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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Gramsci tinha razão: somos uma geração mesquinha



Por Mauro Grimoldi

Caro editor,
Escreve quase que movido por um instinto, depois de um diálogo com uma colega minha, mãe de família, que me contou uma confidência recebida de sua filha mais velha.
A menina frequenta o sexto ano e contou à sua mãe a dor que está sentido por uma companheira de sala que revelou a ela, alguns dias antes, o seu sofrimento pela iminente, provável, separação dos pais e o temor de ser afastada da irmã. Que peso é injustamente lançado nas costas de nossos pequenos! Não se trata de um episódio isolado, mas da enésima confirmação de uma inimizade para como nossos próprios filhos, uma verdadeira e propriamente dita hostilidade que nos leva, se se pode dizer assim, a devorá-los, como nos piores pesadelos evocados da literatura mais antiga. Um dos maiores sucessos editoriais japoneses, recentemente traduzido para o italiano (Confissão de Kanae Minato, sem tradução para o português; ndt), conta a vingança, minuciosamente preparada, de um professor do ensino médio contra dois alunos que mataram sua filha de quatro anos. 
Este trecho de Michael Pye, retirado do romance  A camara de inverno, descreve bem uma situação bastante difundida: “No quarto dia em que estavam na estrada, Gretje teve sua primeira menstruação e sua mãe lhe disse que não importava. Sua mãe nunca lhe explicava as coisas, e Gretje era a obrigada a colocar junto o mundo, colando todos os fatos ou as noções nas quais tropeçava”.
Os tempos que estamos vivendo parecem-me marcados por uma dolorosa contradição: o relacionamento com os filhos é distorcido até a uma verdadeira e propriamente dita inversão de papéis. Os adultos se vestem, falam e pensam como criancinhas e as crianças são jogadas, desde a mais tenra infância, nas realidades próprias do mundo adulto (sexo, dinheiro, poder, guerra...), mesmo após uma exposição midiática contínua. A história de Pin, a criança perdida, sem gosto entre os adultos de uma distante brigada parisiense, contada no romance A trilha dos ninhos de aranha de Italo Calvino, poderia ser lida hoje a partir desta chave de interpretação.
A predileção pelos pequenos tantas vezes repetida por Cristo e a advertência peremptória de não escandalizar o distanciar da Sua Pessoa as crianças nos alcançam a partir de uma faceta da experiência humana que se encarrega de uma responsabilidade urgente e dramática, que ilumina a nossa missão de homens para que a educação seja a obra da vida, até ao ponto de nos consumir. Acho que começo a entender de uma maneira totalmente nova a dedicatória que se encontra anotada num dos primeiros livros de Dom Luigi Giussani: “Aos grandes que nos sabem falar, aos pequenos que nos sabem escutar” (Gioventù Studentesca, 1960), assim como o seu célebre apelo: “Obriguem-nos a andar nus, mas nos deixem a liberdade de educar”.
Certamente, a esta urgência não responderá a ênfase, também ela opressiva, hiperprotetora que defende, justifica e preserva os filhos de todos os orcs malvados que povoam o planeta (quem quiser, pode ler The slap, romance do greco-australiano Christos Tsiolkas) ou o fingimento ostentado de uma cumplicidade amigável muito mais do que a redução da educação a psicologia ou a prática normativo-penal. 
É necessário, vice-versa, que os adultos ajam como adultos, coloquem em ação a sua consistência de homens, que não é nem econômica nem muscular, mas é, em primeiro lugar, a consistência da sua esperança; a que não se alimenta da presunção de ter entendido tudo, mas do ideal que se segue. Por isto, precisamos de um lugar onde possamos seguir homens que seguem o Ideal: em suma, precisamos que a Igreja exista.
Tenho vivo na memória o momento do funeral copta realizado para uma menina egípcia, companheira de sala de aula de minha filha Anna, quando a autoridade mais antiga se inclinava em direção à menor das crianças, que, cantando, a interrogava, para responder, também cantando, às suas perguntas. Parece-me uma boa representação da autoridade, que se apoia sobre si mesma, mas só é segura em virtude da tradição, sólida, duradoura e viva, que recebeu e tornou sua. Como Gramsci escreveu: “Uma geração que deprime a geração anterior, que não consegue ver suas grandezas e o seu significado necessário, só pode ser mesquinha e sem confiança em si mesma. (...) Na desvalorização do passado está implícita uma justificação da nulidade do presente”.
Perto do fim do romance A estrada de Cormac McCarthy, no qual se narra a relação entre um pai e um filho num mundo devastado por uma tragédia que reduziu tudo a cinzas, onde a vida animal desapareceu e muitos homens regrediram a uma forma bestial de canibalismo, o filho pergunta ao pai, moribundo, sobre uma criança encontrada na estrada e que nunca mais foi vista outra vez: “Mas, que o encontrará se ele tiver se perdido? Quem encontrará aquele menino?”. A resposta do pai foi: “A bondade o encontrará. Sempre foi assim. E será ainda assim”.
É preciso dizer que esta resposta vem de um homem que, surpreso com a inclinação natural do filho pelo bem, não a mortificou, julgando-a uma fantasia infantil, mas a acompanhou, guiou e fez crescer, reconhecendo na natureza do filho a única possibilidade de salvaguarda da humanidade não só da criança, mas também da sua, até ao legado esperançoso das palavras que eu mencionei, que se demonstrarão verdadeiras e confiáveis.
Emerge uma imagem da educação que não consiste no encher a criança com as próprias opiniões, mas que se realiza no serviço à sua natureza, para fazê-la crescer e dar a ela aquela segurança que a criança, assim como o jovem, é impulsionado a buscar na pessoa e na vida do adulto.
De outro lado, parece-me que seja possível dizer que o movimento amoroso de Deus que se inclina sobre nós, fazendo-Se homem, nasça da urgência de nos assegurar que aquilo que somos é destinado a se realizar: em virtude da ressurreição podemos dizer com a mesma convicção de Paulo e Timóteo: “estou certo de que Aquele que começou em vós esta boa obra, a levará a realização até ao dia de Cristo Jesus”.
A urgência que os tempos põem a nós adultos – qual seja: a de sermos capazes de gerar, educar, fazer crescer na vida aqueles que colocamos no mundo – parece-me decisiva.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 23 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O que resta do Pai?



Por Jonah Lynch

Impressiona pela profundidade das intuições o último trabalho do psicanalista Massimo Recalcati, Cosa resta del padre? (O que resta do pai?, em tradução livre; ndt), na livrarias pela editora de Raffaello Cortina. 
Vai muito além das minhas competências avaliar a interpretação de Lacan que nutre e sustenta o pensamento do autor. O que gostaria de considerar é apenas uma pequena parte do livro, que porém é uma janela útil para se chegar ao conjunto da proposta de Recalcati. Trata-se de um dos exemplos literários tomados como “testemunhos” ao final do livro: a figura do pai em A estrada, de Cormac McCarthy. Recalcati sintetiza assim a lição que aquele pai nos dá, através do seu testemunho da esperança, do seu “levar o fogo”: “A vida não é abuso, não é luta para o triunfo do mais forte, não é violência cega. A vida é dedicação, cuidado, presença. A dedicação de um pai a um filho. O amor não é amor da vida, não é amor pelo mundo. O amor é amor do nome, é amor por um nome próprio, pelo mais particular, é amor de um pai por um filho. Nunca é amor pelo universal” (p. 162). Na página seguinte, o autor afirma nas entrelinhas uma novidade desta posição quanto ao que diz respeito à tradição cristã: “O verbo existe apenas através de uma criança. Não é mais aquilo que redime e justifica a vida, não é mais aquilo que pode salvar o mundo, mas é aquilo que pode continuar a existir somente através da singularidade de uma vida” (p. 163). O autor conclui a sua interpretação de McCarthy com um decálogo minimalista: “... algo que resiste, que não cede diante do próprio desejo, a algo, uma sobra de pai que, mesmo no esfacelamento e na decomposição niilista de todos os valores, insiste em transmitir com o fogo a vida como possível. Não matar, não comer, não violentar o outro homem. O que sobra do pai é o ser portador do fogo na noite escura de um mundo sem Deus” (p. 168).
Foi exatamente isto que me comoveu em A estrada. O mundo é mais feio quando vivido sem doação. O egoísmo não nos realiza. Com Recalcati, estou convicto de que seja melhor, mais conveniente para si e para os outros, viver a gratuidade, mesmo que seja na ausência de alguma justificativa transcendente.
Mas, me pergunta se a beleza sedutora de afirmar o outro não obstante tudo, “na noite escura de um mundo sem Deus”, não possa também esconder uma falsidade sutil. Este altruísmo parece ter necessidade da cenografia de um mundo desesperado e brutal. De outra forma, o seu esforço nobre e trágico não ressaltaria. Mas quem me garante que o sacrifício e o meu fazer as vezes do Pai-eterno ausente não seja, na realidade, a minha necessidade de me sentir um herói?
A resposta a esta pergunta está na experiência do sacrifício por amor, tema pouco valorizado no livro de Recalcati. Ele chega à soleira do problema, nas últimas páginas, dedicadas ao filme de Clint Eastwood, Gran Torino, mas não o enfrenta.
Não insisto sobre este ponto apenas por um senso de conservadorismo militante, mas porque é estranho como Recalcati recusa o Deus cristão e, ao mesmo tempo, acaba fazendo um retrato Seu em muitos aspectos preciso, comovente e desejável.
Parece que o axioma tantas vezes repetido do “céu vazio” seja simplesmente uma opinião do autor que tem pouco que ver com o conteúdo da sua proposta. Estamos de acordo praticamente em tudo: graças a Deus que o céu não contém a terrível presença do deus de Sartre ou de um pai-tirano como Zeus. Tem razão, é muito sugestivo descrever o pai, com Lacan, como aquele que une desejo e Lei. É fundamental a experiência do limite e da falha, assim como é fundamental experimentar a vida como mistério superabundante, e viver tanto a errância quanto a pertença, trazidas à tona pelo autor com uma referência ao filho pródigo.
Mas quem foi que disse que não há um vínculo forte e real entre a doação de um pobre pai perdido nas cinzas pós-apocalípticas e a suma gratuidade do Pai criador? Por que não afirmar também esta possibilidade? Ela exalta, não elimina, a beleza da “singularidade de uma vida”.
Fico tocado que aquilo que Recalcati propõe e deseja seja justamente aquilo que Jesus fez. Ele não resolveu os problemas. O Onipotente não dominou com seu poder, mas se humilhou e se comunicou a poucas vidas singulares, aos apóstolos.
Não iluminou a noite com uma mágica solução deus ex machina. Mais do que isso: ele transmitiu o fogo da caridade, que rende a vida possível e belíssima, mesmo quando é inteiramente vivida no vale escuro do mundo hiper-moderno. Tu estás comigo: não temerei mal algum. Sobretudo, não temerei que amanhã seja inevitavelmente pior do que hoje. Aquele fogo que Tu me acendeste poderá passar não apenas a um filho, mas a dois, talvez três. Será preciso o tempo, mas assim nascerá um povo luminoso.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 12 de outubro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

Sem Pai não há liberdade: a lição de Maria Zambrano


Por Laura Cioni

No dia 6 de fevereiro, há vinte anos atrás, morria Maria Zambrano. O grande afeto que a ligou a seu pai constitui um dos fulcros do seu pensamento filosófico e poético, capaz de atingir o fundo da vida sem perder a concretude da ocasião na qual ela se manifesta. O eco deste vínculo pode ser visto numa obra intitulada Para um saber da alma:
“Nada é mais decisivo numa vida do que as próprias origens. Por isso, o pai representa muito mais do que um homem de carne e osso que nos gerou. Ele nos dá um nome. Enquanto dura a nossa vida individual, ela será marcada por este nome e, graças a ele, deixamos de ser simplesmente alguém para ser alguém bem definido. A nossa individualidade, assim concreta, está ligada ao nome que recebemos de nosso pai, para nós selo, sinal distintivo. Antes de seres de razão ou de consciência, de instinto ou de paixão, somos filhos, e ser filho significa dever responder, dever justificar-se diante de algo irrevogável. Também é confiança, acreditar na sombra de uma força protetora, que oferece um abrigo do qual não se coloca em dúvida a força e a clemência. É esta a educação fundamental sobre a qual deve se fundar toda e qualquer cultura sucessiva, é a experiência primeira da vida, o encontro originário e decisivo do qual provém todo o resto. É insubstituível.
É difícil se abandonar à vida com confiança, dar crédito a alguma coisa, acreditar, se não tivermos crescido assim, sentindo-nos guiados por uma mão forte e delicada que sabe medir, sentindo-nos observados por um olhar diante do qual não é possível nenhuma simulação, sentindo a nossa fragilidade conectada a um princípio invulnerável. Nenhum acontecimento por terrível que seja conseguirá vencer esta educação, se ela tiver havido; nenhuma catástrofe poderá eliminar esta confiança originária, nenhum rancor poderá cancelar de nossa alma o peso da ternura vinda do alto. Nenhuma injustiça arrancará da alma a confiança ingênua na vida de quem foi guiado paternalmente nos seus primeiros passos”.
Também Sêneca foi, para Maria Zambrano, uma figura paterna, autor muito querido, talvez pela origem espanhola em comum e pela persistência do antigo filósofo na cultura popular da sua terra. O perfil de Sêneca, traçado por ela, é uma verdadeira descoberta para o leitor italiano, que conhece o mestre do estoicismo, o escritor de estilo fragmentado, frequentemente obscuro e difícil de traduzir, o homem que é acusado pela incoerência entre os costumes e a doutrina e de ter falhado na educação de Nero, o homem que é reconhecido pela dignidade de uma velhice apartada e pela fortaleza no suicídio.  
Um pouco de tudo isso aparece na substancia introdução de Zambrano a uma antologia que recolhe trechos da produção de Sêneca. A sua figura, mais do que na impensável ignomínia de seu tempo, está inserida na longa série de filósofos que, a partir de Sócrates, presentearam o ocidente com o culto da razã inteira. Ele é um sábio, “um pai muito viril e muito materno ao mesmo tempo”, que sustenta com a sua força o raciocínio curvado sobre a complexidade que mesmo a vida mais simples leva consigo. A sua paternidade parte de uma compaixão pela frágil puerícia do homem e se exercita levando a ele um consolo que não é simplesmente uma anestesia, mas é a geração de uma alma abrandada e, por assim dizer, resignada. Ele é o mestre dos costuems mais citado na linguagem polida dos pregadores e dos sermões da Andaluzia. A sua moral parte da desilusão do tempo que foge, da morte que domina a existência, mas não é uma moral da inatividade. A sua primeira regra e o trabalho: não uma ação precipitada ou um irriquieto ir e vir, mas um agir que modifica as coisas, um ato que inclui fé, vontade e amor.
Algumas de suas máximas contêm uma sabedoria que parece quase cristã: “Buscamos um bem que não seja aparente, mas sólido e constante e belo de beleza interior, e o trazemos à luz. Não está distante: basta apenas saber para onde estender a mão”.
Decididamente original é a posição da filósofa espanhola quanto ao que diz respeito ao feminismo. Em 1928, assinava, no jornal El Liberal, uma coluna intitulada Mulheres. A ausência das mulheres no contexto político espanhol era, então, total e desolador, e deve ser atribuída também à sua voluntária resistência à mudança.
“Ninguém pode pensar que a mulher tenha preenchido a sua ânsia libertadora com a chamada emancipação econômica. Não, porque esta emancipação é muito mais um fracasso do qual a mulher deverá se consolar com muito mais altas realizações. O ideal feminista, para usar um velho termo, está muito além da emancipação econômica, que não é outra coisa que um primeiro passo tristemente necessário”.
E adverte:
“Diante desta mudança feminina, o homem fica com medo e sente uma nostalgia melancólica daqueles tempos nos quais as mulheres não tinham outra ocupação além daquela de satisfazer as suas exigências eróticas e domésticas. Foi tão rápida a mudança da mulher nas suas exigências que o homem, desconcertado, inadequado, não consegue ou não quer, em geral, satisfazê-las”.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 5 de fevereiro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Cartas do P.e Aldo 176

Asunción, 06 de janeiro de 2011.

Há nove anos, na paróquia São Rafael, seguindo a liturgia natalícia, celebramos a família de modo solene, no dia da Sagrada Família. Uma tradição que quisemos colocar como alternativa àquelas iniciativas maçônicas e laicistas que festejam o dia das mães no mês de maio e o dia – quase não observado – dos pais em junho.
Não existe “maternidade” ou “paternidade” sem família, sem aquele lugar original, criado pelo mesmo Deus, como é contado no Gêneses, quando o Onipotente afirma “façamos o homem à nossa imagem e semelhança... homem e mulher. (...) O homem abandonará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher e os dois serão uma só carne”. E foi assim. O matrimônio monogâmico e heterossexual foi uma iniciativa divina que nem mesmo o pecado original conseguiu destruir.
Todavia, as consequências do pecado original se tornaram evidentes imediatamente: nem o homem nem a mulher sozinhos conseguiram viver mais naquela comunhão original. Por esse motivo, foi necessária a Encarnação de Jesus que instituiu o Sacramento do Matrimônio, ou seja, a possibilidade tanto para o homem como para a mulher de voltar a viver aquela experiência única e original – a de ser uma só carne – que Deus mesmo havia dado de presente a eles, os criando.
O matrimônio está na origem da família como único lugar onde acontece o milagre da paternidade e da maternidade. Por esse motivo, na cultura niilista de hoje, como sua dupla visada de relativismo e de hedonismo, eliminou-se a festa da família, substituindo-a com o dia das mães e o dia dos pais. Pai não é quem fecunda uma mulher, nem mãe é aquela que expele uma criatura do seu ventre. Também os animais fazem essas coisas. Pai e mãe é um dom do Alto, fruto de uma vocação divina que chama o homem e a mulher a formarem um lar no qual se louve o nome do Senhor e se permite a Deus, através dos filhos, levar adiante o seu plano de salvação.
Num mundo que festeja até o dia do agente funerário, somente a Igreja festeja a família, recordando a Sagrada Família de Nazaré. No Paraguai não há categoria de pessoas que não tenham um dia dedicado à sua profissão... e pobre da pessoa que não cumprimenta o festejado!
Por isso, todos os anos, no primeiro domingo depois do Natal, na nossa paróquia, celebramos este dia benzendo e entregando às crianças a vassoura.
Por que a vassoura? Porque é o símbolo da limpeza, da ordem na casa, porque é o instrumento doméstico mais antigo e comum. Porque São Martinho de Porres chegou à santidade usando a vassoura com amor, oferecendo a Cristo o seu trabalho. Para as crianças, como lhes expliquei, lembrando de minha infância, é o primeiro contato com o trabalho físico da casa, é a modalidade para que compreendam a ordem, a limpeza, a beleza.
Por isso, foi bonito, no domingo dia 26 de dezembro, quando pedi às crianças para subirem ao altar para me mostrarem se sabiam usar uma vassoura. Muitos sim, outros não. Então, peguei a vassoura e, diante de todos, expliquei a eles como se pega e como se usa. Há 20 anos sou fiel a este gesto.
Aprenderam rápido o uso e o significado do gesto. Depois, rindo, expliquei a eles como os meus pais usavam a vassoura na minha bunda, quando eu fazia alguma má-criação, para que eu pudesse entender como viver.
Foi, de fato, bonito esse gesto, porque me agrada pensar ainda em Jesus que, desde pequeno, aprendeu a amar e a usar a vassoura ajudando os seus pais, antes de usar a serra e o martelo etc.
Creio que a vassoura seja um dos instrumentos mais antigos e familiares do mundo. Por isso, disse às crianças que merece muito respeito, explicando também como recolocá-la no seu lugar, com a ponta do cabo para baixo e “os cabelos” para cima.
O novo Paraguai, aquele que nasce do encontro com Cristo, não passa em primeiro lugar pela política nem pela economia, mas pela vassoura. Ou seja, pela família que educa os seus filhos.
Padre Aldo.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Para ser “pai” é preciso um deus: a lição dos antigos

Por Giulia Regoliosi

Lendo as obras dos grandes autores gregos – poetas e dramaturgos, narradores e oradores – um dos aspectos que aparecem de forma mais evidente é o interesse pela fecundidade. A apaidìa, a ausência de filhos por causa da esterilidade ou da perda, é uma das maiores dores. Não é por acaso que Sólon, no discurso sobre a felicidade transmitido a nós por Heródoto, coloca entre os elementos essenciais o ter filhos, e filhos de filhos, fortes, belos e devotos. Numa cultura que vê de modo nebuloso a sobrevivência depois da morte, a certeza de que algo de si sobreviva é confiada à prole, bem como a esperança de cuidados na velhice, ou de herdeiros para os próprios bens ou, se pensarmos no âmbito mitológico, para a própria dinastia. É um desejo atormentador em todas as culturas antigas, como no caso da cultura bíblica também: “Eis que sou apenas uma árvore seca”, diz Isaías, o eunuco, a quem o Senhor responde prometendo “um lugar e um nome melhor do que filhos e filhas, um nome eterno que não perecerá”; mas a Sara e Abrãao, a Ana e Elcana, a Isabel e Zacarias lhes são dados os filhos esperados.
Diante de um desejo tão amplamente testemunhado, como os personagens do mundo poético grego vivem o relacionamento pai-filho? É importante que nos perguntemos isso, porque o escritor, sobretudo o poeta épico e trágico, escreve para ser testemunha ou, mais explicitamente, para ser mestre: as suas histórias, na maior parte tiradas do patrimônio mitológico, são paradigmáticas para o público, tanto o ocasional, quanto aquele que se reunia no teatro ateniense. O quadro que nos é oferecido por eles é muito amplo, comprovando uma profunda experiência da realidade. Encontramos jovens crescidos sem pai, porque este partiu para grandes aventuras e nunca mais voltou, ou porque é esperado há muito tempo; jovens que passaram por uma difícil adolescência, divididos entre nostalgia, desejo de imitação e solidão penosa. Há pais e mães capazes de comunicar confiança, propor reconciliação, sugerir grandes ideais, sacrificar-se pelos filhos, mas também pais fechados na própria realização, ou divididos entre si, até ao ponto de utilizarem os filhos como instrumentos de vingança recíproca. Encontramos filhos desiludidos nas expectativas, incompreendidos nas escolhas, mas também devotos, dispostos ao perdão (uma exceção extraordinária no paganismo), portadores de novidades.
E se a apaidìa é um sofrimento, frequentemente não impede, porém, a fecundidade do coração. De Homero aos trágicos, encontramos uma extraordinária série de figuras parentais substitutivas: o mestre de Aquiles, condenado à esterilidades mas rico de uma grande capacidade educativa; Filocteto, o exilado amargurado que sabe penetrar no coração de um jovem ambicioso; a virgem sacerdotisa de Apolo que faz o papel de mãe, até quando o deus quer, de uma criança abandonada; e outros mestres, amigos, servos, companheiros mais velhos. Ou os avós que, tendo ficado sem filhos, permanecem firmes na educação e defesa dos netos que ficaram sós.
Qual é o papel dos deuses nesses relacionamentos? Frequentemente é ambíguo e decepcionante. Porque, quase sempre, os deuses mesmos costumam ser pais ausentes: é o caso de Zeus na relação com Hércules e seus outros filhos; ou  ainda de Zeus na relação com o pequeno filho de Dânae; ou outros casos. As mulheres amadas por um breve momento, às vezes somente para educar um filho que não é seu, têm palavras duras para “os deuses que se fazem chamar de pais e, depois, ficam apenas olhando tais desventuras”, como disse um personagem de Sófocles. E se algumas vezes os deuses intervêm,  o fazem de modo desajeitado e tardio. No entanto, onde os deuses são mais presentes, mais companheiros, mesmo o relacionamento educativo é mais fácil, como aquele entre Ulisses e Telêmaco sob a sombra de Atena.
Que interesse tudo isso pode ter para nós? Sabemos – vemos na experiência da escola e também o Papa nos lembra continuamente disso – que estamos vivendo uma emergência educativa. Parece importante, portanto, voltar-se para um mundo distante mas sempre próximo por causa da continuidade do coração humano. O desejo de fecundidade, a necessidade de figuras adultas de referência, pais e mestres, nos acomuna aos antigos: só que eles ainda estavam na espera da revelação do Pai.

REGOLIOSI, Giulia. In attesa del padre: storie di genitori e figli nella letteratura greca. Roma: Aracne Editrice, 2010

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 19 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 24 de outubro de 2010

Cartas do P.e Aldo 167



Asunción, 19 de outubro de 2010.

Caros amigos,
não é natural beijar a própria mãe, ou melhor não é óbvio. Sem a experiência concreta de se olhar como nos olha o Mistério, a máxima expressão afetiva é uma atração natural, uma simpatia, uma generosidade que, no tempo, nos chantageia. Somente dentro de uma experiência de gratuidade, como é descrita por Dom Giussani, é possível que uma mãe e o próprio filho se beijem como o coração – não o instinto – deseja.
Hoje, batizei Isabel. Uma mulher recolhida da rua com o seu filho de 6 anos. A sua história é horrível e indescritível: violentada quando era pequena, abusada continuamente. De um dos tantos pobres Cristos que enchem as ruas, agora na prisão, teve um filho, o mais novo, que vocês podem ver na foto abraçado a mim durante a Missa. Assim que chegou a nós com o seu filho, nós a acolhemos: e Cristo-mãe e Cristo-filhinho. A primeira coisa que me disse foi: “Padre, eu nunca dei um beijo no meu filho, porque eu via, nele, a violência que sempre sofri”. Passaram-se muitos meses. Não conto para vocês todas as reações do menino na relação com todos. Diante de quem lhe queria dar um beijo escapava ou reagia batendo. Hoje, terminado o batismo da mãe, amada e bem querida por nós, ficamos esperando o beijo entre mãe e filho. Para a mãe foi um milagre: ela o beijou pela primeira vez. Mas, nós esperávamos a mesma coisa da parte do menino. Na foto, vocês podem ver a mãe que busca o beijo do seu “finalmente” filho. Mas, tudo parecia inútil. Porém, quando todos começamos a dizer juntos “Beija! Beija!”, o pequeno, depois de nos ter olhado, se jogou no pescoço da mãe dando-lhe – não importa que tenha durado apenas um segundo – um beijo. A pobre mulher começou a chorar e não parou mais de repetir: “é a primeira vez, é a primeira vez...”.
Amigos, o pequeno recuperou o relacionamento natural – diríamos nós – apenas graças à certeza que trago em mim com os meus amigos educadores: “eu sou Tu que me fazes”. O menino, desde o princípio, me chama de vovô, porque aqui, praticamente, o pai não existe e a figura afetiva mais importante são os avós. Tanto é verdade que muitas vezes ensino o “Pai Nosso” às crianças substituindo a palavra “Pai” por “Avô”. Sempre pergunto às crianças, antes de explicar que Deus é Pai: “Quem são as pessoas que mais nos querem bem?”. E a maioria absoluta delas responde: “os avós” ou “a mamãe”. Raras vezes escuto “o papai”, que aqui tem apenas a função de fecundar a mulher e, depois, vai embora ou, se vive com a mulher, é violento. De forma que, que outra imagem podem ter do pai?
Por isso, “Vovô nosso que estais no céu...”. Assim, as crianças sentem que vibra nelas a beleza que cria em cada instante a vida: “amei-te com amor eterno, tendo piedade do teu nada”.
Amigos, se o Mistério, se Cristo não nos é familiar, estes milagres não acontecem. Hoje, eu vi o milagre da maternidade e da filiação, e como acontece o milagre do reconhecimento daquela mulher como “minha mãe”, daquele menino  como “meu filho”. Se, com os nossos filhos, não acontece o que aconteceu hoje diante dos meus olhos, quer dizer que ainda estamos distantes da paternidade, da maternidade, ou seja, distantes da graça da gratuidade.
Rezemos a Nossa Senhora para que possamos fazer esta experiência, a experiência de Isabel, que, depois de 40 anos de violência, de vida na rua, finalmente conseguiu dizer “Eu”. E a alegria do seu rosto, e o seu repetir constante “é a primeira vez, a primeira vez que beijo e sou beijada pelo meu filhinho de 6 anos”, era a manifestação da sua dignidade recuperada, sem que fosse preciso a intervenção de especialistas de profissão. “Eu sou Tu que me fazes”. Aqui e somente aqui se jogo o próprio eu.
Padre Aldo

domingo, 5 de setembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 160




Asunción, 5 de setembro de 2010.

Caros amigos,
Eis-me de volta a casa. Os meus filhos muito felizes. Vejam o que uma menina me escreveu: “Quero dizer que estou feliz com o seu retorno. Que graça saber que você voltou. Senti muito a sua falta. Agora, não quero mais chamar você de Padre Aldo, mas de papai Aldo. Papai Aldo, você é o melhor papai e eu o amo muito, e fico feliz por saber que você quer o meu bem, porque nem minha própria família me trata tão bem como me tratam na Casinha de Belém, que é a minha verdadeira família. Elizabeth”.
Deixo a vocês imaginarem o que significa para mim ver que tão logo pisei o solo dessa terra todos vieram ao meu encontro, dizendo: “Finalmente”. A minha alegria chegou às estrelas, mesmo porque o mais violento deles (há um tempo atrás), mostrando-me o boletim do segundo trimestre, tinha tirado 5 em todas as matérias, que é a nota máxima no Paraguai. Milagre do amor – “eu sou Tu que me fazes” – que penetra as fibras mais íntimas das minhas crianças e as muda.
Ao mesmo tempo, não vi mais o pequeno Alberto (vejam a foto), de dois anos, que morreu durante a minha ausência, deixando-nos todos cheios de dor.
Assim também, não encontrei mais o jovem Abraão, que tinha se casado antes de eu partir, doente de AIDS e com um câncer. Eu o havia deixado feliz, em lua de mel, na clinica, obviamente junto com Susana, a garota com a qual convivia e que tinha contagiado com AIDS e com a qual se tinha casado antes que eu partisse (vejam as fotos).
Ela me esperava com sua carga de amor e dor. Deu-me este bilhete comovente que é um soco no estômago, bilhete comovente, particularmente, para quem tem problemas (frequentemente infantis) de relacionamento no matrimônio: “Abraão se realizou como cristão e eu estou em paz, porque graças à AIDS pude conhecer a Deus, toda a Sua bondade, todo o Seu amor. Agora, fiquei sozinha, mas com um grande desejo de continuar vivendo, lutando por um novo amanhecer. Aqui, na Clínica Divina Providência, conheci pessoas capazes de tanto amor que espero que existam outros lugares como este para todos os doentes como eu, para que possam conhecer a Jesus. Tenho AIDS e não tenho medo dela. Não tenho medo de contar a minha história, porque encontrei a Jesus. Os meus pais, desde quando souberam disso, estão sofrendo muito, mas eu lhes digo, como a todos, que a morte é uma realidade que todos devemos enfrentar e, por isso, somos chamados a nos preparar bem, na certeza de que Deus nosso Pai está se preocupando por nós”.
Amigos, isto é o cristianismo, esta é a fé. Se os nossos olhos estivessem fixos nestes fatos, como seríamos livres e capazes de gratuidade!
Carrón, introduzindo o encontro de responsáveis em La Thuile nos chamava a atenção, na primeira noite, para a conversão e lembrava as palavras do profeta: “Amei-te com um amor eterno, atraindo-te para mim, tendo piedade do teu nada”.
Tudo o que acontece aqui é esta consciência, que, porém (isto é essencial e devemos pedir a Nossa Senhora para entender isso) pode acontecer, como vi em tantas pessoas humildes e que seguem a Carrón como filhos, olhando como ele vive esta certeza, mesmo na Itália. Ao invés, quem, estando na Itália não a vive, não a viverá em lugar algum.
Rezem por mim e por nós. É o gesto mais belo de amizade e somente disso temos necessidade porque, com isso, Jesus nos dá o resto.
Com afeto.
Padre Aldo

sábado, 14 de agosto de 2010

Comentário ao evangelho do dia

São Maximiliano Maria Kolbe

Evangelho - Mt 19, 13-15
Naquele tempo, levaram crianças a Jesus, para que impusesse as mãos sobre elas e fizesse uma oração. Os discípulos, porém, as repreendiam. Então Jesus disse: "Deixai as crianças, e não as proibais de virem a mim, porque delas é o Reino dos Céus". E depois de impôr as mãos sobre elas, Jesus partiu dali. 

Comentário feito por Cardeal Joseph Ratzinger [Papa Bento XVI] 
Retiro pregado no Vaticano, 1983

Temos de recordar que o atributo essencial de Jesus, aquele que exprime a Sua dignidade, é o atributo de "Filho" [...] A orientação da Sua vida, a motivação originária e o objetivo que O modelaram exprimem-se numa só palavra: "Abba, Pai bem-amado". Jesus sabia que nunca estaria só e, até ao último grito na cruz, obedeceu Àquele a quem chamava Pai, virando-Se totalmente para Ele. Só isso permite explicar que Se tenha recusado até ao fim a ser chamado rei, ou senhor, ou a permitir que lhe atribuíssem qualquer outro título de poder, antes recorrendo a um termo que também poderíamos traduzir por "criancinha". Pode-se, por conseguinte, dizer o seguinte: se, na pregação de Jesus, a infância tem um lugar tão extraordinário, é porque corresponde ao mais profundo do Seu mistério mais pessoal, à Sua filiação. Afinal a Sua maior dignidade, que remete para a Sua divindade, não consiste no poder de que poderia dispor; funda-se no Seu ser orientado para o outro: para Deus, para o Pai. O exegeta alemão Joachim Jeremias diz precisamente que ser criança no sentido de Jesus significa aprender a dizer "Pai". 

domingo, 8 de agosto de 2010

Comentário ao evangelho do dia

São Domingos

1ª Leitura - Sb 18,6-9
A noite da libertação fora predita a nossos pais, para que, sabendo a que juramento tinham dado crédito, se conservassem intrépidos. Ela foi esperada por teu povo, como salvação para os justos e como perdição para os inimigos. Com efeito, aquilo com que puniste nossos adversários, serviu também para glorificar-nos, chamando-nos a ti. Os piedosos filhos dos bons  ofereceram sacrifícios secretamente e, de comum acordo, fizeram este pacto divino: que os santos participariam solidariamente dos mesmos bens e dos mesmos perigos. Isto, enquanto entoavam antecipadamente os cânticos de seus pais.

2ª Leitura - Hb 11,1-2.8-19
Irmãos: A fé é um modo de já possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se vêem. Foi a fé que valeu aos antepassados um bom testemunho. Foi pela fé que Abraão obedeceu à ordem de partir para uma terra que devia receber como herança, e partiu, sem saber para onde ia. Foi pela fé que ele residiu como estrangeiro na terra prometida, morando em tendas com Isaac e Jacó, os co-herdeiros da mesma promessa. Pois esperava a cidade alicerçada que tem Deus mesmo por arquiteto e construtor. Foi pela fé também que Sara, embora estéril e já de idade avançada, se tornou capaz de ter filhos, porque considerou fidedigno o autor da promessa. É por isso também que de um só homem, já marcado pela morte, nasceu a multidão "comparável às estrelas do céu e inumerável como a areia das praias do mar". Todos estes morreram na fé. Não receberam a realização da promessa, mas a puderam ver e saudar de longe e se declararam estrangeiros e migrantes nesta terra. Os que falam assim demonstram que estão buscando uma pátria, e se se lembrassem daquela que deixaram, até teriam tempo de voltar para lá. Mas agora, eles desejam uma pátria melhor, isto é, a pátria celeste. Por isto, Deus não se envergonha deles, ao ser chamado o seu Deus. Pois preparou mesmo uma cidade para eles. Foi pela fé que Abraão, posto à prova, ofereceu Isaac; ele, o depositário da promessa, sacrificava o seu filho único, do qual havia sido dito: "É em Isaac que uma descendência levará o teu nome". Ele estava convencido de que Deus tem poder até de ressuscitar os mortos, e assim recuperou o filho - o que é também um símbolo.

Evangelho - Lc 12,32-48
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: "Não tenhais medo, pequenino rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vós o Reino. Vendei vossos bens e dai esmola. Fazei bolsas que não se estraguem, um tesouro no céu que não se acabe; ali o ladrão não chega nem a traça corrói. Porque onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração. Que vossos rins estejam cingidos e as lâmpadas acesas. Sede como homens que estão esperando seu senhor voltar de uma festa de casamento, para lhe abrirem, imediatamente, a porta, logo que ele chegar e bater. Felizes os empregados que o senhor encontrar acordados quando chegar. Em verdade eu vos digo: Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá. E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada, felizes serão, se assim os encontrar! Mas ficai certos: se o dono da casa soubesse a hora em que o ladrão iria chegar, não deixaria que arrombasse a sua casa. Vós também ficai preparados! Porque o Filho do Homem vai chegar na hora em que menos o esperardes". Então Pedro disse: "Senhor, tu contas esta parábola para nós ou para todos?" E o Senhor respondeu: "Quem é o administrador fiel e prudente que o senhor vai colocar à frente do pessoal de sua casa para dar comida a todos na hora certa? Feliz o empregado que o patrão, ao chegar, encontrar agindo assim! Em verdade eu vos digo: o senhor lhe confiará a administração de todos os seus bens. Porém, se aquele empregado pensar: "Meu patrão está demorando", e começar a espancar os criados e as criadas, e a comer, a beber e a embriagar-se, o senhor daquele empregado chegará num dia inesperado e numa hora imprevista, ele o partirá ao meio e o fará participar do destino dos infiéis. Aquele empregado que, conhecendo a vontade do senhor, nada preparou, nem agiu conforme a sua vontade, será chicoteado muitas vezes. Porém, o empregado que não conhecia essa vontade e fez coisas que merecem castigo, será chicoteado poucas vezes. A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido!

Comentário feito por São Cipriano (c. 200-258)
Bispo de Cartago e mártir 

Era no nosso tempo que o Senhor estava a pensar quando disse: "Quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?" (Lc 18, 8). Vemos realizar-se esta profecia. Já não acreditamos no temor de Deus, nem na lei da justiça, nem na caridade, nem nas boas obras. [...] Tudo aquilo que a nossa consciência temia, porque acreditava, deixou de temer, porque já não crê. Porque, se cresse, estaria vigilante; e, estando vigilante, salvar-se-ia. Despertemos pois, meus irmãos muito queridos, tanto quanto formos capazes. Sacudamos o sono da nossa inércia. Velemos de forma a observar e a praticar os preceitos do Senhor. Sejamos como Ele nos recomendou que fossemos quando disse: "Estejam apertados os vossos cintos e acesas as vossas lâmpadas. Sede semelhantes aos homens que esperam o seu senhor ao voltar da boda, para lhe abrirem a porta quando ele chegar e bater. Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier, encontrar vigilantes!". Sim, permaneçamos vigilantes, com receio de que venha o dia da nossa partida e nos encontre tolhidos e empedernidos. Que a nossa luz brilhe e irradie em boas obras, que ela nos encaminhe da noite deste mundo para a luz e para a caridade eternas. Aguardemos com zelo e prudência a chegada súbita do Senhor, a fim de que, quando Ele bater à porta, a nossa fé esteja desperta para dEle receber a recompensa pela nossa vigilância. Se observarmos estas ordens, se retivermos estes conselhos e estes preceitos, as manhas enganosas do Acusador não conseguirão atingir-nos durante o sono. Mas, reconhecidos como servos vigilantes, reinaremos com Cristo triunfador. 

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Cartas do P.e Aldo 150



Asunción, 20 de junho de 2010.

Caros amigos,
Hoje, completam-se 39 anos em que sou sacerdote e feliz. Feliz não por ser sacerdote, mas por ser totalmente de Cristo, por poder dizer todos os dias “Tu, meu Cristo”.
Nunca poderia ter imaginado o que Deus fez desse pouco de lama, no qual infundiu o sopro divino e, depois, fez reconhecer no batismo. Um nada que Deus usa para mostrar a Sua misericórdia a todos e, em particular, aos diversos “nadas” que estão pelo mundo, excluídos de tudo e perto da morte ou vítimas das piores violências.
Hoje, dois dos meus filhos (que são tantos) me fizeram festa... os meus filhinhos me comoveram com a sua ternura (hoje, aqui no Paraguai, celebra-se a festa de uma figura que não existe. Nós, porém, celebramos a festa da família)... particularmente Maria, a menina de 14 anos que, há três meses atrás, vivia e dormia na rua. Sozinha e abusada, chegou na parte da manhã, depois de ter sido surrada por jovens como ela. Suja, com uma mochilinha nas costas... Agora, é feliz. 
O pequeno Alberto, por sua vez, (vejam a foto), tem um ano e meio, pesa 7 kg, e é doente terminal, porque nasceu com dos rins sem funcionar, foi abandonado pela mãe... e, no entanto, vejam como é contente, como brinca. Somente um transplante poderia salvá-lo... Mas, como fazer isso aqui, onde a pobreza é grande...
Depois, veio Celeste... e depois, aquela mulher que toca violão e que tem um câncer que lhe comeu a parte direita da boca... e, no entanto, como cantava, hoje, para mim!
Amigos, esta é a virgindade: uma plenitude de paternidade, uma plenitude que se realiza enchendo de alegria os meus pacientes terminais e as minhas crianças.
Feliciano – que perdeu uma perna e tem uma ferida na outra que fede terrivelmente –, à minha pergunta, “Como está, Feliciano?”, respondeu: “Padre, o meu nome já diz tudo: estou felicíssimo”. “E a perna que lhe falta?” “Foi para junto do Senhor, e eu disse a ela: feliz viagem!” “E como está hoje, Feliciano?” “Padre, tranquilíssimo”. E, no entanto, tem os dias contados.
Amigos, “pode um homem velho renascer?”. Tudo aquilo que o Carrón nos diz eu vejo, instante depois de instante, em mim e em todos aqueles que sofrem e vivem comigo.
Confio-me às orações de vocês, para que eu seja capaz de levar a bom termo a minha missão. 39 anos de sacerdócio é muito e é uma graça única.
Padre Aldo
P.S.: nas fotos, o pequeno Alberto com uma enfermeira da clínica e a festa que fizeram para mim.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Cartas do P.e Aldo 149

Asunción, 16 de junho de 2010.

Caros amigos,
Esta noite, enquanto eu passava com o Santíssimo Sacramento diante de cada doente, chegando ao leito de Ermínia (uma jovem bela mulher, mãe de duas crianças, gravemente doente de AIDS, câncer e vítima de uma terrível depressão), depois de tê-la abençoado com Jesus, acariciando-a com ternura, lhe disse: “Ânimo! Jesus ama você, quer que você sorria”. Uma frase simples, mas dita com a consciência daquele “Tu” que domina tudo, de que fala Carrón nos exercícios (refere-se aos Exercícios Espirituais da Fraternidade de Comunhão e Libertação; ndt), mudou o rosto desta minha filha. Ela me respondeu com uma ternura tipicamente feminina, olhando-me nos olhos: “Obrigada”. Quis contar isso para vocês porque aquele “obrigada”, dito devagarzinho, continha toda a ternura de Cristo.
Joana é uma jovem que viveu na rua e, de relacionamentos ocasionais, teve dois filhos. Tem 26 anos, é doente de AIDS. Chegou “desfeita”: queria morrer, recusou comida etc. Dias imprevisíveis. A única coisa que eu podia fazer foi fazer aquilo que a pecadora fez com Jesus, quando entrou na casa de Simão. Eu a acariciei, beijei com ternura, alisei seus cabelos pretos, disse a ela que a amo. Vi nela a ternura do Mistério. Depois, aconteceu o milagre: à proposta de confessar-se, me respondeu “sim”. Daquele momento em diante tudo mudou. Fez a comunhão, voltou a comer e a sorrir. Ela também é dependente de droga, mas a caridade, a ternura fez o milagre. Uma vez mais aquele “Tu, meu Cristo”, que fez uma coisa só do meu eu com Ele, me mostrou que o problema é apenas a fé. Desejo a todos, meus amigos, que nunca duvidem da Sua ternura, mesmo se acontecesse o pior terremoto.
Um rapazinho da Casinha de Belém é insuportável. O pensamento de mandá-lo embora foi se aninhando na minha mente. A diretora da escola me disse: “Padre, mas este menino é Jesus e, então, olhemos para ele na sua totalidade”. Como dizer: não vê o caminho que ele fez durante estes dois anos? Bastou aquele “o menino é Jesus” para que a minha mente revesse a possível decisão e mantê-lo comigo ainda mais. Um sinal claro do que é uma amizade entre educadores.
O grande escultor da “Sagrada Família” de Barcelona veio me encontrar para ver como finalizar a nova clínica. Que comoção! “Esta obra é maior do que a Sagrada Família porque, aqui, eu vi Cristo que morre e ressuscita. Padre, não faz o teto dos quartos de branco. Os doentes, em particular os moribundos, olham para o teto, olham para o alto e, por isso, o teto de cada quarto deve ser da cor do céu, com sutis nuvens brancas, assim como é belo o céu do Paraguai. O doente tem necessidade de ver sempre o céu com algumas nuvezinhas brancas e, quem sabe até, com o sol que nasce. Padre, eu o ajudarei a pensar o teto de cada quarto, olhando para este belíssimo céu paraguaio”.
Depois, ele me explicou como deseja terminar a clínica, explicando uma frase de que eu gosto muito, de São Paulo: “A natureza geme as dores do parto, esperando a ressurreição dos filhos de Deus”. De repente, se mostrou a genialidade deste homem. De fato: meu Jesus, quem sou eu para que Sotoo tenha vindo, de propósito, visitar-me, encontrar-me? Nós nos havíamos conhecido junto com Marcos, Cleuza e Julián de la Morena, no ano passado, em Barcelona. Foi suficiente um olhar cheio de ternura de Cristo para nos tornarmos amigos por toda a eternidade. Assim como é cada dia com os meus doentes, velhos e crianças, vítimas das violências.
Há uma última graça recebida hoje que não posso omitir. Acompanhando Marcos e Cleuza ao aeroporto (em quinze dias, nós nos vimos três vezes – duas no Brasil e uma aqui... potência do afeto por Carrón, da paixão por viver aquilo que ele nos testemunha e do grito humano que trazemos no coração), eles me dizem: “Esta não é mais a clínica do padre Aldo... esta é a nossa clínica. Estas não são mais as obras do padra Aldo e de Paolino, são as nossas obras”. Que comoção, para mim, e que resposta para quem se preocupa com o que acontecerá quando eu morrer!
Amigos, destes dias que passei com eles terei a oportunidade de falar depois... porque o segredo do milagre que vivemos é fruto apenas da nossa liberdade que vive uma estreita filiação com Carrón. Sem esta posição, o carisma de Dom Giussani se tornaria velho, morreria e não seria capaz de gerar um povo, filhos novos como está acontecendo por aqui. Nós nos encontramos apenas para aprender a olhar para o Carrón, como ele vive o carisma que Giussani lhe confiou. Garanto a vocês que cada instante é a experiência do homem novo.
Um abraço a todos,
Padre Aldo

Cartas do P.e Aldo 148

Asunción, 16 de junho de 2010.

Caros amigos,
Nestes meses, o artigo de Carrón – “Feridos, voltamos a Cristo” – foi o coração com o qual viver tudo. Um trabalho duro, mas muito bonito que não apenas incidiu em todos nós mas também nas minhas filhas, vítimas dos pais pedófilos. Uma vez mais, toquei com a mão o fato que, trabalhando seriamente sobre aquilo que Julián nos propõe (pensem na profundidade e na beleza do artigo, que foi publicado n’O Observatório Romano, sobre nós, padres: quem jamais nos falou assim, a não ser o Gius ou, agora, Julián?), o homem velho cheio de preconceitos, de esquemas, de moralismo etc. deixa o lugar para o homem novo. O homem novo gera homens novos que olham para a realidade com os olhos de Cristo.
Outro dia, uma filha minha de 9 anos, violentada e vítima de outras perversões por parte do pai (eu o chamo  de “pai” porque sempre tive presente as palavas de Deus quando diz: “Antes de conceber-te no ventre de tua mãe, Eu pronunciei o teu nome”. De forma que, mesmo este pobre coitado foi o meio através do qual Deus se serviu para que esta menina viesse ao mundo), se aproxima e me diz: “Sabe, padre Aldo? Olhando Jesus, eu perdoo todo o mal que meu pai me fez, mas fique comigo sempre aqui. Peço também que me confesse, porque no meu comportamento sou violenta e digo todos os palavrões que aprendi antes de vir para cá, junto com o senhor. Eu não quero estas coisas, mas não consigo evitar. Ajude-me”. Amigos, vocês têm ideia do juízo que estas palavras – “perdoo meu pai que abusou de mim” – carregam sobre cada um de nós? Mas, isso não é fruto do acaso, mas do fato de nós, educadores, termos o coração cheio daquelas palavras de Carrón. Palavras que me fazem abraçar vítimas e abusadores, sem tirar nada da responsabilidade de quem é o abusador... Mas, a “misericórdia divina tem braços grandes que acolhem todos que se dirigem a ela”.
Amigos, neste momento, temos necessidade apenas de reconhecer que somos pobres coitados, porém comovidos pela ternura de Deus. Como é possível não chorar de alegria fazendo Escola de Comunidade e ouvindo com que paixão Julián nos faz vibrar? Se não fosse assim, a minha vida com toda a carga de sofrimento que me circunda, seriauma coisa absurda. Enquanto que, vivendo circundado por amigos como Marcos, Cleuza, Julián de la Morena e muitos outros que estão aqui comigo, este lugar de dor, de acolhimento de vítimas de violência de todo tipo e da morte, esse lugar se torna a evidência de que Cristo ressuscitou. É bonito ver que a obra não nasce de um projeto, mas é um parto da realidade, a quem a liberdade é chamada a responder.
De verdade, a nossa não é uma companhia das obras, mas uma companhia de rostos tendidos ao Mistério que se torna obra; tanto é verdade que, mesmo os problemas mais duros – como o educar estas crianças vítimas da violência – se tornam simples e acabam acontecendo aqueles milagres comoventes, como crianças que, mesmo que profundamente marcadas, perdoam aqueles que abusaram delas.
Um abraço,
Padre Aldo.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Aos jovens são necessárias medidas altas...

... para indicar o caminho rumo à felicidade.

Por Marina Corradi

Educar, o que é? É suscitar a paixão do eu por aquilo que o cerca: pelo outro, portanto pelo "tu"; pelos homens, por Deus - disse o Papa. Educar é cultivar o desejo que nos impulsina rumo ao real. É, no fundo, se deixar contagiar pela paixão pelo homem. Aquela paixão, disse o Papa, que devemos despertar entre nós. Na Sala do Sínodo, Bento XVI falou aos bispos italianos reunidos em assembleia geral. Dois anos se passaram desde quando denunciou a profundidade da "emergência educativa". Hoje, a CEI (Conferência Episcopal Italiana, ndt) coloca a educação no centro da atividade pastoral da Igreja italiana para os próximos dez anos (como quem, diante de uma casa que parece instável, resolve se ocupar dos fundamentos, daquilo que está por baixo, daquilo que vem antes).
E, ao mesmo tempo, Bento - num discurso que é uma palestra magistral e um augúrio - vai até às raizes daquela dificuldade obscura que, porém, quem tem filhos, conhece muito bem. Aquela estranha resistência a transmitir o que temos de bom, e antes de mais nada o sentido do viver; como se algo confusamente remasse contra nós, como se o vínculo entre as gerações tivesse se rompido. O que aconteceu para que se rompesse uma transmissão, de pai para filho, antiga, de tal forma que os pais de hoje gaguejam, e os filhos parecem frequentemente incapazes de continuar a história que os pais começaram? Para Bento XVI - mas seria preciso dizer mais corretamente para o professor Ratzinger, tal é a lucidez da análise mesmo que em poucas linhas -, as raízes deste mal sombrio são duas. Primeiro, "uma falsa ideia de autonomia do homem", como de um "eu completo em si mesmo"; segundo, "a exclusão das duas fontes que, desde sempre, orientaram o caminho humano": natureza e Revelação. Se a natureza não é mais criação de Deus, e a Revelação é apenas uma imagem de um remoto passado, as bases mesmas do Ocidente vacilam. E não é de se estranhar se, neste humus herdado, os filhos desorientados buscam - sem encontrá-las - uma direção e represas, e ficam como rios que não encontram o caminho para o mar.
Mas, nesse ponto, o professor Ratzinger se remete à figura do pai: e solicita que se reencontre a paixão pelo educar. Para libertar o eu da gaiola da falsa autonomia na qual a modernidade o encerrou, para impulsioná-lo outra vez no rumo do seu destino. Que é diferente de si: é o rosto, antes, da mãe e, depois, os mil rostos dos outros, e aquele Deus que está por trás daqueles rostos, e que pede para ser livremente reconhecido. E não, educar "não é uma didática, ou uma técnica": é habitar famílias, escolas, paróquias onde se encontrem rostos nos quais se possa acreditar, rostos que anunciam que há um destino para cada um, e um destino que é bom.
Na sequência, a palestra de Bento se faz ainda mais audaz. Voltemos - ele disse - "a propor aos filhos a medida alta e transcendente da vida, entendida como vocação". Vocação ao matrimônio e ao sacerdócio; "vocação", seja lá como for, no sentido de que a vida é resposta a um chamado, é adesão a um desígnio que não é nosso. E certamente esta é a antiga visão da Igreja; mas experimentem, hoje, no meio de um grupo de jovens fora da escola, afirmar que a vida não é "auto-realização" mas vocação, adesão ao desígnio de Deus sobre cada um de nós. Tantos olhariam para vocês como se fossem loucos; porque, crescidos na ideia de homem "como um eu completo em si mesmo", os jovens são talvez até generosos, entusiastas, altruístas; porém o são apenas na medida em que, de alguma maneira, expande-se neles a ideia de um eu que se concebe como origem e horizonte de cada gesto. Poucas coisas estão tão distantes de nós, gente do terceiro milênio, como a palavra "vocação"; como a ideia de que a felicidade possa estar na adesão aos planos de um Outro.
E, porém, não seria talvez exatamente este o nó mais profundo da obscura dificuldade de educar? Somos "nossos", ou pertencemos a um Pai? Somos mónadas proprietárias de si, ou filhos, e irmãos, chamados juntos a um destino? O desafio acolhido pela Igreja italiana ao colocar a educação na frente de tudo, por dez anos, é grande. A esta Igreja o Papa indica um horizonte radical. Educar cristãmente é testemunhar aos filhos, na ditadura do eu, no triunfo orgulhoso de uma ciência e de uma potência humanas: "filho, você é de Deus, e aquela felicidade que, desde os primeiros passos, você persegue e busca - como que às apalpadelas, obstinadamente - habita, de fato, somente nEle".

* Extraído do Jornal Avvenire, do dia 28 de maio de 2010 (p. 1). Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A aventura educativa 3

Encontro com o Cardeal Angelo Bagnasco
Milão, Palasharp – 18 de março de 2010

Testemunho
de Franco Nembrini
(educador)

Há dois anos, voltei a ensinar em uma escola pública, o Instituto Técnico para Contadores da minha cidade, depois de haver deixado a educação por dez anos. E essa foi, para mim, uma experiência importante, na qual pude perceber a mudança que aconteceu, no tempo em que estive distante, na geração de jovens que temos diante de nós. Até doze anos atrás, eu poderia me iludir de ter diante de mim jovens que correspondiam, de alguma maneira, a um modelo que eu tinha na cabeça: jovens estruturados positivamente no seu relacionamento consigo mesmos e com o mundo, mas passíveis de alguma desviação, de algum erro, marcados por um desinteresse pelo estudo que eu julgava normal, na lógica das coisas, expostos a uma enorme confusão e incerteza, e quem sabe também ao risco de desvios mais graves, mas sempre corrigíveis. De tal forma que o objetivo do educador parecia ser simplesmente o de corrigir o erro deles, recolocá-los nos eixo, tendo como ponto de referência um modelo dado por óbvio. Como se o problema fosse encontrar instrumentos, estratégias e novos métodos para envolvê-los, interessá-los, convencê-los.
Doze anos depois, me dei conta, de repente, de que, pelo contrário, esta geração de nossos filhos e alunos vem de um mundo, vive imerso numa cultura na qual nenhum modelo se mantém de pé, nada pode mais ser dado por óbvio, roubados exatamente daquele sentimento certo da realidade do qual tinham, principalmente, direito. Vivem dentro de um imaginário que os faz sentir horrivelmente banal, mortalmente tedioso o ordinário, a vida cotidiana deles, que parece não ter mais espaço para nenhum impulso, para nenhuma comoção, para nenhum maravilhamento.
Foi como me encontrar diante de tantos Zaqueus, de tantas Madalenas: você sente vontade de tentar corrigir os erros! Não chega a lugar algum, é um empreendimento impossível. Então, tive que repensar, desde o começo, o meu papel de professor e de educador, reposicionar-me na relação com eles, na relação com o vivido deles, na relação com o mundo no qual vivem. Entendi que, para cada um deles, só pode acontecer Jesus, isto é, só pode acontecer o acontecimento da Sua presença, tão irresistível a ponto de Ele chamar, um a um, de cima de seus sicômoros, de seus poços, dos seus caminhos. Nenhuma estratégia, nenhuma nova metodologia, nenhuma astúcia pedagógica ou didática pode substituir esta suprema responsabilidade: servir à espera do coração deles e acompanhar a liberdade deles no reconhecimento da Sua Presença.
Porque a outra descoberta que esses jovens me obrigaram a fazer é que o coração do homem é invencível, e nenhuma situação, nenhum condicionamento, nem mesmo a educação mais maluca, para dizer como Kafka, pode estirpar a espera da felicidade, do Bem, da Beleza.
Como me escreveu uma ex-aluna minha, neste verão: “Nestes dias, sinto mais do que nunca estar passando pela vida, de forma que é como se eu já estivesse morta, e morrer é a última coisa que eu quero. O ponto é que, agora, estou cansada, cansada de adiar a questão: quero enfrentar o que devo. Não importa se deverei sofrer, porque estou convencida de que a satisfação e a paz que experimentarei quanto tiver encontrado o que estava buscando será grande. Agora, me sinto suficientemente crescida para bater a cabeça contra a realidade, por mais dura que ela possa ser”. E prossegue com uma descrição impiedosa do cinismo culpável de tantos adultos, que se torna, nela e nos seus coetâneos, uma mortal experiência de solidão e de abandono: “Quando falo sobre isso com as pessoas que me estão mais próximas, ninguém me entende, me dizem que não tenho nada do que me lamentar, porque tenho tudo o que me serve para viver. Quanta bobagem! A pior coisa é que me sinto incompreendida, e acabo achando que este problema acontece só comigo, que ele seja o êxito dos meus complexos pessoais. Pela primeira vez, encontrando você, eu me senti normal, e isto me salvou, porque eu estava me convencendo de que era louca. Sei que me falta muito caminho para andar, e ficarei honrada se você quisesse fazer um pedaço dele junto comigo”.
Então, se se leva a sério o seu coração, se se tem a coragem de apostar tudo na liberdade deles, como nos ensinou padre Giussani, pode acontecer que uma mocinha de 15 anos, encontrada entre os bancos da escola e convidada a umas férias de GS, possa dizer “eu nunca acreditei, nunca estive numa igreja, a minha família é ateia, ninguém nunca me falou dessas coisas, porém nestas férias me parece ter visto Algo que nunca havia visto. Eu, agora, devo poder localizar esta Presença nas coisas de cada dia, no estudo, nas amizades, nos meus interesses... e gostaria de poder falar disso, e queria saber se algum de vocês pode me ensinar a falar com Deus, porque eu não O conheço. Ontem, à noite, tentei falar com Ele antes de dormir, mas só consegui dizer-Lhe: ‘oi, Deus!’”. Quem poderá ensinar a esta mocinha, e a esta geração, a falar com Deus? Apenas adultos que saibam dar testemunho de sua fé, do Bem que suas vidas alcançaram, da paixão pelo real que este encontro introduziu em suas vidas. Como disse, mais de uma vez, o Santo Padre: a educação é uma questão de testemunho.
E quando este testemunho é colocado em ato, pode acontecer de vermos reunidos, como aconteceu no domingo passado, dia 07 de março, no Teatro Dal Verme, em Milão, mais de mil estudantes do ensino médio, dialogando sobre as exigências da vida, sobre a natureza da experiência, sobre a racionalidade da fé. Foi, de fato, impressionante: os jovens de Juventude Estudantil de Milão quiseram propor este gesto para dizer aos seus companheiros e amigos de todas as escolas de Milão: “Cristo está presente. Para além de toda polêmica sobre crucifixos, para além de toda a confusão e de todas as polêmicas, Cristo está presente e nós fazemos experiência disso”.
Que os jovens recomecem, com alguns adultos, a se mover assim me parece um grande sinal de uma estrada começada, de uma educação possível.

* Extraído da página italiana de Comunhão e Libertação, e traduzido por Paulo R. A. Pacheco sem revisão do autor.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Unidos na paixão por Cristo e pelo homem

Por Antonio Lopez*

Afastados cinco anos da eleição, a CEI (Conferência Episcopal Italiana) convida a rezar por Bento XVI. Que continua a missão de João Paulo II, seu predecessor. Mas, o que os liga em profundidade? Falamos sobre isso com Monsenhor Lorenzo Albacete e David Schindler

Cinco anos atrás, Bento XVI sucedia a João Paulo II. O que os liga em profundidade? Pedimos a Monsenhor Lorenzo Albacete, editor, ensaista e responsável eclesiástico de CL nos EUA, e ao professor David Schindler, reitor e decano do Instituto João Paulo II para o Matrimônio e a Família, que ilustrassem os principais elementos de continuidade entre os dois pontificados. Por exemplo, o modo tão particular de conceber a fé: paixão por Cristo e pela pessoa humana.

Qual é a opinião de vocês a respeito da continuidade entre aquele grande Papa e seu sucessor?
Albacete: Acredito que a maior parte das pessoas não tenha prestado muita atenção na questão da continuidade. O ensinamento cheio de autoridade de João Paulo II e a sua contribuição para a vida da Igreja, a forma que deu à Igreja, pode se dizer substancialmente esgotada? Pode-se dizer que, hoje, temos algo de novo? Pessoalmente, fui muito tocado pela continuidade. Certamente que os estilos são diferentes, mas a continuidade é impressionante. Talvez alguns não a vejam, porque não é percebida a novidade de Cristo. A Igreja fez um esforço para ultrapassar esta divisão.
Schindler: Estou de acordo sobre o fato de que a continuidade seja profunda. Antes de mais nada, como todos os grandes homens da Igreja, ambos testemunharam o Evangelho e a unidade do Evangelho. Podemos reconhecer a sua unidade no fato de Bento XVI sublinhar, várias vezes, que o problema fundamental, hoje, é o esquecimento de Deus. No centro de todos os problemas culturais ou eclesiais que se tentam enfrentar está a recuperação da memória de Deus. João Paulo II disse algo parecido com isso em "Cruzando o limiar da esperança": o século XXI será um século religioso, ou não será em nada. Penso que este seja, de fato, o fundo de unidade entre eles: a recuperação do senso religioso e a memória de Deus, tal como é concretamente revelada em Jesus Cristo.

Qual é o olhar deles sobre o mundo? O que eles pretendem quando buscam restabelecer um significado adequado da laicidade?
Schindler: Algo que me impressionou de verdade na insistência de Bento XVI sobre a laicidade - por exemplo, quando encontrou os líderes franceses - é a sua insistência sobre o fato de que temos necessidade de recuperar uma compreensão adequada do que é a laicidade. Laicidade, para a nossa cultura, significa calar a respeito de Deus, enquanto que o ponto central de Bento é a retomada do conceito de laicidade, em cujo centro está a busca de Deus, o desejo de Deus, e em segundo lugar um desejo sem descanso, que não encontra realização total senão no encontro com Deus, na forma na qual Ele se revelou na história, ou seja, em Jesus Cristo.
Albacete: Exato. Não haveria laicidade se não existisse o Deus de Cristo. O que se tem chamado de laicidade, a separação de Deus ou da dimensão espiritual, não é laicidade em nada. Uma verdadeira laicidade é possível apenas através do Deus de Jesus Cristo.

Por quê?
Albacete: Porque é Ele que leva juntos, em si, o divino e o humano, na modalidade delineada desde o Concílio da Calcedônia, em 451. Creio que esta seja uma das coisas mais importantes que emergiram no discurso feito no Collège des Bernardins: sem Cristo não há laicidade.

Vocês podem nos dizer algo a mais a respeito da insistência de Bento XVI sobre o monaquismo, e sobre o por que não se trata de uma redução da Igreja a uma forma de vida espiritual, fora do mundo?
Schindler: Para mim, o ponto é que cada dia, na sua realidade mais profunda, cada dia, em cada aspecto seu, é dies Domini. Cada dia é Dia do Senhor. A natureza do homem é litúrgica.
Albacete: Lembrem-se de como Bento XVI expressou isso naquela ocasião: o primeiro fruto desta busca é construir uma biblioteca.
Schindler: E trabalhar!
Albacete: E trabalhar... exatamente assim. Ora et labora.
Schindler: E aqui está a dignidade do que é humilde. Neste contexto, o trabalho manual tem grande dignidade. Em um certo sentido, somente um cristão pode viver seriamente o trabalho manual. Em outros termos, a encarnação é céu e terra que se conjugam. O objetivo do nosso empenho sobre a terra é realizar o céu, mesmo que não nos seja possível realizá-lo plenamente nesta vida. Em Jesus, o céu veio sobre a terra, para que a terra pudesse ir para o céu. Ora, em Jesus, nós já participamos, agora, da unidade entre céu e terra. Por isso, somente no Cristianismo, somente na revelação de Cristo, é possível que a cada tempo, lugar e espaço, seja dada a dignidade que lhe é própria. Hoje, a nossa concepção do trabalho é tão limitada que nós o compreendemos tão somente como um instrumento para adquirir algo. É, em parte, verdadeiro, mas o trabalho é uma atividade que é participação na criatividade mesma de Deus, na ação de Deus encarnado.

A concepção moderna de trabalho é fundamentada sobre a separação entre a vida enquanto tal e o que a pessoa faz no trabalho. O que há de novo na afirmação de João Paulo II e de Bento XVI acerca da unidade entre a vida na sua inteireza e o agir do homem?
Albacete: Todas as divisões como esta são apenas manifestações de uma divisão que está na origem. Trata-se da perda da experiência do Deus cristão. São maneiras diversas de expressar este dualismo.
Schindler: Acredito que seja uma questão muito ampla. O que torna possível unir o conceito de vocação e o trabalho é reconhecer que a liberdade se realiza apenas na afirmação de um "para sempre". A verdadeira liberdade é dirigida a um amor que assume a forma de uma promessa, cuja realização só é possível mediante a verificação da relação de Deus com mundo, que se manifesta na pessoa de Cristo. O fundo da questão é simplesmente reconhecer que o significado da liberdade consiste em dizer "para sempre" a Deus, tornados livres mediante Jesus Cristo, até o ponto de compreender a relação de Deus com todas as coisas, e ao serviço de todas as coisas.

Tanto João Paulo II quanto Bento XVI insistiram sobre a liberdade do homem e tentaram defendê-la. Em quase todas as suas encíclicas, João Paulo II citou a Gaudium et spes (n. 22): Cristo revela Deus ao homem e revela o homem a si mesmo. O Cristianismo, para Bento XVI, revela (sem eliminá-lo) o mistério da pessoa humana: cada pessoa é relação com o Mistério, e é livre na medida em que reconhece esta dependência e vive para um outro. Este conceito de liberdade não é um desafio aberto ao mundo contemporâneo, que identifica liberdade com "criatividade", "autonomia" e "igualdade"?
Albacete: Não há nada de errado, em princípio, nestas duas acepções... mas a liberdade não pode ser criativa sem Cristo. Porque, sem Ele, tudo perde a força, tudo passa, e a morte não é vencida. Os impérios vão e vêm, das grandes obras e dos grandes eventos se perde a lembrança.
Schindler: Ratzinger tem um modo maravilhoso de expôr ascoisas. Quando fala do sacramento diz que consiste no dar algo que não se possui. Parece-me que a chave de todo o agir humano é que ele é pré-sacramental. Em outras palavras, eu nunca sou a primeira e absoluta origem do que transmito. Se quisermos falar em termos de paternidade e filiação: queremos ser criativos, estar na origem; queremos ser pais de nossas ações, e em um certo sentido isto é verdadeiro. Mas, na medida em que somos criaturas, podemos ser verdadeiramente pais apenas dentro de uma filiação. Em um nível mais profundo, recebemos a capacidade, a energia que transmitimos, mesmo que participemos dela plenamente. Temos autonomia, mas é a autonomia própria de um dom que recebemos e do qual participamos. Ratzinger fala do sacramento exatamente nestes termos, belíssimos: eu participo de uma força, mas não sou originalmente o seu proprietário. Participo de uma força na medida em que sou seu receptor.

Os pontificados de João Paulo II e o de Bento XVI é um grande "irradiar-se de paternidade" e uma defesa da profundidade do mistério da paternidade. O que se perdeu na atual crise da paternidade?
Albacete: Para mim, não é por acaso nem fruto de uma definição cultural o fato de o nome do Deus cristão ser "Pai": cada gesto e cada palavra de Deus são reveladores, e mesmo Jesus chamava a Deus de "Pai". Isto significa que o primeiro modo no qual se manifesta a perda de orientação natural que, como homens, temos em relação ao infinito, é exatamente a perda do significado da paternidade. Participar da vida de Deus é participar da vida do Pai, é ser como que "a sombra do Pai", como na obra de Karol Wojtyla, "Raios de paternidade", centrada sobre São José, visto como a sombra do Pai. A incapacidade de compreender quão profundamente José encarne isto demonstra a fratura que se verificou.

Uma das maiores contribuições de João Paulo II foram suas catequeses de quarta-feira, nas quais apresentou uma visão do amor humano nos termos do relacionamento nupcial. Quais são os elementos mais essencialmente novidadeiros deste ensinamento?
Albacete: Gostaria de ligar isto à perda do sentido do sacramento, porque o matrimônio é o sacramento primordial. Se não tivesse existido o Pecado original, não existiriam os sacramentos, mas tão somente o matrimônio. O matrimônio revela a intenção de Deus no criar a partir do nada. Não é apenas paternidade, porque a paternidade é inseparável da maternidade e do relacionamento nupcial. Tudo isso, porém, se perdeu. João Paulo II oferece uma grandíssima ajuda para recuperar a unidade entre estes elementos que definem o amor humano. Sem esta unidade, o amor humano é como um edifício que desaba: é um 11 de setembro. Resiste por um pouco, se incendeia e você pensa que o problema é manter o fogo sob controle e, de repente, o edifício desaba.
Schindler: Concordo. Gostaria apenas de acrescentar uma coisa: parece-me que o que ambos os papas querem dizer é que há algo que diz respeito ao homem como destino de paternidade, que diz respeito à mulher como destino de maternidade, que diz respeito à criança; algo que manifesta uma característica essencial da natureza do amor humano. Na nossa cultura, tendemos a julgar que existem agentes humanos, abstratos, pelos quais acontece de serem homens e mulheres. Mas, se perdermos os caracteres distintivos do homem, perdemos uma característica essencial do amor. Se perdermos os caracteres distintivos da mulher, perdemos algo de essencial quanto ao significado do amor. E se pensarmos nas crianças como pequenos adultos que se originarão disto, perdemos algo de essencial quanto ao que respeita ao significado do amor humano. Pensando neste último aspecto, há uma beleza particular no fato de que Deus tenha revelado a Si mesmo em Cristo, na forma de uma criança. Não é uma circunstância temporal: Jesus é Filho do Pai pela eternidade. Por isto, a filiação, o ser criança, não é uma condição da qual somos destinados a sair.
Albacete: Até que não se tornem uma coisa só, vocês não irão ao encontro do próprio destino.

* Publicado em Tracce, no dia 19 de abril de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.