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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Caros professores, foi assim que vocês “mataram” a sua autoridade


Por Giovanni Gobber

Autoridade é uma palavra com muitos sentidos. Pela origem, vem da palavra latina auctoritas, que indicava capacidade de fazer crescer, portanto “prestígio, estima”: vinha de auctor, que denotava “quem faz crescer, quem é fundador”. Na base havia o verbo augere, ou seja “aumentar”. No dicionário etimológico de Ernout e Meillet, augere goza da máxima atenção, visto que deu origem a um grande número de derivados, entre os quais aparece o nome dos augures, os sacerdotes que escrutavam os fenômenos naturais, como o voo dos pássaros, e formulavam previsões, chamadas augurium, porque se acreditava que fossem favoráveis. Os antigos precisavam de auxilium, ou seja, de uma ajuda que “faz as forças crescerem”. Neste âmbito é que se coloca a experiência da auctoritas: a palavra tem valor positivo e atesta a confiança no futuro, que é visto como crescimento, desenvolvimento e é promessa de um bem.
Na época moderna, por causa de uma metonímia (que transfere a palavra de um elemento a outro no mesmo domínio), autoridade se transferiu da capacidade para o indivíduo que tem a capacidade. Dessa forma é que se passou a chamar como autoridade também a pessoa que reveste um alto cargo público (uma posição que confere o poder de “fazer crescer”, de “construir”). Trata-se de um uso de matriz francesa, que remonta ao tardo século XVIII. Uma passagem ulterior tirou a relação com os indivíduos: autoridade, assim, passou a designar o poder legal de gerir os comportamentos sociais. O nexo com o antigo verbo augere e com o prestígio gozado pelos auctores passou a ser opaco. Além do mais, este vínculo se percebe ainda hoje, mesmo que levemente, no adjetivo autoridade (autorevole) e no substantivo autoridade (autorevolezza). O elemento –evole é um derivado do latim –abilis: auctorabilis designava quem é capaz de ser auctor.
Como se pode notar, a moderna autoridade (autorevolezza) está próxima, pelo sentido, da antiga auctoritas: é um prestígio moral, uma estima que se difunde na comunidade e não depende de uma imposição, mas de um compartilhamento. A autoridade era dotada de um fundamento razoável: era reconhecida porque se viam os seus efeitos.
Outros tempos, outros costumes. No mundo moderno, se rompeu o vínculo entre moral e razão.
Consequentemente, autoridade denota sobretudo aquilo que impõe. O bem futuro não é considerado. A ênfase recai sobre a obrigação no presente. A educação não sabe o que fazer com esta autoridade: impondo a obediência não se “faz crescer”; no máximo, se comprime, se reprime.
A crise da autoridade no mundo moderno talvez esteja ligada ao divórcio com a autoridade (autorevolezza). A rebelião surge onde a autoridade indica apenas imposição, obrigação incapaz de mostrar um bem futuro que confira sentido à obediência. Pelo contrário, lá onde age um indivíduo ou um exemplo de autoridade (autorevole), se percebe a necessidade de obedecer. Não se sente como uma obrigação, mas como uma necessidade de seguir quem tem autoridade. Uma disciplina por demais rígida é bem difundida na prática esportiva: quem se submete a treinamentos duros e monótonos encontra uma razão naquilo que faz – e é a recompensa do sucesso futuro. O mesmo vale para quem enfrenta “sessões” exaustivas na academia, enquanto enfrenta a dificuldade de se preparar para provas.
A autoridade depende do bem que pode suscitar. Se não se vê um bem futuro, não se encontra motivo para seguir quem chama para a obediência. Muitos indivíduos – muitas das vezes jovens – recusam a autoridade por este motivo. Outros indivíduos – menos jovens que os primeiros – não aceitam a recusa da autoridade. Estes, por sua vez, não têm autoridade (autorevolezza), não têm a capacidade de mostrar o bem futuro. Há também quem contribuiu, no passado, para a destruição do princípio de uma autoridade fundada sobre um bem do fundamento razoável, e agora se lamenta porque a autoridade não é mais seguida. 
Resta a possibilidade de construir relacionamentos humanos construídos no encontro com pessoas de carne e osso, capazes de “fazer crescer”, ou seja, de educar e ter esperança no futuro. Convém voltar “a crescer”, dizem. Para isto, não são necessários personagens “sóbrios”, austeros, paladinos do rigor, dispensadores de sermões vazios. Para crescer é preciso gerar humanidade. E isto é possível na medida em que se parta da caridade guiada pela fé. O futuro não é apenas dos usuais Übermenschen, para quem tudo é permitido e nenhum veto parece ser fundado.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 16 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Cartas do P.e Aldo 207


Asunción, 10 de outubro de 2011.

Caros amigos,
Nesta noite, fiquei mais tempo do que o normal olhando meus filhinhos doentes, particularmente Victor. Desde quando nasceu está na mesma caminha. Não fala, não vê, não escuta. Parece totalmente ausente da realidade. Depende do outro em tudo. Não tem caixa craniana e seus olhinhos, há tempos, estouraram. Só pode ser colocado em duas posições: deitado com a barriga para cima e, de vez em quando, delicadamente deitado sobre um dos dois lados. As escaras de decúbito, tratadas o tempo inteiro, junto com o gemidozinho que o acompanha, mostram o quadro físico que vemos dele. E no entanto, Victor é muito, infinitamente mais do que isso. É a evidência clamorosa da vibração do Ser. Eu o olho comovido, o acaricio porque ele existe. Existe! Que maravilhamento eu sinto em mim quando olho para o ser que vibra em cada detalhe do seu corpo martirizado! Victor existe, vive! Cada vez que me aproximo dele, fico impactado com a beleza de ser nada mais do que um fragmento de segundo: ele, como eu, é feito em cada momento. A sua beleza e a do ser, do seu ser quase enjaulado num corpo aparentemente deformado e que, no entanto, é templo do Espírito Santo. Ele, acredito, me conheça pelos meus beijos, pela ternura, mas sobretudo porque tanto eu como ele existimos e somos como “Tu que me fazes”. O valor da sua vida, como a do meu filho Aldo e de Mário, está no ser que posso contemplar e, imediatamente, reconhecer: eles, como eu, são relação com o infinito. Muitas vezes penso olhando para eles, assim “deformados” para o mundo – porque a cultura de hoje não consegue mais perceber o ser, aquilo que existe na sua profundidade. Tantos são os casais que, quando esperam um filho, mais do que ficarem comovidos até às lágrimas pelo fato de que ele exista, ficam é preocupados com o como ele é, como ele está, ou se é menino ou menina. Que besteira! Antes do ultrassom, há a comoção pelo ser. Aquela comoção que, seja lá qual for o resultado do ultrassom, cresce fazendo-nos vibrar porque o Mistério se manifestou. Que graça para mim, para vocês, o meu Victor, sacramento do ser que o cria em cada momento. É noite de sábado, mas não consigo me afastar de Victor, de Aldo e de Mário. Victor respira com dificuldade, fiz-lhe uma carícia e ele esticou seus pequenos punhos. Desde o seu nascimento parece ausente da realidade, no entanto ele está no coração da realdiade. A beleza destas criaturas está apenas no fato de que EXISTEM!
E existem porque um Outro, antes de formá-los assim no seio de suas mães, pronunciou seus nomes. Entendem, então, como é um milagre existir, que comoção suscita em mim o ser de cada um?
Olhando para eles só posso ficar grato por aquilo que me une a eles. O ser e o ser fato agora. Desejo a todos os que esperam um filho que tenham esta posição de adoração e de comoção e não a preocupação egoísta de como será, para que não aconteça que desfaça os nossos projetos que não têm nada que ver com o ser e, portanto, com o desígnio de Deus sobre cada um de nós. Pensem na diferença abissal que há entre olhar um doente, um leproso como o que está na capela do Santíssimo, com estes olhos fixos sobre o ser, e olhar os mesmos apenas em seu aspecto fenomênico! Sem esta posição, que sentido teria a vida e o nosso viver cotidiano?
Padre Aldo

domingo, 24 de julho de 2011

Segredo e bandalheira

Por Roberto Romano*

O Brasil é o país da corrupção e do segredo, lados da vida nacional que impedem qualquer confiança nas instituições. Os operadores do Estado, sobretudo com o "privilégio de foro", desobedecem às regras basilares da fé pública. O roubo dos recursos coletivos é respondido, entre nós, com perseguição à imprensa, compra de movimentos sociais, sigilo no financiamento de obras. Sem consciência histórica, os nossos políticos e partidos retomam séculos de tirania. A prudência mínima aconselha ligar a censura (o caso do jornal O Estado de S. Paulo é prova) e o segredo que encobre as piores ilicitudes cometidas à sombra do poder. Como disse alguém, "o dia pertence à opinião pública. Nele, os segredos são espancados e os governantes não podem usar o beleguim que realiza o serviço sujo "sob ordem superior". A noite aninha o segredo, covarde razão de Estado".
Os séculos 19 e 20 reuniram censura e hábitos políticos corrompidos, a começar pelo Império de Napoleão I, que espalhou o terror e a guerra com base nas imunidades do Poder Executivo. O fascismo, o nazismo e o stalinismo exibiram o exato contrário da transparência e do respeito à cidadania. Hannah Arendt afirma que a vida totalitária significa a reunião de "sociedades secretas estabelecidas publicamente". Hitler assumiu, para a sua quadrilha, os princípios das sociedades secretas. Ele promulgou algumas regras simples em 1939:
  • Ninguém, sem necessidade de ser informado, deve receber informação;
  • ninguém deve saber mais do que o necessário;
  • e ninguém deve saber algo anteriormente ao necessário.

Segundo Norberto Bobbio, não lido no Congresso Nacional e nos demais palácios de Brasília, "o governo democrático (...) desenvolve a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual razão os levaria periodicamente às urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (...) O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina" (O Poder Mascarado).
Quem abre os jornais brasileiros "antigos" percebe o caminho dos que hoje defendem mistérios nas contas públicas e não têm coragem de abrir arquivos ditatoriais. A luta pela transparência, que muitos fingiam conduzir, não passou mesmo de "bravata". O segredo embaralha interesses de grupos privados e assuntos de governo, como no caso Antônio Palocci e no recente episódio no Ministério dos Transportes. Ele ameaça as formas democráticas: nele, os administradores governamentais exasperam aspectos ilegítimos das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é definido fora do público e se torna opaco. O segredo, de fato, manifesta-se em todos os coletivos humanos, das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos juízes, das corporações aos clubes esportivos, da imprensa aos gabinetes da censura, dos laboratórios e bibliotecas universitários às fábricas, dos bancos às obras de caridade. Mas vale repetir a suspeita de Adam Smith: "Como é possível determinar, segundo regras, o ponto exato a partir do qual um delicado sentido de justiça ruma para o escrúpulo fraco e frívolo da consciência? Quando o segredo e a reserva começam a caminhar para a dissimulação?" (Teoria dos Sentimentos Morais, 1759.)
A prudência define a passagem da prática correta do sigilo para uma outra, em que o poder abusivo e tirânico se manifesta. O pensamento ético sempre se opõe ao sigilo, salvo em situações de guerra. Segundo Bentham, a publicidade é "a lei mais apropriada para garantir a confiança pública". O segredo, pensa ele, "é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal. (...) Toda democracia considera desejável a publicidade, seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões sobre elas mesmas".
Os democratas ou republicanos autênticos devem se acautelar contra o segredo, pois ele se instala na raiz do poder ditatorial e dos golpes de Estado. Não admira que os nossos políticos, herdeiros de costumes definidos nos porões de duas ditaduras, considerem "normais" (com bênçãos de alguns magistrados) tanto o disfarce no manejo das contas públicas quanto a censura à imprensa. Oligarcas manhosos de partidos fisiológicos estão bem no retrato do controle oficial secreto e corrupto. Eles se acostumaram a dobrar a espinha diante dos poderosos porque tal hábito lhes permite corroer as franquias dos "cidadãos comuns". Presos aos favores, vendem a preço vil a dignidade pública na bacia das almas dos Ministérios. Mas cobram caro, das pessoas livres, a crítica aos seus desmandos. A sua técnica de aliciamento usa os laços do "é dando que se recebe", que lhes propicia o controle das informações. Só pode chegar ao público o que eles autorizam. Os coronéis estão mais vivos do que nunca, na pretensa República brasileira.
Já os que, antes de chegar aos postos de autoridade, sempre criticaram os donos do poder, embora queiram exibir uma face polida e bela, escondem (nas paredes escuras dos corredores palacianos) uma repulsiva adesão à bandalheira. A sua figura efetiva? A carantonha de Dorian Gray ou a estátua de Glauco, imagem divina que, por causa das muitas trapaças do tempo, se transformou em bestial. Nada mais desprezível do que o paladino da ética que, por "realismo", age como secretário de práticas contrárias à transparência no manejo dos recursos públicos.

* Texto extraído d'O Estado de São Paulo (versão online), do dia 24 de julho de 2011. Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia na UNICAMP, é autor, entre outros, de "O caldeirão de Medeia" (Perspectiva)

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Uma aula sobre o coração e a justiça dada por Tomás de Aquino e Giussani


Por Francesco Ventorino

“Existe um bem que ficaríamos contentes com possuir porque nos é caro por si mesmo e não pelas vantagens que dele possam advir?”. A questão emerge de um dos diálogos de Platão, A República. Glauco reflete sobre o bem e sobre o mal, interrogando seu mestre Sócrates. “Tenho uma grande vontade de ouvir – acrescentou – o que é justo e injusto e qual o poder que têm, por si, sobre a alma do homem”. Porque parece que os homens fazem as leis dando “nome de legítimo e justo àquilo que é estabelecido pela lei”. Seria, portanto, esta “a origem da justiça e a sua essência”?
Eis como é colocada desde as origens do pensamento ocidental a pergunta sobre o fundamento da lei humana e sobre sua justiça. Pergunta, esta, muito atual. Pietro Barcellona, que se dedicou muito a este tema e com o qual compartilhei as reflexões que deram origem ao livro La lotta tra diritto e giustizia (A luta entre o direito e a justiça – em tradução livre –, cujo original foi publicado pela Marietti, em 2008, sem tradução para o português; ndt), já tinha, há um tempo, colocado o dedo sobre esta ferida. “Nunca, como na atual fase, se ouviu tanto a prepotente necessidade de afirmar que existem direitos do homem que os Estados e os poderes constituídos não podem violar nem sacrificar, e todavia nada permite mais que se atribua forma e realidade a estes direitos. [...] A falta de todo fundamento metafísico e de toda legitimidade transcendente torna a ordem jurídica contingente e artificial, privada de qualquer referência a uma ordem natural que, de alguma forma, reconduza à harmonia do cosmo. Toda ordem é, por sua natureza, arbitrária, sem justificação nem medida. Definitivamente consumida a ideia de contar com algumas verdades eternas e imutáveis, com alguma razão universal, não sobra outra coisa senão se confiar à frágil contingência dos acordos contratuais e dos pactos sociais, com os quais os indivíduos decidem fixar um limite aos seus ilimitados desejos” (Il declino dello Stato. Riflessioni di fine secolo sulla crisi del progetto moderno – O declínio do Estado: reflexões de fim de século sobre a crise do projeto moderno – publicado pela Dedalo, em  1998).
Tal postura mental gera todo tipo de mentira, visto que o pensamento não adere mais à verdade da realidade e as palavras são distorcidas, sustentam um projeto sobre a sociedade que não tem outro ponto de referência diferente do poder mesmo.
“Uma questão fundamental que se coloca para o sistema democrático – escreveu Bento XVI quando era ainda o cardeal Ratzinger – é se a vontade de uma maioria verdadeira e legitimamente pode tudo. É possível que ela torne legítima todas as coisas, vinculando todos, ou a razão se encontra acima da maioria, de forma que nunca seria possível se tornar realmente um direito aquilo que fosse contra a razão?” (Chiesa, ecumenismo e politica – Igreja, ecumenismo e política – publicado pela Paoline, em 1987).
No famoso diálogo que teve, em Mônaco, em 2004, com Jürgen Habermas, o mesmo Ratzinger evidenciou a urgência de uma nova fundação da ética e do direito na sociedade contemporânea: “A tarefa de colocar o poder sob o controle do direito remete, consequentemente, à questão de como nasce o direito e de como deve ser o direito para que seja instrumento da justiça e não do privilégio daqueles que detêm o poder de legislar” (Ragione e Fede in dialogo – Razão e Fé em diálogo – publicado pela Marsilio, em 2005).
Como nasce, portanto, o direito? Entre as respostas a esta pergunta, aquela dada por Tomás de Aquino não deve ser desvalorizada. Na sua Suma Teológica, ele colocou na razão do homem a medida e o critério da bondade do seu agir: “O bem humano consiste no ser conforme à razão, e o mal no ser contrário à razão” (I-II, q. 18, a. 5, c.).
É possível que se tenha a impressão de que uma assertiva do gênero prefigure aquela autonomia da razão que está na base da doutrina moral kantiana, mas se trata, na realidade, de toda uma outra perspectiva. Kant tem razão quando afirma que o princípio da moralidade reside na razão. Mas, para o Aquinate, a razão não é entendida como emancipada de todo vínculo e, portanto, como instância absoluta e independente, mas como faculdade dada ao homem para conhecer aquilo que é, e, nessa medida, participe da luz intelectual de Deus. É, portanto, num sentido bastante particular que a razão humana funda, em Tomás, a moralidade do agir do homem: funda-a na medida em que colhe, com os próprios recursos naturais, aquela lei eterna que é a ordem e a medida que a razão divina dá a todas as coisas: “Ora, é em virtude da lei eterna, que é a razão divina, que a razão humana é a regra da vontade humana, pela qual se lhe mede a bondade. E por isso, diz a Escritura (Sl 4, 6 e 7): ‘Muitos dizem: quem nos patenteará os bens? Gravado está, Senhor, sobre nós o lume do teu rosto’, quase dizendo: a luz da razão, existente em nós, pode nos mostrar o bem e regular a vontade, na medida em que é a luz do teu rosto” (I-II, q. 19, a. 4, c.).
Tudo isso pressupõe uma confiança na razão humana, como imagem da razão divina. A razão é a exigência profunda e a capacidade de verdade e de felicidade que há no coração do homem e o critério com o qual medir os mios necessários para a sua realização.
As leis humanas podem se dizer justas, portanto, “na medida em que se uniformizam à reta razão” (I-II, q. 93, a. 3, c.). Quando elas se desviam da razão, então não têm mais a natureza de lei, mas muito mais de violência.
Agostinho, no IV livro do De civitate Dei, já havia colocada uma pergunta inquietante: “Uma vez que se tenha renunciado à justiça, o que serão os Estados senão uma grande confusão de criminosos?” (Remota itaque iustitia, quid sunt regna nisi magna latrocinia?). Não é verdadeiro, no fim das contas, que os criminosos mesmos formam pequenos Estados?  Homens comandados por um chefe e mantidos juntos por um pacto comum, partilham um roubo segundo uma lei tácita. Se este mal se alarga a um número maior de celerados, se se espalha por toda uma região, conquista cidades e subjuga povos, então assumirá mais abertamente o nome de reino: não tanto pela renúncia à maldade, mas pela tranqüila impunidade. Esta foi a resposta franca que um pirata deu a Alexandre o Grande. Parecer-lhe-ia justo, perguntou o Macedônio, infestar os mares? Por que ele continuava a causar danos? E o pirata, com temerária ousadia, respondeu: “Pelo mesmo motivo pelo qual tu infestas a terra; mas, visto que eu o faço com um barco insignificante, chamam-me malfeitor, e visto que tu o fazes com uma frota potente, chamam-te imperador”.
A lei humana é, por isso, opus rationis: merece ser reconhecida e observada na medida em que expressa uma aproximação progressiva da razão do legislador àquela ordem natural que tem seu fundamento último na razão divina. É este caminho de aproximação que explica a diversidade de opiniões entre os homens acerca de tudo aquilo que não é “justo” – ou seja, iuxta rationem – com evidência imediata.
Padre Luigi Giussani teve a inteligência para dizer isso com palavras existencialmente mais compreensíveis e eficazes. N’O senso religioso (publicado em italiano sob o título I senso religioso, pela editora Rizzoli, em 1997; ndt) conduz o leitor através de uma apaixonante análise introspectiva, que ele chama “experiência original” ou “experiência elementar”, para descobrir o que é o “coração”. Ele é como que “um complexo de exigências e de evidências com o qual o homem é lançado no confronto com tudo o que existe”. Estas exigências que emergem como evidentes para a consciência do homem, quando ele começa a enfrentar a realidade e, consequentemente, a refletir sobre si mesmo, reconduzem à ratio tomista. De fato, a razão para Tomás de Aquino – como vimos – é a exigência e a capacidade de verdade e de bem que há dentro do coração de cada homem.
A modernidade da abordagem de Giussani, que confia tudo a uma evidência interior, enquanto busca encontrar crédito no seu interlocutor, não lhe impede de sublinhar que para a nossa experiência elementar é também evidente que este “critério original”, mesmo sendo “imanente a nós”, não somos nós que no-lo damos, mas nos é “dado” junto com a nossa natureza: uma mãe esquimó, uma mãe da Terra do Fogo, uma mãe japonesa, dão à luz seres humanos que são reconhecíveis como tais, tanto por conotações exteriores como pela “marca interior”. Este critério original se revela, portanto, requintadamente pessoal e, ao mesmo tempo, universal.
A negação sistemática deste fundamento universal da verdade e da justiça expõe o homem ao totalitarismo nas suas várias formas jurídicas ou políticas. Hannah Arendt escreveu: “o chamado ideal do regime totalitário não é o nazista convicto ou o comunista convicto, mas o indivíduo para o qual a distinção entre realidade e ficção, entre verdadeiro e falso não existe mais” (Le origini del totalitarismo – As origens do totalitarismo – publicando na Itália pela Einaudi, em 2004; ndt). Mas a aceitação de um fundamento metajurídico do direito positivo está ligada àquela capacidade própria da razão humana de encontrar o verdadeiro e o bom nas coisas. Poucos, hoje, parecem dispostos a subscrever isso. Uma vez mais devemos dizer: é tarefa dos cristãos recordar ao homem a sua grandeza.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 14 de abril de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Comentário ao evangelho do dia

4ª-feira da 3ª Semana Quaresma

1ª Leitura - Dt 4,1.5-9
Moisés falou ao povo, dizendo: "Agora, Israel, ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir, para que, fazendo-o, vivais e entreis na posse da terra prometida que o Senhor Deus de vossos pais vos vai dar. Eis que vos ensinei leis e decretos conforme o Senhor meu Deus me ordenou, para que os pratiqueis na terra em que ides entrar e da qual tomareis posse. Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todas estas leis, digam: 'Na verdade, é sábia e inteligente esta grande nação! Pois, qual é a grande nação cujos deuses lhe são tão próximos como o Senhor nosso Deus, sempre que o invocamos? E que nação haverá tão grande que tenha leis e decretos tão justos, como esta lei que hoje vos ponho diante dos olhos?'. Mas toma cuidado! Procura com grande zelo não te esqueceres de tudo o que viste com os próprios olhos, e nada deixes escapar do teu coração por todos os dias de tua vida; antes, ensina-o a teus filhos e netos".

Evangelho - Mt 5,17-19
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: "Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento. Em verdade, eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra. Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar será considerado grande no Reino dos Céus".

Comentário feito por São Cirilo de Alexandria (380-444)
bispo e Doutor da Igreja

Vimos Cristo obedecer às leis de Moisés, o quer dizer que Deus, o legislador, se submetia, como um homem, às Suas próprias leis. É o que nos ensina São Paulo [...]: "Ao chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os que se encontravam sob o jugo da Lei" (Gal 4, 4-5). Por conseguinte, Cristo resgatou da maldição da Lei os que a ela estavam sujeitos, mas que não a observavam. De que modo os resgatou? Aperfeiçoando esta Lei; dito de outro modo, a fim de apagar a transgressão da qual Adão se tornou culpado, Ele mostrou-Se obediente e dócil para com Deus Pai em nosso lugar. Porque está escrito: "Como pela desobediência de um só, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornaram justos" (Rom 5, 19). Conosco, Ele curvou a cabeça perante a Lei, e fê-lo segundo o plano divino da Encarnação. Com efeito, "convém que cumpramos assim toda a justiça" (Mt 3, 15). Depois de ter tomado completamente a condição de servo (Fil 2, 7), precisamente porque a Sua condição humana o agregava ao número dos que suportavam o jugo, pagou o montante do imposto aos cobradores como toda a gente, ainda que por natureza, e como Filho, estivesse dispensado disso. Por conseguinte, quando tu O vês observar a Lei, não fiques chocado, não ponhas no rol de servos Aquele que é livre, mas avalia pelo pensamento a profundidade de um tal desígnio.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Caros professores, não se ensina (e não se aprende) nada sem liberdade


Por Eddo Rigotti

O ensino é possível se, para além do professor, exista alguém que aprenda e algo que é aprendido. Antes, quem aprende e a coisa aprendida são, a bem dizer, os fatores constitutivos da aventura do ensino. Aprendemos, de fato, infinitas coisas sem que ninguém propriamente no-las ensine: aprender a nossa língua (que, às vezes, é o nosso dialeto) com os pais não é como aprender a gramática ou a ortografia com o professor. Aprender a língua com os pais é aprender a partir da experiência, do relacionamento direto com a realidade humana e não humana que nos circunda, interagindo na experiência mediada pela comunicação com os nossos pais e os outros adultos. É assim que aprendemos, algumas vezes às nossas custas e outras com vantagem para nós, que a água pode ferver ou congelar, que os figos são mais doces do que as maçãs, que a faca corta e que a rosa pode também cheirar (e a camélia, porém, não), que, se há um sob, deve necessariamente haver também um sobre, e que a neve, cedo ou tarde, derrete. O evento que marca o sucesso do ensino está, em todos os casos, para além do professor
Parecem-me importantes duas questões a serem enfocadas:
a) Para um sujeito, aprender ou, talvez melhor, apreender, é começar a conhecer algo outro. Objeto de conhecimento pode ser apenas aquilo que é real. Isto explica o non sense de uma frase como
João sabe que Luiz chegou, mas eu seu que Luiz ficou em casa
sendo que são possíveis também tanto
João crê que Luiz tenha chegado, mas eu sei que Luiz ficou em casa
como
João crê que Luiz tenha chegado, mas eu creio que Luiz ficou em casa.
Posso falar de conhecimento tão somente na medida em que há uma relação com a realidade: pela sua estrutura semântica e ontológica, o conhecer pressupõe (exige) como objeto algo de real, ou seja, pressupõe a verdade do seu objeto.
b) O fato de que o nexo fundamental seja aquele entre quem aprende e a coisa aprendida, não significa que o papel do adulto no aprendizado desaparece, tampouco significa que esse papel seja pequeno. Como veremos, o adulto é presente, mas não é uma “bica” de conteúdos de programas pré-moldados. O seu papel é mais delicado e incisivo.

Aprofundemos brevemente o primeiro ponto. Aprender como ter “conhecimento de” não é adquirir uma informação, mesmo que seja materialmente verdadeira. A informação se torna conhecimento apenas quando se torna relevante para o sujeito, quando assume significado para o seu destino. Adquire interesse na medida em que o relacionamento do sujeito com a coisa que a aquisição do conhecimento traz para a luz conduz o sujeito para a consciência da relevância que esta coisa tem para ele, da pertinência da coisa ao seu destino.
É diferente enquadrar a presença dos humanos sobre a terra como um incidente lamentável a que a ética e a ecologia sugerem delimitar ao máximo as implicações perversas, ou como o florescimento surpreendente, misterioso de uma autoconsciência capaz de se interrogar sobre o sentido de si, ou seja, capax Dei.
Mas, outro traço essencial distingue o conhecimento da pura informação: a sua racionalidade. Poderíamos definir este traço em relação a um transcendental da filosofia medieval, Ens et verum convertuntur que sublinha a inteligibilidade do real. Mas, sem nos debruçarmos demais sobre pensamentos filosóficos, poderíamos talvez dizer de modo muito mais simples que o conhecimento não é puramente informação na medida em que é resposta a um por quê.
Estou pensando aos por ques da infância com os quais a criança desafia o adulto, quase querendo conquistar um acesso direto à realidade. Parece que este dispositivo critico, que se ativa quase naturalmente tão logo a criança instrumentou e estruturou o seu relacionamento com a realidade mediante a linguagem, seja fundamentalmente desativado na vida escolar. Todos nós, todavia, esperamos que não seja de todo verdadeiro.
Para entender a natureza deste dispositivo crítico devemos identificar as necessidades de conhecimento da criança, exatamente distinguindo os diversos usos semântico-pragmáticos do por quê. Uma pesquisa sobre as estruturas argumentativas nos discursos à mesa de famílias italianas e suíças, conduzida por Antonio Bova (um aluno do professor Galimberti), mostrou que as crianças entre os 4 e os 8 anos usam os seus insuportáveis por quês para desencadear trocas argumentativas e raciocínios de diferentes tipos e complexidades. Acontece com uma certa frequência o por que causal ou explanatório, que pede a explicação de um fato (do tipo: Por que o vovô ronca quando dorme?).
Vejamos, por exemplo, este uso no diálogo entre Lucas, uma criança de 6 anos, e seu pai. Olhando para fora da janela, Lucas observou que, diferentemente dos dias anteriores, não chovia e pergunta ao pai: “Papai, por que hoje não está chovendo?”. Na sua simpática resposta, o pai formula uma explicação adotando a metafísica animística da criança: “Porque hoje as nuvens estão cheias de água, mas querem segurá-la com elas ainda um pouquinho!”.
Lucas, através do seu por que, quer conhecer a causa, as origens de um evento. A pergunta de Lucas é, para bem dizer, a mesma pergunta que gera a ciência (scire per causas), mas é também a pergunta com a qual nós nos interrogamos, através de formas linguísticas diversas, sobre a nossa origem, e portanto sobre a nossa pertença.

[Lembro-me de que, quando eu era pequeno, muito pequeno, as senhoras velhinhas da cidadezinha, frequentemente, ao me encontrarem, com ar inquisitorial, quase me acusando de existir, me perguntavam no meu dialeto tridentino “Popo, de chi se’t ti?” (“Menino, de quem você é?”), quase com se eu tivesse que justificar a minha presença dizendo quem eram os meus pais. Depois, quando entrei na escola, descobri que também a Dante haviam feito, num canto do Inferno, a mesma pergunta – “Chi fur li maggior tui?” – mesmo que eu deva admitir que se tratava de outra solenidade, tanto é verdade que, no poeta, a pergunta suscitou simplesmente orgulho. Mais recentemente, um pesquisador do projeto Argupolis, de origem calabresa, me confiou que também a ele as velhinha de sua cidade perguntavam de forma inquisidora “A quem você pertence?”. É interessante o nexo entre origem e pertença].

Um outro por quê, talvez mais frequente, é de natureza argumentativa e, por outro lado, exige que se dê as razões. São exigidas, antes de tudo, as razões das ações, do fim pelo qual uma ação é realizada. O fim coincide, aqui, com o argumento que justifica a ação, ou seja, mostra a sua razoabilidade. Aqui, poderíamos ativar longuíssimos encadeamentos, entre o jocoso e o persecutório: Por que você está saindo? Vou à biblioteca. Por que você vai à biblioteca? Tenho que ler um livro. Por que tem que ler um livro? Tenho que aprender algumas coisas... Por quê...? Através dessas perguntas, a criança parece descobrir as hierarquias teleológicas para as quais as nossa ações, frequentemente apenas de forma implícita, remetem. O por que argumentativo é quase sempre usado para contestar uma recusa, como nesse breve diálogo onde Elisa, uma menina de 7 anos, pede à sua mãe: “Posso brincar com esse limão, mamãe?”. A mãe, ocupada cozinhando, responde a Elisa com uma recusa que se justifica com uma impossibilidade: “Não, eu não posso deixar você brincar com os limões”. E Elisa, neste ponto, coloca em discussão a recusa, pedindo que ela explicite as razões da impossibilidade: “Por quê?”. A mãe argumenta: “Porque vou precisar dos limões para fazer uma salada gostosa para o papai”.
Um por que análogo solicita, porém, as razões de regras e injunções (proibições, ordens, convites, conselhos, recomendações) e, portanto, as coloca em discussão. Frequentemente, são acompanhados de argumentos para justificar a contestação. Como no breve diálogo entre Marcos, uma criança de 5 anos, e a sua mãe. Marcos observa que o seu pai toma remédios para se curar de um gripe. Obviamente, ficou extasiado e argumenta, por analogia: “Eu também quero os remédios que o papai tomou, mamãe”. A mãe, naturalmente, não está de acordo e formula uma proibição: “Você não pode, Marcos”. Esta resposta não satisfaz naturalmente o menino, que a desafia a dar as razões da proibição: “Por que não?”. A mãe replica com um argumento, muito interessante, que recoloca todos os protagonistas do fato no seu devido lugar: “Porque as crianças devem tomar remédios próprios para crianças. Não podem tomar remédios dos adultos, senão passam mal”.
Muito evidente também é o exemplo no qual Clara, uma menina de 5 anos, negocia com seu pai a quantidade de comida que pode deixar no prato, acrescentando, de escanteio, um argumento: “Posso deixar esse pouquinho de macarrão?” (levantando seu prato um pouco para mostrar o conteúdo ao pai). Aqui, a expressão “esse pouquinho” argumenta naturalmente em favor de uma concessão. O pai responde com uma proibição: “Não, não pode”. Neste ponto, Clara, certamente mais determinada a contestar a proibição paterna, descarrega: “Por que, papai?”. O pai refuta, com a evidência, o argumento levantado pelo “esse pouquinho”: “Você não comeu nada, Clara”.
Fica vidente como aos pequenos homens não basta a informação, e como eles querem o acesso à realidade e ao seu significado. Aqueles mesmos por ques podem se tornar, de vez em quando, perguntas que indagam sobre o significado da nossa existência. Querem saber a nossa origem, a nossa tarefa e o nosso destino. O conhecimento com a sua racionalidade, a sua relevância existencial, é então uma exigência natural do ser humano
Os por ques das crianças, ainda que parecem uma brincadeira, e certamente o são, representam o momento central da dinâmica do crescimento, uma dinâmica que é humano manter viva em nós através de toda a nossa existência: não podemos considerar o adulto como alguém que não cresce mais, mesmo que isso possa ser verdadeiro do ponto de vista biológico. A dinâmica do por quê, essencial para a aprendizagem, consequentemente também o é para o ensino que, então, se transforma numa verdadeira interação argumentativa, numa critical discussion.
Aqui, talvez, alguém possa estar esperando ou tema que, daqui para frente, eu comece a considerar a teoria da argumentação, introduzindo algumas definições técnicas e alguns procedimentos, algo como algum analytic overview ou algum Y-structure. Prefiro, porém, contar um episódio.
Uma professora de religião do ensino fundamental foi contestada de forma muito dura por um aluno: “Por que aprendemos a religião se a ciência demonstrou que não é verdadeira?”. Aparentemente, trata-se de uma pergunta, na realidade (como é o caso das perguntas retóricas) é uma tese sustentada por uma argumentação de dois níveis, onde um argumento remete a outro argumento:
tese: é irracional aprender religião
argumento 1: a religião não é verdadeira
argumento 2: a ciência o demonstrou.
Com efeito, o argumento 1 é, em si mesmo, uma boa justificativa para a tese: é, de verdade, irracional pretender que alguém aprenda aquilo que não é verdadeiro, ou seja, aquilo que não existe, porque aprender é começar a conhecer, e o objeto do conhecer só pode ser aquilo que é real, ou seja, verdadeiro. Nesta perspectiva (se, de fato, a ciência tivesse demonstrado a falsidade da religião), teria sentido tão somente o ateísmo. Mas o argumento 1 mantém-se apenas na medida em que sustentado pelo argumento 2. 
É sobre isso que a reflexão da professora deve se centralizar. A sua tarefa não é, de fato, muito simples. Ela revela naturalmente que o aparato contestatório do aluno não é farinha do seu saco e que é, totalmente ou em parte, um discurso repetitivo. Revela também que, no fundo, há uma ideologia cientificista, muitas vezes sustentada por uma divulgação incorreta, certamente com as referências comuns a Kepler e a Galileu.
Ela seria tentada a responder à altura ou a advertir o aluno acerca das manipulações, mas, na melhor das hipóteses, a sua adesão seria ex auctoritate, sem razões. Mas, por outro lado, a professora aproveitou a provocação do aluno para uma extraordinária oportunidade: trouxe à baila uma distinção importante, favorecendo um ponto de crescimento e um ganho de consciência de toda a sala de aula. Percebeu também a necessidade de aprofundar, por sua própria conta, o ponto tematizado e estudar um modo de dizê-lo que fosse sob medida para os seus alunos, que respeitasse a sua capacidade de categorização. Assim, não se empenhou apenas numa confutação extemporânea: sabia que estava numa escola e não num talk show. Louvou o aluno por ter enfrentado um problema importante que, porém, precisava ser considerado de forma aprofundada e reconheceu que, no seu raciocínio, havia uma primeira passagem perfeitamente correta, sublinhando que ainda era preciso ver um segundo ponto sobre o qual seria necessário voltar numa próxima aula: “Você tem razão ao dizer que não tem sentido estudar coisas falsas; porém, devemos ver se a ciência, de fato, demonstrou que a religião é falsa. Será preciso voltar sobre isso na próxima vez”.
Assim, consegue tempo. Creio que esta professora, de fato, tenha encontrado um modo adequado para argumentar na escola: não se trata de introduzir uma matéria a mais, preparando uma pequena teoria da argumentação, mas se trata de ensinar argumentando, ou seja, ensinar dando as razões. O primeiro passo na argumentação, que é um colocar à prova a própria posição diante da razão do outro, é o reconhecimento e a estima da razão do outro. A necessidade de verificação manifestada pelo aluno, dessa forma, é encorajada. Ao mesmo tempo, a disponibilidade da professora faz o aluno perceber a importância e a seriedade do empenho argumentativo.
Estou certo de que esta professora, quando voltou para casa, falou do seu problema com algumas amigas e discutiu com elas por muito tempo, assim como com o seu marido. Era importante, antes de tudo, esclarecer o ponto: não se tratava de mostrar que a ciência, pelo menos até agora, não tenha falsificado a religião, mas que nunca o fez nem o poderia fazer, porque ciência e religião – mesmo que ambas contribuam, na medida em que são formas de conhecimento, para a nossa compreensão da realidade – atuam a partir de aspectos distintos. Em outras palavras, ciência e religião têm objetos formais diversos e não podem, portanto, se contradizer. Tratava-se de exprimir tudo isso através das categorias do aluno. Pois bem, exatamente a referência aos infinitos por ques da argumentação na sua primeiríssima fase permitiu à professora, naquela ocasião, o instrumento categorial adequado. Quando voltou à sala de aula, expressou-se, grosso modo, assim: “A ciência e a religião nos são úteis para entender a nós mesmos e à realidade na qual vivemos. Entender significa saber dizer o porquê. Existem por ques aos quais a religião responde (por que existimos? Por que não podemos matar?) e existem por ques aos quais é a ciência que responde (por que o inverno é mais frio? Por que existem as marés?). Ciência e religião são, ambas, necessárias para entender a realidade e dar sentido à vida”.
Naturalmente, todos na sala de aula começaram a querer dar exemplos dos por ques mais variados, perguntando se aqueles são científicos e se esses são religiosos.
Mas, falemos, agora, do segundo ponto desta conferência: qual é o papel do adulto na aprendizagem, ou seja, na aquisição de um conhecimento?
Ensinar não é um verbo causativo em sentido estreito, não equivale a causar o efeito de um outro aprender, porque o objeto indireto, ou seja, esse outro, é um ser humano, portanto é livre: por isso, o evento da aprendizagem não pode ser o efeito óbvio de nenhuma das intervenções do adulto. Inevitavelmente, quando o ensino age prescindindo da liberdade, do interesse e da razão de quem está aprendendo, isso pode dar lugar apenas a um adestramento, ou melhor, a uma manipulação.
Tudo isto, longe de tornar o papel do professor menos significativo, mostra exatamente a sua grandeza. O professor não causa a aprendizagem, não adestra, não é uma cadeia de transmissão de saberes construídos e deliberados em outro lugar, é um “cultor da matéria”, ou seja, é um sujeito apaixonado por aquela realidade que a sua disciplina se encarrega por conhecer. Não se limita a consignar um saber adquirido, mas o desmonta e o remonta junto com o discípulo, reverificando suas razões e seu nexos, interrogando continuamente a realidade à qual o saber se refere para tirar dele uma experiência mais rica. Enquanto acompanho (tomando-o pela mão = Handführung) o meu aluno na realidade (total!), também eu refaço a experiência e reencontro aquela realidade: não é possível repetir a mesma experiência relendo o mesmo canto de Dante ou repercorrendo os movimentos referenciais do mesmo teorema junto com o aluno. O “gaudium de veritate”, ligado, no primeiro caso, à participação no evento poético e, no segundo, à profunda, intensa, alegria da inferência, desencadeia um novo acontecimento. Não sou somente eu que o acompanho na realidade, também ele me acompanha. A sua experiência é uma verificação da minha, na medida em que o ensino não é uma exposição de conteúdos, mas desafio à razão e ao coração do aluno. Neste sentido, é argumentativo.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 22 de fevereiro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

“Bom caminho”


Saudação de Padre Giussani por ocasião do início da Escola de Comunidade sobre O senso religioso, dos estudantes de CL na Universidade Católica do Sacro Cuore. Milão, 8 de outubro de 1998

Fico muito grato a vocês de poder discutir acerca do volume que contém as minhas ideias, expostas em tantos anos de aulas, primeiro numa escola e sobretudo na universidade. Em cada ano, eu dizia: “Eu não quero forçar ninguém a se convencer, mas não quero que alguém renegue aquilo que eu digo se não tiver, pelo menos, lido as razões que eu digo”.
Permito-me pedir a vocês que me leiam com a intenção sincera e imediata de compartilhar com todos os jovens a dificuldade que têm de entender o valor da religião nascida de Jesus, filho de Maria, judeu de Nazaré.
Não é possível entender, senão verificando as ideias e os valores na própria experiência. Esta experiência pode consistir também no choque ou no sentimento particular que se surpreende em si mesmos, ou na história de um povo ou do mundo.
A experiência diz coisas que demonstram a sua verdade. Aquilo que eu digo a vocês foi-me inteiramente ditado por algo que eu estudei, desejei, repugnei, mas finalmente amei com paixão.
Para mim, é a experiência que ensina todo o valor de ideias e de coisas, permanecendo no tempo, persuasiva ou duvidosamente. Também grandes pintores, músicos e poetas demonstram continuar retomando o tema inspirado por uma “beleza” encontrada.
Nesta ocasião que vocês me deram, eu desejo a vocês uma sinceridade, uma franqueza em tudo e um amor à verdade que seja também compartilhado.
A minha vida conheceu a letícia nestas condições.

Finalmente, quero repetir-lhe aquilo que Santa Catarina, analfabeta, que é o maior gênio feminino italiano, dizia ao último Papa de Avignon: “Se fordes aquilo que deveis ser, colocareis fogo em toda a Itália. Não vos contenteis com pequenas coisas: Ele, Deus, as quer grandes”.

Bom caminho.
Padre Giussani

* Texto disponível na Tracce n. 10, novembro de 1998. Extraído do site de CL. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O "incrédulo" São Tomé ensina a ser cristãos


Por John Waters

Frequentemente, me vejo pensando que São Tomé, o chamado “incrédulo”, não mereça o codinome que o acompanha. Se, quando eu era mais jovem, me perguntassem, depois de ter ouvido continuamente as histórias do Evangelho com suas interpretações, acho que não teria colocado Tomé muito longe de Judas na lista dos malvados. Mas, seria justo?
Tomé, o incrédulo, era um dos doze apóstolos de Jesus, conhecido também como Dídimo, que em grego significa “gêmeo”, como Tomé em hebraico. O codinome “incrédulo” lhe foi dado depois de sua recusa inicial de acreditar que Cristo tivesse ressuscitado da morte, até que pudesse ver suas chagas.
O Evangelho de João nos diz que, depois da Ressurreição, Jesus apareceu a alguns discípulos quando Tomé não estava presente. João diz (20, 25): “Os outros discípulos contaram-lhe: ‘Nós vimos o Senhor!’. Mas Tomé disse: ‘Se eu não vir a marca dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos, se eu não puser a mão no seu lado, não acreditarei’”.
Oito dias depois, Jesus reapareceu aos Seus discípulos, e desta vez Tomé estava junto: “Estando as portas fechadas, Jesus entrou, pôs-se no meio deles e disse: ‘A paz esteja convosco’. Depois disse a Tomé: ‘Põe o teu dedo aqui e olha as minhas mãos. Estende a tua mão e coloca-a no meu lado e não sejas incrédulo, mas crê!’. Tomé respondeu: ‘Meu Senhor e meu Deus!’. Jesus lhe disse: ‘Creste porque me viste? Bem-aventurados os que não viram, e creram!’” (Jo 20, 26-29).
Estas palavras de Jesus são, normalmente, interpretadas como uma espécie de condenação para aqueles que precisam de provas para acreditar. Todavia, de uma leitura mais atenta, percebi que Jesus não desdenha de Tomé, como eu pensava. Na realidade, Ele é muito gentil e paciente, permitindo que Tomé examine as Suas feridas  e dizendo que é bom que, então, ele acredite, afirmando ao mesmo tempo a bondade daqueles que creem sem terem visto, chamando-os “bem-aventurados”, mas não diz que Tomé é menos “bem-aventurado”.
A distinção que Jesus faz não é entre quem quer provas e quem não precisa delas, mas entre quem viu pessoalmente e quem não viu: a esta segunda categoria pertencem quase todos os cristãos que existiram até hoje, inclusive todos nós que vivemos hoje em dia.
Refletindo, não acredito que Jesus quisesse dizer que há maior valor se acreditarmos sem provas, e ainda menos que quisesse atribuir maior valor a um crer não fundado sobre provas, mas que quisesse distinguir entre dois tipos diversos de prova: aquela dada pelos olhos e aquela fundada sobre testemunhos confiáveis.
Se a fé é sustentada sobre o mero sentimento ou sobre um conceito superficial de obediência, se torna menos sólida e mais exposta ao ceticismo. A melhor forma de fé é aquela que explora livremente todo o campo da dúvida, levando em consideração todas as provas disponíveis, como fez Tomé.
A fé dos cristãos de hoje certamente não é privada de evidências. Temos a dura evidência da realidade, a evidência da nossa existência e da sua misteriosa natureza, a evidência da resposta menos levada em consideração entre aquelas que podemos dar: o maravilhamento por “aquilo que é”. Temos também a evidência dos Evangelhos e dos centenas de testemunhos ali contidos, suas histórias que, conscientemente ou não, ponderamos com a nossa razão desde a infância, avaliando a sua plausibilidade do mesmo modo que o incrédulo Tomé enfrentou as provas que tinha diante de si. Tendo dado voz às mais profundas incertezas da posteridade, tornou-se, para nós, uma testemunha mais importante do que todas as outras.
De muitas outras referências nos Evangelhos aprendemos que Tomé, em diversas ocasiões, demonstrou-se um dos mais decididos entre os apóstolos, corajoso e fiel. Quando os outros tentavam impedir Jesus de voltar a Betânia para ressuscitar Lázaro, viso que os habitantes daquela cidade tinham tentado apedrejá-lo (Jo 11, 8), Tomé prorrompeu: “Vamos nós também, para morrermos com ele!” (Jo 11, 16). E é também ele que faz a Jesus uma das mais famosas perguntas do Evangelho: “‘Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?’. Jesus respondeu: ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim’” (Jo 14, 5-6).
Nesta nossa época incrédula como poucas, na qual uma falsa forma de razão arrancou a nossa cultura do significado de muito daquilo que é evidente, a importância de Tomé, o incrédulo, é tal que pode ser mesmo eleito o patrono da cultura hodierna, marcada pelo secularismo e pelo seu relativismo, pelo seu conceito reduzido de razão e pela sua tendência ao pessimismo como primeira resposta diante da realidade. É o “gêmeo” do cristão moderno, o meu gêmeo... e, quem sabe?... talvez também o seu?
“É um São Tomé”: essa é uma frase usada na nossa cultura para indicar alguém que recusa acreditar numa evidência direta, física, pessoal, e neste sentido pode-se dizer que englobe inteiramente a posição da cultura atual. Na realidade, um ceticismo razoável não é, de todo modo, um traço deplorável numa pessoa inteligente. Como o Papa nos lembra continuamente, a inteligência da fé deve se tornar inteligência da realidade. Não há nada a temer na busca de uma prova: o problema é como chegamos a avaliar esta prova e o que escolhemos fazer com ela.
Não acredito que Jesus, com a Sua resposta a Tomé, quisesse nos convidar a reduzir este desejo de provas em favor de uma cega adesão à ideia moralista segundo a qual o crer, por si mesmo, é preferível a uma abordagem rigorosa na busca pela verdade. No máximo, queria, talvez, sugerir que, muito mais do que suspender a nossa abertura ao crer, é mais útil para nós suspender o nosso ceticismo enquanto não tivermos considerado todos os aspectos e não só aquilo que dizem os nossos olhos. Se algo estava sendo condenado era aquele empirismo que exige a total demonstrabilidade para justificar a aceitação de uma proposta.
Por isto, me pergunto se não fomos injustos com o incrédulo Tomé. Talvez, no seu ceticismo, ele nos tenha dado um testemunho ao qual podemos aderir de modo mais concreto e, com a sua insistência sobre as provas, ele nos tenha proposto um exemplo a seguir e uma história na qual o ceticismo foi dissolvido por um evento que, testemunhado pelo Evangelho de João, permite também a nós acreditar mesmo sem “ver” pessoalmente.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 15 de fevereiro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Cícero: não somos frutos do acaso, mas feitos para olhar o Céu


Por Laura Cioni

Entre os inúmeros argumentos sobre os quais Cícero escreveu em suas obras, um diz respeito à natureza dos deuses, naturalmente polemizando com os epicuristas, tão detestados pela tradição romana de pensar e de agir, da qual ele é um crente convicto. A escola epicurista nega que os deuses, da tranquilidade de sua sua sede, se ocupem dos eventos humanos. Antes, eles nem mesmo contruiram o mundo, que nada mais é que fruto do casual aglomerar-se dos átomos. Contra tal doutrina perigosa para as estruturas culturais e políticas de Roma, Cícero responde com uma obra em três livros, o De natura deorum.
Na parte central do segundo livro, o autor fala da conformação física do homem, enumerando a sabedoria com a qual são distribuídos os órgãos que presidem os sentidos; particularmente, há uma passagem surpreendente que, junto a toda a argumentação a que dá lugar, poderia ter sido elaborada pelos defensores do princípio antrópico, a teoria segundo a qual o universo, na sua totalidade, teria sido construído em função da vida do homem sobre a terra. “Deus levantou o homem da terra e o colocou em posição ereta, de pé, de modo que, contemplando o céu, pudesse ter noção dos deuses. Os homens não são habitantes da terra mas, em certo sentido, são expectadores, a partira da terra, das realidades superiores e celestes, cuja contemplação não se vê em nenhuma outra espécie de seres vivos”.
A afirmação demonstra o quanto os antigos, mesmo os mais pragmáticos como os Romanos, soubessem cruzar o limiar da pura observação das coisas para chegar a seu objetivo: neste caso da posição ereta do homem, Cícero chega à conclusão que ela foi querida para favorecer a busca do princípio. Exatamente ele que dedicou a maior parte da sua atividade ao governo da res publica e que, nos períodos nos quais, por causa das contínuas mudanças políticas de Roma, foi obrigado a recuar para o otium, ou para a pura busca intelectual, ocupou-se, mesmo que em função política, de um tema especulativo de grande interesse para quem queira conhecer o pensamento dos antigos. Falando dos deuses, Cícero fala, na realidade, dos homens e reconhece na sua conformação física a marca dos únicos seres a quem foi dada a tarefa de indagar a realidade celeste: uma concepção alta do homem, que funda toda a atividade intelectual que Roma, depois, transmitiu ao ocidente com o nome de humanitas.
De modo mais poético, um profeta do Antigo Testamento, que viveu no século VIII antes de Cristo, usa expressões semelhantes. Oséias dá voz à repreensão de Javé contra Israel: O meu povo é duro para converter-se: / chamado a olhar para o alto / nenhum sabe levantar o olhar.
São vozes antigas, de milênios, mas o seu chamado de atenção é sempre atual, se se ler de dentro de nossos problemas de modernos. Há muitos séculos o céu é sim lugar da pesquisa, mas se tornou, de certa maneira, mais distante, não apenas porque instrumentos cada vez mais potentes dilataram o espaço da pesquisa; a beleza e a ordem do cosmo convidam raramente a ultrapassar aquilo que se vê, para fixar os olhos da mente sobre as coisas invisíveis. Por isso, frequentemente os modernos se concebem apenas como habitantes da terra e a usam a seu bel prazer, sem a atenção devida àquilo que dá a eles a hospitalidade temporária.
Mas, o homem comum sabe que olhar para o céu é um modo simples para não se sentir sozinho, mesmo que no deserto cheio de gente das metrópoles, é uma ocasião para refletir sobre a vastidão do conhecimento e mais ainda sobre tudo aquilo que existe. Não deveria ser difícil neste ponto formular a pergunta que torna verdadeiramente homens, e que Leopardi soube exprimir tão bem: Por que tanta candeia? / Por que estes ares infinitos, este / Infinito profundo, sereno, esta / Imensa solidão? E eu, que sou eu?
Mesmo se a pergunta ficasse sem resposta, ela já daria a dimensão adequada para a vida do homem. E caso acolhese a resposta – Pai nosso que estais nos céus – a sua dignidade de criatura razoável e livre encontraria o abraço.

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 22 de janeiro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Quid est veritas? Est Vir qui adest...

Discurso do Santo Padre Bento XVI

À Federação Italiana dos Semanários Católicos

Sala Clementina, sexta-feira, 26 de novembro de 2010.

Prezados irmãos e irmãs!
Estou feliz por me encontrar convosco, por ocasião da Assembleia da Federação Italiana dos Semanários Católicos. Dirijo a minha cordial saudação a Mons. Mariano Crociata, Secretário da Conferência Episcopal Italiana, aos Prelados e Sacerdotes presentes, bem como a Padre Giorgio Zucchelli, Presidente da Federação, a quem agradeço as amáveis palavras. Saúdo todos vós, dirigentes e colaboradores dos 188 jornais católicos representados na Federação; de modo particular, o Diretor da Agência SIR e o Diretor do jornal Avvenire. Estou grato por este encontro, com o qual vós manifestais a vossa fidelidade à Igreja e ao seu magistério; agradeço-vos também o apoio que continuais a oferecer para a coleta do Óbolo de São Pedro e para as iniciativas benéficas promovidas e sustentadas pela Santa Sé.
A Federação Italiana dos Semanários Católicos reúne as publicações semanais diocesanas e os vários órgãos de imprensa de inspiração católica de toda a península itálica. Ela surgiu em 1966 para responder à exigência de desenvolver sinergias e colaborações, destinadas a favorecer a preciosa tarefa de fazer conhecer a vida, a atividade e o ensinamento da Igreja. Criando canais de comunicação entre os diversos organismos de imprensa locais, espalhados por toda a Itália, desejou-se responder à exigência de promover a colaboração e dar uma certa organicidade às várias potencialidades intelectuais e criativas, precisamente para aumentar a eficácia e a incisividade do anúncio da mensagem evangélica. Esta é a função peculiar dos jornais de inspiração católica: anunciar a Boa Nova através da narração dos acontecimentos concretos que são vividos pelas comunidades cristãs e das situações reais em que elas mesmas estão inseridas. Como uma pequena quantidade de fermento, misturado com a farinha, faz levedar toda a massa, assim também a Igreja, presente na sociedade, faz crescer e amadurecer aquilo que nela existe de verdadeiro, de bom e de belo; quanto a vós, tendes a tarefa de prestar contas desta presença, que promove e fortalece aquilo que é autenticamente humano e que transmite ao homem de hoje a mensagem de verdade e de esperança do Senhor Jesus.
Como bem sabeis, no contexto da pós-modernidade em que vivemos, um dos desafios culturais mais importantes diz respeito ao modo de entender a verdade. A cultura predominante, aquela que é mais difundida no areópago midiático, assume em relação à verdade uma atitude cética e relativista, considerando-a como simples opinião e, por conseguinte, legitimando como compatíveis e legítimas muitas "verdades". Mas o desejo que existe no coração do homem dá testemunho da impossibilidade de se contentar com verdades parciais; por isso, a pessoa humana "tende a uma verdade superior, que seja capaz de explicar o sentido da vida; trata-se, por conseguinte, de algo que só pode encontrar êxito no absoluto" (João Paulo II, Encíclica Fides et ratio, 33). A verdade, da qual o homem tem sede, é uma pessoa: o Senhor Jesus. No encontro com esta Verdade, ao conhecê-la e amá-la, nós encontramos a paz autêntica e a felicidade genuína. A missão da Igreja consiste em criar as condições para que se realize este encontro do homem com Cristo. Colaborando para esta tarefa, os órgãos de informação são chamados a servir a verdade com coragem, em vista de ajudar a opinião pública a observar e a interpretar a realidade a partir de um ponto de vista evangélico. Trata-se de apresentar as razões da fé que, enquanto tais, vão além de qualquer visão ideológica e têm pleno direito de cidadania no debate público. É desta exigência que nasce o vosso compromisso constante de dar voz a um ponto de vista que reflita o pensamento católico em todas as questões éticas e sociais.
Estimados amigos, a importância da vossa presença é testemunhada pela difusão minuciosa dos jornais por vós representados. Esta difusão passa através do instrumento do papel impresso que, precisamente pela sua simplicidade, continua a ser uma caixa de ressonância eficaz daquilo que acontece no interior das diversas realidades diocesanas. Por isso, exorto-vos a dar continuidade ao vosso serviço de informação a respeito das vicissitudes que marcam o caminho das comunidades, da sua vida cotidiana e das numerosas iniciativas caritativas e benéficas que elas promovem. Continuai a ser jornais do povo, que procuram favorecer um diálogo autêntico entre os vários componentes sociais, academias de confronto e de debate leal entre diversas opiniões. Deste modo os jornais católicos, enquanto cumprem a importante tarefa de informar, realizam ao mesmo tempo uma insubstituível função formativa, promovendo uma inteligência evangélica da realidade complexa, assim como a educação de consciências críticas e cristãs. Com isto, vós respondeis também ao apelo da Conferência Episcopal Italiana, que pôs no centro do compromisso pastoral da próxima década o desafio educativo, a necessidade de dar ao povo cristão uma formação sólida e robusta.
Caros irmãos e irmãs, cada cristão, através do sacramento do Batismo, torna-se templo do Espírito Santo e, imerso na morte e na ressurreição do Senhor, é consagrado a Ele e pertence-lhe. Também vós, para cumprir a vossa importante tarefa, tendes de cultivar em primeiro lugar um vínculo constante e profundo com Cristo; somente a profunda comunhão com Ele vos tornará capazes de transmitir o anúncio da Salvação ao homem contemporâneo! Na laboriosidade e na dedicação ao vosso trabalho cotidiano sabei dar testemunho da vossa fé, o grande dom gratuito da vocação cristã. Continuai a manter-vos na comunhão eclesial com os vossos Pastores, de maneira a poderdes colaborar com eles como diretores, redatores e administradores de semanários católicos, na missão evangelizadora da Igreja.
Ao despedir-me de vós, gostaria de vos assegurar a minha recordação em sufrágio do saudoso Mons. Franco Peradotto, falecido recentemente, primeiro presidente da Federação Italiana dos Semanários Católicos e, durante muito tempo, diretor da Voce del Popolo, de Turim. Enquanto confio a Federação e o vosso trabalho à intercessão celestial da Virgem Maria e de São Francisco de Sales, concedo-vos de coração, a vós e a todos os vossos colaboradores, a Bênção Apostólica.

* Texto extraído do site do Vaticano, do dia 26 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Quem defenderá uma criança de um adulto cético?


Por Carlo Fedeli 

No clima geral de discussão que, nos últimos meses, investiu o sistema escolar e formativo, voltou às primeiras páginas dos jornais e para a boca da opinião pública a ideia de “cursos de filosofia”, propostos às crianças desde a infância. A França parece estar na vanguarda, se for verdade que estão encontrando um certo sucesso os “atelier filo” [atelier de filosofia"; ndt] e as coleções de livros para “Petits Platons” ["Pequenos Platões"; ndt].
Do que se trata? Em poucas palavras, trata-se da difusão de projetos didáticos e formativos que declinam, em várias modalidades, a proposta da philosophy for children, trazida à baila pelo estudioso americano Matthew Lipman nos anos 1970. Essa proposta objetiva preparar, desde a mais tenra infância, a criança para o “filosofar”, ou seja, para a arte de pensar criticamente a si mesmo e à própria relação com a realidade e com os outros, num contexto de relações sociais e intelectuais que deveriam promover, a partir da escola, uma reforma e um projeto da toda a sociedade na direção de uma ideal “comunidade de pesquisa”.
O que está na origem de tais projetos? Essencialmente, uma “filosofia da educação” que afunda as próprias raízes no pragmatismo e no cognitivismo do século XX, particularmente nas teorias de seus grandes mestres – Dewey e Piaget. Podemos resumir assim (perdoem-me a simplifiação) os princípios fundamentais: a natureza convencional do conhecimento; a concepção da mente humana como refinado elaborador de informações; os critérios e as metodologias do construtivismo social e da hermenêutica como linhas-guias do diálogo entre as gerações; a fé na comunicação e na pesquisa como vias mestras da construção de uma verdadeira democracia – entendia, sob o ponto de vista tanto intelectual quanto político, como processo contínuo de reconstrução crítica da experiência individual e coletiva. 
Até este ponto é que chega o núcleo teórico e a profundidade de campo, histórico-cultural, da philosophy for children – sobre a qual existe uma literatura científica, à qual é possível se remeter para eventuais aprofundamentos. Agora, vejamos duas ideais de reflexão sobre a pertinência educativa de propostas deste tipo, ou similares.
A primeira vem da verificação do “alcance” de que seria capaz, segundo as tradições de pensamento recordadas, o nosso conhecimento. De acordo com a matriz deweyana, os projetos da philosophy for children movem-se principalmente por dois pressupostos de métodos, que se podem resumir nas seguintes equivalências: “conhecer” significa “pensar”, e “pensar” significa “pesquisar”. Agora, porém, estaremos seguros de que estes dois atos ou momentos sejam capazes de esgotar toda a inteira gama cognoscitiva da razão humana e representar a fonte única que está no centro do seu dinamismo? Não seria necessário que se apontassem outros atos ou dimensões suas, também constitutivos, fecundos e expressivos da sua tensão estrutural para o conhecimento? E, por isso mesmo, tão dignos de serem colocados como fundamentos de um programa – mesmo escolar – de educação intelectual? 
Talvez, a nossa inteligência tenha um espectro cognoscitivo mais amplo do que apenas “pensar” e “pesquisar” – flexões, deve se dizer, nobilíssimas da razão. Sem ser filósofo, Alessandro Manzoni chegou mais perto do que muitos, naquele trecho de Os Noivos que tem valor de tratado de gnoseologia e de lógica: “observar, escutar, comparar, pensar, antes de falar”. Eis uma bela criteriologia para o exercício racional de que tem necessidade o homem desde a mais tenra infância (porque é verdade: o peso do conformismo, das convenções e do preconceito se faz sentir desde pequenos) e para um programa de educação intelectual equilibrado, que não corra o risco de enfatizar o papel do raciocínio ou da dialética, em detrimento da importância insubstituível, de um lado, da atenção, da observação e da exploração do real, de outro lado, da escuta das civilizações e das culturas do passado, que nos falam através da tradição. Risco de enfatizar, que seja dito entre parênteses, tanto mais deletério e perturbador na infância, sobretudo se for verdade, como demonstraram Piaget e Bruner, que, para se desenvolver, a inteligência precisa do relato, da representação e da ação, antes que do conceito lógico-formal.
A segunda ideia de ponderação crítica nasce da consideração de que, por mais que seja formalmente semelhante, a pergunta sobre o “por que” e o “pensar através das palavras” (ou seja, segundo a etimologia, o “dialogar”) podem assumir formas e direções diversas na boca e na mente de uma criança e de um adulto, e conduzir a sua conversa a resultados também muitos diferentes.
Na criança, a pergunta nasce, normalmente, como movimento de busca por uma explicação, diante de coisas ou acontecimentos para ela ainda parcialmente “desconhecidos”: ou seja, sem causa evidente, nem manifesta. Sem a comunicação e o relato, por parte do adulto, de uma evidência mediata, “raciocinada”, realmente percebida como hipótese de explicação adequada, a criança continuará inexoravelmente a pedir. Nela, a pergunta – certamente que com todo o “realismo ingênuo” do caso; mas também “a partir de dentro” de um relacionamento de confiança com o adulto (ao qual, de outra forma, não se voltaria) e com uma exigência, uma instância de verdade que não admite traição (quem, ainda que apenas uma vez, desiludiu uma criança sabe muito bem disso) – exprime a tensão ao verdadeiro, própria e constitutiva da razão comum a ambos.
Como tal, por isso, do ponto de vista pedagógico, toda pergunta da criança é uma graça para o início do processo cognoscitivo e do relacionamento educativo. Como primeiríssimo “movimento” pedagógico, a pergunta solicita que o adulto leve a sério a provocação de busca expressa “pela” e “na” pergunta: recolhendo humildemente a antecipação de verdade que urge nela, como indicação de percurso (ou seja, da direção na qual a inteligência é provocada a se mover), e valorizando cada outro sinal proveniente do contexto no qual a pergunta se acendeu, ou da realidade que a suscitou.
Exatamente neste ponto se coloca a questão mais delicada – que, obviamente, vale não apenas para a “filosofia para crianças”, mas também para qualquer outro ensinamento ou prática formativa; e também, se pensarmos bem, para todo pai e mãe. Exatamente porque desenvolvido cognitivamente (ou seja, equipado com competências reflexivas, críticas e metodológicas) e eticamente (por isso, melhor dotado de poder e de planejamento), o adulto pode sim acolher o desafio da pergunta da criança, e acompanhá-la na busca pela verdade. Então, mesmo ela se tornará “filósofa”, mesmo quando você não ensinar filosofia, mas ensinar português, aritmética, música, história (e assim por diante), ou mesmo quando você desenvolver com ela qualquer outra ocupação (mesmo a mais humilde).
Mas, as coisas podem seguir outro caminho. O nosso adulto poderia escapar, de um modo ou de outro, da pergunta da criança. Poderia lhe dar uma resposta puramente conveniente. Poderia também tentar desativar o seu potencial de verdade, tentando fazê-la parecer algo “relativo” (à época histórica, ao contexto cultural, ao nível social etc.) ou “funcional” (à realização do interesse individual ou coletivo, ao progresso da sociedade, à afirmação de uma ideia política, ao crescimento do “saber crítico”, e assim por diante).
Agora, na medida em que se reporta aos seus pais e, dentro e fora da escola, aos adultos (professores ou não), um pré-adolescente ou um adolescente pode contar com a consciência de si e do verdadeiro, amadurecida aos poucos em si, para poder reconhecer nesse ou naquele adulto um “interlocutor credível” para a própria educação, e estabelecer livremente, sobre este fundamento, os vínculos necessários e as defesas oportunas. Ele, certamente, será tanto mais afortunado quanto mais “Sócrates” encontrar (parece-me, porém, que figuras desse nível intelectual e moral, hoje em dia, sejam bastante raras, um pouco em todos os campos...). Mas se se tratar de uma criança da educação infantil ou fundamental?
Como exercitar a liberdade de busca intelectual e o exercício do discipulado, se as perguntas a serem colocadas, os conceitos a serem analisados e discutidos, os métodos de pensamento predispuseram e compuseram neles outros? Se o seu relacionamento com a realidade é “filtrado a priori” por um esquema adulto (muito seletivo ou decididamente orientado), sem que ele tenha tido a possibilidade de avaliá-lo criticamente? Por causa da evidente assimetria, a criança não pode competir em pé de igualdade com o professor que conduz o jogo; nem tem a possibilidade de se libertar, quando pressentisse que, na sua busca pela verdade, ele não foi leal até ao fundo com a exigência de significado, mas se afirmou um pouco antes – já perto das Colunas de Hércules do ceticismo, do relativismo, do “politicamente correto”.
Se não se leva realmente a sério, até ao fundo, o mote que marcou a fundação do Instituto J. J. Rousseau em Genebra, em 1912 (Discat a puero magister – O mestre aprenda da criança), e todas as formas de ensino e de educação, correr-se-á o risco, mesmo com as melhores ou “mais filosóficas” boas intenções, do autoritarismo (mesmo na forma mais branda e mascarada do paternalismo iluminado). A menos que tomemos igualmente a sério (e contra sua própria opção imanentista) a aguda intuição que fez Dewey dizer, em Democracia e educação, que “toda pesquisa é nativa, originária, para aquele que a efetua, mesmo se o resto do mundo já esteja seguro daquilo que ele ainda está buscando”. Ou seja, mesmo se a geração adulta estivesse de tal forma segura de si, a ponto de se esquecer, ou de se ter esquecido, de que “todos os grandes foram pequenos uma vez” e de que “há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que pensa a tua vã filosofia”.

* Texto extraído do IlSussidario.net, do dia 15 de dezembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Italo Calvino: “o humano chega aonde chega o amor”


Por Alessandro Banfi

Há vinte cinco anos atrás morria, em Siena, o escritor italiano. A sua abordagem científica da realidade, a poderosa fantasia e o registro envolvente o tornaram célebre. Resta o lamento de não o ter encontrado...

Era uma vez um escritor que nos deu o gosto de ler Ariosto [trata-se de Ludovido Ariosto (1474-1533), poeta italiano; ndt], de contar uma fábula, de sonhar com uma existência inteira passada em uma árvore. Mas que também nos permitiu o gosto da escrita da prosa em hendecassílabos. Chamava-se Italo Calvino, nome fascinante e autêntico, apesar das aparências. Morreu há vinte cinco anos atrás num hospital de Siena, deixando-nos o incômodo de não termos lido suficientemente sua literatura arguta. Sua crítica literária, mas também sua narrativa. E, aqui, não queremos dar um juízo de valor, juízo que, por tanto tempo, não chegou a esclarecer e que ainda divide os críticos. Foi um grande escritor, mas entre os menores do século XX, para citar o que Geno Pampaloni [(1918-2001), jornalista e escritor italiano; ndt] escreveu, quando Calvino faleceu? Ou será que ele foi um gênio anti-manzoniano absoluto, como Goffredo Parise [(1929-1986), jornalista e escritor italiano; ndt] sustentou numa visão compartilhada, certamente ainda hoje, por seu amigo Eugenio Scalfari [jornalista, escritor e político italiano nascido em 1924; ndt], fundador de La Repubblica [jornal italiano que circula desde 1976; ndt]?
É difícil entrar nessa disputa com uma opinião definitiva. Para mim, leitor apaixonado, Calvino é, antes de mais nada, um amante da palavra e do mecanismo narrativo. Um autor racional e iluminista, sempre em busca da verdade, quase científica. Um empirista, para quem os sentidos contam, quando escancaram para a imaginação. Antes e não obstante toda teorização e superestrutura. Como os seus pais amaram a natureza através da botânica, assim também ele, desde jovem, descobriu na linguagem e no relato a chave, quase científica, para redimir a realidade, para atenuar suas dores e evitar suas armadilhas. Para buscar, na nossa vida labiríntica e objetivamente irônica, o percurso para chegar à completude. Passando através do neo-realismo de A trilha dos ninhos de aranha até chegar à fábula urbana do Marcovaldo. Com Calvino é possível ir à lua, como acontece com Ariosto, mas se atravessa também a história, como acontece com Manzoni [Alessandro Manzoni (1785-1873), escritor, poeta e dramaturgo italiano; ndt].
Certamente, a impressão que fica é que tanta literatura, nele, tenha mantido a vida distante. Aquela vida violenta e verdadeira de todos os dias. Mas, não é assim. Da aparência gelada, da leveza ariostesca, passa-se, às vezes, para um registro autenticamente envolvente e emotivo que coloca a questão no centro. Ele escreve em O dia de um escrutinador: “O humano chega aonde chega o amor”. E é, de fato, assim: a sua abordagem racional, científica da realidade convive com uma poderosa fantasia. Resolve-se na imaginação. O seu aparente distanciamento emotivo não cancela o coração, mas, pelo contrário, frequentemente o repropõe como instância última no final de uma trajetória. Como acontece para todos os gênios (Calvino, junto com Primo Levi, é o escritor italiano do século XX mais conhecido no mundo), o seu relato, ao final, coloca uma pergunta sobre a verdade. A sua busca, basta pensar na coletânea estupenda das Fábulas Italianas, chega a colocar a questão da identidade do homem e da sua comparação com o destino. A sua oscilação entre a prosa e a poesia (mesmo no seu Se um viajante numa noite de inverno) leva ao núcleo duro da narração e da língua. E, no fundo dela, assim como nos primeiros versículos do Gênesis e do Evangelho de João, há uma profundidade e uma luz que dizem respeito ao relacionamento misterioso e, ao mesmo tempo, histórico entre o ser humano e Deus. É como para Primo Levi [(1919-1987) escritor italiano; ndt]: resta-nos o lamento de não termos falado com ele, de não o termos encontrado ou de não o termos feito encontrar alguém que lhe pudesse comunicar, de verdade, a única histórica que realmente conta. A grande narração que, hoje, nos salva. Mas, isso vale para todos, todos os dias. Mesmo para nós e para o nosso vizinho no metrô, que sentimos como estranho e a quem não temos a coragem de dizer: vem e vê, há alegria neste mundo.

* Extraído de Tracce.it, do dia 21 de setembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O eu renasce em um encontro



Rímini, 28 de agosto de 2010.

Fabrice Hadjadj nasceu em 1971, em Nanterre. É filósofo e intelectual francês, de cultura judaica, converteu-se ao cristianismo em 1988. Colabora com Figaro Littéraire e Art Press, ensina filosofia e literatura na escola católica Sainte-Jeanne-D'Arc de Brignoles. Autor de diversos livros, venceu, em 2006, o Grand Prix Catholique de literatura. O texto abaixo é a transcrição da conferência proferida pelo filósofo no âmbito do Meeting pela Amizade entre os Povos, edição de 2010, no dia 28 de agosto de 2010. A conferência pode ser assistida aqui.

Por Fabrice Hadjadj
Obrigado. Fico muito feliz de estar aqui com vocês. Retorno este ano, depois de minha participação no ano passado, tendo tido, por isso mesmo, a oportunidade de reencontrar amigos. Gostaria de agradecer especialmente ao Padre Carrón que me convidou, e também ao meu amigo Ugo Moschella que tinha traduzido para o italiano essa minha conferência, porque eu havia pensado em proferi-la em italiano, mas me dei conta de que era um exercício de ventríloquo muito difícil e que, fazendo esse exercício, não conseguiria entender quem seria o ventríloquo e quem seria a marionete. Por isso, escolhi lê-la em francês.
Seja como for, meu embaraço é grande: tenho que falar com vocês sobre um livro cujo título é L’io rinasce in un incontro [O eu renasce em um encontro, ainda não traduzido para o português; ndt], que me coloca numa situação extremamente difícil porque, se este título diz a verdade, se esta conferência neste meeting é um momento do Meeting, e portanto se esta conferência é um encontro, então devo falar de modo tal que possamos renascer, devo experimentar, de alguma maneira, fazer um exercício de ressurreição e é exatamente isso que, no fundo, todos nós estamos esperando. Por que estamos aqui? Por que tantos e de tantos lugares distantes? Será que para receber informações suplementares e encher nossa cabeça como se enche uma enciclopédia? Mas, por maior que seja a nossa cabeça, um dia, deverá cair; e não fará outra coisa melhor do que cair com o peso de todo este saber morto, que já era mortal em si mesmo desde o momento em que não nos fez nos darmos conta da esperança de uma ressurreição. Mas, uma vez dito isto, eis que um peso insustentável pesa sobre mim, ou melhor, uma insustentável leveza pesa sobre nós, porque, como fazer para ressuscitar, como fazer para que o nosso encontro seja um renascimento? Mas, pode acontecer que a pergunta tenha sido mal colocada, porque talvez não se trate tanto de fazer, pois se se tratasse de fazer a partir do meu projeto, a partir do meu discurso, um discurso brilhante, um discurso que seduz a plateia, não haveria nenhum encontro, nenhum acontecimento, porque tudo seria o efeito de um programa e perderia, portanto, o frescor exuberante de um nascimento. Então, como fazer para que não seja apenas um fazer? Como se dispor ao encontro, como permitir que o encontro aconteça de tal forma que fiquemos prontos a nos deixarmos transformar por aquilo que acontece? E como ser transformado pelo outro de tal modo que a mudança não seja uma alienação, mas uma realização, uma ressurreição? A dificuldade não é apenas a de se dispor a um renascimento, mas também é a de reconhecer aquilo que pressupõe este renascimento. Com efeito, alguém poderia objetar: “Por que renascer? Já não nasci? Já não sou eu mesmo? Por que teria necessidade de um encontro para que o meu eu possa renascer?”. De fato, para desejar renascer, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que se está morto. Isso, frequentemente, é esquecido, mas apenas com um bom morto é que se pode fazer um bom ressuscitado. A boa notícia, a boa nova da misericórdia infinita pressupõe a má notícia da nossa miséria infinita, e o meu embaraço – embaraço especial, vocês vão entender – é o de ter que fazer esta constatação diante de vocês: “cada um de nós está morto”. Eu estou morto, talvez não biologicamente, mas espiritualmente, lá onde não entro no encontro, não me abro ao outro, ignoro a existência do meu coração.
Usei a palavra coração. Esta mesma palavra que se encontra no centro deste Meeting. Mas, o que é o coração? Um músculo, mas um músculo estranho porque é um músculo oco, que acolhe em si outro diferente de suas próprias fibras. E também porque, diferentemente dos outros músculos, não depende diretamente da minha decisão. Os 17 músculos da minha língua se ativam em seguida à minha vontade de falar, e se escolho mover a mão é graças a músculos que obedecem ao meu querer; mas o meu coração bate sem que eu lhe ordene. Começou a bater antes mesmo que eu tivesse começado a exercitar a minha vontade, e bate numa velocidade que não fui eu que decidi. É assustador: o centro de mim mesmo não está em meu poder. Aquilo que eu tenho de mais fisicamente íntimo me escapa e, pior, o meu coração bate o seu tum-tum sem me consultar e, portanto, pode parecer para mim como uma espécie de hóspede selvagem, um membro de uma tribo primitiva que bate o ritmo de uma dança canibal. Porque eu sei que, da mesma forma que começou a bater sem que eu o quisesse, pode muito bem parar de bater daqui a pouco sem que, ao menos, nesse caso, eu o queira, e será o fim da dança, será o momento no qual a vítima deverá ser consumida. Assim, o coração é o sinal do ser recebido, mas também do ser oferecido. O sinal de que não me dei a vida, mas também de que devo oferecer a minha vida se não quero apenas perdê-la, porque, seja como for, todo o sangue que escorre deverá ser derramado, mas para quê? Para qual ressurreição? Dom Giussani escreve: “a verdade da vida é o seu relacionamento com o mistério de onde nasce, de que nasceu”. Nasce porque ninguém se dá o instante que vive. Trata-se de uma verdade muito concreta – que as batidas do nosso coração se repetem continuamente, no nosso pescoço, nas nossas têmporas, nas nossas orelhas – uma verdade que não paramos de cobrir com uma manta de ruídos para acreditar que somos os artífices da nossa existência.
O sinal de que a vida é, em cada momento, recebida para ser oferecida pode ser observado também em outro lugar, por exemplo, no nosso umbigo. Costuma-se dizer “olhar para o próprio umbigo”, para falar do egoísta, do vaidoso, também para falar daquele que se toma como o centro do universo; mas se você olha de verdade para o próprio umbigo o que descobre? Uma cicatriz, a sua primeira cicatriz que é o testemunho inefável do seu relacionamento com um outro, da sua relação com sua mãe que foi, para você, a primeira morada, e se você não a tivesse encontrado, nunca teria nascido. Assim, o nosso umbigo nos recorda a nossa dependência original de um outro, nos recorda que não somos feitos por nós mesmos e que, no meio de nós mesmos, tem esta ferida que é o sinal de um dom, esta ferida que nos chama a dar, a não temer as feridas se forem para dar a vida.
Outro sinal semelhante ao coração e ao umbigo, mas que nos remete do corporal ao espiritual e que, portanto, nos é apenas um sinal, mas é a prova de que toda a nossa pessoa, corpo e alma, vive apenas por causa do encontro e de dentro do encontro, este outro sinal é a nossa palavra. Assim como se fala em “olhar para o próprio umbigo”, em francês se diz também “escutar-se falar”; mas, ainda uma vez, se você se escutasse de verdade, o que ouviria? Entonações que você herdou do seu pai ou da sua mãe, do seu irmão, ou de um professor admirado, mas sobretudo escutaria as palavras e uma gramática, toda uma língua que você não criou, que você recebeu das vozes dos seus pais como um dom encantado das fadas que sobrevoavam o seu berço; e se você começa a dizer “não quero a comunhão com vocês”, se você diz algo assim, você se contradiz duas vezes. Contradiz-se uma primeira vez porque você se volta ainda aos outros e tem necessidade de voltar-se aos outros para afirmar a sua posição e, portanto, você demonstra, dessa forma, uma necessidade, ainda que negativa, de comunhão. E você se contradiz  uma segunda vez porque as suas palavras provêm já de uma comunhão, de uma comunidade linguística, e mesmo que você fale sozinho sempre será escuta e direção, resposta e pergunta essencialmente ao outro. Assim, a sua língua é como o seu coração: está em você, na sua boca e testemunha que você não se deu a sua vida sozinho e que a vida não é uma propriedade sua. Ela testemunha, apesar de você, um encontro; testemunha, apesar de você, uma esperança. Por exemplo, antes você disse “bom dia” e, por trás disso, havia, apesar de você, o chamado de atenção para um dia verdadeira, inteira e absolutamente bom, a invocação da glória. Ou ainda: você disse “até logo”, e isso significa que, com a sua boca, você anunciou o desejo de rever o outro e, ainda e sempre, mesmo que com o seu tu superficial você tenha achado esse outro antipático ou tenha exclamado “que vida de merda”, ainda assim, como poderia dizer isso se não tivesse em você, apesar de você, o pressentimento de uma vida melhor, mais viva, eterna e alegre? Sem este pressentimento, sem esta esperança, tal exclamação não estaria na sua boca e você encontraria a merda de que mais gostasse. É possível entender, portanto, a verdade profunda desse versículo do Deuteronômio: “Este mandamento, que hoje te ordeno, não te é encoberto, e tampouco está longe de ti (...). Esta palavra está mui perto de ti, na tua boca, e no teu coração, para a cumprires”.
Sei que muitos dos que estão aqui conheceram um renascimento através do encontro com Dom Giussani. Talvez porque Dom Giussani era um orador mais brilhante do que os outros? Não, mas porque era mais pobre, mais pobre de espírito do que muitos outros e, por isso, não conduzia simplesmente os homens a si, mas através de si os conduzia à fonte, à origem, à luz, chamando a atenção dos homens assim para eles mesmos, para a sua própria originalidade. Era suficientemente pobre para ser transparente, suficientemente pobre para não ser brilhante, mas luminoso, não capturando a luz para si mesmo mas deixando-a passar através de si. Também o fruto desse encontro – como de todo encontro verdadeiro – não é o fornecimento de novas informações, como uma reportagem sobre um país estrangeiro, mas muito mais a renovação daquilo que existe já desde sempre, o reviver de uma Presença. Isso é incomparavelmente mais importante, porque está em jogo não o saber algo a mais, sempre a mais, sem fim, para divertir-se melhor, para se distrair melhor, mas para retornar, retornar para o fato de nossa existência e descobri-lo como um fato mais fadado que fatal. Algo existe, eu sou, eu existo, eu dou testemunho. É este o primeiro fato, é este fato que é a verdadeira atualidade, o verdadeiro acontecimento, princípio de todos os outros com a sua pergunta própria: “Por que estou aqui?”. O desafio é, portanto, não o de se fabricar uma resposta imaginária e artificial, mas tomar consciência daquilo que somos, daquilo que se joga na nossa língua e no nosso coração, escutar esta palavra que está muito próxima de você, na sua boca e no seu coração para que você a viva finalmente.
Como Giussani escreve no livro L’io rinasce in un incontro, vivemos numa fragilidade de consciência maior, uma fragilidade que não é ética, mas de energia da consciência. A fragilidade não é nem ética nem científica. As soluções científicas não nos faltam, pelo contrário temos tantas que podemos vendê-la, temos até mesmo soluções finais; porém nos faltam terrivelmente não soluções, mas perguntas, chamados de atenção, um drama que nos envolva e nos dê não uma solução mas um sentido e, ainda mais, não um meio de nos protegermos mas um objetivo pelo qual nos doarmos. Também não estamos aquém dos padrões moralizantes, pelo contrário, somos incessantemente atacados por ordens e regulamentos, a publicidade, por exemplo, não para um só instante de nos dar ordens: compre isto, pegue aquilo, com a nova BMW você conhecerá a alegria, com o salame Neuroni você vai encontrar o gosto do verdadeiro, com Tiscali o caminho é aberto. A publicidade nos fala como os pregadores da Idade Média, nos propõe o céu, mas graças a um salame, a uma lava-louças ou a uma conexão com a internet. No fundo, o mundo, para seduzir, não pode fazer outra coisa senão parodiar a Igreja – Satanás é o macaco de Deus, dizia São Jerônimo – e é por isso que o mundo deve se fazer mais moralizador do que a Igreja. Mesmo quando o mundo declara que você deve gozar, é ainda um “você deve”. Porque o objetivo fundamental por trás dessa ordem de gozar imediata e cegamente – e digamos ainda mais tristemente –, a intenção que se esconde atrás dessa ordem de gozar e de fazer gozar, que antes de mais nada é uma ordem de dominação e de performance, e não uma ordem de encontro e de comunhão, a ordem de tristeza profunda que se dissimula atrás desta ordem de gozo superficial, como que um porco engorde, é o esforço para sufocar o desejo. Dom Giussani o diz muito claramente: o poder, de fato, ou a exaltação da mentira como instrumento, o que faz? Tende a reduzir o desejo, o poder tende a reduzir o desejo. A redução dos desejos ou a censura de alguma das exigências, a redução dos desejos e das exigências é a arma do poder. Eis a arma do poder; e esta redução do desejo, afirma Giussani, não é outra coisa senão a tentativa de abolir a humanidade.
Há, hoje em dia, todo um movimento extremista, bastante característico do nosso tempo, que se chama trans-humanismo. Ele admite claramente as próprias intenções, trata-se de realizar, através da chamada Paradise engineering, um super-homem: graças à biogenética, à neuroquímica, às nanotecnologias deve-se sair do humano para seguir em direção do pós-humano ou, como dizem, do trans-humano, para fabricar um super-homem livre de todo sofrimento, absolutamente competitivo, adaptado às necessidades do mercado e sempre seguro de si e do próprio bem-estar. Mas, se pensarmos sobre isso por um instante que seja, nos daremos conta de que estes super-homens são superados desde o princípio, cada progresso tecnológico sempre dará um jeito para que cada nova geração de super-homens torne obsoleta a precedente, boa apenas para ser jogada no lixo como aqueles velhos computadores que parecem tão distantes de nós como se fossem uma descoberta arqueológica. Como o homem terá sido reduzido no seu desejo e terá sido reconduzido a algo de funcional, será tão deteriorável quanto um bem de consumo, a sua perenidade será pensada em função do progresso técnico e será, portanto, frágil e fugaz como um telefone celular de última geração. Eis porque os super-homens são os dinossauros do futuro.
Vocês que são italianos na maior parte devem estar impressionados com esta palavra – trans-humanismo. De fato, o primeiro a empregar este termo como verbo, o primeiro a formar este neologismo foi Dante. Vocês conhecem aqueles versos do primeiro canto do Paraíso: “Transumanar significar per verba non sia poria”, não se pode dizer trans-humanar através das palavras, “però l’esempio basti”, mas o exemplo deve bastar, “a cui esperenzia grazie serva”, a quem, àquele ao qual a Graça conservou a experiência. Aqui, Dante é profeta, nos fala que trans-humanar é a maior coisa que o coração deseja, mas esta grande coisa se torna pequena tão logo pensamos em poder chegar até ela através de nossas próprias palavras, através de nosso poder. Para chegar até lá é preciso a onipotência de uma Graça, é preciso o encontro com um Outro. Este é o exemplo que nos dá o poeta, mas o exemplo não foi suficiente porque perdemos o senso da experiência, a graça da experiência, em benefício do orgulho e do planejamento.
Nesse ponto, podemos entender que o poder não teria nenhum poder se não existisse em nós o desejo de coisas grandes, se só existisse aquele desejo em que tão logo nos baseamos nele nos desvia, como acontece com o Calígula de Camus – ele petrifica a sua magnanimidade, pulveriza a sua grandeza em distração e, finalmente, retorce aquele desejo contra si mesmo para sufocá-lo, porque tão logo o homem pretende divinizar-se de si mesmo para além de todo encontro, para além de toda graça, se torna pesado e se asfixia como aquele que gostaria de um coração que fizesse circular o sangue num circuito fechado sem oxigená-lo, sem precisar respirar o ar que vem de fora e, portanto, recusando aquele poema da respiração como disse Rilke – “Visto que o murmúrio da nossa respiração nos canta, em cada instante, que, para viver, é preciso, em cada instante, receber e oferecer a própria respiração”. A vontade de potência não pode impedir o encontro, porque o encontro é um acontecimento, uma fratura que frustra os nossos planos. O Senhor anula os desígnios das nações, diz o Salmo. Mas a vontade de potência pode abortar o encontro, pode nos fazer acreditar que ele foi apenas uma ilusão, destruindo assim, imediatamente, a incrível aventura, a incrível fecundidade que queria nascer.
Dom Giussani escreve: o poder não pode impedir o despertar do encontro, mas busca impedir que se torne história. O poder busca impedir que o encontro se torne uma história. De qual encontro estamos falando? Daquele com Cristo certamente, mas também daquele com uma paisagem, com um concerto de Mozart, ou com uma garota. Eis, por exemplo: você se encontra com Beatriz ou com Aspásia. O que acontece no instante desse encontro? Você fica tocado com a sua beleza. Certo. A sua beleza é experimentada por você através do seu rosto, do seu corpo, mas o que lhe é oferecido através do seu rosto e do seu corpo é uma música, uma harmonia, uma dança do ser. Porque aquela beleza é como se, no fundo do ser, remontasse até à superfície e mostrasse a sua dança e a sua alegria essencial. E é, nesse momento, que a vontade de potência, o poder, nos sussurra ao ouvido: esta música é apenas uma ilusão, produzida pela sua testosterona. Pegue um preservativo, leve Aspásia para a cama, escolha um quarto e transe com Beatriz. Você verá que a miragem se dissipará. Mas, fazendo assim, você estupra Beatriz, mesmo se ela tenha aceitado, sobretudo se ela aceitou. Você a estupra porque você comete uma violência contra aquilo que entreviu, porque você cospe na música, porque você pisa na dança do ser que lhe foi manifestada no encontro. Enfim, porque você não quis reconhecer a ferida da beleza, aquela ferida que não é diminuição do seu ser, mas oferta de um ser que é maior do que o seu poder, e que levanta você humilhando-o, diviniza você destruindo o seu orgulho. Giussani chama atenção para isso. Isso é importante para o mundo: impedir ao homem alcançar a própria ferida, impedir ao homem alcançar a si mesmo. É uma frase espantosa. Como pode ser que alcançar a si mesmo coincida com o alcançar a própria ferida? É porque isso sempre acontece em um encontro, no impacto e na felicidade de uma hemorragia contínua de sangue recebido e dado. O encontro é ferida, porque é o aparecer de algo que desperta o meu desejo e, ao mesmo tempo, escapa do meu poder. Algo que, ao mesmo tempo, me exalta e me humilha. E pergunta se torna: como abraçar, de verdade, Beatriz? Como entrar em contato com a fonte inacessível da sua beleza? Atenção, não se trata de se servir de Beatriz para ir até a Deus. Isto é o que acreditaram alguns falsos cristãos. Disseram “sigam em direção a Deus e, para fazer isso, desprezem as suas criaturas”. Mas, é como dizer “vá até Dante e diga-lhe que sua Comédia não vale nada”. Não vale nada. O Criador ama a sua criatura. Por isso, ir em direção a Ele é ir em direção dela mais profundamente. Vocês conhecem aquele versículo da carta aos Colossenses que Giussani repetia muito frequentemente, e que exprime sem dúvida a intuição fundamental de todo o seu percurso. Ele, antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nEle. Tudo subsiste em Cristo, e portanto ir em direção a Cristo não exclui nada. Pelo contrário, deve-se ir em direção a Cristo para ir em direção de Beatriz, porque é nEle que ela subsiste, é através dEle que ela é salva, é com Ele que a música da sua beleza pode se desdobrar numa inefável sinfonia.
Então, eis a ressurreição que se aproxima. Mas, é preciso que lutemos contra a mentira de uma autenticidade fabricada pelo nosso próprio poder, que arrisquemos a nossa vida pela beleza, a verdade do encontro e do desejo. Dom Giussani disse isso de modo claro. A luta contra essa mentira pode justamente nos levar a dizer que, talvez, fosse melhor para o homem ser assassinado que perder a própria humanidade. Este é o exercício da nossa ressurreição: preferir mais ser assassinados do que perder o próprio coração. Tal é o testemunho em favor da beleza: preferir mais ser esmagado, desfigurado, cortado em pedaços do que renegar a glória à qual todos somos chamados, mesmo os mais pequenos, mesmo os mais inimigos, mesmo aquele que me faz em pedaços. Como Giussani disse, Cristo não é apenas para os cristãos, não é para os cristãos, é para todos os homens. É o salvador do marxista, do berlusconiano e mesmo do aderente à democracia-cristã. Assim, o cristianismo não é apenas para a paróquia, mas para tudo aquilo que nos circunda, porque tudo subsiste nEle. E é também esta a ressurreição. Não apenas preferir ser morto do que renegar o nosso desejo mais profundo, mas também não acreditar que a ressurreição seja para amanhã e apenas para os fiéis da nossa paróquia, mas que ela começa já hoje e para todos. O nosso trabalho não tem sentido, a não ser que seja voltado para o trabalho de ressuscitar, como diz a poesia de Norwich citada por João Paulo II e por Dom Giussani. Este trabalho de ressurreição não consiste em uma nova aquisição. A ressurreição se encontra numa energia de consciência maior. Ela não é o mesmo que ter algo de outro, mas, finalmente, ser si mesmos, o que não quer dizer fechar-se em si mesmo, mas aceitar as próprias feridas e entrar numa comunhão. Uma maior energia de consciência quer dizer viver amorosamente aquilo que nos é dado. Que você não atravesse a vida como se fosse um vídeo-game, uma cena de fantasmas sem profundidade, mas que você tome consciência daquilo que é agora, e que você esteja presente à presença que funda tudo aquilo que é. Para que você possa dizer, como Nietzsche dizia, melhor do que como Nietzsche dizia, eu sou um destino. Porque você respondeu ao chamado que lhe foi feito de viver até ao fundo a única aventura da sua vida, escutando aquilo que já está na sua boca e no seu coração. Está aqui o coração do mistério cristão. Devemos fazer memória disso. Deus é Trindade, eternamente o Pai gera o Filho na unidade do Espírito. De tal forma que Deus é, em si mesmo, sempre nascimento e encontro, é, em si mesmo, comunhão de pessoas. E cada uma das pessoas divinas tem o seu eu que nasce de um encontro infinito. Portanto, oferecer-se a Deus não é ser absorvido como uma gota d’água no oceano imenso. É encontrar a própria origem e, portanto, a própria originalidade. E, portanto, o próprio nome e o próprio rosto, porque Deus quer que nós O conheçamos face a face, quer que a face de cada um de nós não se perca, mas que seja radiante singularmente, de modo divino e, então, começaremos a ressuscitar, começaremos a ressuscitar quando começarmos a crer que Beatriz ou Aspásia, mas também o Fulano de Tal, ou seja, vocês, eu, o seu vizinho de cadeira, quando começarmos a acreditar que cada um é tal que, como disse Dante, “Dio parea nel suo volto gioire”, que “Deus pareça, no seu rosto, se alegrar”.


* Conferência proferida por Fabrice Hadjadj, no âmbito do Meeting 2010. A tradução - realizada por Paulo R. A. Pacheco - foi feita a partir da transcrição, não revisada pelo autor, da tradução simultânea para o italiano. A conferência foi proferida originalmente em francês.