escola de Comunidade no mundo inteiro: o trecho sobre a caridade do livro de Luigi Giussani, "É possível viver assim?"; ndt], que é de fato por puro amor! Porque é este que comove o outro. Tenho aqui comigo um trecho de um texto escrito pela pianista russa Maria Judina: 'Exatamente no meu grupo tinha um chato, um jovenzinho de oito ou nove anos, praticamente sem família, que vivia junto com parentes de quem não gostava e por quem não era amado, de nome Akinfa; era antipático, enchia a paciência de todos, tirava sarro das crianças judias, brigava e assim por diante. Todos nós, e sobretudo eu que tinha uma responsabilidade maior com ele, o exortavam com a palavra e com o exemplo [não apenas com a palavra!], mas uma vez Afinka ultrapassou todos os limites: bateu em um de seus companheiros, xingou os adultos, cometeu um furtozinho e, assim, foi decretada a sua expulsão. Quando veio o momento de cumprir a condenação, o momento em que iria embora, eu, não sei como, desatei a chorar, e neste momento aconteceu o segundo nascimento de Afinka: desatou a chorar também, pediu perdão a todos, devolveu o que havia furtado e, daquele momento em diante, começou a me seguir sempre para onde eu ia como um cãozinho fiel, explicava a todos que, na sua vida, nunca tinha visto uma sua professora chorando por um aluno, que chorasse, para dizer com as suas palavras, pela alma e pela vida de uma criança mimada; esse era exatamente o sentido do seu maravilhamento e do seu desejo de se recolocar no caminho'. Isto não é para os jovens, mas para nós. É para nós! Então, quanto mais isso é familiar na nossa vida, tanto mais nos damos conta de que não é um problema de idade, de técnicas, mas é o mesmo para cada um."
(CARRÓN, Julián. Fare il cristianesimo. Tracce. 2010, p. 4)

sábado, 3 de abril de 2010

Cartas do P.e Aldo 140





Asunción, 29 de março de 2010.

Caros amigos,
Na Escola de Comunidade se fala da caridade como “dom comovido de si”. Hoje, Domingo de Ramos, a liturgia nos permite tocar com a mão esta verdade, que só pode se tornar carne no relacionamento consigo mesmo e com os outros.
Mando-lhes três fotos: são a descrição concreta da caridade como dom comovido de si. Na cadeira de rodas está a pequena Lourdes, com metástases em todo o corpo. Tem nove anos e é a segunda filha de 5 irmãos. Move apenas os olhos, sorri sempre, levanta a mão direita com a qual tenta levantar também o braço esquerdo. Chegou aqui para morrer, segundo os médicos, porém – por graça de Deus – não se diz que isso possa acontecer. Posso dizer – entre parênteses – que muitos dos doentes “terminais” que vieram para cá, agora estão em suas casas ou, no caso daqueles abandonados por causa da AIDS, estão na nossa fazenda. Milagre da caridade, como dom comovido de si. A pequenina, a minha Lourdes (que me ama tanto), é assistida pela jovem mãe 24 horas por dia. Um dia, perguntamos a Lourdes: “Você gostaria de receber Jesus, fazendo a primeira comunhão?”... e o seu olhar se iluminou. Preparando-a para a primeira comunhão, nos demos conta de que queria um presente: que os seus pais recebessem o Sacramento do Matrimônio. A Irmã Sônia falou com eles que, diante do pedido de sua filha, anuiram. E assim, hoje, Domingo de Ramos, aconteceu o milagre. Chegado o momento do “sim”, a pequena Lourdes começou a chorar de comoção, de felicidade. Tentava levantar a cabeça para olhar no rosto os seus pais, mas não conseguia. Os seus olhos brilhavam, comovidos e felizes. Uma vez mais, colhi duas coisas: a caridade é dom comovido de si e, se o grão de trigo não morre, não dá fruto. O martírio de Lourdes é a origem da piedade divina que permitiu dar o voto sacramental àquela união. Lourdes deu a vida pelos seus pais.
Como eu gostaria, caros amigos, que vocês pudessem apenas imaginar a alegia da pequena, dentro de toda a sua dor, no ouvir o “sim” para a toda a vida daquele jovem pai e daquela jovem mãe!
Quando chegou o momento da sua pimeira comunhão, vocês deveriam ver o rosto de Lourdes. O modo com o qual recebeu Jesus é indescritível. A mim restaram as lágrimas e a incapacidade de falar. Vocês entendem o que quer dizer “dom comovido de si”? O que quer dizer “eu sou Tu que me fazes”? O que significa “olhar Cristo no rosto”? Olhem as fotografias: é Jesus que, no início da Semana Santa, nos faz partícipes da Sua glória. Como eu gostaria que todos pudessem entender também a beleza do Sacramento do Matrimônio, pelo qual a minha pequena Lourdes deu a vida para os seus pais! Olhando para ela, eu pensava nos meus 32 filhinhos da Casinha de Belém que, a cada dia, me enchem de cartinhas que dizem a coisa mais bela e simples do mundo: “Para o meu papai Aldo: amo você, porque você é o melhor papai do mundo”, com um coração vermelho desenhado. Alguém, com razão, poderia dizer: “Exagerado!”. Mas, para quem não teve ninguém ou foi violentado, percebe logo que a virgindade é a única forma de paternidade e torna o homem capaz de um amor impossível sem esta graça.
Boa Páscoa, caros amigos.
Confio-me às orações de vocês.
Padre Aldo

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Cartas do P.e Aldo 133

Asunción, 27 de janeiro de 2010.

Caros amigos,
Quantas vezes Giussani nos repetiu que o Movimento é uma amizade, uma companhia guiada ao destino... e assim Carrón define também: “rostos tendidos ao Infinito”. A graça de experimentar todo dia esta verdade está na origem de um Acontecimento que nunca havia ocorrido antes na América Latina: 900 pessoas do Brasil, da Argentina, do Paraguai e do Equador se encontraram para compartilhar juntos um gesto simples como são as férias de verão. A tarefa de descrevê-las vou deixar a outros, porém, cabe a mim o desejo de compartilhar com vocês algumas coisas:
1. Na origem deste fato que derrubou todas as fronteiras do continente foi o levar a sério a amizade, as provocações de Carrón. Deste trabalho desabrochou uma amizade operativa, concreta, apaixonada, entre alguns de nós: Marcos, Cleuza, Julián de la Morena, eu e outros. Quando Carrón, em outubro de 2008, nos disse que precisábamos olhar para algumas pessoas e lugares, Marcos e Cleuza foram os primeiros a pegar o avião e vir até aquí, surpreendendo-me porque eu não me havia dado conta ainda do que estava acontecendo. Desde aquele dia – 17 de novembro de 2008 – o olhar, para mim, cruzou com Marcos e Cleuza (Julián de la Morena já era um velho conhecido e amigo)... também eles definidos por aquele “Tu” que nos faz em cada momento. É isso: tudo partiu de uma dramaticidade que, em cada instante, nos faz vibrar com uma febre de vida que se tornou um imã que nos permite nos vermos a cada 15 dias. Para fazer o quê? Para contarmos uns para os outros como estamos seguindo a Carrón, os passos que estamos fazendo, as dificuldades que encontramos, as perguntas que a Escola de Comunidade suscita em nós. Uma amizade como a dos apóstolos com Jesus. Vocês sabem que comoção é estar juntos “olhando Jesus no rosto”, sem nunca tirar o olhar dEle?! Percorremos milhares de quilômetros para olhar juntos no rosto de Jesus, para poder dizer-Lhe pessoalmente “Tu, ó meu Cristo”. Trata-se de entrar, cada dia mais, em uma intimidade com Ele, da qual nasceram as férias em Iguaçu, da qual nasce aquele ímpeto que nos leva do México à Argentina, chamados por outros amigos desejosos de dizer “Tu” a Jesus.
2. E, assim, um dia, com Julián de la Morena, nos dissemos: “Por que não propomos o que acontece conosco – esta familiaridade com Deus e tudo o que vivemos – para o continente? Nunca podíamos esperar 900 pessoas... sem contar aquelas que, de cada país, quiseram vir, mas não puderam por causa da distância e do custo. Somos um grupo de amigos que dizem aos outros: “Vinde e vede”; como, naquele dia, no rio Jordão, um grupinho de amigos desejosos de compartilhar o significado do “olhar Jesus no rosto”, dizer-Lhe “Tu, ó meu Cristo”. E assim aconteceu o milagre.
3. O milagre de fazer juntos o percurso do conhecimento, da fé, trabalhando sobre a mensagem de Natal de Carrón. Trabalhar significa verificar também dentro da confusão (não faltavam nunca... e, depois, estávamos na América Latina!) o que significa fazer experiência, prestar contas com a realidade (900 pessoas... 40º, clima tropical, com o ar condicionado que mal funcionava), olhar a nossa humanidade com simpatia, saborear a beleza da liberdade etc. É um trabalho, não algo confeccionado. Provocações contínuas e não respostas imediatas e baratas. Tratava-se de fazer o percurso em primeira pessoa, em cada coisa. Gestos essenciais e o cotidiano continuamente verificado com o coração.
4. A maravilha com a qual cada um voltou para casa: “Finalmente o nosso coração vibrou como há vinte anos, quando dom Giussani vinha à América Latina. Aquele que era, para nós, um velho desejo, um sonho, tornou-se realidade”. Não mais latino-americano como coração, como identidade, mas Ele. Quem poderia imaginar colocar os argentinos junto com o resto??? Só um Acontecimento que nos arrastou a todos. Hoje, o continente é uma febre de vida... São homens que se deslocam... tornamo-nos como os pastores, como os Magos naquele dia. De fato, as cascatas do Iguaçu, belíssimas, foram como que uma gota d’água se comparadas com tudo o que aconteceu. Voltamos para casa certos de que podemos finalmente tratar o Mistério como um “Tu” e, por isso, não mais pequenas ilhas, mas uma grande companhia com os olhos escancarados para o Infinito. Pessoalmente, fiquei comovido, porque “toco com a mão”, a cada dia, o fato que, quando o coração é de Cristo, a vida ressurge. E bastam quatro amigos apaixonados por Jesus para que aconteça um “terremoto”, mas um terremoto que vira de cabeça para baixo a vida, como aquele dia, nas margens do Jordão, quando João e André encontraram Jesus. E, além do mais, a novidade, graças a Carrón, de experimentar que o Movimento não é um “club” que faz gestos, iniciativas, obedece a um chefe, mas a liberdade do “eu” que, tocada e comovida por uma ternura, por um olhar, começa a olhar no rosto o Mistério. Assim, agora vejo realizado o meu desejo: também os meus doentes de AIDS, homossexuais ou travestis, os meus velhinhos e as crianças são movimiento. Não somos mais apenas eu e eles. “Agora – me dizem –, o que você vive é possível também para nós, que não podemos participar de nenhum gesto, que não podemos pagar o dízimo, que não podemos nunca tirar férias... Também para nós que fizemos muita porcaria, para nós cujo fim é próximo”. Meu Deus, precisei esperar quase 40 anos para entender, graças a Carrón, que este é o Movimento, como sempre Giussani (com o seu olhar aberto a 360º e o seu abraço) nos educou a vivê-lo. Vocês entendem que, talvez, tenhamos feito do Movimento um club? Agora – que belo! – os 100 mil de Marcos e Cleuza, as minhas crianças, os meus doentes, os meus mendigos, os meus moribundos finalmente descobrimos ser um corpo vivo, um Movimento! Não apenas, mas os políticos, o Vice-Presidente (agora, da família), centenas de pessoas ricas e pobres, os “Zaqueus”, as prostitutas (como no tempo de Jesus), são uma grande família comovida e que diz: “Mas, aquilo que Carrón escreve e diz é o que o nosso coração desejava e buscava”. Por isso, trago dentro de mim a certeza que, se uma obra, um hospital (por exemplo) não existe para nutrir o coração do homem, é melhor fechá-lo, porque o fim do hospital é que o homem possa dizer “Tu, ó Cristo”. E isto depende de mim, porque a graça opera sempre. Mas, se para mim – médico, padre, enfermeiro ou quem quer que eu seja – a familiaridade com Cristo é morna (e isto é possível ver), por que fazer um hospital? Para iludir as pessoas, postergando a morte alguns anos. Um hospital serve apenas se um homem que trabalha nele ou está internado nele tem a graça de poder dizer “Tu, ó meu Cristo”. No meu hospital chega de tudo. Agora, há um homem N.N. (nomen nescio = nome desconhecido; ndt), mas também a ele foi dada a graça de dizer “Tu, ó meu Cristo”. Não fala, tem os olhos perdidos no vazio e, assim, conferi-lhe o batismo sob condição. Mas, depois, tem os que se casam, os que recebem os sacramentos, quem volta para a fé católica. Há uma bela doutora menonita (adepta do Menonismo, doutrina anabatista fundada por Meno Simonis, no século XVI; ndt), de nome Angélica, que está participando da Missa. Ou seja, tudo é estruturado para que a liberdade diga “Tu, ó meu Cristo”. Milagre do diretor de saúde: “O Santíssimo Sacramento exposto trabalha 24 horas por dia”. É apenas uma questão de fé, mas de um fé que nos leve a dizer a uma árvore “arranca-te daí e planta-te no mar”. É tudo uma questão de fé, um grãozinho de fé, como disse Jesus no Evangelho. Pensem que Cleuza se comprometeu a falar de Jesus a pelo menos 10 pessoas por dia. Tentemos também nós.
Padre Aldo