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domingo, 4 de março de 2012

A Quaresma com os santos

As interrogações mais profundas do gênero humano

Da Constituição pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo de hoje, do Concílio Vaticano II (Séc.XX)
(N.9-10)

O mundo moderno apresenta-se simultaneamente poderoso e fraco, capaz do melhor e do pior; abre-se diante dele o caminho da liberdade ou da escravidão, do progresso ou da regressão, da fraternidade e do ódio. Por outro lado, o homem toma consciência de que depende dele a boa orientação das forças por ele despertadas e que podem oprimi-lo ou servi-lo. Eis por que se interroga a si mesmo. Na verdade, os desequilíbrios que atormentam o mundo moderno estão ligados a um desequilíbrio mais profundo, que se enraíza no coração do homem. No íntimo do próprio homem, muitos elementos lutam entre si. De um lado, ele experimenta, como criatura, suas múltiplas limitações; por outro, sente-se ilimitado em seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, é continuamente obrigado a escolher e a renunciar. Mais ainda: fraco e pecador, faz muitas vezes o que não quer e não faz o que desejaria. Em suma, é em si mesmo que o homem sofre a divisão que dá origem a tantas e tão grandes discórdias na sociedade. Muitos, sem dúvida, que levam uma vida impregnada de materialismo prático, não podem ter uma clara percepção desta situação dramática; ou, oprimidos pela miséria, sentem-se incapazes de prestar-lhe atenção. Outros, em grande número, julgam encontrar satisfação nas diversas interpretações da realidade que lhes são propostas. Alguns, porém, esperam unicamente do esforço humano a verdadeira e plena libertação da humanidade, e estão persuadidos de que o futuro domínio do homem sobre a terra dará satisfação a todos os desejos de seu coração. Não faltam também os que, desesperando de encontrar o sentido da vida, louvam a audácia daqueles que, julgando a existência humana vazia de qualquer significado próprio, se esforçam por encontrar todo o seu valor apoiando-se apenas no próprio esforço. Contudo, diante da atual evolução do mundo, cresce o número daqueles que formulam as questões mais fundamentais ou as percebem com nova acuidade. Que é o homem? Qual é o sentido do sofrimento, do mal e da morte que, apesar de tão grandes progressos, continuam a existir? Para que servem semelhantes vitórias,  conseguidas a tanto custo? Que pode o homem dar à sociedade e dela esperar? Que haverá depois desta vida terrestre? A Igreja, porém, acredita que Jesus Cristo, morto e ressuscitado por todo o gênero humano, oferece ao homem, pelo Espírito Santo, luz e forças que lhe permitirão corresponder à sua vocação suprema; ela crê que não há debaixo do céu outro nome dado aos homens pelo qual possam ser salvos. Crê igualmente que a chave, o centro e o fim de toda a história humana encontra-se em seu Senhor e Mestre. A Igreja afirma, além disso, que, subjacente a todas as transformações, permanecem imutáveis muitas coisas que têm seu fundamento último em Cristo, o mesmo ontem, hoje e sempre.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Gramsci tinha razão: somos uma geração mesquinha



Por Mauro Grimoldi

Caro editor,
Escreve quase que movido por um instinto, depois de um diálogo com uma colega minha, mãe de família, que me contou uma confidência recebida de sua filha mais velha.
A menina frequenta o sexto ano e contou à sua mãe a dor que está sentido por uma companheira de sala que revelou a ela, alguns dias antes, o seu sofrimento pela iminente, provável, separação dos pais e o temor de ser afastada da irmã. Que peso é injustamente lançado nas costas de nossos pequenos! Não se trata de um episódio isolado, mas da enésima confirmação de uma inimizade para como nossos próprios filhos, uma verdadeira e propriamente dita hostilidade que nos leva, se se pode dizer assim, a devorá-los, como nos piores pesadelos evocados da literatura mais antiga. Um dos maiores sucessos editoriais japoneses, recentemente traduzido para o italiano (Confissão de Kanae Minato, sem tradução para o português; ndt), conta a vingança, minuciosamente preparada, de um professor do ensino médio contra dois alunos que mataram sua filha de quatro anos. 
Este trecho de Michael Pye, retirado do romance  A camara de inverno, descreve bem uma situação bastante difundida: “No quarto dia em que estavam na estrada, Gretje teve sua primeira menstruação e sua mãe lhe disse que não importava. Sua mãe nunca lhe explicava as coisas, e Gretje era a obrigada a colocar junto o mundo, colando todos os fatos ou as noções nas quais tropeçava”.
Os tempos que estamos vivendo parecem-me marcados por uma dolorosa contradição: o relacionamento com os filhos é distorcido até a uma verdadeira e propriamente dita inversão de papéis. Os adultos se vestem, falam e pensam como criancinhas e as crianças são jogadas, desde a mais tenra infância, nas realidades próprias do mundo adulto (sexo, dinheiro, poder, guerra...), mesmo após uma exposição midiática contínua. A história de Pin, a criança perdida, sem gosto entre os adultos de uma distante brigada parisiense, contada no romance A trilha dos ninhos de aranha de Italo Calvino, poderia ser lida hoje a partir desta chave de interpretação.
A predileção pelos pequenos tantas vezes repetida por Cristo e a advertência peremptória de não escandalizar o distanciar da Sua Pessoa as crianças nos alcançam a partir de uma faceta da experiência humana que se encarrega de uma responsabilidade urgente e dramática, que ilumina a nossa missão de homens para que a educação seja a obra da vida, até ao ponto de nos consumir. Acho que começo a entender de uma maneira totalmente nova a dedicatória que se encontra anotada num dos primeiros livros de Dom Luigi Giussani: “Aos grandes que nos sabem falar, aos pequenos que nos sabem escutar” (Gioventù Studentesca, 1960), assim como o seu célebre apelo: “Obriguem-nos a andar nus, mas nos deixem a liberdade de educar”.
Certamente, a esta urgência não responderá a ênfase, também ela opressiva, hiperprotetora que defende, justifica e preserva os filhos de todos os orcs malvados que povoam o planeta (quem quiser, pode ler The slap, romance do greco-australiano Christos Tsiolkas) ou o fingimento ostentado de uma cumplicidade amigável muito mais do que a redução da educação a psicologia ou a prática normativo-penal. 
É necessário, vice-versa, que os adultos ajam como adultos, coloquem em ação a sua consistência de homens, que não é nem econômica nem muscular, mas é, em primeiro lugar, a consistência da sua esperança; a que não se alimenta da presunção de ter entendido tudo, mas do ideal que se segue. Por isto, precisamos de um lugar onde possamos seguir homens que seguem o Ideal: em suma, precisamos que a Igreja exista.
Tenho vivo na memória o momento do funeral copta realizado para uma menina egípcia, companheira de sala de aula de minha filha Anna, quando a autoridade mais antiga se inclinava em direção à menor das crianças, que, cantando, a interrogava, para responder, também cantando, às suas perguntas. Parece-me uma boa representação da autoridade, que se apoia sobre si mesma, mas só é segura em virtude da tradição, sólida, duradoura e viva, que recebeu e tornou sua. Como Gramsci escreveu: “Uma geração que deprime a geração anterior, que não consegue ver suas grandezas e o seu significado necessário, só pode ser mesquinha e sem confiança em si mesma. (...) Na desvalorização do passado está implícita uma justificação da nulidade do presente”.
Perto do fim do romance A estrada de Cormac McCarthy, no qual se narra a relação entre um pai e um filho num mundo devastado por uma tragédia que reduziu tudo a cinzas, onde a vida animal desapareceu e muitos homens regrediram a uma forma bestial de canibalismo, o filho pergunta ao pai, moribundo, sobre uma criança encontrada na estrada e que nunca mais foi vista outra vez: “Mas, que o encontrará se ele tiver se perdido? Quem encontrará aquele menino?”. A resposta do pai foi: “A bondade o encontrará. Sempre foi assim. E será ainda assim”.
É preciso dizer que esta resposta vem de um homem que, surpreso com a inclinação natural do filho pelo bem, não a mortificou, julgando-a uma fantasia infantil, mas a acompanhou, guiou e fez crescer, reconhecendo na natureza do filho a única possibilidade de salvaguarda da humanidade não só da criança, mas também da sua, até ao legado esperançoso das palavras que eu mencionei, que se demonstrarão verdadeiras e confiáveis.
Emerge uma imagem da educação que não consiste no encher a criança com as próprias opiniões, mas que se realiza no serviço à sua natureza, para fazê-la crescer e dar a ela aquela segurança que a criança, assim como o jovem, é impulsionado a buscar na pessoa e na vida do adulto.
De outro lado, parece-me que seja possível dizer que o movimento amoroso de Deus que se inclina sobre nós, fazendo-Se homem, nasça da urgência de nos assegurar que aquilo que somos é destinado a se realizar: em virtude da ressurreição podemos dizer com a mesma convicção de Paulo e Timóteo: “estou certo de que Aquele que começou em vós esta boa obra, a levará a realização até ao dia de Cristo Jesus”.
A urgência que os tempos põem a nós adultos – qual seja: a de sermos capazes de gerar, educar, fazer crescer na vida aqueles que colocamos no mundo – parece-me decisiva.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 23 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Crise da autoridade? O grande erro da liberdade moderna...


Por Stefano Biancu

Nestas páginas enfrentou-se, sob vários aspectos, o tema da crise da autoridade. O dissídio entre autoridade e razão representa, para o bem e para o mal, um nó constitutivo do aspecto intelectual da nossa modernidade. Hannah Arendt já falava disso: a crise atual da autoridade depende diretamente da estrutura intelectual e político-social da modernidade ocidental, que perdeu “the dimension of depth” – a dimensão da profundidade. Ou, para dizer com poucas palavras, a referência constitutiva a qualquer coisa de (sempre) precedente e fundante.
Convém, todavia, reconhecer como a atual crise da razão moderna não só não resultou numa ampla reavaliação da autoridade, como também exacerbou a crise mesma.
Explico-me. A única forma de autoridade que a modernidade reconheceu como legítima é a da razão autônoma, entendida como essência exclusivamente pensante (res cogitans) aplicada ao conhecimento de uma realidade substancialmente redutível a seus aspectos mensuráveis e quantificáveis (res extensa). A crise da única forma de autoridade tida como legítima – a da razão autônoma – levou a crise da autoridade, dessa forma, ao seu paroxismo.
No alvorecer da modernidade, os desafios inerentes à grande representação de uma distinção clara entre res cogitans e res extensa era dúplice. Em primeiro lugar, tratava-se de garantir a possibilidade de uma relação objetiva e neutra com o real, e isto com a finalidade de legitimar a ciência moderna: convinha postular um sujeito (res cogitans) que fosse de uma matéria completamente diferente da do objeto de sua observação (res extensa). Em segundo lugar, tratava-se de reagir à exagerada pretensão de mediação proveniente de instâncias políticas e religiosas: convinha afirmar a imediaticidade de certos direitos fundamentais do indivíduo, direitos que deveriam ser reconhecidos para cada ser humano desde o seu nascimento, e portanto independentemente da sua história e da sua posição, ou seja, da sua colocação no tempo e no espaço. Neste sentido, a grande representação teórica de uma res cogitans atemporal e aespacial teve o mérito de assegurar e garantir o nascimento e o desenvolvimento não apenas da ciência moderna, como também do Estado de direito. Méritos preciosos e de valor indubitável.  
Os problemas, porém, nasceram no momento em que se sustentou que esta representação artificial pudesse exaurir completamente a humanidade do homem. Ler e tentar compreender a autoridade a partir do paradigma de uma razão radicalmente livre de pressupostos (res cogitans) significou, de fato, se opor à possibilidade de encontrar categorias adequadas para o objetivo. Com efeito, é evidente como não é possível compreender a autoridade a não ser a custo de uma radical reflexão tardia acerca da nossa humanidade e da nossa liberdade, na medida em que humanidade e liberdade ricas de pressupostos: ou na medida em que as considerarmos como inseridas num tempo e num espaço.
Se de fato, jurídica e politicamente, a liberdade só pode ser um direito universal a ser reconhecido imediatamente para quem quer que seja, de um ponto de vista ético e antropológico esta imediaticidade representa apenas uma abstração. Eticamente, a liberdade é, de fato, também um dever e uma responsabilidade. Antropologicamente, sempre se está no caminho em direção à própria liberdade. Não nascemos livres: tornamo-nos livres, e nos tornamos graças ao encontro com liberdades mais maduras do que a nossa, que se tornam assim autoridades. Mais a liberdade com a qual se entra na relação é madura, tanto mais ela terá o caráter de uma autoridade geradora de liberdades. No fundo, este é o princípio de toda educação.
Neste sentido, ao lado de uma experiência (jurídico-política) da liberdade como direito, convém reconhecer uma experiência da liberdade como dever (nível ético) e, finalmente, uma mais fundamental experiência da liberdade como dom (nível antropológico). Ter achatado toda experiência possível da liberdade a partir do paradigma jurídico-político de um direito a ser reivindicado imediatamente, levou a uma redução da autoridade a limite (mais ou menos necessário) da liberdade. Tem significado, na melhor das hipóteses, uma redução da autoridade ao nível de um mal menor a ser suportado: seja como for, a uma frustração da liberdade.
Para voltar a compreender a natureza geradora de uma autêntica relação de autoridade, é preciso portanto voltar a prestar contas com a dimensão temporal da nossa história humana: com aquela dimensão da profundidade de que falava Arendt. No nível individual, isto significa  reconhecer que sempre estamos no caminho em direção à nossa própria liberdade – em direção à nossa própria humanidade – que não pode ser simplesmente tomada como um dado óbvio (a não ser no quadro daquela preciosa abstração jurídico-política que constitui um dos pilares do moderno Estado de Direito). No nível social, prestar contas com a dimensão constitutiva da temporalidade significa reconhecer que somos colocados dentro de uma estrutura de transmissão em virtude da qual é importante não apenas garantir as condições de um “espaço público”, mas também de uma “duração pública” (que se revela essencial exatamente para garantir a qualidade do espaço público).
Somente reconhecendo a rica genealogia da nossa liberdade e da nossa humanidade – como liberdade e humanidade ricas de pressupostos – é que será possível voltar a compreender a natureza de uma autoridade geradora de liberdade: mesmo no contexto da modernidade.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 15 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Da rede à realidade



“A armadilha da instintividade”
Por José Medina

Na escola, muitos dos problemas entre os jovens derivam daquilo que escrevem e leem no Facebook. Falando, depois, com eles, cara a cara, se entende que aquilo que escrevem ali, não seriam capazes de dizer na cara de ninguém.
Todo o mundo da educação nos Estados Unidos afirma que as redes sociais são estupendas, porque permitem uma comunicação facilitada, que derruba os limites de classe e as distâncias. E isto é verdade. Mas, o problema é que se trata de um meio instintivo, que não permite a reflexão, nem favorece o relacionamento interpessoal. Não acredito que se possa manter uma conversa autêntica usando as redes sociais. O que conta é o conceito de “I like it”, “curti”. Tudo se mede a partir do fato de você curtir ou não uma coisa, você curtir ou não as pessoas. Acredito que, para os adultos, seja a mesma coisa: a ideia segundo a qual tudo é automático, tudo é instintivo, é fonte de problemas porque o tempo não existe mais, as pessoas não falam mais! O discurso termina na mensagem de texto. Nos Estados Unidos, a internet já está fora de moda, a comunicação se faz via celular e através do Facebook. O email é um modo já mais profundo de expressão do pensamento, e assume o papel que antes pertencia à conversa.
Educar as pessoas é problemático, porque o instrumento vai no sentido contrário ao esforço educativo. Os três níveis do pensamento humano são: pensar, dizer e escrever. Cada vez que se passa a um nível diferente, o pensamento alcança maior profundidade: pensar consigo mesmo constitui-se num primeiro nível; falar obriga a um diálogo e, por isso, convida a um aprofundamento do pensamento. A escrita obriga a colocar as ideias em ordem. As mídias sociais, infelizmente, reduzem a escrita ao nível mais baixo do pensamento.
Há outro aspecto das redes sociais que contribui para a banalização dos relacionamentos. Para um jovem, no Facebook, não há distinção entre o amigo e o professor: o instrumento faz com que todos sejam uma pequena fotografia. Todas as relações são uniformizadas a um mesmo nível. A diferença construtiva entre jovem e adulto é enfraquecida. Isto gera confusão nos jovens, destruindo o sentido da autoridade e da paternidade. 
Podemos, portanto, utilizar isto como um espaço de educação? Acredito que não seja possível sem que se mude o instrumento mesmo.

“Google ou o professor?”
Por Federico Ponzoni

Sou professor há quase uma década. A tecnologia sempre ocupou a minha reflexão e a minha prática. De um lado, ela entra na escola como instrumento: há alguns anos, quando eu ainda era um seminarista, comecei a ensinar religião, e eu era o único em todo o instituto que usava apresentações em PowerPoint. O efeito era notável: era algo de novo, colorido, divertido. Ajudava a capturar a atenção dos jovens. Depois, o uso de instrumentos como esses se massificou. Passou o efeito da novidade, não bastava mais a simples introdução de um meio novo em sala de aula para educar com eficácia.
Aprendi, portanto, que a técnica no âmbito educativo promete muito, mas mantém pouco. Por exemplo, no Chile, onde estou em missão, os computadores foram introduzidos em sala de aula há dez anos, mas os resultados nos testes internacionais (PISA) não mudaram muito. Somente há poucos anos é que foram introduzidos os softwares didáticos que usam amplamente técnicas de programação que dão resultados tangíveis, sobretudo em matemática. Os estudos feitos até então demonstram, porém, que a simples introdução do software produz um crescimento vacilante dos resultados em matemática. O software, pelo contrário, unido ao aperfeiçoamento do docente e à melhora da didática, produz resultados impressionantes. Técnica ou não técnica, o homem continua sendo o centro do processo educativo. 
Não é tudo. Os estudos mais recentes, tanto em neurobiologia como em mídia, sublinham que a introdução de meios digitais produz uma mudança cultural muito significativa: um “nativo digital” pensa de modo diferente de alguém que só entrou no mundo digital quando adulto. Isto gera graves mal-entendidos entre docentes e alunos: aquilo que o professor diz é frequentemente visto pelo aluno como irrelevante ou inútil (“O professor está me dizendo coisas que posso encontrar no Google... por que, então, eu preciso ficar atento?”) e o professor encontra um aluno distraído, preguiçoso, sem interesse e, por isto, se sente frustrado. Então, é necessário redescobrir o verdadeiro papel do educador. O educador é aquele que sabe transmitir aquilo de que os nativos digitais precisam: uma razão para viver.

Uma carta de pouco valor
Por Carlo Fumagalli

Hoje, vejo em muitas pessoas (não apenas nos jovens) uma notável dependência dos meios de comunicação. Fico tocado com o senso de vazio, de desorientação, que as pessoas têm quando procuram alguém pelo celular e o encontram desligado. Na Hungria não existe o serviço de sms que avisa quem ligou para você. Desencadeia-se, por isto, a fobia de não conseguir falar com aquela pessoa. Que se torna agitação, ansiedade. Em mim, esta dependência é um pouco limitada. Mas, tenho uma missão muito “móvel” e, frequentemente, estou rodando: noventa por cento das ocasiões missionárias que tenho se passa pelo celular. Há, portanto, um aspecto positivo, de um ponto de vista “missionário”. Há o risco de degenerar, mas é uma comodidade enorme, desde que seja apenas o prelúdio para um encontro pessoal. É como, num jogo de baralho, uma carta baixa que você joga para ver o que os outros jogadores têm na mão. Certamente não será com ela que você vai levar para a casa o resultado, mas pode, certamente, facilitar o caminho.
Com o email é diferente. Quase nunca respondo a um pedido diretamente pelo email: convido o outro para nos vermos e conversarmos. Tem nisso uma questão lingüística, mas sobretudo parto da consciência de que não tenho a verdade no bolso, que possa ser confeccionada e enviada por email. Acredito que é muito interessante estar juntos, dar alguns passos juntos, viver juntos um momento de relaxamento...
Tudo isto é possível apenas no relacionamento pessoal. Em geral, precisamos do silêncio, do tempo de escuta do outro, algo que não seja um relacionamento mediado pelas tecnologias ou queimado nos tempos breves. Facebook é um exemplo evidente: uma garota, em dez segundos, convida trezentos “amigos” para um concerto. Depois, no concerto, aparecem apenas em dois que, não por acaso, são os dois para quem ela também telefonou. A ação pessoal é sempre mais resolutiva.
Tenho uma prova evidente disto quando me acontece de sugerir algo para ser lido. Às vezes, para que a pessoa possa receber logo depois do nosso encontro, ligo o computador, anexo o arquivo e envio. Mas, o fracasso é quase certo: entre as centenas de mensagens que recebe, o meu correspondente, no máximo, vai folhear as minhas páginas por uns trinta segundos. Outras vezes, pelo contrário, experimentei dar um livro ou uma fotocópia: é uma coisa completamente diferente. O papel fala. É como se eu dissesse para quem eu tenho diante de mim: “Depois da nossa conversa, pensei em você, rezei por você, trouxe na memória aquilo que você me disse. Procurei um livro e o folheei até encontrar aquilo que parece ter sido escrito exatamente para você; dá uma olhada, sublinhei alguns trechos há alguns anos, dou para você algo que é parte de mim...”.

O que procuramos
Por Giovanni Musazzi

Os lados bons da tecnologia são evidentes: organizo uma viagem em cinco minutos, encontro, sem me mover, livros que me são úteis, convido para um feriado com um único email, economizando quarenta telefonemas. Mas, assim como as coisas boas são tão óbvias, parece-me que se percam de vista os problemas. O uso adequado da internet não é o abuso. Mas, quando se está cego, o abuso está na próxima esquina.
O primeiro risco grave diz respeito ao uso do nosso tempo. O tempo tem um valor. Como tudo é fácil, o risco é que aquilo que deveria me ajudar a economizar tempo, na realidade, toma uma quantidade enorme de tempo. Do mesmo modo, o estar sempre disponível é um peso. Chega um email e, depois de um minuto, um sms no qual avisam que você deve dar uma olhada no email, e dez minutos depois telefonam para perguntar se eu li... e, no máximo, se trata de algo que vai acontecer daqui a duas semanas. É uma ansiedade: tudo agora e tudo imediatamente, tudo sempre urgente.
Frequentemente, de outro lado, perdemos a noção de que do outro lado da linha ou da rede tem uma pessoa. Usamos a tecnologia para procurar alguém não porque nos interessa aquela pessoa, mas apenas porque, naquele momento, precisamos que haja uma pessoa imediatamente disponível para poder descarregar sobre ela o fato que nos sentimos tristes, que estamos parados num engarrafamento na estrada, que estamos fazendo um trabalho tedioso. No fundo, por outro lado, é quase indiferente quem está lendo ou escutando. Ninguém me responde? Telefono para outra pessoa. Ou então, um belo sms grupal: alguém há de me responder! Quando, pelo contrário, vou encontrar alguém, tenho aquela pessoa diante de mim e basta. As pessoas, aqui no Portugal, têm uns três chips de celular, utilizando três empresas de telefonia diferentes. O resultado disso? Mexericos e um montão de dinheiro gasto com contas de celular.
Será que precisamos tanto de todas estas palavras? Precisamos tornar tudo público, disponível online? Eu pedi a muitas famílias próximas que trocassem as fotos privadamente, e que não as publicassem na internet. De fato, tem uma forte tendência a recorrer ao virtual, olhar as fotos e ler os comentários, mais do que viver uma experiência direta. Eu gostaria de viver a vida, e não de viver como um substituto. 


* Extraído do site da Fraternità San Carlo, do dia 5 de outubro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Cuidado com os burros motivados


Entrevista com Roberto Shinyashiki*

A revista ISTO É publicou, em 2005, esta entrevista com Roberto Shinyashiki, médico psiquiatra, com Pós-Graduação em administração de empresas pela USP, consultor organizacional e conferencista de renome nacional e internacional. Em Heróis de Verdade, o escritor combate a supervalorização das aparências, diz que falta ao Brasil competência, e não auto-estima.
É uma entrevista imperdível... seis anos depois, quanta coisa ficou ainda mais evidente: as universidades se tornaram escolas de mediocridade e de incompetência - sem um único exemplo em contrário -; a aparência se tornou de tal forma dominante que já não sabemos se somos, temos ou parecemos ser, não sabemos nem mesmo o que ou quem somos; a mentira e a arrogância se tornaram a chave para abrir todas as portas; a meritocracia acabou; a ignorância e a mediocridade viraram virtudes e são celebradas... e a lista pode ser ainda mais longa!

ISTO É - Quem são os heróis de verdade?
Roberto Shinyashiki - Nossa sociedade ensina que, para ser uma pessoa de sucesso, você precisa ser diretor de uma multinacional, ter carro importado, viajar de primeira classe. O mundo define que poucas pessoas deram certo. Isso é uma loucura. Para cada diretor de empresa, há milhares de funcionários que não chegaram a ser gerentes. E essas pessoas são tratadas como uma multidão de fracassados. Quando olha para a própria vida, a maioria se convence de que não valeu à pena, porque não conseguiu ter o carro, nem a casa maravilhosa. Para mim, é importante que o filho da moça que trabalha na minha casa, possa se orgulhar da mãe. O mundo precisa de pessoas mais simples e transparentes. Heróis de verdade são aqueles que trabalham para realizar seus projetos de vida, e não para impressionar os outros. São pessoas que sabem pedir desculpas e admitiram que erraram.

ISTO É - O Sr. citaria exemplos?
Shinyashiki - Quando eu nasci, minha mãe era empregada doméstica e meu pai, órfão aos sete anos, empregado em uma farmácia. Morávamos em um bairro miserável em São Vicente (SP) chamado Vila Margarida. Eles são meus heróis. Conseguiram criar seus quatro filhos, que hoje estão bem. Acho lindo quando o Cafu põe uma camisa em que está escrito “100% Jardim Irene”. É pena que a maior parte das pessoas esconda suas raízes. O resultado é um mundo vítima da depressão, doença que acomete hoje 10% da população americana. Em países como o Japão, a Suécia e a Noruega, há mais suicídio do que homicídio. Por que tanta gente se mata? Parte da culpa está na depressão das aparências, que acomete a mulher, que embora não ame mais o marido, mantém o casamento, ou o homem que passa décadas em um emprego, que não o faz se sentir realizado, mas o faz se sentir seguro.

ISTO É - Qual o resultado disso?
Shinyashiki - Paranoia e depressão cada vez mais precoce. O pai quer preparar o filho para o futuro e mete o menino em aulas de inglês, informática e mandarim. Aos nove ou dez anos a depressão aparece. A única coisa que prepara uma criança para o futuro, é ela poder ser criança. Com a desculpa de prepará-los para o futuro, os malucos dos pais estão roubando a infância dos filhos. Essas crianças serão adultos inseguros e terão discursos hipócritas. Aliás, a hipocrisia já predomina no mundo corporativo.

ISTO É - Por quê?
Shinyashiki - O mundo corporativo virou um mundo de faz-de-conta, a começar pelo processo de recrutamento. É contratado o sujeito com mais marketing pessoal. As corporações valorizam mais a auto-estima do que a competência. Sou presidente da Editora Gente e entrevistei uma moça que respondia todas as minhas perguntas com uma ou duas palavras. Disse que ela não parecia demonstrar interesse. Ela me respondeu estar muito interessada, mas como falava pouco, pediu que eu pesasse o desempenho dela, e não a conversa. Até porque ela era candidata a um emprego na contabilidade, e não de relações públicas. Contratei-a na hora. Num processo clássico de seleção, ela não passaria da primeira etapa.

ISTO É - Há um script estabelecido?
Shinyashiki - Sim. Quer ver uma pergunta estúpida feita por um presidente de multinacional no programa “O Aprendiz”? Qual é seu defeito? Todos respondem que o defeito é não pensar na vida pessoal: “- Eu mergulho de cabeça na empresa. Preciso aprender a relaxar”. É exatamente o que o Chefe quer escutar. Por que você acha que nunca alguém respondeu ser desorganizado ou esquecido? É contratado quem é bom em conversar, em fingir. Da mesma forma, na maioria das vezes, são promovidos aqueles que fazem o jogo do poder. O vice-presidente de uma as maiores empresas do planeta me disse: “Sabe, Roberto, ninguém chega à vice-presidência sem mentir”. Isso significa que quem fala a verdade não chega a diretor!

ISTO É - Temos um modelo de gestão que premia pessoas mal preparadas?
Shinyashiki - Ele cria pessoas arrogantes, que não têm a humildade de se preparar, que não têm capacidade de ler um livro até o fim e não se preocupam com o conhecimento. Muitas equipes precisam de motivação, mas o maior problema no Brasil é competência. Cuidado com os burros motivados. Há muita gente motivada fazendo besteira. Não adianta você assumir uma função, para a qual não está preparado. Fui cirurgião e me orgulho de nunca um paciente ter morrido na minha mão. Mas tenho a humildade de reconhecer que isso nunca aconteceu graças a meus chefes, que foram sábios em não me dar um caso, para o qual eu não estava preparado. Hoje, o garoto sai da faculdade achando que sabe fazer uma neurocirurgia. O Brasil se tornou incompetente e não acordou para isso.

ISTO É - Está sobrando auto-estima?
Shinyashiki - Falta às pessoas a verdadeira auto-estima. Se eu preciso que os outros digam que sou o melhor, minha auto-estima está baixa. Antes, o ter conseguia substituir o ser. O cara mal-educado dava uma gorjeta alta para conquistar o respeito do garçom. Hoje, como as pessoas não conseguem nem ser, nem ter, o objetivo de vida se tornou parecer. As pessoas parecem que sabem, parece que fazem, parece que acreditam. E poucos são humildes para confessar que não sabem. Há muitas mulheres solitárias no Brasil, que preferem dizer que é melhor assim. Embora a auto-estima esteja baixa, fazem pose de que está tudo bem.

ISTO É - Por que nos deixamos levar por essa necessidade de sermos perfeitos em tudo de valorizar a aparência?
Shinyashiki - Isso vem do vazio que sentimos. A gente continua valorizando os heróis. Quem vai salvar o Brasil? O Lula. Quem vai salvar o time? O técnico. Quem vai salvar meu casamento? O terapeuta. O problema é que eles não vão salvar nada! Tive um professor de filosofia que dizia: “Quando você quiser entender a essência do ser humano, imagine a rainha Elizabeth com uma crise de diarreia durante um jantar no Palácio de Buckingham”. Pode parecer incrível, mas a rainha Elizabeth também tem diarreia. Ela certamente já teve dor de dente, já chorou de tristeza, já fez coisas que não deram certo. A gente tem de parar de procurar super-heróis, porque se o super-herói não segura a onda, todo mundo o considera um fracassado.

ISTO É - O conceito muda quando a expectativa não se comprova?
Shinyashiki - Exatamente. A gente não é super-herói nem super fracassado. A gente acerta, erra, tem dias de alegria e dias de tristeza. Não há nada de errado nisso. Hoje, as pessoas estão questionando o Lula, em parte porque acreditavam que ele fosse mudar suas vidas e se decepcionaram. A crise será positiva se elas entenderem que a responsabilidade pela própria vida é delas.

ISTO É - Muitas pessoas acham que é fácil para o Roberto Shinyashiki dizer essas coisas, já que ele é bem-sucedido. O senhor tem defeitos?
Shinyashiki - Tenho minhas angústias e inseguranças. Mas aceitá-las faz minha vida fluir facilmente.Há várias coisas que eu queria e não consegui. Jogar na Seleção Brasileira, tocar nos Beatles (risos). Meu filho mais velho nasceu com uma doença cerebral e hoje tem 25 anos. Com uma criança especial, eu aprendi que, ou eu a amo do jeito que ela é, ou vou massacrá-la o resto da vida para ser o filho que eu gostaria que fosse. Quando olho para trás, vejo que 60% das coisas que fiz deram certo. O resto foram apostas e erros. Dia desses apostei na edição de um livro, que não deu certo. Um amigão me perguntou: “Quem decidiu publicar esse livro?”. Eu respondi que tinha sido eu. O erro foi meu. Não preciso mentir.

ISTO É - Como as pessoas podem se livrar dessa tirania da aparência?
Shinyashiki - O primeiro passo é pensar nas coisas que fazem as pessoas cederem a essa tirania e tentar evitá-las. São três fraquezas: a primeira é precisar de aplauso, a segunda é precisar se sentir amada e a terceira é buscar segurança. Os Beatles foram recusados por gravadoras e nem por isso desistiram. Hoje, o erro das escolas de música é definir o estilo do aluno. Elas ensinam a tocar como o Steve Vai, o B. B. King ou o Keith Richards. Os MBAs têm o mesmo problema: ensinam os alunos a serem covers do Bill Gates. O que as escolas deveriam fazer é ajudar o aluno a desenvolver suas próprias potencialidades.

ISTO É - Muitas pessoas têm buscado sonhos que não são seus?
Shinyashiki - A sociedade quer definir o que é certo. São quatro loucuras da sociedade... A primeira é instituir que todos têm de ter sucesso, como se eles não tivessem significados individuais. A segunda loucura é: você tem de estar feliz todos os dias. A terceira é: você tem que comprar tudo o que puder. O resultado é esse consumismo absurdo. Por fim, a quarta loucura: você tem de fazer as coisas do jeito certo. Jeito certo não existe. Não há um caminho único para se fazer as coisas. As metas são interessantes para o sucesso, mas não para a felicidade. Felicidade não é uma meta, mas um estado de espírito. Tem gente que diz que não será feliz, enquanto não casar, enquanto outros se dizem infelizes justamente por causa do casamento. Você pode ser feliz tomando sorvete, ficando em casa com a família ou com amigos verdadeiros, levando os filhos para brincar ou indo à praia ou ao cinema. Quando era recém-formado em São Paulo, trabalhei em um hospital de pacientes terminais. Todos os dias morriam nove ou dez pacientes. Eu sempre procurei conversar com eles na hora da morte. A maior parte pega o médico pela camisa e diz: “Doutor, não me deixe morrer. Eu me sacrifiquei à vida inteira, agora eu quero aproveitá-la e ser feliz”.

* Extraído da revista ISTO É, n. 1879, de 19 de outubro de 2005.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Quem nos livrará das ilusões do mau desejo?



Por Francesco Botturi

Num recente trabalho de Pietro Barcellona foi reproposto o tema da modernidade tecnológica e da sua orientação ao pós-humano, na qual se delineia uma alternativa prático-histórica para as “tradições culturais humanistas” com seu patrimônio ético-religioso e metafísico. Uma reflexão renovada, em suma, acerca da potencial, e em parte já atual, sublevação antropológica, de que falavam também dois recentes e interessantes textos de Antonio Allegra.
A questão é hoje fundamental; persistiríamos em não querer compreender o nosso tempo se não  notássemos que ele é atravessado por uma tendência, altamente sintomática ainda que minoritária, a considerar antiquado e falido o humanismo ocidental (veja-se, por exemplo, Sloterdijk recordado por Allegra) e a encarar como única alternativa possível e desejável uma disponibilização técnica integral do homem e do mundo, como racionalização criativa da existência. Portanto, não tanto uma alternativa laica própria do humanismo tradicional (para ficar claro, o humanismo dos direitos humanos, da solidariedade internacional, da democracia liberal etc.), mas uma alternativa frontal e global à ideia do humano como paradigma e medida intangível de sentido.
Trata-se não de uma forma nova de humanismo, mas de uma hipótese pós-humanista, na qual o humano encontra novo sentido na medida em que é sujeito-objeto ao mesmo tempo das mais avançadas possibilidades de transformação técnica. Uma técnica não mais concebida a serviço de um grande projeto reformador (estaríamos ainda numa visão humanista de um ideal meta-técnico colocado como guia dos processos históricos), mas uma técnica entendida como operadora de uma grande e integral transformação consequente ao seu experimentalismo mesmo (da qual, segundo penso, a ideia do “futurismo” italiano foi uma antecipação artístico-cultural interessante: a técnica não mais como executora de projetos, mas como criadora em si mesma de novidades, produtora, por si mesma, de nova antropologia).
Esta visão exasperada do nosso futuro se mantém e se torna atraente em razão de um concurso de fatores persuasivos, que é oportuno evidenciar: racionalidade técnico-científica, exercício de poder e experiência de liberdade. Uma síntese operativa que, na realidade, não deixa ninguém indiferente, porque coloca em jogo fatores antropológicos primários. Por isto, mesmo quem não assume como sua uma visão pós-humanista hard, compartilha facilmente dela a perspectiva de fundo que considera o homem como um constructo psíquico ou social modificável conforme o gosto – como recorda Barcellona –, como já é particularmente visível no vasto âmbito da biopolítica contemporânea; ou melhor, a aceitação de tais perspectivas é o modo normal com o qual o humanismo tradicional se desintegra por dentro no uso contemporâneo.
Isto adquirido, não acredito, porém, que seja proveitoso proceder através de uma sistemática contraposição entre o novo paradigma e o da tradição humanista. Mesmo porque neste tipo de confronto – entre aquilo que tem um seu passado e aquilo que tem um seu futuro – é óbvio que sai ganhando quem for mais persuasivo... Trata-se muito mais de entrar na síndrome antropológica que fundamenta a perspectiva pós-humana para compreender o que do humano está em jogo e o que torna tão atraente assim este jogo do humano.
Falei acerca de três fatores convergentes significativos; consideremo-los outra vez. A importância da racionalidade científica e técnica é óbvia, assim como é evidente o reducionismo que faz dela o paradigma do conhecimento e da ação. A crítica a tal reducionismo já é habitual e facilmente compartilhada: outras formas de conhecer e agir são essenciais para o homem e para a sua condição histórica. Menos usual é, porém, a consideração acerca da motivação que torna fascinante tal reducionismo. Ela está ligada ao baricentro da síndrome pós-humanista, que está no exercício de poder, expressão prática, concreta e eficiente de um fator humano subentendido, absolutamente decisivo: o desejo.
O fascínio da perspectiva pós-humanista – ainda que se leve em consideração suas exasperações e loucuras – é o seu apelo secreto ao desejo humano de transformação da sua condição histórica numa condição qualitativamente superior. Desejo que é o vetor irreprimível da aventura humana (como tentei mostrar no texto La generazione del beneA geração do bem, em tradução livre – publicado pela Vita e Pensiero, em 2009). A impotência contemporânea da tradição humanista – segundo penso – deriva principalmente da sua incapacidade de se fazer competitiva no plano do desejo humano, da discussão sobre seu objeto adequado, da sua proposta como forma possível de vida. Então, mesmo o terceiro elemento de fascínio, a experiência da liberdade, poderia assumir um significado diferente do de um exercício libertário e subjetivo da escolha para se tornar compromisso voluntarista com a aventura do desejo e relação solidária com as outras liberdades.
Para uma perspectiva neo-humanista não é suficiente a contraposição ao pós-humanismo; é necessária uma perspectiva sensata, na qual os fatores de influência do pós-humanismo – saber, desejo e poder, liberdade – encontrem uma amplitude e uma síntese melhores.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 20 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Instruções para não sucumbir ao fascínio do nada


Por Giovanni Maddalena

William James dizia que toda filosofia tem um coração secreto, um centro de gravidade a que todo o resto se refere. Se se chegar a isto, todo o resto virá em seguida. Há verdade nesta descrição e, no caso de Costantino Esposito, cujo livro Una ragione inquieta [Uma razão inquieta – em tradução livre –, publicado este ano pela Edizioni Di Pagina, de Bari; ndt] reúne as reflexões “nas dobras do nosso tempo”, o centro é a dramática separação provocada pela modernidade: o eu de um lado, o mundo, o dado, o objeto, os objetos individuais e irrepetíveis do outro. Esposito persegue esta separação, esta distância, esta “patologia que se tornou fisiologia” (p. 16) em contextos aparentemente distantes, fazendo emergir, desta forma, a nossa frequentemente inconsciente mas inevitável pertença ao horizonte da modernidade. Somos modernos não apenas quando pensamos na verdade (p. 114), mas também quando transferimos este pensamento para a política, nas nossas divisões entre fundamentalismo e relativismo (p. 115) ou entre multiculturalismo e integracionismo (p.121), quando resolvemos a educação com cognitivismo ou sentimentalismo (p. 30), quando – como Svevo – viajamos entre “um pensamento sem afetividade e uma afetividade sem pensamento” (p. 142).
Este abismo que se criou entre razão e sentimento, entre sujeito e objeto é a negação da força constitutiva do relacionamento que já somos. É o relacionamento entre sujeito e dado, ou melhor, entre dado e sujeito que é originário. Por isto, Esposito sublinha todas aquelas experiências de pensamento que são verdadeiras e propriamente ditas performances fenomenológicas: Agostinho, Dante, o Descartes da III meditação (lido segundo a recente tradição francesa), Giussani. É uma fenomenologia do relacionamento que nos faz entender que já estamos numa unidade mais profunda do que pensamos, uma unidade que devemos mais descobrir do que inventar de forma moralista.
Diferentemente do que sustentava James, porém, o centro da questão não resolve tudo no caso de Esposito. O contorno, segundo penso, é quase mais importante do que o centro. O aspecto constitutivo do pensamento de Esposito, de fato, não é a condenação da modernidade, mas o fato de considerá-la como uma possibilidade. O relacionamento constitutivo não será obtido com um simples retorno ao passado, mas atravessando toda a dinâmica da modernidade na qual estamos imersos, inclusive no niilismo. São três os fatores mais interessantes deste ponto de vista: o caso, o indivíduo e o nada.
Contrariamente ao que se poderia esperar de um pensamento declarada e corajosamente católico, o livro de Esposito faz vir à tona uma avaliação positiva do drama da casualidade assim como o homem a percebe em sua ausência de pacificação consoladora. Mesmo numa tragédia como a do tsunami de 2004, Esposito sublinha que as circunstâncias fatais nos fazem perceber, por um instante, a nossa situação mortal, marcada por uma fragilidade estrutural, mas também por uma vontade de viver que não pode ser reduzida a nada (p. 234). “A incerteza é o eco de outra coisa” (p. 4). A casualidade que a filosofia e a religião frequentemente tentam reduzir ou suprimir se mantém em toda a sua ambivalência de derrota e, ao mesmo tempo, de paradoxal esperança do repentino aparecer do momento de graça. Nada de mais distante da resignação sentimental ou da argumentação racionalista com a qual, às vezes se explica aquilo que não se compreende com um genérico “desígnio de Deus”. Esposito evidencia a contradição e deixa que ela seja o grito de necessidade de salvação.
O niilismo mesmo, deserto extremo do pensamento moderno, é percebido como um ponto privilegiado por causa desta percepção dramática do ser: “o niilismo é o nosso destino ou é um caminho, tão paradoxal quanto inesperado, para redescobrir que o destino do niilismo é o evento surpreendente do ser?” (p. 196). É melhor, então, ser niilistas? Talvez não, mas ai de quem, parece dizer Esposito, não percebe suas razões e, de algum modo, seu fascínio.
Finalmente, o indivíduo. O relacionamento sujeito-mundo é constitutivo e o dado tem, certamente, uma primazia. Mas, Esposito não tem dúvidas sobre qual seja o lado do qual ele prefere se aproximar: muito modernamente, a sua filosofia é uma elegia do eu, do sujeito e da sua individualidade. “‘Eu’ é a coisa mais minha que possa existir – o meu eu, a minha consciência, a minha liberdade, a minha ação, os meus pensamentos – é a coisa mais próxima de mim que há” (p. 143). A abertura para o outro, mesmo quando o outro é Deus, é exatamente para a salvaguarda deste “eu”, em toda a sua gigantesca dimensão. Tanto que a educação mesma é ligada apenas e exclusivamente à comunicação do eu (pp. 28-29).
Obviamente, trata-se de teses fortes, sobre as quais há muito o que se discutir, a começar pela última: um “eu” que não gera um método é um “eu” realizado? E também: qual é a lógica, se houver, daquele relacionamento constitutivo? Que tipo de epistemologia nasce desta ontologia do relacionamento constitutivo? É a individualidade ocidental ou a comunhão da tradição ortodoxa que se encontra na origem do eu a partir de um ponto de vista social? Como o relacionamento originário com o dado se traduz em política, em educação, em bem para todos?
Vêm à mente muitas perguntas, e muitas mais virão aos leitores, mas é exatamente este início de diálogo sincero que marca o encontro com um verdadeiro “eu”.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Nenhuma teoria (e laboratório) nos faz nascer outra vez...


Por Salvatore Abbruzzese

Para o homem contemporâneo, ou seja, aquele que frui – pelo menos potencialmente – do capital informativo e cultural que caracteriza a atual sociedade global, a lista das escolhas possíveis só se tem alongado, estendendo-se dia após dia para além de todo confim tradicionalmente herdado. E possível escolher aquilo que até ontem parecia imutável, pensando que, assim, seja possível, razoavelmente, modificar não apenas as condições materiais de vida e os modelos de expressão, mas também as próprias características físicas e o mesmo o próprio gênero.
O problema encontra-se, portanto, aberto, mas as suas raízes não são, de fato, inéditas. A extensão ilimitada das oportunidades e o consequente aumento das potencialidades de escolha do indivíduo não datam de hoje, mas estão no centro da modernidade como projeto cultural. Nos fatos é a modernidade na qual nascemos que alimenta constantemente a esperança de uma extensão crescente e potencialmente ilimitada das opções, ou seja, das escolhas à disposição. Estender ao máximo as ocasiões de escolha – como recordava Dahrendorf, em 1979 – é um objetivo que se situa no coração do projeto moderno, e constitui o seu verdadeiro motor motivacional, o que alimenta incessantemente sua dimensão projetual. Para um mundo fundado sobre a liberdade, esta última tem tanto sentido quanto mais o sujeito puder escolher entre uma série crescente e potencialmente ilimitada de oportunidades de vida.
O dado inédito, que é alimentado pelos recentes desenvolvimentos da ciência contemporânea, constitui-se da possibilidade de deixar entrar na rede das opções à disposição também os dados da bagagem natural que, até ontem, eram entendidos como o mais incontroverso dos dados de fato. Uma tal possibilidade de escolha também das características vinculadas à própria natureza psíquica e física não tem apenas problemas no plano ético e político, mas transforma também completamente os termos mesmos do confronto entre modernidade e tradição.
A primeira, de fato, vê transitar a própria dimensão projetual do plano social e político para o das características físicas e psíquicas. Tendo emergido a partir da afirmação de um projeto de emancipação no plano social, a sociedade moderna declina, apresentando um programa de transformação genética. Nascida como direito coletivo à palavra, a modernidade vê o seu declínio no direito do sujeito à redefinição de si mesmo. Estabelecida no laboratório político, descobre a resolução no acomodar-se no laboratório genético.
Mas, também a tradição, de modo quase automático, muda decididamente o seu perfil, passando da subscrição de um código ético e normativo já dado, para a definição de um novo modelo de realização. O sujeito, mais do que tender à multiplicação das oportunidades, se volta aqui para a recuperação e para  a reconstrução dos vínculos e das relações significativas. A dinâmica da tradição se desenrola passando da simples subscrição do statu quo para a busca dos pertencimentos vinculantes. Contra a reversibilidade das escolhas propostas pela modernidade, a tradição replica com a irreversibilidade das relações significativas. Não se trata, aqui, apenas das escolhas do vínculo paterno e materno que se revelam, uma vez efetuadas, completamente não modificáveis, mas todas as escolhas afetivas e vocacionais revelam a mesma dinâmica de irreversibilidade: prova disso é a ferida que continua aberta para sempre, todas as vezes em que tais “escolhas de vínculo” são anuladas por uma renúncia pessoal. Não há escolha de vida verdadeiramente autêntica que não envolva a radicalidade do ser e, nesse mesmo caminho, se preste a ser pensada e vivida como implicitamente irreversível.
O deslocamento da modernidade do plano das reivindicações sociais para o da autodeterminação pessoal provoca, assim, uma transformação radical da forma como enfrenta a tradição.
No passado, o confronto entre tradição e modernidade se realizava ao redor da questão ética socialmente dada e juridicamente codificada. A distinção se desenvolvia entre duas leituras da realidade: a primeira, que tendia a uma adesão incondicional à autoridade do “eterno ontem” que, dessa forma, se constitui na premissa legitimadora, a segunda dirigida à busca também incondicional da mudança e à consequente exaltação do novo entendido como senso normativo da história.
Na presente linha de separação entre modernidade e tradição, e portanto o elemento estrutural de diferenciação, desenvolve-se, pelo contrário, na lacuna crescente entre quem persegue um extensão ilimitada das escolhas à disposição e quem, por outro lado, tem como objetivo também uma busca estendida de relações significativas. 
Desenvolve-se assim uma diferenciação cada vez mais clara entre duas antropologias distintas: uma, própria da modernidade, que vê o sujeito tendido a se libertar de todo vínculo e a se voltar para uma busca de uma cada vez maior e mais completa afirmação de si mesmo; a outra, própria da tradição, onde o sujeito, pelo contrário, está sempre mais atento a uma plena e bem definida afirmação das relações significativas, a partir das quais ele se situa e se define. A uma emancipação do sujeito, consequente ao reconhecimento do “direito aos direitos” e, portanto, tendido à autodeterminação radical daquilo que escolhe ser, se contrapõe uma realização da pessoa voltada ao reconhecimento dos vínculos e das redes de relações às quais escolhe se ligar. Na primeira, o sujeito coroa o próprio sucesso na medida em que tem acesso a uma rede cada vez mais vasta de opções, na segunda ele vê a própria realização na localização e no reconhecimento dos vínculos que o definem. Nestes vínculos, o sujeito descobre seu próprio rosto, aquele que, de fato, ele não quer modificar e para o qual toda potencial transformação genética é simples loucura.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 14 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

MEC não quer ensinar

Por Carlos Alberto Di Franco *

Acabo de ler duas instigantes obras de Zygmunt Bauman: Amor Líquido e Modernidade Líquida. Bauman, um dos mais originais e perspicazes sociólogos da atualidade, vai fundo nos paradoxos da modernidade líquida. Vivemos um tempo de incertezas, de sinais confusos, de ausência de vínculos duradouros. Mas, ao mesmo tempo, o comportamento fluido e relativista acaba, frequentemente, em arrebatos de dogmatismo ideológico. O relativismo, facilmente, transforma-se em autoritarismo.
Recentemente, a imprensa noticiou que, para evitar discriminações, o Ministério da Educação (MEC) quer renunciar ao dever de ensinar. Por exemplo, entende que pode promover o preconceito a explicação em sala de aula de que a concordância entre artigo e substantivo é uma norma da língua portuguesa. Dessa forma, o MEC aconselha a relativizar. Segundo o Ministério, a expressão "os carro" também seria correta. A sociedade, quando se deu conta do que o MEC estava propondo, foi unânime na sua indignação. Afinal, a oportunidade de aprender bem a sua língua deve ser um direito de todos.
Nesse caso, no entanto, penso que está em jogo mais do que a norma culta da língua portuguesa. Implicitamente, o MEC nos diz: na busca por um "mundo mais justo" (sem preconceitos) pode ser aconselhável dizer algumas mentiras. Na lógica ministerial, o conhecimento é munição para a discriminação.
Vislumbra-se aí uma visão de mundo na qual o critério político prevaleceria sobre a realidade das coisas, sobre a verdade. E aqui reside o ponto central, cuja discussão é incômoda para uma sociedade que não deseja utilizar o conceito "verdade". Este seria apropriado apenas para uma agenda conservadora; os contemporâneos não deveriam utilizá-lo mais.
Mas por que será que a "verdade" é tão incômoda? Porque ainda estamos imersos no sofisma moderno que confunde "ter um conhecimento certo sobre algo" com "ser dono da verdade". O engano está em equiparar "conhecimento limitado" - que é onde sempre estaremos - com "todo conhecimento é inválido".
Outro influente motivo para evitar o uso do conceito "verdade" é a aspiração por liberdade. As "verdades" tolheriam a nossa autonomia, imporiam uns limites indesejáveis; no mínimo, acabariam diminuindo a nossa liberdade de pensamento. O MEC - de fato - entende assim: numa sociedade plural, não se poderia ter apenas uma única norma culta para a língua portuguesa. Deixemos os nossos alunos "livres" para escolherem as diversas versões.
Não será que ocorre exatamente o contrário? Quem conhece bem a língua portuguesa tem a liberdade de escolher qual forma - num texto literário, por exemplo - expressa melhor a sua ideia. E pode até abrir mão da norma culta, num determinado momento. Só terá a segurança dessa escolha quem conhecer a norma culta, caso contrário, serão tiros no escuro.
Entre liberdade e verdade não vige uma relação dialética. Elas andam juntas. O que pode provocar um antagonismo com a liberdade é uma versão absolutista de verdade, encarnada pelo sujeito que entende ser o "dono da verdade". Mas a verdade não é um objeto que se possui. A verdade é o mundo, é a realidade, são os outros. É uma porta que se abre para fora, não para dentro, e por isso pode ser contemplada por todos. Ela é democrática: está acessível a todos.
Já não será hora de superarmos a disjuntiva moderna e estabelecermos uma relação amigável com a "verdade"? Não significa fazer um pacto "espiritual" com o universo ou assinar uma espécie de declaração de alienação, abdicando do uso da inteligência e da crítica. A proposta que aqui se faz nada mais é do que buscar uma relação de honestidade intelectual com a realidade e com os outros.
Penso que essa relação de honestidade intelectual está na origem da cultura ocidental, ainda lá com os gregos. É um processo de aprendizagem, que leva a reconhecer os próprios erros, a revisar as condutas e, ainda que não seja retilíneo, trouxe indubitáveis bens (ainda não plenamente alcançados, mas que indicam a meta): o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, o respeito e a valorização da mulher, a rejeição da escravidão, a democracia como expressão dessa dignidade, a tolerância, a compreensão, etc.
Aquilo de que mais nos orgulhamos não foi alcançado brigando com a "verdade", dizendo que tudo era relativo, que dava na mesma A ou B. Nesta lógica aparentemente ampla - mas que no fundo é estreita (porque não está aberta à realidade e aos outros, impera o subjetivo) -, quem ganha é o mais forte, aquele que grita mais alto. Já não existe um referencial adequado para o diálogo. Ficam as versões. Ficam os discursos. E ficamos à mercê dos Sarneys... E agora também dos Paloccis.
Só mais um último aspecto, agora do ponto de vista pedagógico. A visão do MEC sobre a educação corrobora a constatação feita pela pediatra norte-americana Meg Meeker. Ela considera que as principais dificuldades da educação dos jovens de hoje não são causadas por eles. Na visão dela, o problema não são os jovens - como muitas vezes os moralistas de plantão ou os saudosistas de outros tempos querem culpá-los.
A dra. Meg Meeker, com a experiência de mais de 20 anos atendendo adolescentes e pais no seu consultório, diz que a causa está nos próprios adultos, que diminuíram as expectativas da educação em relação às novas gerações. "Eles não conseguirão fazer isso..." Ou: "É impossível que ajam dessa forma..." Os próprios educadores nivelam por baixo - como se o comportamento ético fosse hoje em dia irrealizável - e depois se dizem decepcionados com os jovens.
Ministério da Educação: os alunos saberão fazer bom uso das regras de português. Não lhes impeça o acesso ao conhecimento e, principalmente, não lhes negue um dos principais motores para o crescimento pessoal: a confiança.

* Carlos Alberto Di Franco é doutor em comunicação, é professor de Ética e diretor do Master em Jornalismo. Texto extraído d'O Estado de São Paulo (versão online), do dia 30 de maio de 2011.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Que na Universidade haja uma autêntica paixão pela Verdade...

Discurso do Santo Padre Bento XVI
aos dirigentes, docentes e estudantes
da Universidade Católico do Sagrado Coração

Aula Paulo VI
Sábado, 21 de maio de 2011

Senhores Cardeais,
Magnífico Reitor, ilustres Docentes,
Distintos representantes do pessoal,
Caros estudantes!
Estou muito feliz de poder ter este encontro com vós que formais a grande família da Universidade Católica do Sagrado Coração, nascida há noventa anos sob a iniciativa do Instituto Giuseppe Toniolo de Estudos Superiores, entidade fundadora e garantidora do Ateneu, pela feliz intuição de Padre Agostino Gemelli. Agradeço ao Cardeal Tettamanzi e ao Prof. Ornaghi, pelas calorosas palavras que me dirigiram em nome de todos.
O nosso tempo é um tempo de grandes e rápidas transformações, que se refletem também sobre a vida universitária: a cultura humanista parece atingida por um progressivo desgaste, enquanto se acentua o valor das disciplinas ditas “produtivas”, de âmbito tecnológico e econômico; esbarramos com a tendência a reduzir o horizonte humano ao nível daquilo que é mensurável, a eliminar do saber sistemático e crítico a questão fundamental sobre o sentido. A cultura contemporânea, por isso, tende a confinar a religião fora dos espaços da racionalidade: na medida em que as ciências empíricas monopolizam os territórios da razão, não parece haver mais espaço para as razões do crer, de forma que a dimensão religiosa é relegada à esfera da opinião e do privado. Neste contexto, as motivações e as características mesmas da instituição universitária são radicalmente questionadas.
Noventa anos depois de sua fundação, a Universidade Católica do Sagrado Coração se encontra vivendo esta virada histórica, na qual é importante consolidar e incrementar as razões pelas quais nasceu, levando àquela conotação eclesial que é evidenciada pelo adjetivo “católica”; a Igreja, de fato, “especialista em humanidade”, é promotora de humanismo autêntico. Emerge, nesta perspectiva, a vocação original da Universidade, nascida da busca pela verdade, de toda a verdade, de toda a verdade do nosso ser. E com a sua obediência à verdade e às exigências do seu conhecimento ela se torna escola de humanitas na qual se cultiva um saber vital, se forjam personalidades fortes e se transmitem conhecimentos e competências de valor. A perspectiva cristã, como quadro do trabalho intelectual da Universidade, não se contrapõe ao saber científico e às conquistas da engenhosidade humana, mas, pelo contrário, a fé alarga o horizonte do nosso pensamento, é caminho para a verdade plena, guia de autêntico desenvolvimento. Sem orientação para a verdade, sem uma postura de procura humilde e audaz, toda cultura se desfaz, decai no relativismo e se perde no efêmero. Tirada, pelo contrário, das garras de um reducionismo que a mortifica e a circunscreve, pode se abrir a uma interpretação verdadeiramente iluminada do real, desempenhando assim um autêntico serviço para a vida.
Caros amigos, fé e cultura são grandezas indissoluvelmente ligadas, manifestações daquele desiderium naturale videndi Deum que está presente em todo homem. Quando esta união se quebra, a humanidade tende a dobrar-se e fechar-se sobre suas próprias capacidades criativas. É necessário, então, que na Universidade haja uma autêntica paixão pela questão do Absoluto, a Verdade mesma, e portanto também pelo saber teológico, que no vosso Ateneu é parte integrante do currículo. Unindo em si a audácia da pesquisa e a paciência do amadurecimento, o horizonte teológico pode e deve valorizar todos os recursos da razão. A questão da Verdade e do Absoluto – a questão de Deus – não é uma investigação abstrata, separada da realidade do cotidiano, mas é a pergunta crucial, da qual depende radicalmente a descoberta de sentido do mundo e da vida. No Evangelho se funda uma concepção do mundo e do homem que não cessa de desencadear significados culturais, humanistas e éticos. O saber da fé, portanto, ilumina a pesquisa do homem, a interpreta humanizando-a, a integra em projetos de bem, arrancando-a da tentação do pensamento calculador, que instrumentaliza o saber e faz das descobertas científicas meios de poder e de escravização do homem.
O horizonte que anima o trabalho universitário pode e deve ser a paixão autêntica pelo homem. Somente no serviço ao homem a ciência se desenvolve como verdadeiro cultivo e custódia do universo. E servir ao homem é fazer a verdade na caridade, é amar a vida, respeitá-la sempre, a começar das situações nas quais ela é mais frágil e indefesa. É esta a nossa tarefa, especialmente nos tempos de crise: a história da cultura mostra como a dignidade do homem foi reconhecida verdadeiramente na sua integralidade à luz da fé cristã. A Universidade Católica é chamada a ser lugar no qual toma forma de excelência aquela abertura ao saber, aquela paixão pela verdade, aquele interesse pela história do homem caracterizam a autêntica espiritualidade cristã. De fato, colocar-se numa postura de fechamento ou de distanciamento diante da perspectiva da fé significa esquecer que ela foi ao longo da história, e o é ainda, fermento de cultura e luz para a inteligência, estímulo para que se desenvolvessem todas as suas potencialidades positivas para o bem autêntico do homem. Como afirma o Concílio Vaticano II, a fé é capaz de dar luz à existência. Diz o Concílio que a fé “vê todas as coisas sob um luz nova, e revela as intenções de Deus sobre a vocação integral do homem, e por isso guia a inteligência para soluções plenamente humanas” (Gaudium et spes, 11).
A Universidade Católica é lugar no qual isto deve acontecer com eficácia singular, sob o perfil seja científico, seja didático. Este peculiar serviço para a Verdade é dom de graça e expressão qualificante de caridade evangélica. A atestação da fé e o testemunho da caridade são incindíveis (cf. 1Jo 3, 23). O núcleo profundo da verdade de Deus, de fato, é o amor com o qual Ele se inclinou sobre o homem e, em Cristo, lhe ofereceu dons infinitos de graça. Em Jesus, descobrimos que Deus é amor e que somente no amor podemos conhecê-Lo: “todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus (...), porque Deus é amor” (1Jo 4, 7.8), diz São João. E Santo Agostinho afirma: “Non intratur in veritatem nisi per caritatem” (Contra Faustum, 32). O vértice do conhecimento de Deus se atinge no amor; aquela amor que sabe ir até à raiz, que não se contenta com ocasionais expressões filantrópicas, mas ilumina o sentido da vida com a Verdade de Cristo, que transforma o coração do homem e o arranca dos egoísmos que geram miséria e morte. O homem precisa de amor, homem precisa de verdade, para não desperdiçar o frágil tesouro da liberdade e ser exposto à violência das paixões e aos condicionamentos abertos e ocultos (cf. João Paulo II, Enc. Centesimus annus, 46). A fé cristã não faz da caridade um sentimento vago e piedoso, mas uma força capaz de iluminar os caminhos da vida em todas as suas expressões. Sem esta visão, sem esta dimensão teologal originária e profunda, a caridade se contenta com a ajuda ocasional e renuncia à tarefa profética, que lhe é própria, de transformar a vida da pessoa e as estruturas mesmas da sociedade. Este é um compromisso específico que a missão na Universidade vos chama a realizar como protagonistas apaixonados, convictos de que a força do Evangelho é capaz de renovar as relações humanas e penetrar no coração da realidade.
Caros jovens universitários da “Católica”, sois a demonstração viva daquele caráter da fé que muda a vida e salva o mundo, com os problemas e as esperanças, com as interrogações e as certezas, com as aspirações e os compromissos que o desejo de uma vida melhor gera e a oração alimenta. Caros representantes do pessoal técnico-administrativo sede orgulhosos das tarefas que vos são confiadas no contexto da grande família universitária no suporte da multiforme atividade formativa e profissional. E a vós, caros Docentes, é confiado um papel decisivo: mostrar como a fé cristã é fermento de cultura e luz para a inteligência, estímulo para que se desenvolva todas as suas potencialidades positivas, para o bem autêntico do homem. Aquilo que razão vê, a fé ilumina e manifesta. A contemplação da obra de Deus abre o saber à exigência da investigação racional, sistemática e crítica; a busca por Deus reforça o amor pelas letras e pelas ciências profanas: “Fides ratione adiuvatur et ratio fide perficitur”, aifrma Hugo de São Victor (De sacramentis, I, III, 30: PL 176, 232). Nesta perspectiva, a Capela é o coração pulsante e o alimento constante da vida universitária, à qual se une o Centro Pastoral onde os Assistentes Espirituais das diversas sedes são chamados a desenvolverem sua preciosa missão sacerdotal que é imprescindível para a identidade da Universidade Católica. Como ensina o Beato João Paulo II, a Capela “é lugar do espírito, onde pausam em oração e encontram alimento, orientação e sustento os crentes em Cristo, que vivem com modalidades diversas a vida intensa da Universidade; é academia de virtudes cristãs, onde cresce e se desenvolve a vida batismal, e se expressa com ardor apostólico; é casa acolhedora e aberta, para todos aqueles que, escutando o Mestre interior, se fazem buscadores de verdade e servem o homem na dedicação diuturna a um saber não satisfeito com horizontes estreitos e pragmáticos. No contexto da modernidade em declínio, ela se torna, com forte ênfase, centro vivo e propulsor de animação cristã da cultura: no diálogo respeitoso e franco, na proposta clara e motivada (cf. 1Pd 3, 15), no testemunho que interroga e convence” (Discurso aos Capelães europeus, 1 de maio de 1998). Assim dizia o Papa João Paulo II, em 1998.
Caros amigos, espero que a Universidade Católica do Sagrado Coração, em sintonia com as intenções do Instituto Toniolo, prossiga com renovada confiança o seu caminho, mostrando de forma eficaz que a luz do Evangelho é fonte de verdadeira cultura capaz de desencadear energias de um humanismo novo, integral, transcendente. Confio-vos a Maria Sedes Sapientiae e, com afeto, vos transmito de coração minha Bênção Apostólica

* Extraído do site do Vaticano, do dia 21 de maio de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Que nas nossas cidades se encontre um germe de bem...

Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro
Quarta-feira, 18 de maio de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Nas duas últimas catequeses, refletimos sobre a oração como fenômeno universal, que – mesmo em formas diversas – se encontra presente nas culturas de todos os tempos. Hoje, pelo contrário, gostaria de começar um percurso bíblico sobre este ema, que nos guiará rumo ao aprofundamento do diálogo de aliança entre Deus e o homem que anima a história da salvação, até ao cume, à palavra definitiva que é Jesus Cristo. Este caminho nos levará a parar sobre alguns importantes textos e figuras paradigmáticas do Antigo e do Novo Testamentos. Será Abraão, o grande Patriarca, pai de todos os crentes (cf. Rm 4, 11-12.16-17), que nos oferecerá um primeiro exemplo de oração, no episódio da intercessão pelas cidades de Sodoma e Gomorra. E gostaria também de vos convidar a aproveitar o percurso que faremos nas próximas catequeses para aprender a conhecer mais a Bíblia, que espero tenhais em vossas casas, e, durante a semana, dediqueis um tempo para lê-la e meditá-la na oração, para conhecer a maravilhosa história do relacionamento entre Deus e o homem, entre Deus que se comunica a nós e o homem que responde, que reza.
O primeiro texto sobre o qual queremos refletir se encontra no capítulo 18 do Livro do Gênesis; narra-se que a maldade dos habitantes de Sodoma e Gomorra tinha chegado ao ápice, a ponto de ser necessária uma intervenção de Deus a fim de realizar um ato de justiça e parar o mal, destruindo aquelas cidades. É nesse ponto que aparece Abraão com a sua oração de intercessão. Deus decide revelar a ele aquilo que está para acontecer e lhe faz conhecer a gravidade do mal e suas terríveis consequências, porque Abraão é o seu eleito, escolhido para se tornar um grande povo e fazer chegar a bênção divina a todo o mundo. A sua missão é de salvação, e deve responder ao pecado que invadiu a realidade do homem; através dele o Senhor quer trazer a humanidade de volta para a fé, para a obediência, para a justiça. E agora, este amigo de Deus se abre para a realidade e para necessidade do mundo, reza por aqueles que estão para ser punidos e pede que sejam salvos.
Abraão assume imediatamente o problema em toda a sua gravidade, e diz ao Senhor: “Fareis o justo perecer com o ímpio? Talvez haja cinqüenta justos na cidade: fá-los-eis perecer? Não perdoaríeis antes a cidade, em atenção aos cinqüenta justos que nela se poderiam encontrar? Não, vós não poderíeis agir assim, matando o justo com o ímpio, e tratando o justo como ímpio! Longe de vós tal pensamento! Não exerceria o juiz de toda a terra a justiça?” (Gn 18, 23-25). Com estas palavras, com grande coragem, Abraão coloca diante de Deus a necessidade de evitar uma justiça sumária: se a cidade é culpada, é justo condenar o seu crime e infligir a pena, mas – afirma o grande Patriarca – seria injusto punir de modo indiscriminado todos os habitantes. Se na cidade há inocentes, estes não podem ser tratados como os culpados. Deus, que é um justo juiz, não pode agir assim, diz Abraão muito justamente a Deus.
Se lemos, porém, mais atentamente o texto, nos daremos conta de que a solicitação de Abraão é ainda mais séria e profunda, porque não se limita a pedir a salvação para os inocentes. Abraão pede o perdão para toda a cidade e o faz apelando à justiça de Deus; de fato, ele diz ao Senhor: “Não perdoaríeis antes a cidade, em atenção aos cinqüenta justos que nela se poderiam encontrar?” (v. 24b). Fazendo assim, coloca em jogo uma nova ideia de justiça: não aquela que se limita a punir os culpados, como fazem os homens, mas uma justiça diferente, divina, que busca o bem e o cria através do perdão que transforma o pecador, o converte e o salva. Com a sua oração, portanto, Abraão não invoca uma justiça meramente retributiva, mas uma intervenção de salvação que, levando em conta os inocentes, livre da culpa também os ímpios, perdoando-os. O pensamento de Abraão, que parece quase paradoxal, poderia ser sintetizado assim: obviamente não se pode tratar os inocentes como os culpados, isto seria injusto, é preciso, pelo contrário, tratar os culpados como os inocentes, colocando em ação uma justiça “superior”, oferecendo a eles uma possibilidade de salvação, porque se os malfeitores aceitam o perdão de Deus e confessam a culpa, deixando-se salvar, não continuarão mais a fazer o mal, se tornarão também eles justos, sem mais necessidade de serem punidos.
É este o pedido de justiça que Abraão expressa na sua intercessão, um pedido que se funda sobre a certeza de que o Senhor é misericordioso. Abraão não pede a Deus uma coisa contrária à Sua essência, bate à porta do coração de Deus conhecendo Sua verdadeira vontade. É certo que Sodoma é uma cidade grande, de forma que cinquenta justos parecem poucos, mas a justiça de Deus e o Seu perdão não são, talvez, a manifestação da força do bem, mesmo que pareça menor e mais frágil do que o mal? A destruição de Sodoma deveria fazer parar o mal presente na cidade, mas Abraão sabe que Deus tem outros modos e outros meios para impedir a difusão do mal. É o perdão que interrompe a espiral do pecado, e Abraão, no seu diálogo com Deus, apela justamente a isto. E quando o Senhor aceita perdoar a cidade se encontrar nela os cinquenta justos, a sua oração de intercessão começa a descer em direção aos abismos da misericórdia divina. Abraão – como recordamos – diminui progressivamente o número de inocentes necessários para a salvação: se não existirem cinquenta, poderia bastar quarenta e cinco? Depois, desce sempre mais até chegar a dez, continuando a sua súplica, que se torna quase audaciosa na insistência: “Talvez só haja aí quarenta... trinta... vinte... dez” (cf. vv. 29.30.31.32). E quanto menor é o número, maior se revela e se manifesta a misericórdia de Deus, que escuta com paciência a oração, a acolhe e repete a cada súplica: “Perdoarei... não destruirei...não farei” (cf. vv. 26.28.29.30.31.32).
Assim, por intercessão de Abraão, Sodoma poderá ser salva, se nela se encontrarem apenas dez inocentes. É esta a potência da oração. Porque, através da intercessão, a oração a Deus pela salvação dos outros, se manifesta e se expressa o desejo de salvação que Deus nutre sempre pelo homem pecador. O mal, de fato, não pode ser aceito, deve ser assinalado e destruído através da punição: a destruição de Sodoma tinha exatamente esta função. Mas, o Senhor não quer a morte do malvado, mas que ele se converta e viva (cf. Ez 18, 23; 33, 11); o Seu desejo é sempre o de perdoar, salvar, dar vida, transformar o mal em bem. Pois bem, é exatamente este desejo divino que, na oração, se torna desejo do homem e se expressa através das palavras de intercessão. Com a sua súplica, Abraão está dando a própria voz, mas também o próprio coração, à vontade divina: o desejo de Deus é misericórdia, amor e vontade de salvação, e este desejo de Deus encontrou em Abraão e na sua oração a possibilidade de se manifestar de modo concreto no meio da história dos homens, para estar presente onde há necessidade de graça. Com a voz da sua oração, Abraão está dando voz ao desejo de Deus, que não é o de destruir, mas o de salvar Sodoma, de dar vida ao pecadores convertidos. 
É isto que o Senhor quer, e o Seu diálogo com Abraão é uma prolongada e inequívoca manifestação do seu amor misericordioso. A necessidade de encontrar homens justos no meio da cidade se torna cada vez menos exigente e, no fim, bastariam dez para salvar a totalidade da população. Por qual motivo Abraão para em dez, não é dito no texto. Talvez seja um número que indica um núcleo comunitário mínimo (ainda hoje, dez pessoas é o quórum necessário para a oração pública judaica). Seja como for, trata-se de um número exíguo, uma pequena partícula de bem de onde partir para salvar um grande mal. Mas, nem mesmo dez justos são encontrados em Sodoma e Gomorra, e as cidades são destruídas. Uma destruição paradoxalmente testemunhada como necessária exatamente pela oração de intercessão de Abraão. Porque exatamente aquela oração revelou a vontade salvífica de Deus: o Senhor estava disposto a perdoar, desejava fazê-lo, mas as cidades estavam fechadas num mal totalizante e paralisante, sem nem mesmo alguns poucos inocentes de onde partir para transformar o mal em bem. Porque é exatamente este o caminho da salvação que Abraão também pedia: sermos salvos não quer dizer simplesmente escaparmos da punição, mas sermos livres do mal que nos habita. Não é o castigo que deve ser eliminado, mas o pecado, aquela recusa de Deus e do amor que já traz em si o castigo. O profeta Jeremias dirá ao povo rebelde: “Valeu-te este castigo tua malícia, e tuas infidelidades atraíram sobre ti a punição. Sabe, portanto, e vê quanto te foi funesto e amargo abandonar o Senhor teu Deus” (Jr 2, 19). É desta tristeza e amargura que o Senhor quer salvar o homem, livrando-o do pecado. É necessária, porém, uma transformação a partir de dentro, um certo pretexto de bem, um início de onde partir para transmutar o mal em bem, o ódio em amor, a vingança em perdão. Por isto, os justos devem estar dentro da cidade, e Abraão continuamente repete: “talvez encontremos lá...”. “Lá”: é dentro da realidade doente que deve existir algum germe de bem que pode recuperar a saúde e dar a vida outra vez. É uma palavra dirigida também a nós: que nas nossas cidades se encontre o germe de bem; que façamos de tudo para que existam não apenas dez justos, para fazer com que vivam e sobrevivam realmente as nossas cidades e para que sejamos salvos desta amargura interior que é a ausência de Deus. E na realidade doente de Sodoma e Gomorra aquele germe de bem não se encontrava.
Mas, a misericórdia de Deus na história do seu povo se alarga depois. Se, para salvar Sodoma eram necessários dez justos, o profeta Jeremias dirá, em nome do Onipotente, que basta um só justo para salvar Jerusalém: “Percorrei as ruas de Jerusalém, olhai, perguntai; procurai nas praças, vede se nelas encontrais um homem, um só homem que pratique a justiça e que seja leal; então eu perdoarei a cidade” (Jr 5, 1). O número desceu mais, a bondade de Deus se mostra ainda maior. E no entanto isto ainda não basta, a superabundante misericórdia de Deus não encontra a resposta de bem que busca, e Jerusalém cai sob o assédio do inimigo. Será preciso que Deus mesmo se torne aquele justo. E este é o mistério da Encarnação: para garantir um justo, Ele mesmo se faz homem. O justo sempre existirá, porque é Ele: é preciso, porém, que Deus mesmo se torne aquele justo. O infinito e surpreendente amor divino será plenamente manifesto quando o Filho de Deus se fizer homem, o Justo definitivo, o perfeito Inocente, que levará a salvação ao mundo inteiro, morrendo na cruz, perdoando e intercedendo por aqueles que “não sabem o que fazem” (Lc 23, 34). Então, a oração de todo homem encontrará a sua resposta, então todas as nossas intercessões serão plenamente respondidas.
Caros irmãos e irmãs, a súplica de Abraão, nosso pai na fé, nos ensine a abrir sempre mais o coração para a misericórdia superabundante de Deus, para que, na oração cotidiana, saibamos desejar a salvação da humanidade e pedi-la com perseverança e com confiança ao Senhor que é grande no amor. Obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 18 de maio de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O homem carrega em si o desejo de Deus

Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro
Quarta-feira, 11 de maio de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Hoje, gostaria de continuar a refletir sobre como a oração e o senso religioso fazem parte do homem ao longo de toda a sua história.
Vivemos numa época na qual são evidentes os sinais do secularismo. Deus parece ter desaparecido do horizonte de várias pessoas, ou parece ter se tornado uma realidade para a qual permanecemos indiferentes. Vemos, porém, ao mesmo tempo, muitos sinais que nos indicam um despertar do senso religioso, uma redescoberta da importância de Deus para a vida do homem, uma exigência de espiritualidade, de superação de uma visão puramente horizontal, material da vida humana. Olhando para a história recente, percebe-se que falhou a previsão de quem, desde o Iluminismo, prenunciava o desaparecimento das religiões e exaltava uma razão absoluta, separada da fé, uma razão que teria acabado com as trevas dos dogmatismos religiosos e teria dissolvido o “mundo do sagrado”, restituindo ao homem a sua liberdade, a sua dignidade e a sua autonomia. A experiência do século passado, com suas duas trágicas Guerras Mundiais colocou em crise aquele progresso que a razão autônoma, o homem sem Deus, parecia poder garantir.
O Catecismo da Igreja Católica afirma: “Mediante a criação, Deus chama todo ser do nada à existência... Mesmo depois de ter perdido a semelhança com Deus por causa do pecado, o homem permanece imagem do seu Criador. Ele conserva o desejo daquele que o chama à existência. Todas as religiões testemunham esta busca essencial por parte dos homens” (n. 2566). Poderíamos dizer – como mostrei na última catequese [traduzida para o português aqui] – que nunca houve civilização, desde os tempos mais distantes até aos nossos dias, que não tenha sido religiosa.
O homem é, por sua natureza, religioso, é homo religiosus, assim como é homo sapiens e homo faber: “o desejo de Deus – afirma ainda o Catecismo – está inscrito no coração do homem, porque o homem foi criado por Deus e para Deus” (n. 27). A imagem do Criador está impressa no seu ser e ele sente a necessidade de encontrar uma luz para dar resposta às perguntas que dizem respeito ao sentido profundo da realidade; resposta que ele não pode encontrar por si mesmo, no progresso, na ciência empírica. O homo religiosus não emerge apenas dos mundos antigos, ele atravessa toda a história da humanidade. A este propósito, o rico terreno da experiência humana viu surgir variadas formas de religiosidade, na tentativa de responder ao desejo de plenitude e de felicidade, à necessidade de salvação, à busca de sentido. O homem “digital” ou mesmo aquele das cavernas busca na experiência religiosa os caminhos para superar a sua finitude e para assegurar a sua precária aventura terrena. De resto, a vida sem um horizonte transcendental não faria sentido algum e a felicidade, à qual todos tendemos, seria projetada espontaneamente para o futuro, num amanhã ainda a se realizar. O Concílio Vaticano II, na Declaração Nostra aetate, chamou a atenção sinteticamente assim: “Os homens esperam das várias religiões a resposta aos recônditos enigmas da condição humana, que ontem como hoje turbam profundamente o coração do homem: a natureza do homem [quem sou eu?], o sentido e o fim da nossa vida, o bem e o pecado, a origem e o objetivo da dor, o caminho para chegar à felicidade, a morte, o juízo e a pena depois da morte, finalmente o último e inefável mistério que circunda a nossa existência, de onde tiramos a nossa origem e em direção ao qual tendemos” (n. 1). O homem sabe que não pode responder sozinho à própria necessidade fundamental de entender. Ainda que tenha se iludido e se iluda ainda agora de ser autossuficiente, ele faz a experiência de não bastar a si mesmo. Tem necessidade de se abrir a um outro, a algo ou a alguém, que possa dar-lhe aquilo que lhe falta, deve sair de si mesmo e caminhar em direção dAquele que seja capaz de preencher a amplitude e a profundidade do seu desejo.
O homem carrega em si uma sede de infinito, uma nostalgia de eternidade, uma busca de beleza, um desejo de amor, uma necessidade de luz e de verdade, que o impulsionam em direção ao Absoluto; o homem carrega em si o desejo de Deus. E o homem sabe, de algum modo, que pode se voltar a Deus, sabe que pode rezar a Ele. Santo Tomás de Aquino, um dos maiores teólogos da história, define a oração “expressão do desejo que o homem tem de Deus”. Esta atração por Deus, que Deus mesmo colocou no homem, é a alma da oração, que depois se reveste de tantas formas e modalidades segundo a história, o tempo, o momento, a graça e mesmo o pecado de cada homem em oração. A história do homem conheceu, com efeito, variadas formas de oração, porque ele desenvolveu diversas modalidades de abertura ao Outro e ao Além, tanto que podemos reconhecer a oração como uma experiência presente em toda religião e cultura.
De fato, caros irmãos e irmãs, como vimos na quarta-feira passada, a oração não está ligada a um contexto particular, mas se encontra inscrita no coração de toda pessoa e de toda civilização. Naturalmente, quando falamos da oração como experiência do homem como tal, do homo orans, é necessário ter presente que ela é uma postura interior, antes que uma série de práticas e fórmulas, um modo de ser diante de Deus antes que a realização de atos de culto ou da pronunciação de palavras. A oração tem o seu centro e afunda suas raízes no mais profundo da pessoa; por isso, não é facilmente decifrável e, pelo mesmo motivo, pode ser sujeita a mal-entendidos e mistificações. Mesmo nesse sentido podemos compreender a expressão: rezar é difícil. De fato, a oração é o lugar por excelência da gratuidade, da tensão em direção ao Invisível, ao Inesperado e ao Inefável. Assim, a experiência da oração é, para todos, um desafio, uma “graça” a ser invocada, um dom dAquele para quem nos voltamos.
Na oração, em todas as épocas da história, o homem considera a si mesmo e a sua situação diante de Deus, a partir de Deus e em relação a Deus, e experimenta ser criatura necessitada de ajuda, incapaz de conquistar para si mesmo o cumprimento da própria existência e da própria esperança. O filósofo Ludwig Wittgenstein recordava que “rezar significa sentir que o sentido do mundo está fora do mundo”. Na dinâmica deste relacionamento com quem dá sentido à existência, com Deus, a oração tem uma das suas típicas expressões no gesto de se colocar de joelhos. É um gesto que carrega consigo uma ambivalência radical: de fato, posso ser obrigado a colocar-me de joelhos – condição de indigência e de escravidão –, mas posso também me ajoelhar espontaneamente, declarando o meu limite e, portanto, o meu ter necessidade de um Outro. A Ele declaro ser frágil, necessitado, “pecador”. Na experiência da oração, a criatura humana expressa toda a consciência de si, tudo aquilo que consegue saber da própria existência e, ao mesmo tempo, volta-se toda para o Ser diante do qual está, orienta a própria alma para aquele Mistério de quem espera a realização dos desejos mais profundos e a ajuda para superar a indigência da própria vida. Neste olhar para um Outro, neste dirigir-se “além”, está a essência da oração, como experiência de uma realidade que supera o sensível e o contingente.
Todavia, somente no Deus que se revela a busca do homem encontra plena realização. A oração que é abertura e elevação do coração a Deus, assim, se torna relacionamento pessoal com Ele. E mesmo se o homem se esquece do seu Criador, o Deus vivo e verdadeiro não cessa de chamar, por primeiro, o homem ao misterioso encontro da oração. Como afirma o Catecismo: “Este passo de amor do Deus fiel sempre vem antes na oração; o passo do homem é sempre uma resposta. Na medida em que Deus se revela e revela o homem a si mesmo, a oração se vai tornando um apelo recíproco, um evento de aliança. Através de palavras e atos, este evento compromete o coração. Revela-se ao longo de toda a história da salvação” (n. 2567).
Caros irmãos e irmãs, aprendamos a ficar mais diante de Deus, do Deus que se revelou em Jesus Cristo; aprendamos a reconhecer no silêncio, no íntimo de nós mesmos, a Sua voz que nos chama e nos conduz à profundidade da nossa existência, à fonte da vida, à fonte da salvação, para fazer-nos ir para além do limite da nossa vida e nos abrirmos à medida de Deus, ao relacionamento com Ele, que é Infinito Amor. Obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 11 de maio de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.