Mostrando postagens com marcador Dante Alighieri. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Dante Alighieri. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A lição de Dante e de Agostinho para curar a “doença da alma”


Por Laura Cioni

Entre os vícios capitais, o menos conhecido, mesmo que muito difundido, é a acídia. Escreveu-se a seu respeito em todos os tempos, refletindo-se acerca da vida moral a partir dos conceitos de vício e de virtude, numa modalidade concreta e facilmente observável mesmo na vida cotidiana. Horácio, tão sabiamente epicurista, numa carta sua definiu a acídia como strenua inertia, inércia ansiosa, ou, em outras palavras, inquietude. Tácito, por sua vez, falando sobre como os estudos, em tempos de opressão política, definham, e afirmou, de maneira muito realista, que apenas a liberdade redescoberta seria capaz de favorecer a retomada dos estudos, mas com uma fadiga, porque não podemos nos enganar: existe uma secreta suavidade mesmo na ociosidade que, se é odiada no início, no fim é amada.
Para Santo Tomás, a acídia não é apenas a demora para se decidir pelo bem e a inconstância no persegui-lo, mas mais precisamente é a tristeza do bem, uma inatividade da alma que não quer e, ao mesmo tempo, não consegue se voltar para a verdadeira alegria.
Dante a representa no Inferno, colocando os acidiosos junto dos iracundos no pântano do Estige: “Fitti nel limo dicon: ‘Tristi fummo / ne l'aere dolce che dal sol s'allegra, / portando dentro accidïoso fummo: / or ci attristiam ne la belletta negra’” (“‘Nos doces ares, a que o sol aquece’ - No ceno imersas dizem - ‘tristes fomos: dentro em nós fumo túrbido recresce. Ora no lodo inda mais triste somos’”): como foram tristes na vida, envoltos pela fumaça da negligência, da mesma forma, na eternidade, vivem o mesmo humor negro, que lhes aperta a garganta como o lodo que lhes enche a boca. O poeta volta a falar da acídia nos cantos centrais do Purgatório, onde explica a dinâmica da liberdade humana; pela boca de Virgílio, define a acídia assim: “amor del bene scemo / del suo dover” (“do bem o amor recua no seu dever”), ou seja, desejo apenas intencional, sem os atos necessários para alcançar o bem e saboreá-lo. Dante explica como todo homem deseja o verdadeiro bem e luta para obtê-lo: “Ciascun confusamente un bene apprende / nel qual si queti l’animo, e disira; / per che di giugner lui ciascun contende” (“Confusamente cada qual se acende por certo bem e sôfrego o deseja: por ter-lhe a posse, afana-se e contende”). E na beira do penhasco vê os acidiosos arrependidos espiando o fato de não terem favorecido desejo algum e de não o terem perseguido com amor pressuroso e operante: “Se lento amore in lui veder vi tira, / o a lui acquistar, questa cornice, / dopo giusto penter, ve ne martira” (“O que do bem no amor inerte seja depois que do pesar sofrerá agrura, é justo que em martírio aqui se veja”).
A insuficiente energia moral da acídia é reconhecida como característica sua por Petrarca no Secretum, o diálogo literário com Santo Agostinho; nesta obra, ele diz que sua origem está na desilusão. Mesmo aqui podemos ver que os modernos - e não apenas os poetas - são um pouco herdeiros seus também.
Podemos especular que a acídia seja um vício predominante dos nossos dias; muitos sinais indicariam isto pela simples observação: o desprezo a todas as diretivas, o tédio, o desperdício, a mania pelo efêmero, a falta de contentamento, o ressentimento... todos são comportamentos difundidos e pouco percebidos e, exatamente por isso, geradores de males piores, que enchem a sociedade de violência e de injustiça. 
Como se corrige este mau hábito da alma, ligado à inatividade, à inquietude, à ira, à melancolia? É difícil superar a tristeza do bem com suas próprias forças, mas também as muitas palavras confusamente cheias de pareceres, conselhos e sermões parecem pouco eficazes. Somente um acontecimento pode agitar a vida e mudar a direção das coisas, como se nota, por exemplo, nas biografias dos grandes e em acontecimentos familiares menos conhecidos. O grande recurso que temos é certamente o de estar presentes a nós mesmos, admitir nossos próprios erros, prever a fadiga de nos levantarmos e recomeçar a caminhada... quem sabe, a descoberta de um novo amor.
Mas, uma experiência dada apenas a alguns, e bastante decisiva, foi descrita por Agostinho nos últimos diálogos com sua mãe: ele imagina que, para o homem, tudo silencia - a terra, o céu, a alma mesma -, e neste silêncio ele pode ouvir a voz de Deus falando não através das coisas, mas através de Sua boca mesma; então, não seria isto o “entrar na alegria do teu Senhor”?
Se a descoberta da alegria de Deus, imprevisível e duradoura, irrompesse num ponto crucial da vida, a acídia seria vencida no ato: “Fomos libertados como um pássaro do laço dos caçadores; o laço arrebentou-se e nós escapamos”. Restaria a liberdade de voar.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 29 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O que quer dizer transmitir aos nossos alunos a poesia dos “grandes”?


Por Mauro Grimoldi

Caro editor,
Todos os dias, as crianças, do meio do tumulto dos bancos da escola, oferecem suas vozes para os grandes e o pequenos poetas. Porque assim há de ser: a poesia é obra acabada e não-acabada, ao mesmo tempo. Ela precisa, para voltar a nascer e crescer e se dar, de alguém que lhe dê voz, e que seja em voz alta.
Falando da obra-prima dantesca, Mario Luzi observa que “a Comédia dantesca é, entre as obras de arte, a mais ‘lida’ e, ao mesmo tempo, uma obra ainda por fazer, quero dizer, continuamente proposta à capacidade de reconstrução do homem e da sua inexaurível perfectibilidade”.
O simples ato de oferecer a própria voz, de participar nas palavras recebidas é, me parece, o primeiro, mas realizado, ato desta contínua reconstrução. Ato cognoscitivo e não acessório, visto ser realizado pela presença de quem já disse, o poeta, e de que, obedecendo, aprende a dizer.
Deste ato, nascem as palavras que permanecem na memória e, assim, simplesmente permanecendo, se ligam à experiência de quem as encontra e se deixam interrogar.
Pode acontecer, e acontece de fato, que este trabalho seja acompanhado da explosão inesperada e potente da comoção, ou da emoção, como que por uma imprevista erupção do ânimo.
Todavia, é a fidelidade, a duração, a capacidade que marca o progredir rumo à maturidade.
O homem cresce no difícil exercício da rotina, como quem vive num terreno áspero e fértil: “permanecer, perseverar na nua, hostil, cinza realidade, até ao momento em que ela revele, ao fiel e ao paciente, seu rosto íntimo. Isto é árduo. Hic labor, escreve Hans Urs Von Balthasar.
A paciência do pardal de Pascoli ganha o mundo, porque conhece a alegria do renascimento, enquanto que a andorinha cigana repete os cantos exóticos que aprendeu, mas não sabe a alegria “da neve, o dia em que degela” (o autor se refere à poesia Myricae, de Giovanni Pascoli: “Scilp: i passeri neri su lo spalto / corrono, molleggiando. Il terren sollo / rade la rondine e vanisce in alto: / vitt. . . videvitt. Per gli uni il casolare, / l’aia, il pagliaio con l'aereo stollo; / ma per l’altra il suo cielo ed il suo mare. / Questa, se gli olmi ingiallano la frasca, / cerca i palmizi di Gerusalemme: / quelli, allor che la foglia ultima casca, / restano ad aspettar le prime gemme. / Dib dib bilp bilp: e per le nebbie rare, / quando alla prima languida dolciura / l’olmo già sogna di rigermogliare, / lasciano a branchi la città sonora / e vanno, come per la mietitura, / alla campagna, dove si lavora. / Dopo sementa, presso l’abituro / il casereccio passero rimane; / e dal pagliaio, dentro il cielo oscuro / saluta le migranti oche lontane. / Fischia un grecale gelido, che rade: / copre un tendone i monti solitari: / a notte il vento rugge, urla: poi cade. / E tutto è bianco e tacito al mattino: / nuovo: e dai bianchi e muti casolari / il fumo sbalza, qua e là turchino. / La neve! (Videvitt: la neve? il gelo? / ei di voi, rondini, ride: / bianco in terra, nero in cielo / v’è di voi chi vide . . . vide... videvitt?) / La neve! Allora, poi che il cibo manca, / alla città dai mille campanili / scendono, alla città fumida e bianca; / a mendicare. Dalla lor grondaia / spiano nelle chiostre e nei cortili / la granata o il grembiul della massaia. / Tornano quindi ai campi, a seminare / veccia e saggina coi villani scalzi, / e - videvitt - venuta d’oltremare / trovano te che scivoli, che sbalzi, / rondine, e canti; ma non sai la gioia / - scilp - della neve, il giorno che dimoia.”; ndt).
Tantae molis erat Romanam condere gentem (Eneide, I, 33, “custava muito fundar o povo romano”), Tantae molis erat se ipsam cognoscere mentem (“custava muito à mente conhecer a si mesma”), parafraseava Hegel.
Agora, mais do que nunca, aqui, nas costas áridas do mundo, onde a única ginestra que resplandece e perfuma não é mais acolhida como sinal, mas pequeno oásis de sentimento num inferno sem significado, é preciso, como foi para São Bento, que o heroico se torne cotidiano e que o cotidiano se torne heroico.
Interpreto assim a minha tarefa de adulto e professor.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 2 de abril de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O eu renasce em um encontro



Rímini, 28 de agosto de 2010.

Fabrice Hadjadj nasceu em 1971, em Nanterre. É filósofo e intelectual francês, de cultura judaica, converteu-se ao cristianismo em 1988. Colabora com Figaro Littéraire e Art Press, ensina filosofia e literatura na escola católica Sainte-Jeanne-D'Arc de Brignoles. Autor de diversos livros, venceu, em 2006, o Grand Prix Catholique de literatura. O texto abaixo é a transcrição da conferência proferida pelo filósofo no âmbito do Meeting pela Amizade entre os Povos, edição de 2010, no dia 28 de agosto de 2010. A conferência pode ser assistida aqui.

Por Fabrice Hadjadj
Obrigado. Fico muito feliz de estar aqui com vocês. Retorno este ano, depois de minha participação no ano passado, tendo tido, por isso mesmo, a oportunidade de reencontrar amigos. Gostaria de agradecer especialmente ao Padre Carrón que me convidou, e também ao meu amigo Ugo Moschella que tinha traduzido para o italiano essa minha conferência, porque eu havia pensado em proferi-la em italiano, mas me dei conta de que era um exercício de ventríloquo muito difícil e que, fazendo esse exercício, não conseguiria entender quem seria o ventríloquo e quem seria a marionete. Por isso, escolhi lê-la em francês.
Seja como for, meu embaraço é grande: tenho que falar com vocês sobre um livro cujo título é L’io rinasce in un incontro [O eu renasce em um encontro, ainda não traduzido para o português; ndt], que me coloca numa situação extremamente difícil porque, se este título diz a verdade, se esta conferência neste meeting é um momento do Meeting, e portanto se esta conferência é um encontro, então devo falar de modo tal que possamos renascer, devo experimentar, de alguma maneira, fazer um exercício de ressurreição e é exatamente isso que, no fundo, todos nós estamos esperando. Por que estamos aqui? Por que tantos e de tantos lugares distantes? Será que para receber informações suplementares e encher nossa cabeça como se enche uma enciclopédia? Mas, por maior que seja a nossa cabeça, um dia, deverá cair; e não fará outra coisa melhor do que cair com o peso de todo este saber morto, que já era mortal em si mesmo desde o momento em que não nos fez nos darmos conta da esperança de uma ressurreição. Mas, uma vez dito isto, eis que um peso insustentável pesa sobre mim, ou melhor, uma insustentável leveza pesa sobre nós, porque, como fazer para ressuscitar, como fazer para que o nosso encontro seja um renascimento? Mas, pode acontecer que a pergunta tenha sido mal colocada, porque talvez não se trate tanto de fazer, pois se se tratasse de fazer a partir do meu projeto, a partir do meu discurso, um discurso brilhante, um discurso que seduz a plateia, não haveria nenhum encontro, nenhum acontecimento, porque tudo seria o efeito de um programa e perderia, portanto, o frescor exuberante de um nascimento. Então, como fazer para que não seja apenas um fazer? Como se dispor ao encontro, como permitir que o encontro aconteça de tal forma que fiquemos prontos a nos deixarmos transformar por aquilo que acontece? E como ser transformado pelo outro de tal modo que a mudança não seja uma alienação, mas uma realização, uma ressurreição? A dificuldade não é apenas a de se dispor a um renascimento, mas também é a de reconhecer aquilo que pressupõe este renascimento. Com efeito, alguém poderia objetar: “Por que renascer? Já não nasci? Já não sou eu mesmo? Por que teria necessidade de um encontro para que o meu eu possa renascer?”. De fato, para desejar renascer, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que se está morto. Isso, frequentemente, é esquecido, mas apenas com um bom morto é que se pode fazer um bom ressuscitado. A boa notícia, a boa nova da misericórdia infinita pressupõe a má notícia da nossa miséria infinita, e o meu embaraço – embaraço especial, vocês vão entender – é o de ter que fazer esta constatação diante de vocês: “cada um de nós está morto”. Eu estou morto, talvez não biologicamente, mas espiritualmente, lá onde não entro no encontro, não me abro ao outro, ignoro a existência do meu coração.
Usei a palavra coração. Esta mesma palavra que se encontra no centro deste Meeting. Mas, o que é o coração? Um músculo, mas um músculo estranho porque é um músculo oco, que acolhe em si outro diferente de suas próprias fibras. E também porque, diferentemente dos outros músculos, não depende diretamente da minha decisão. Os 17 músculos da minha língua se ativam em seguida à minha vontade de falar, e se escolho mover a mão é graças a músculos que obedecem ao meu querer; mas o meu coração bate sem que eu lhe ordene. Começou a bater antes mesmo que eu tivesse começado a exercitar a minha vontade, e bate numa velocidade que não fui eu que decidi. É assustador: o centro de mim mesmo não está em meu poder. Aquilo que eu tenho de mais fisicamente íntimo me escapa e, pior, o meu coração bate o seu tum-tum sem me consultar e, portanto, pode parecer para mim como uma espécie de hóspede selvagem, um membro de uma tribo primitiva que bate o ritmo de uma dança canibal. Porque eu sei que, da mesma forma que começou a bater sem que eu o quisesse, pode muito bem parar de bater daqui a pouco sem que, ao menos, nesse caso, eu o queira, e será o fim da dança, será o momento no qual a vítima deverá ser consumida. Assim, o coração é o sinal do ser recebido, mas também do ser oferecido. O sinal de que não me dei a vida, mas também de que devo oferecer a minha vida se não quero apenas perdê-la, porque, seja como for, todo o sangue que escorre deverá ser derramado, mas para quê? Para qual ressurreição? Dom Giussani escreve: “a verdade da vida é o seu relacionamento com o mistério de onde nasce, de que nasceu”. Nasce porque ninguém se dá o instante que vive. Trata-se de uma verdade muito concreta – que as batidas do nosso coração se repetem continuamente, no nosso pescoço, nas nossas têmporas, nas nossas orelhas – uma verdade que não paramos de cobrir com uma manta de ruídos para acreditar que somos os artífices da nossa existência.
O sinal de que a vida é, em cada momento, recebida para ser oferecida pode ser observado também em outro lugar, por exemplo, no nosso umbigo. Costuma-se dizer “olhar para o próprio umbigo”, para falar do egoísta, do vaidoso, também para falar daquele que se toma como o centro do universo; mas se você olha de verdade para o próprio umbigo o que descobre? Uma cicatriz, a sua primeira cicatriz que é o testemunho inefável do seu relacionamento com um outro, da sua relação com sua mãe que foi, para você, a primeira morada, e se você não a tivesse encontrado, nunca teria nascido. Assim, o nosso umbigo nos recorda a nossa dependência original de um outro, nos recorda que não somos feitos por nós mesmos e que, no meio de nós mesmos, tem esta ferida que é o sinal de um dom, esta ferida que nos chama a dar, a não temer as feridas se forem para dar a vida.
Outro sinal semelhante ao coração e ao umbigo, mas que nos remete do corporal ao espiritual e que, portanto, nos é apenas um sinal, mas é a prova de que toda a nossa pessoa, corpo e alma, vive apenas por causa do encontro e de dentro do encontro, este outro sinal é a nossa palavra. Assim como se fala em “olhar para o próprio umbigo”, em francês se diz também “escutar-se falar”; mas, ainda uma vez, se você se escutasse de verdade, o que ouviria? Entonações que você herdou do seu pai ou da sua mãe, do seu irmão, ou de um professor admirado, mas sobretudo escutaria as palavras e uma gramática, toda uma língua que você não criou, que você recebeu das vozes dos seus pais como um dom encantado das fadas que sobrevoavam o seu berço; e se você começa a dizer “não quero a comunhão com vocês”, se você diz algo assim, você se contradiz duas vezes. Contradiz-se uma primeira vez porque você se volta ainda aos outros e tem necessidade de voltar-se aos outros para afirmar a sua posição e, portanto, você demonstra, dessa forma, uma necessidade, ainda que negativa, de comunhão. E você se contradiz  uma segunda vez porque as suas palavras provêm já de uma comunhão, de uma comunidade linguística, e mesmo que você fale sozinho sempre será escuta e direção, resposta e pergunta essencialmente ao outro. Assim, a sua língua é como o seu coração: está em você, na sua boca e testemunha que você não se deu a sua vida sozinho e que a vida não é uma propriedade sua. Ela testemunha, apesar de você, um encontro; testemunha, apesar de você, uma esperança. Por exemplo, antes você disse “bom dia” e, por trás disso, havia, apesar de você, o chamado de atenção para um dia verdadeira, inteira e absolutamente bom, a invocação da glória. Ou ainda: você disse “até logo”, e isso significa que, com a sua boca, você anunciou o desejo de rever o outro e, ainda e sempre, mesmo que com o seu tu superficial você tenha achado esse outro antipático ou tenha exclamado “que vida de merda”, ainda assim, como poderia dizer isso se não tivesse em você, apesar de você, o pressentimento de uma vida melhor, mais viva, eterna e alegre? Sem este pressentimento, sem esta esperança, tal exclamação não estaria na sua boca e você encontraria a merda de que mais gostasse. É possível entender, portanto, a verdade profunda desse versículo do Deuteronômio: “Este mandamento, que hoje te ordeno, não te é encoberto, e tampouco está longe de ti (...). Esta palavra está mui perto de ti, na tua boca, e no teu coração, para a cumprires”.
Sei que muitos dos que estão aqui conheceram um renascimento através do encontro com Dom Giussani. Talvez porque Dom Giussani era um orador mais brilhante do que os outros? Não, mas porque era mais pobre, mais pobre de espírito do que muitos outros e, por isso, não conduzia simplesmente os homens a si, mas através de si os conduzia à fonte, à origem, à luz, chamando a atenção dos homens assim para eles mesmos, para a sua própria originalidade. Era suficientemente pobre para ser transparente, suficientemente pobre para não ser brilhante, mas luminoso, não capturando a luz para si mesmo mas deixando-a passar através de si. Também o fruto desse encontro – como de todo encontro verdadeiro – não é o fornecimento de novas informações, como uma reportagem sobre um país estrangeiro, mas muito mais a renovação daquilo que existe já desde sempre, o reviver de uma Presença. Isso é incomparavelmente mais importante, porque está em jogo não o saber algo a mais, sempre a mais, sem fim, para divertir-se melhor, para se distrair melhor, mas para retornar, retornar para o fato de nossa existência e descobri-lo como um fato mais fadado que fatal. Algo existe, eu sou, eu existo, eu dou testemunho. É este o primeiro fato, é este fato que é a verdadeira atualidade, o verdadeiro acontecimento, princípio de todos os outros com a sua pergunta própria: “Por que estou aqui?”. O desafio é, portanto, não o de se fabricar uma resposta imaginária e artificial, mas tomar consciência daquilo que somos, daquilo que se joga na nossa língua e no nosso coração, escutar esta palavra que está muito próxima de você, na sua boca e no seu coração para que você a viva finalmente.
Como Giussani escreve no livro L’io rinasce in un incontro, vivemos numa fragilidade de consciência maior, uma fragilidade que não é ética, mas de energia da consciência. A fragilidade não é nem ética nem científica. As soluções científicas não nos faltam, pelo contrário temos tantas que podemos vendê-la, temos até mesmo soluções finais; porém nos faltam terrivelmente não soluções, mas perguntas, chamados de atenção, um drama que nos envolva e nos dê não uma solução mas um sentido e, ainda mais, não um meio de nos protegermos mas um objetivo pelo qual nos doarmos. Também não estamos aquém dos padrões moralizantes, pelo contrário, somos incessantemente atacados por ordens e regulamentos, a publicidade, por exemplo, não para um só instante de nos dar ordens: compre isto, pegue aquilo, com a nova BMW você conhecerá a alegria, com o salame Neuroni você vai encontrar o gosto do verdadeiro, com Tiscali o caminho é aberto. A publicidade nos fala como os pregadores da Idade Média, nos propõe o céu, mas graças a um salame, a uma lava-louças ou a uma conexão com a internet. No fundo, o mundo, para seduzir, não pode fazer outra coisa senão parodiar a Igreja – Satanás é o macaco de Deus, dizia São Jerônimo – e é por isso que o mundo deve se fazer mais moralizador do que a Igreja. Mesmo quando o mundo declara que você deve gozar, é ainda um “você deve”. Porque o objetivo fundamental por trás dessa ordem de gozar imediata e cegamente – e digamos ainda mais tristemente –, a intenção que se esconde atrás dessa ordem de gozar e de fazer gozar, que antes de mais nada é uma ordem de dominação e de performance, e não uma ordem de encontro e de comunhão, a ordem de tristeza profunda que se dissimula atrás desta ordem de gozo superficial, como que um porco engorde, é o esforço para sufocar o desejo. Dom Giussani o diz muito claramente: o poder, de fato, ou a exaltação da mentira como instrumento, o que faz? Tende a reduzir o desejo, o poder tende a reduzir o desejo. A redução dos desejos ou a censura de alguma das exigências, a redução dos desejos e das exigências é a arma do poder. Eis a arma do poder; e esta redução do desejo, afirma Giussani, não é outra coisa senão a tentativa de abolir a humanidade.
Há, hoje em dia, todo um movimento extremista, bastante característico do nosso tempo, que se chama trans-humanismo. Ele admite claramente as próprias intenções, trata-se de realizar, através da chamada Paradise engineering, um super-homem: graças à biogenética, à neuroquímica, às nanotecnologias deve-se sair do humano para seguir em direção do pós-humano ou, como dizem, do trans-humano, para fabricar um super-homem livre de todo sofrimento, absolutamente competitivo, adaptado às necessidades do mercado e sempre seguro de si e do próprio bem-estar. Mas, se pensarmos sobre isso por um instante que seja, nos daremos conta de que estes super-homens são superados desde o princípio, cada progresso tecnológico sempre dará um jeito para que cada nova geração de super-homens torne obsoleta a precedente, boa apenas para ser jogada no lixo como aqueles velhos computadores que parecem tão distantes de nós como se fossem uma descoberta arqueológica. Como o homem terá sido reduzido no seu desejo e terá sido reconduzido a algo de funcional, será tão deteriorável quanto um bem de consumo, a sua perenidade será pensada em função do progresso técnico e será, portanto, frágil e fugaz como um telefone celular de última geração. Eis porque os super-homens são os dinossauros do futuro.
Vocês que são italianos na maior parte devem estar impressionados com esta palavra – trans-humanismo. De fato, o primeiro a empregar este termo como verbo, o primeiro a formar este neologismo foi Dante. Vocês conhecem aqueles versos do primeiro canto do Paraíso: “Transumanar significar per verba non sia poria”, não se pode dizer trans-humanar através das palavras, “però l’esempio basti”, mas o exemplo deve bastar, “a cui esperenzia grazie serva”, a quem, àquele ao qual a Graça conservou a experiência. Aqui, Dante é profeta, nos fala que trans-humanar é a maior coisa que o coração deseja, mas esta grande coisa se torna pequena tão logo pensamos em poder chegar até ela através de nossas próprias palavras, através de nosso poder. Para chegar até lá é preciso a onipotência de uma Graça, é preciso o encontro com um Outro. Este é o exemplo que nos dá o poeta, mas o exemplo não foi suficiente porque perdemos o senso da experiência, a graça da experiência, em benefício do orgulho e do planejamento.
Nesse ponto, podemos entender que o poder não teria nenhum poder se não existisse em nós o desejo de coisas grandes, se só existisse aquele desejo em que tão logo nos baseamos nele nos desvia, como acontece com o Calígula de Camus – ele petrifica a sua magnanimidade, pulveriza a sua grandeza em distração e, finalmente, retorce aquele desejo contra si mesmo para sufocá-lo, porque tão logo o homem pretende divinizar-se de si mesmo para além de todo encontro, para além de toda graça, se torna pesado e se asfixia como aquele que gostaria de um coração que fizesse circular o sangue num circuito fechado sem oxigená-lo, sem precisar respirar o ar que vem de fora e, portanto, recusando aquele poema da respiração como disse Rilke – “Visto que o murmúrio da nossa respiração nos canta, em cada instante, que, para viver, é preciso, em cada instante, receber e oferecer a própria respiração”. A vontade de potência não pode impedir o encontro, porque o encontro é um acontecimento, uma fratura que frustra os nossos planos. O Senhor anula os desígnios das nações, diz o Salmo. Mas a vontade de potência pode abortar o encontro, pode nos fazer acreditar que ele foi apenas uma ilusão, destruindo assim, imediatamente, a incrível aventura, a incrível fecundidade que queria nascer.
Dom Giussani escreve: o poder não pode impedir o despertar do encontro, mas busca impedir que se torne história. O poder busca impedir que o encontro se torne uma história. De qual encontro estamos falando? Daquele com Cristo certamente, mas também daquele com uma paisagem, com um concerto de Mozart, ou com uma garota. Eis, por exemplo: você se encontra com Beatriz ou com Aspásia. O que acontece no instante desse encontro? Você fica tocado com a sua beleza. Certo. A sua beleza é experimentada por você através do seu rosto, do seu corpo, mas o que lhe é oferecido através do seu rosto e do seu corpo é uma música, uma harmonia, uma dança do ser. Porque aquela beleza é como se, no fundo do ser, remontasse até à superfície e mostrasse a sua dança e a sua alegria essencial. E é, nesse momento, que a vontade de potência, o poder, nos sussurra ao ouvido: esta música é apenas uma ilusão, produzida pela sua testosterona. Pegue um preservativo, leve Aspásia para a cama, escolha um quarto e transe com Beatriz. Você verá que a miragem se dissipará. Mas, fazendo assim, você estupra Beatriz, mesmo se ela tenha aceitado, sobretudo se ela aceitou. Você a estupra porque você comete uma violência contra aquilo que entreviu, porque você cospe na música, porque você pisa na dança do ser que lhe foi manifestada no encontro. Enfim, porque você não quis reconhecer a ferida da beleza, aquela ferida que não é diminuição do seu ser, mas oferta de um ser que é maior do que o seu poder, e que levanta você humilhando-o, diviniza você destruindo o seu orgulho. Giussani chama atenção para isso. Isso é importante para o mundo: impedir ao homem alcançar a própria ferida, impedir ao homem alcançar a si mesmo. É uma frase espantosa. Como pode ser que alcançar a si mesmo coincida com o alcançar a própria ferida? É porque isso sempre acontece em um encontro, no impacto e na felicidade de uma hemorragia contínua de sangue recebido e dado. O encontro é ferida, porque é o aparecer de algo que desperta o meu desejo e, ao mesmo tempo, escapa do meu poder. Algo que, ao mesmo tempo, me exalta e me humilha. E pergunta se torna: como abraçar, de verdade, Beatriz? Como entrar em contato com a fonte inacessível da sua beleza? Atenção, não se trata de se servir de Beatriz para ir até a Deus. Isto é o que acreditaram alguns falsos cristãos. Disseram “sigam em direção a Deus e, para fazer isso, desprezem as suas criaturas”. Mas, é como dizer “vá até Dante e diga-lhe que sua Comédia não vale nada”. Não vale nada. O Criador ama a sua criatura. Por isso, ir em direção a Ele é ir em direção dela mais profundamente. Vocês conhecem aquele versículo da carta aos Colossenses que Giussani repetia muito frequentemente, e que exprime sem dúvida a intuição fundamental de todo o seu percurso. Ele, antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nEle. Tudo subsiste em Cristo, e portanto ir em direção a Cristo não exclui nada. Pelo contrário, deve-se ir em direção a Cristo para ir em direção de Beatriz, porque é nEle que ela subsiste, é através dEle que ela é salva, é com Ele que a música da sua beleza pode se desdobrar numa inefável sinfonia.
Então, eis a ressurreição que se aproxima. Mas, é preciso que lutemos contra a mentira de uma autenticidade fabricada pelo nosso próprio poder, que arrisquemos a nossa vida pela beleza, a verdade do encontro e do desejo. Dom Giussani disse isso de modo claro. A luta contra essa mentira pode justamente nos levar a dizer que, talvez, fosse melhor para o homem ser assassinado que perder a própria humanidade. Este é o exercício da nossa ressurreição: preferir mais ser assassinados do que perder o próprio coração. Tal é o testemunho em favor da beleza: preferir mais ser esmagado, desfigurado, cortado em pedaços do que renegar a glória à qual todos somos chamados, mesmo os mais pequenos, mesmo os mais inimigos, mesmo aquele que me faz em pedaços. Como Giussani disse, Cristo não é apenas para os cristãos, não é para os cristãos, é para todos os homens. É o salvador do marxista, do berlusconiano e mesmo do aderente à democracia-cristã. Assim, o cristianismo não é apenas para a paróquia, mas para tudo aquilo que nos circunda, porque tudo subsiste nEle. E é também esta a ressurreição. Não apenas preferir ser morto do que renegar o nosso desejo mais profundo, mas também não acreditar que a ressurreição seja para amanhã e apenas para os fiéis da nossa paróquia, mas que ela começa já hoje e para todos. O nosso trabalho não tem sentido, a não ser que seja voltado para o trabalho de ressuscitar, como diz a poesia de Norwich citada por João Paulo II e por Dom Giussani. Este trabalho de ressurreição não consiste em uma nova aquisição. A ressurreição se encontra numa energia de consciência maior. Ela não é o mesmo que ter algo de outro, mas, finalmente, ser si mesmos, o que não quer dizer fechar-se em si mesmo, mas aceitar as próprias feridas e entrar numa comunhão. Uma maior energia de consciência quer dizer viver amorosamente aquilo que nos é dado. Que você não atravesse a vida como se fosse um vídeo-game, uma cena de fantasmas sem profundidade, mas que você tome consciência daquilo que é agora, e que você esteja presente à presença que funda tudo aquilo que é. Para que você possa dizer, como Nietzsche dizia, melhor do que como Nietzsche dizia, eu sou um destino. Porque você respondeu ao chamado que lhe foi feito de viver até ao fundo a única aventura da sua vida, escutando aquilo que já está na sua boca e no seu coração. Está aqui o coração do mistério cristão. Devemos fazer memória disso. Deus é Trindade, eternamente o Pai gera o Filho na unidade do Espírito. De tal forma que Deus é, em si mesmo, sempre nascimento e encontro, é, em si mesmo, comunhão de pessoas. E cada uma das pessoas divinas tem o seu eu que nasce de um encontro infinito. Portanto, oferecer-se a Deus não é ser absorvido como uma gota d’água no oceano imenso. É encontrar a própria origem e, portanto, a própria originalidade. E, portanto, o próprio nome e o próprio rosto, porque Deus quer que nós O conheçamos face a face, quer que a face de cada um de nós não se perca, mas que seja radiante singularmente, de modo divino e, então, começaremos a ressuscitar, começaremos a ressuscitar quando começarmos a crer que Beatriz ou Aspásia, mas também o Fulano de Tal, ou seja, vocês, eu, o seu vizinho de cadeira, quando começarmos a acreditar que cada um é tal que, como disse Dante, “Dio parea nel suo volto gioire”, que “Deus pareça, no seu rosto, se alegrar”.


* Conferência proferida por Fabrice Hadjadj, no âmbito do Meeting 2010. A tradução - realizada por Paulo R. A. Pacheco - foi feita a partir da transcrição, não revisada pelo autor, da tradução simultânea para o italiano. A conferência foi proferida originalmente em francês.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Eis porque o nosso “terrível” desejo de felicidade não é vão


Entrevista com Fabrice Hadjadj, feita por Federico Ferraù

“Basta encostar a mão contra a própria garganta para sentir a pulsação do sangue nas nossas artérias. É o sinal de que a nossa vida deve se tornar como que um rio: entrar em relação com a fonte através de todos os córregos da nossa história e fluir sem parar numa oferta”. Nesta longa entrevista, o filósofo francês Fabrice Hadjadj, hoje no Meeting de Rímini para apresentar o livro de Dom Giussani L’io rinasce in un incontro, fala com o Il Sussidiario sobre o coração humano, continuamente em equilíbrio entre o absurdo e a graça.

“Aquela natureza que nos impulsiona a desejar coisas grandes é o coração”. Segundo o senhor, em que sentido o título do Meeting deste ano é um desafio para os nossos dias?
O desafio é reconhecer em si um desejo que não vem de si. O coração é muito surpreendente, sobretudo para um individualista. Não falo em nível espiritual ou sentimental. Falo exatamente do miocárdio. Temos, em nós, este órgão que bate por um tempo que não decidimos, uma espécie de maestro a quem está ligada toda a nossa vida fisiológica. Trata-se de oxigenar o nosso sangue certamente, o que associa o coração à respiração, o “poema da respiração” diz Rilke, visto que a inspiração e a expiração nos outorgam este ensinamento admirável: a vida não está na independência, no isolamento, na autonomia, está num movimento (um teólogo diria que está em uma “pericoresi”) onde nunca se para de receber e de dar. Eis que se reduzem a nada, imediatamente, todas as pretensões de independência!

Dom Giussani diz que o simples fato de que o nosso coração existe é já uma provocação.
Ele tem razão. Basta encostar a mão contra a própria garganta para sentir a pulsação do sangue nas nossas artérias. É o sinal de que a nossa vida deve se tornar como que um rio: entrar em relação com a fonte através de todos os córregos da nossa história e fluir sem parar numa oferta. A promessa se encontra em Isaías: Eis que vou fazer a paz correr para ela como um rio (Is 66, 12). E também o Evangelho: Quem crê em mim, do seu interior manarão rios de água viva (Jo 7, 38). Certamente esta promessa pode dar medo. Alguns prefeririam reduzir-se aos seus pequenos barris de água parada. Em todo caso, o que é certo é que o cristianismo não é uma série de normas sufocantes, é ao contrário o “desejo de coisas grandes”, de tal forma grandes que superam a capacidade humana. Para acolher é preciso aceitar ser dilatados, ser até mesmo rasgados.

É mesmo necessario chamar a atenção da “natureza” para definir o coração do homem?
O termo “natureza” vem de “nascer”. Nascer é ter recebido a existência e, portanto, não ser a origem do próprio ser. Ter uma natureza é ter recebido, no nascimento, uma certa estrutura de existência, um dinamismo, uma tendência que está em mim e da qual eu não sou o artífice. É aquilo que dissemos sobre o coração: o centro do meu ser não está sob o meu controle, aquilo que tenho de mais íntimo me remete a um outro que não sou eu. Eu me desperto com os meus desejos: beber um café, folhear o jornal, ganhar mais dinheiro, beijar Caterina Murino, mas há em mim também outra coisa: este terrível desejo de felicidade.

Por que o senhor o chama “terrível”?
O dinheiro pode dar-me a felicidade? Caterina pode fazer isso? Se este desejo de felicidade não encontra vias de escape, acaba por me fazer destruir aquilo que eu, no início, havia desejado: como esse algo não é a “coisa grande”, acabo por jogar fora ou dizer isso na sua cara. Ou então me destruo a mim mesmo: como me contento com coisas pequenas, acordo a elas um valor que não têm e sufoco o meu coração. Atenção, não quero dizer que Caterina Murino, criada a imagem de Deus (e que imagem!), seja algo de pequeno. Mas, para poder estar de acordo com o meu coração, seria preciso que Caterina fosse cheia de graça, de verdade, de eternidade até (como a sua frágil beleza me deixa entrever). Seria necessário que Caterina fosse divina. Não posso fazer nada a este respeito. Está na minha natureza (na natureza de todo homem por pouco que escute o próprio coração). Dante entendeu isso muito bem. Há em nós o desejo da Coisa Grande que é Deus mesmo. Mas este desejo de Deus não deve nos levar a desprezar as criaturas (desprezar as criaturas seria necessariamente desprezar o seu Criador). Pelo contrário: o desejo de Deus nos faz desejar a divinização das criaturas. Portanto, desejar “coisas grandes” não significa rejeitar uma Beatriz anã, nem fantasiar uma Beatriz de dois metros e quarenta, mas desejar uma Beatriz tal “che Dio parea nel suo volto gioire” [“que Deus pareça, no seu rosto, se alegrar” (Paraíso XXVII, 105)].

Hoje em dia, estamos convencidos de que as ideias “fortes” não têm nenhum direito ou poder sobre nós. No melhor dos casos, se elas têm algum, é reservado ao âmbito privado, não ao público. É o mesmo também para o cristianismo? Deve ele limitar a sua “pretensão” sobre o homem?
Afirmar que as ideias fortes não têm nenhum poder sobre nós, eis aqui uma ideia, e uma ideia fraca. O homem não é um animal governado pelos instintos. Aquilo que, para o homem, cumpre o papel do instinto é a sua razão. Ele é sempre orientado por ideias, boas ou más, ideias de todas as formas (e de todas as falsificações). O homem inicia, portanto, sempre com o ser um ideólogo (pelo menos depois do pecado original). Utiliza termos abstratos. Por exemplo, diz “tudo bem”. Assim, numa conversa qualquer. Mas, “tudo bem” é algo de abstrato e enorme, é uma questão imensa na sua boca e ele não se dá conta porque é um ideólogo. De fato, deveria sair da ideologia e ir em direção à realidade, ou seja, perguntar-se: o que é verdadeiramente, realmente, “bem”? Trata-se simplesmente de tomar consciência das palavras que já estão ali, na nossa língua, entre as nossas palavras mais cotidianas e descobrir o seu peso concreto.

Qual é este peso?
Dom Giussani amava repetir estas palavras do salmista: Tu, Senhor, és meu único bem (Sl 16, 2). Esta é a concretude! Isso traça um caminho, afirma concretamente no que consiste o meu bem, e me conduz a atos que empenham a minha vida. Mas esta palavra possui algo de exorbitante. É a razão pela qual Dom Giussani acrescentava: “Uma frase assim carregada e assim peremptória, assim definitiva e totalizante, que a pode repetir?” (L’io rinasce in un incontro, p. 59).

E quanto ao que diz respeito à esfera privada, que goza de um direito absoluto?
Quanto ao que concerne à “convicções privadas”, trata-se de uma invenção burguesa: o pequeno possuidor quer afirmar que possui uma propriedade que é mesmo sua e que não pertence a nenhum outro. Mas, ao mesmo tempo, acaba por se dar conta: esta propriedade é morta se ele não acolher ninguém nela. Cada espaço privado se realiza somente na hospitalidade. E assim se torna público. Pelo contrário, peguem um jardim publico: ele assume todo o seu valor quando, por exemplo, vocês estão com uma garota, sentados num banco, ou com um velho amigo, numa conversa íntima. Cada espaço público se realiza somente no encontro entre pessoas. E assim se torna privado. Trago esses exemplos para mostrar que a separação público/privado é uma ficção muito artificial. É literalmente uma mutilação, visto que tal ficção declara: aquilo que vocês têm em no coração não deve ser gritado nas praças. Mas, se não há mais comunicação entre seus corações e suas palavras, quer dizer que não são mais homens. São uma carpa. E acabam por abocanhar todos os anzóis.

O senhor escreveu que a pretensão cristão é “tomar o poder sobre o teu coração, ou seja conquistar-te sem danificar nem a tua inteligência, nem a tua vontade, mas, pelo contrário, reforçando-o”. Como podemos viver a “pretensão” total da verdade encontrada sem renunciar a nós mesmos?
A resposta se encontra na sua pergunta: só existe encontro se existirem dois seres bem distintos. Então, encontrar a verdade não é uma alienação mas uma realização. Se lhe digo “Deus quer tudo de você”,o senhor se assustará porque comparará o desejo de Deus com o seu, e o seu é estreito, possessivo, redutivo. Mas, repito-lhe o que eu disse: “Deus quer tudo de você”, sublinho, “tudo de você”, ou seja você mesmo completamente, sem mutilações, sem diminuições, sem alienação, e portanto você mesmo com a sua alma e o seu corpo, com a sua inteligência e a sua vontade, com toda a sua liberdade, e até mesmo com uma liberdade infinitamente maior, porque desembaraçada de tudo o que pode haver de impedimento. Isso nos reconduz às palavras do salmo que se canta nas vésperas do domingo: O Senhor estenderá desde Sião teu cetro poderoso: Dominarás, disse ele, até no meio de teus inimigos (Sl 109, 2). Se forço o inimigo, se o dobro mesmo que seja com uma pequena sedução psicológica, dominarei talvez o seu corpo, mas não o seu coração. Dominar até o coração é a pretensão mais terrível e, ao mesmo tempo, a intenção mais doce. Porque não existem outros meios para dominar até o coração senão fazer-se amar livre e inteligentemente, ou seja, respondendo às “exigências do coração”. O catecismo da Igreja católica o diz claramente: “Viver no céu é estar com Cristo. Os eleitos vivem nEle, mas conservando, mais, encontrando a sua verdadeira identidade, o seu próprio nome” (Catecismo, §1025). Por que isso? Porque “o eu renasce e renasce em um encontro”. Porque eu sou eu mesmo apenas na minha relação com o meu Criador e, através dEle, com as outras criaturas. Ser originais não é ser excêntrico. É voltar-se para a origem e viver sempre no jorro da fonte.

A maravilha parece ser a dimensão mais adequada à forma original da nossa razão. Como podemos reencontrar esta dimensão para salvar a razão?
A grandeza da inteligência é efetivamente a de saber sentir-se estupefata. Atenção: sentir-se estupefata não significa ser estúpida. De fato, aquele que é verdadeiramente estúpido é, pelo contrário, aquele que crê saber tudo, que tem resposta para tudo. Quem se sente estupefeito coloca-se em posição de escuta e aprende. Um provérbio hebraico diz: “Quem é sábio? Quem sabe aprender de cada coisa”. Há, portanto, um vínculo entre estupor e estupefação. É aqui – estupefazendo-se, sentindo-se estupefeita – que a razão se abre a tudo o que a supera, àquilo que é encontro vivo, que está para além do cálculo (mas não desprezemos o cálculo, esta capacidade de pesar o real que é também um mistério – devemos apenas submeter o cálculo ao louvor, como na música). O problema não é, portanto, como fazer para redescobrir esta dimensão.

Por que o senhor diz isso?
Porque não se trata de fazer. Se nos limitamos ao “fazer” permanecemos no âmbito do nosso poder, das nossas capacidades, e nos fechamos ao estupor. Não se trata de fazer, mas de ser. O ser é, de fato, no fundo, estupor. Para dar-se conta disso é preciso saber-se abandonar ao repouso, viver – pelo menos um dia por semana, um momento no dia – a bênção do shabbat, que se poderia também chamar a nossa essência dominical. Parem tudo (Parai! Sabei que eu sou Deus, diz o salmo 45) e olhem uma flor, uma paisagem, escutem um quarteto de Mozart (ou de Haydn), contemplem o rosto de uma criança... Admirem mesmo uma garrafa, uma simples garrafa, como Morandi sabe admirá-la, não com uma genialidade especial, mas como um respiro amplo, com o coração aberto e disponível (o que é ainda melhor do que a genialidade), e eis que o mistério aparecerá, a incompreensibilidade da presença de uma garrafa... Mesmo a menor das garrafas é uma garrafa jogada ao mar, que esconde uma mensagem do criador de todas as coisas.

No ano passado, o senhor concluiu a sua entrevista no Il Sussidiario com estas palavras: “É preciso que a ação começa com um gesto de gratuidade. Se esta gratuidade não está presente, nunca estarei na direção do ser”. De onde pode vir esta gratuidade?
Não me lembro de ter dito isso. Talvez porque era exatamente um “gesto de gratuidade”... A gratuidade pode ter dois sentidos. Há a gratuidade do absurdo. E há a gratuidade da graça. Tudo aquilo que fazemos, todos os nossos cálculos, todos os nossos projetos, devem desembocar em uma ou outra dessas gratuidades. Encontrou um bom trabalho, e depois? Casa-se com uma mulher, e depois? Tem filhos, e depois? Ou não há nenhum sentido e você se encontra na gratuidade do absurdo. Ou então, tudo isso tem o sentido de um amor, um amor que dá a vida, e você se encontra na gratuidade da graça. Ou uma ou a outra. Mas antes ainda de entender a gratuidade quanto à finalidade da existência, ela pode ser entendida a partir da sua presença mesma: como é possível que eu esteja aqui? De onde me vem esse dom? É um presente envenenado? Também aqui: ou reconheço a graça de ser, ou então acho absurda a existência (mas nesse último caso me contradigo, porque desfruto da existência para desprezar a existência – esta é a minha própria absurdidade). O ato de render graças é o fundamento de toda ação porque, se não reconheço a graça de ser, então tudo aquilo que poderei fazer será da ordem do desprezo do ser, da regressão, da negação. Isso poderá assumir uma aparência humanista, apresentar-se como uma utopia de sociedade perfeita; na verdade, já que não vejo a existência como uma graça, essa utopia será o triunfo do nada: o seu fundamento será o ressentimento. Sob o pretexto de construir um super-homem ou uma super-sociedade, o empreendimento seria a destruição da sociedade e do homem.

O senhor vai apresentar o livro de Dom Giussani L’io rinasce in un incontro. O que lhe sugeriu a leitura desse livro? O senhor compartilha a escolha do título?
Saibam que se eu encontrei o pessoal de CL é porque aquelas pessoas encontraram afinidade entre o meu modo de colocar as questões e o de Dom Giussani. Eu não o conhecia. Travei contato com sua obra apenas há dois anos atrás. Depois, me pediram para fazer a apresentação, em Paris, do livro É possível viver assim? (em abril de 2009). Naquele momento, pude experimentar aquela afinidade de pensamento. Aquele foi um verdadeiro encontro, precisamente. Fiquei tocado com a simplicidade, a força, a tangibilidade concreta das suas palavras. Assim, a leitura de L’io rinasce in un incontro foi a continuação da mesma onda. Cada vez que leio Dom Giussani não é que encontre ideias novas, porque temos o mesmo enraizamento em Santo Tomás e na poesia e, sobretudo (eu devo isso ao teatro), um senso análogo do drama. Não, aquilo que eu acho, o que é muito melhor, é a novidade das ideias que eu já possuo, uma espécie de energia, de envio missionário, de impulsão no sentido de comunicar e viver na “dramaticidade e letícia...”. Quanto ao título do livro, tem a sua evidência. Uma evidência que imerge na profundidade de Deus. O que sabemos nós dessa profundidade? Deus é Trindade. Ele é único em três Pessoas. O Pai gera o Filho na comunhão do Espírito. De tal forma que Deus mesmo é eternamente nascimento e encontro. Um nascimento e um encontro infinito...

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de agosto de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Ulisses: herói do coração e não apenas do cérebro

Por Alessandro Banfi

Ulisses desembarcou também em Rímini. Aconteceu ontem entre os jovens do Meeting, confirmando a sua fama de grande viajante, renovando seu fascínio que, mais uma vez, pode ser definido como verdadeiramente mítico.
Nos pavilhões da feira tomou corpo, graças às palavras de Simone Invernizzi e di Carmine Di Martino, e graças a alguns grandes escritores. O mito e o gênio, de fato, são destinados a se encontrarem. Partindo de Primo Levi, que dedicou um capítulo inteiro do seu diário de Auschwitz – Se questo è un uomo (traduzido para o português como Os afogados e os sobreviventes, pela editora Paz e Terra) – exatamente ao Canto dantesco de Ulisses. Foi Invernizzi quem introduziu a versão dantesca do mito mais fascinante da nossa cultura ocidental.
Ulisses sempre foi, para nós, como que uma pessoa ainda viva, a encarnação mesma da astúcia, da inteligência, do desejo de sair do mundinho particular para descobrir o mundo inteiro. Mas, em Rímini, quem chegou foi o Ulisses dantesco que, sem perder nada do caráter do primeiro Ulisses, o clássico, o “polutropos” [πολυτρόπως, em grego, quer dizer “de diversas maneiras”; ndt] o herói dos muitos rostos, se torna o emblema mesmo da humanidade, o pretexto para cantar “a estatura do homem”.
E a mostra dedicada a este tema, no Meeting (é preciso dizer, entre parênteses, que as mostras, em Rímini, são sempre muito atraentes e os catálogos da Itaca Libri são preciosos e muito adequados para levar para casa algo mais do que uma simples emoção), aberta por Invernizzi e Martino, num encontro emocionante e muito aplaudido realizado no Auditório da feira, foi em si um pequeno evento com leituras poéticas e muito envolvimento. Ulisses, em Rímini, foi resgatado, revelou-se também como um herói do coração, não apenas do cérebro.
O que há nesse mito clássico revistado por Dante que é capaz de tornar a questão assim viva e presente? O já citado Levi e uma outra vítima da violência estatal e ideológica do século XX, o poeta russo dissidente, Osip Mandelstam, refletiram exatamente sobre o XXVI Canto do Inferno. Ambos, quando eram prisioneiros, se refugiaram na recordação daquele terceto: “Considerate la vostra semenza /  Fatti non foste a viver come bruti / ma per seguir virtute e conoscenza” ("Considerai a vossa origem / Não fostes feitos para viver como os animais / Mas para seguir virtude e conhecimento").
Que hino à humanidade, que sintética e magistral descrição da estatura do humano, do seu desejo! Sem se conhecerem, distantes no tempo por alguns anos, duas vítimas do campo de concentração, um de Hitler e outro de Stálin, pensavam em Dante, no seu Ulisses. Agarraram-se a ele. O Pikolo do romance de Levi, Jean Samuel, ainda está vivo e, anos mais tarde, falou a respeito daquela recitação de Dante em voz alta que Levi fez numa manhã fria de Auschwitz: “Era o protesto extremo do prisioneiro de um campo de concentração”.
Invernizzi e Di Martino explicaram bem que a interpretação que, por anos, se fez de Dante não é uma questão secundária. É como se tivessem existido três grandes correntes de leitura desse mito dantesco. A primeira vai de Croce a De Sanctis e vê uma contradição entre o Dante poeta e o Dante cristão-teólogo. O poeta parece amar Ulisses, mas o teólogo, como Di Martino disse de forma muito eficaz, o “castra”. Depois, tem uma leitura religiosa que vê no desejo de Ulisses um exagero mesmo em relação a Deus, o “voo louco” seria uma culpa, também cristã. Enquanto que será a leitura que Dom Luigi Giussani propõe, n’O senso religioso, a única que fará justiça a este mito.
Certamente, o desejo de Ulisses não é uma culpa, mas é o meio, o como, que o leva ao fracasso. Não é uma questão pequena, porque na negação, ou melhor na limitação do desejo, se joga o que há de mais fundamental. “Resecare spem longam”, já recomendava o poeta romano Horácio, inspirando-se em Epicuro. Literalmente cortar a própria aspiração pelo Infinito para não sofrer. Frase que, se tinha um valor antes da Encarnação, se torna uma censura estridente no mundo depois de Cristo.
Não é por acaso que a interpretação que Giussani faz é a mais próxima da de Eliot, de Auerbach, de Singleton e da estudiosa italiana da obra de Dante, Anna Maria Chiavacci, citada ontem em Rímini.
Se tem algo de sedutor no Meeting é isso: propor as grandes questões da vida e da cultura a um público frequentemente jovem, muito vasto. Por isso, Ulisses passou de muito bom grado também por Rímini.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 24 de agosto de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 7 de novembro de 2006

Falando em esperança...


Vergine Madre, figlia del tuo figlio,
umile e alta piú che creatura,
termine fisso d'eterno consiglio,

tu se' colei che l'umana natura
nobilitasti sí, che'l suo fattore
non disdegnò di farsi sua fattura.

Nel ventre tuo si raccese l'amore,
per lo cui caldo ne l'etterna pace
cosí è germinato questo fiore.

Qui se' a noi meridiana face
di caritate, e giuso, intra i mortali,
se' di speranza fontana vivace

* Canto XXXIII, 1-13, Paraíso. Dante Alighieri, em A Divina Comédia.
Imagem: Pietà Rondanini, de Michelangelo (Castello Sforzesco, Milano, Italia).