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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

“Bom caminho”


Saudação de Padre Giussani por ocasião do início da Escola de Comunidade sobre O senso religioso, dos estudantes de CL na Universidade Católica do Sacro Cuore. Milão, 8 de outubro de 1998

Fico muito grato a vocês de poder discutir acerca do volume que contém as minhas ideias, expostas em tantos anos de aulas, primeiro numa escola e sobretudo na universidade. Em cada ano, eu dizia: “Eu não quero forçar ninguém a se convencer, mas não quero que alguém renegue aquilo que eu digo se não tiver, pelo menos, lido as razões que eu digo”.
Permito-me pedir a vocês que me leiam com a intenção sincera e imediata de compartilhar com todos os jovens a dificuldade que têm de entender o valor da religião nascida de Jesus, filho de Maria, judeu de Nazaré.
Não é possível entender, senão verificando as ideias e os valores na própria experiência. Esta experiência pode consistir também no choque ou no sentimento particular que se surpreende em si mesmos, ou na história de um povo ou do mundo.
A experiência diz coisas que demonstram a sua verdade. Aquilo que eu digo a vocês foi-me inteiramente ditado por algo que eu estudei, desejei, repugnei, mas finalmente amei com paixão.
Para mim, é a experiência que ensina todo o valor de ideias e de coisas, permanecendo no tempo, persuasiva ou duvidosamente. Também grandes pintores, músicos e poetas demonstram continuar retomando o tema inspirado por uma “beleza” encontrada.
Nesta ocasião que vocês me deram, eu desejo a vocês uma sinceridade, uma franqueza em tudo e um amor à verdade que seja também compartilhado.
A minha vida conheceu a letícia nestas condições.

Finalmente, quero repetir-lhe aquilo que Santa Catarina, analfabeta, que é o maior gênio feminino italiano, dizia ao último Papa de Avignon: “Se fordes aquilo que deveis ser, colocareis fogo em toda a Itália. Não vos contenteis com pequenas coisas: Ele, Deus, as quer grandes”.

Bom caminho.
Padre Giussani

* Texto disponível na Tracce n. 10, novembro de 1998. Extraído do site de CL. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

De que vale explicar o universo, se se censura a pergunta sobre o sentido?


Por Roberto Colombo
“O universo criou-se sozinho, do nada. A criação espontânea é a razão pela qual há algo ao invés de nada, o motivo pelo qual existe o universo, pelo qual existimos nós”. Estas e outras antecipações do livro The Grand Design, escrito pelo matemático e astrofísico britânico Stephen Hawking em colaboração com o físico quântico norte-americano Leonard Mlodinow, foram suficientes para conquistar as primeiras páginas dos jornais e capturar a curiosidade de muitos por um texto que se anuncia como provocativo para o senso religioso do homem. Na espera de ter entre as mãos o volume e de lê-lo com atenção (todo desafio da razão deve ser colhido integralmente, e entre as linhas do cientista poderia se esconder alguma surpresa), o grande clamor dos paladinos da autopoiesis do cosmos e da “pura emergência” do homem na história da vida no universo – uma nova voz – é a única coisa que exige uma resposta.
Que a hipótese de Deus seja desnecessária para a razão, para colher a realidade segundo todos os seus fatores é uma tese que trai uma ideia de Deus e um conceito de realidade pelo qual o que existe e o seu significado são duas questões distintas, separadas, que podem (e, segundo alguns, devem) ser enfrentadas uma independente da outra. O tema é daqueles que exigiriam um excursus pela história do pensamento, da antiquidade aos nossos dias, e uma rigorosa fundamentação metafísica. Deixemos esta formidável tarefa aos dedicados aos trabalhos filosóficos, que possuem a competência e a paciência necessárias. Uma segunda via – não alternativa à precedente, mas paralela – é a que parte da nossa experiência, a cotidiana, acessível a todos, desde que nos detenhamos, pelo menos por um instante, sobre a nossa vida (o que é totalmente aconselhável em todas as idades).
Abrindo os olhos de manhã, ainda que estejam um pouco ofuscados pelo sono, a primeira evidência que vem à tona na minha consciência é que não estou sozinho. Em qualquer lugar que eu me encontre na terra (ou longe dela: se eu fosse um astronauta, veria a nava que me transporta e, lá fora, os planetas), sempre há alguém ou algo diante de mim. Não existe o nada, mas o ser que se manifesta em todas as suas formas, da xícara de café ao sol que lança seus raios através da janela do quarto. Mas, sou apenas eu quem pode se dar conta de tudo isso: a xícara se esvazia enquanto bebo o café, mas não experimenta nenhuma dor no ser privada do seu delicioso conteúdo, e o sol se põe no fim da tarde e deixa o lugar para a lua e para as estrelas sem nenhuma sombra de saudade de sua parte.
No entanto, dotado desta abertura para a realidade como sou (no cosmos, o único ponto de observação e de reflexão é o homem), não consigo abraçá-la toda com o olhar e com a razão: chego a perceber que há algo mais do que o nada, mas não é tudo aquilo que existe que me é presente. Aquilo que está acontecendo a poucos metros do meu quarto, mesmo ouvindo os passos do vizinho que está se levantando da cama, é, para, mim desconhecido, e assim me escapa (infelizmente!) a aurora que começa a iluminar as rochas das Cortinas Dolomitas. Não posso medir com minha vista, nem representar na minha mente, tudo aquilo que existe. Tudavia, existe, e a dramaticidade desta desproporção torna certa e humilde a afirmação que “existe mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que pensa tua vã filosofia”, para tomar de empréstio as palavras de Shakespeare no Hamlet.
“Sem admitir aquele x incomensurável, sem admitir a desproporção – que nada pode preencher – entre o horizonte último e a capacidade dos passos humanos, o homem elimina a categoria da possibilidade, dimensão suprema da razão; pois somente um objeto incomensurável pode representar um convite indefinido para um abertura estrutural no homem” – observa Dom Giussani n’O senso religioso – e é este “objeto último” que faz do homem “alguém que busca incansavelmente”. Uma busca sobre a realidade inteira (o campo da realidade é mais extenso do que o cosmos inteiro, do qual se ocupam os astrofísicos: do reino da física são excluídos o amor do homem por sua mulher, a alegria pelo nascimento de um filho, a dor pela morte de um amigo) que não pode ser separada da pergunta sobre seu sentido: não me interessaria pela xícara se não na medida em que pudesse absorver um bom café, nem olharia para fora da janela se a cidade que desperta pela manhã não me esperasse para que eu fosse ao trabalho. Por que Hawking e os pesquisadores como ele se dedicariam ao estudo do universo se ele não fosse “para eles”, como é “para mim” e para cada outro homem que nele vive e do qual carrega a consciência? E não é, talvez, esta a pergunta sobre o sentido do que existe que alguns gostariam de apagar da pesquisa pela verdade das coisas?
Esta inexaurível busca, da qual Hawking e outros cientistas são testemunhas, nunca nos poderia conduzir, nem mesmo com a mais ousada das construções intelectuais, a outra coisa senão apenas ao pressentimento do Ser de tudo o que existe, a fornte originária da qual a realidade brota incessantemente, sem que nem mesmo o pensamento pudesse tocá-lo. Pelo contrário, uma semelhante, formidável ponte poderia chegar a uma “terra incógnita” com praias tão anônimas que seriam confundidas com um continente já conhecido, como aconteceu com o descobridor da América, que acreditava ter chegado às Índias. É possível mudar a causa primeira, ontológica, por uma causalidade física, finita. E é este o limite de toda tentativa de se chegar racionalmente a Deus, passando através dos buracos das leis empíricas.
Se, porém, a razão se mantém aberta à sua categoria suprema, a possibilidade de que o Mistério que está por trás de tudo o que existe possa se manifestar livremente (a hipótese da possibilidade de uma Revelação não pode ser cancelada por nenhum preconceito ou opção), então a resposta à grande pergunta que agita desde sempre o coração do homem pode chegar, imprevisivelmente, “como um belo dia”, diria Camus. Salvaguardando a razão e a liberdade do homem, o Mistério não vem ao mundo para “tapar os buracos da ciência”, mas para ser reconhecido como a origem e o sentido de tudo aquilo que existe, o quid que, desde sempre, escapa à ciência porque é incomensurável com as suas medidas. A Sua medida é o Amor, a Misericórdia pelo nada que o homem e o universo inteiro são sem Ele. “O Deus que fez o mundo e tudo o que ele contém, que é o senhor do céu e da terra [...] dá a vida a todos e o respiro a cada coisa” (At 17, 24-25).
“Deus existe, eu O encontrei”, repetiu durante toda a sua vida um ateu convicto, André Frossard, filho do primeiro Secretário Geral do Partido Comunista francês, depois que, aos vinte anos, entrou por acaso em uma capela do Quartier Latin, em Paris, para procurar um amigo. Aqui, “numa silenciosa explosão de luz” – contava –, encontrou um outro amigo que, antes de então, não tinha conhecido: Cristo. A quem procura no universo os traços do Big Bang, a grande explosão primordial da qual tudo teve início, desejamos que encontrem, como uma silenciosa explosão de luz no escuro da mente, aquilo que procura, mesmo sem conhecer o nome.
* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 6 de setembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

"A voz única do ideal"

Encontro de padre Julián Carrón
com os formandos de Juventude Estudantil
Roma, 16 de maio de 2010

Amigos, este momento da vida de vocês é particularmente decisivo, porque em nós, em cada um de nós, há uma batalha se travando entre a "voz única do ideal" [1] (como acabamos de cantar), que todos sentimos vibrar dentro de nós, e todas aquelas circunstâncias que tantas vezes tentar expulsar esta voz, de forma que não sabemos mais para onde ir. Esta é uma luta que cada um de vocês vive dentro de si, e por isso este momento é particularmente dramático, porque escolhas como aquelas que vocês estão para fazer são determinantes na vida, porque a pessoa começa a tomar consciência de todos os fatores e vê emergir o próprio rosto: "O que estou fazendo no mundo?". E entendo muito bem o drama que cada um pode viver neste período da vida; é um período que nos obriga a escolher; vocês estão para terminar, é preciso escolher, é preciso começar a escolher, não é que a vida nos espera; é preciso escolher, porque não escolher é já uma escolha; de fato, todos, no final do ensino médio, escolhem, se colocam na vida com um rosto, e têm que enfrentar esta luta: "Não fiquem presos à corte das almas anãs que repetem os gestos e não sabem entender. Não subam ao castelo dos jovens justos que adoram o sol" [2]. Pelo contrário, o ideal nos convida a lutar contra esta redução. A primeira consciência que devemos ter é desta luta que está acontecendo agora.
A segunda questão é o caminho, saber o caminho para chegar àquele ideal, porque "caminha o homem quando sabe bem para onde deve ir" [3].
Padre Giussani nos ensina: "Somente na clareza e na segurança o homem encontra energia para a ação" [4]. Por isso, queremos nos ajudar a esclarecer aquilo de que temos necessidade para poder viver, para podermos nos lançar na vida, porque é uma exigência do momento que vocês estão vivendo, uma urgência que nasce no profundo do ser de vocês, a descoberta da vida como vocação.

1) Pelo que vale a pena viver?
A primeira questão da vocação, que temos que encarar de frente, não é o que escolher, esta é a consequência. A primeira é questão é a que urge tantas vezes em nosso coração: "Mas, por que eu existo? Por que estou no mundo? Pelo que vale a pena viver? O eu serve para quê? Para que serve o meu eu?". Como vocês podem ver, é a questão da vida, a questão fundamental de cada um de nós. A primeiríssima decisão é levar a sério esta pergunta, esta urgência, porque, como dizia R. M. Rilke, "tudo se concerta para nos calar" [5], para nos fazer agir segundo outros critérios. Parar esta pergunta significaria matar a natureza do homem, ou seja, bloquear o nosso eu no momento em que ele se lança na vida. Por isso estamos juntos nesta manhã, para que, antes de mais nada, não bloqueemos a pergunta, para não bloquearmos a voz do ideal.
Imaginem se um pedaço de alguma coisa, por exemplo uma engrenagem de uma máquina, se perguntasse: "Qual é a minha utilidade? O que estou fazendo aqui?". Ela só conseguiria entender isso a partir de dentro do relacionamento, no seu nexo com toda a máquina, porque cada pedaço do real só pode ser compreendido no seu nexo com o todo. Por isso, se nos perguntássemos: "Para que serve a minha vida? O que sou chamado a realizar?", a questão é encontrar o critério que nos ligue ao todo, "aquele critério que, sendo seguido, faz com que o homem se torne útil ao mundo, de tal modo que caminhe sempre mais em direção à sua personalidade, no rumo da sua felicidade, [...] não em direção à sua perda" [6]. Atenção, porque isto é fundamental: não é que servir ao mundo signifique nos perdermos, mas o serviço ao mundo é um ganho para nós, é a nossa realização. Entender isto é fundamental, porque tantos pensam que a única modalidade para realização de si seja a auto-afirmação (não afirmar-se na relação com a totalidade, mas na relação consigo mesmo) e, por isso, depois, acabam sozinhos num esconderijo, perguntando-se sobre o sentido da vida. Por isso é tão decisivo. Para a minha realização, devo entender o que estou fazendo no mundo, porque sem isto vou me perder inexoravelmente. Mas, como entender essa coisa? Como entender o que estou fazendo no mundo? A que sou útil?
Para responder a esta pergunta é preciso entender qual é o sentido do mundo, qual é o significado do mundo. E isto, amigos, para nós, é misterioso: qual é o sentido da totalidade, qual é o sentido do mundo, da história? Como dizia São Paulo: "Ele fez nascer de um só homem todo o gênero humano, para que habitasse sobre toda a face da terra. Fixou aos povos os tempos e os limites da sua habitação. Tudo isso para que procurem a Deus e se esforcem por encontrá-Lo como que às apalpadelas, pois na verdade Ele não está longe de cada um de nós" [7]. Seria, de fato, difícil descobrir o sentido do mundo - ou, em outras palavras, a Deus -, e por isso mesmo a minha utilidade neste mundo, se permanecessémos no escuro, neste mistério: "Por toda a vida, a verdadeira lei moral seria a de estarmos suspensos ao aceno deste 'senhor' desconhecido, atentos aos sinais de uma vontade que nos apareceria através da pura e imediata circunstância. Repito: o homem, a vida racional do homem deveria estar suspensa ao instante, suspensa a cada instante a este sinal aparentemente tão volúvel, tão casual, que são as circunstâncias" [8]. Em termos teologicamente eruditos, Santo Tomás afirma: "a verdade sobre Deus, registrada pela razão, chegaria aos homens por meio de poucos, depois de longo tempo e de mistura com muitos erros" [9].
Mas, o Mistério teve piedade de nós: vendo-nos tão fracos, teve piedade de nós e entrou na história para nos revelar o que, sozinhos, não seríamos capazes de penetrar, tornou-Se um homem para ajudar os homens a serem si mesmos, para revelar o sentido último do mundo e ajudá-los a entender o significado da vida. Jesus Cristo usou uma expressão para descrever qual é o significado do mundo: o reino de Deus. Todo o valor da realidade está em construir o reino de Deus, está em participar da construção deste reino, ou seja, participar da construção de um mundo que corresponda ao Ideal que se fez carne. Por isso, deum contribuição fundamental para entender o nosso lugar no mundo. O meu valor e o seu valor estão na medida em que colaboramos com o reino de Deus, na medida em que ajudamos a humanidade a caminhar no rumo da felicidade. Porque é somente participando deste reino - que é o reconhecimento da Sua presença entre nós - que o indivíduo pode alcançar a própria felicidade, a própria realização.
Vocês têm que trabalhar sobre cada uma dessas frases, se perguntando: é verdade ou não é verdade? Não é que, agora, vocês devem repetir as frases como se fossem uma sequência lógica e, então, o problema se resolveu; não! Vocês têm que perguntar, porque, de outra forma, não irão entender o alcance daquilo que nos dizemos e, depois, vão acabar decidindo sem pensar, já que não entenderam. Nestas passagens se joga, de fato, a vida. Por isso, este é um momento precioso, fundamental, para darem um salto na consciência de quem sou eu, de o que estou fazendo no mundo e qual é o sentido do mundo.
"Para a escolha da vocação, portanto, o critério não pode ser outro que: como eu, com tudo o que sou espiritual e intelectualmente, como temperamento e como educação, como físico, posso servir mais ao reino de Deus" [10].

2) A descoberta da vocação
Como posso entender os sinais que me permitem esclarecer a forma como posso servir mais ao reino de Deus? Devo localizar aquele complexo que eu sou para poder entender como posso usar tudo o que tenho, tudo que trago comigo e que me foi dado, para a utilidade do reino de Deus.
Tomo o que disse padre Giussani e o subdivido, para maior clareza em três grandes critérios.
O primeiro critério a ser olhado é o complexo de inclinações ou dotes naturais. Cada um de nós traz consigo uma série de capacidades, desejos, ímpetos, um temperamento. São dons preciosos que devemos colocar a serviço de algo outro. Foram-nos dados, todos estes dons, para algo na vida, para serem usados, para viver: como eu posso usar todos estes dons que o Senhor me deu para servir mais ao reino de Deus? “Por exemplo, há um temperamento de inteligência que parece bobo quando se aplica à matemática, mas é genialíssimo quando se trata de construir [...] um conto: é um gênio literário, que em matemática pareceria um bobo. Se o forçam a fazer o Politécnico, lhe impedem de ser útil à humanidade” [11]. Se o professor, o pai, a mãe, a criança, a babá, o cachorro dizem: “Não... você tem que fazer o Politécnico”, eles “matam” você. Parece banal, mas você não conseguirá ficar contente, não conseguirá render, não será capaz de servir; você não terá encontrado o seu lugar no mundo e, por isso, será enganado, porque terá escolhido algo a partir de fora, não levando em consideração os dons que você recebeu. “Há, por exemplo, um tipo que é genial na arte musical. Se o obrigarem a fazer Direito, certamente seu rendimento diminuirá e, portanto, se torna mais difícil o seu caminho, visto que as duas coisas coincidem sempre. A intensidade ou a beleza... a beleza do caminho – já que a beleza é o esplendor do verdadeiro – coincide com a utilidade que realizamos no mundo [...]. A beleza do caminho corresponde à verificação [no sentido de tornar-se verdadeiro] da nossa vocação. Portanto, para localizar este condicionamento [este complexo de dons recebidos, de inclinações, de dotes], antes de mais nada é necessário a atenção aos próprios dotes naturais, ou capacidades [atenção àquilo que tenho como tendência, como facilidade, tenho como gênio]. Como se chama aquele fenômeno que faz os dotes e as capacidades naturais virem à tona? Se chama ‘inclinação’, a inclinação. [...] A natureza nos introduz aos ideais, mas sempre através de um gosto ou de uma inclinação, um prazer ou uma necessidade. [...] Por isso, a primeira grande regra prática é [...] a simplicidade” [12], a sinceridade de olhar e reconhecer e abraçar estes dons como o primeiro sinal que a realidade me oferece para entender o que faço no mundo. O erro mais grave que se pode cometer na determinação da própria vocação “é se colocar em uma condição de desconfiança quanto às próprias inclinações, quanto ao gosto, quanto ao prazer autêntico [...] e natural” [13]. Podemos resumir assim: os dotes, o temperamento, as tendências de que somos constituídos são aquilo para o que devemos olhar, porque são aquilo através do que o Mistério nos chama, dando-nos esta capacidade, estas inclinações dentro de nossa carne; não nos manda um anjo, mas nos plasma a partir de dentro de nossas vísceras, para dizer-nos a que nos chama, porque é Ele que nos fez assim. Por isso, também a orientação profissional, por exemplo, deverá levar em consideração estas tendências nativas como um modo de encaminhar-se para onde Deus, através das capacidades que nós dá, nos chama. Chama você, mas chama você não de fora, chama você dando a você todas estas inclinações.
Segundo critério: as condições inevitáveis ou as circunstâncias inevitáveis. Padre Giussani diz que “a circunstância inevitável é certamente – como dizer? – a coisa mais amiga que temos no mundo, porque é o fator mais evidente da nossa existência. Porque na avaliação das nossas inclinações e dos nossos dotes, frequentemente há a possibilidade da incerteza, ou o medo” [14]... Nem todos são Mozart e têm a clareza dos dons e dos dotes tão claramente desde o princípio; às vezes, não é tão evidente assim, enquanto que as circunstâncias inevitáveis são evidentes e uma pessoa, por exemplo, pode querer fazer astronomia porque é, de fato, dotado para isso, mas – pensemos – por uma circunstância familiar, por falta de recursos, uma circunstância de fato inevitável, não pode fazer esse curso, porque a família passou mal pela crise econômica. Então, o resultado disso é que ele tem que começar a trabalhar. Circunstâncias inevitáveis determinam a possibilidade ou não de fazer certas coisas: alguém quer fazer ciclismo ou participar das Olimpíadas porque é, de fato, bem dotado atleticamente, mas sofre um acidente e fica manco. Para entender o que está fazendo no mundo, o primeiro movimento não pode ser ficar com raiva, mas aceitar esta circunstância inevitável. Imaginem que aquela pessoa, que ficou manca, ficasse de cabeça dura insistindo em dizer “Não, eu quero ir às Olimpíadas”; seria uma teimosia, um capricho” Do ponto de vista vocacional, padre Giussani diz: “A circunstância inevitável é 100%, com certeza absoluta, sinal do caminho a ser seguido. Por isso, não existe nada de mais amigo, de mais facilmente amigo nosso, do que a circunstância inevitável, o fato” [15]. Acrescento ainda um aspecto fundamental, uma nota fundamental: nada disso é fatalidade, o destino não é o fato: tudo – mas tudo mesmo – se torna instrumento de vocação! Você está seguro de que se tornando um atleta vai atingir a sua plenitude e a satisfação mais facilmente do que através daquela circunstância inevitável? Não. Abraçar este acidente como parte do caminho em direção ao destino é esperar, curioso, como o Senhor vai fazer para me levar até à felicidade, através do meu ser manco. Mas não introduz uma dúvida! Não fico ali lamentando-me por toda a vida. Antes: esta condição inevitável se torna elemento fundamental através do qual o Mistério me fará chegar ao destino, ao ideal, à felicidade. Se, porém, paramos na raiva, será a nossa tumba, porque na vida podem acontecer muitos acidentes de percurso que são inevitáveis, mas se nós não tivéssemos a possibilidade de que a vida continuasse a ter um sentido (e pensamos que apenas certas pessoas, com certas capacidades, podem atingir o escopo da vida), dependeremos apenas do acaso. Pelo contrário, qualquer circunstância é parte da conquista do destino, da felicidade. E isto é, de fato, libertador, porque a felicidade não depende do sucesso mundano, mas do meu serviço ao todo, ao reino de Deus (por isso, pode ser a mesma coisa ser um porteiro ou um ministro).
Terceiro critério: a necessidade social, ou melhor, a necessidade do mundo e da comunidade cristã. Vocês têm que olhar de frente para o mundo, neste momento: do que ele precisa? Do que a Igreja precisa? A comunidade cristã tem necessidade de quê? Cada um tem que olhar aquilo que percebe como mais urgente, porque pode haver épocas e situações nas quais a urgência de uma dedicação total a Deus é mais forte, em outro momento, porém, é mais decisivo que existam homens no meio da realidade, no trabalho, na família, que possam testemunhar, a partir de dentro das vísceras da sociedade, lá onde todos vivem, o que é a vida, qual o sentido do viver. Também assim podemos descobrir a que somos chamados.
“O juízo deve brotar do complexo destes fatores colocados juntos. Mas isto implica outra consideração: sem reflexão e sem uma comparação – a comparação dialógica – com a comunidade na sua função típica, ou seja, com quem guia a comunidade, é inevitável que o nosso modo de proceder seja instintivo e mecânico. Nós refletimos sobre todas as coisas, mas quanto a isso, do que depende toda a estrutura da nossa via no seu valor mais pessoal, deixamo-nos levar automaticamente por aquilo que sentimos. É preciso refletir; e refletir quer dizer se comparar com o próprio destino, com o próprio fim, com Deus, com o escopo da vida, com o servir ao reino de Deus. Quem tem ainda o problema intacto deve sentir o dever de recuperar imediatamente estes critérios; e que tem às suas costas fatores que não podem ser eliminados, também ele, mesmo que de outra forma, deve recuperar os mesmos critérios” [16]. Imaginem que vocês ganhem milhões; a coisa normal é perguntar a alguém onde colocar o dinheiro para não o perder fazendo investimentos malucos, não? Perguntar não é um dever, mas é um interesse: interessa-me fazer esta comparação para não perder o dinheiro. Certo, no final serei eu a decidir, mas me agradaria decidir com toda a consciência para que ele renda bem. Se isto acontece com o dinheiro, imaginem o que deveria acontecer com a vida: quero estar seguro de ter presente todos aqueles fatores que me permitem tomar uma decisão completa, porque a razão é a consciência de todos os fatores.

3) A escolha da vocação
Com tudo isso, fica claro que são duas as questões fundamentais para serem decididas, duas são as escolhas fundamentais que cada um de nós é chamado a fazer na vida.
a) A vocação como escolha do estado de vida
Há dois estados de vida fundamentais: um é o “normal”, natural, ou seja, o de colocar-se diante de Deus através da mediação de outra pessoa [17]. O que quer dizer colocar-se diante de Deus através da mediação de outra pessoa? Que, apaixonando-se, a pessoa que mais faz você vibrar, que mais abre você, que mais o lança, que mais chama a sua atenção para algo de outro é um mediador: você é chamado a se abrir à totalidade através deste fato que lhe aconteceu, que você carrega consigo. Se Deus dá a você aquela pessoa, não é para bloquear você naquele lugar, mas para abri-lo ainda mais ao Mistério, para abri-lo ainda mais àquela totalidade para a qual você foi feito: então, você começa a ter algum sinal de qual é a vocação a que Deus lhe chama. Você caminha em direção ao Destino através da mediação, na companhia da mediação de outro ou de outra. Neste sentido, uma pessoa segue a grande lei que une o homem a Deus através da realidade mundana, e uma pessoa assim diz: “Eu, com esta pessoa, vou até o fim do mundo”, vou até ao destino, sou chamado a ir ao destino com essa pessoa porque ela chama mais a minha atenção para o escopo da vida. Não é que esta pessoa me possa fazer feliz, porque não me fará feliz – atentos, porque nisso vocês erram sempre –, na medida em que o meu desejo é muito maior e onde isto se evidencia mais é exatamente aqui: nenhuma pessoa é capaz de despertar em você todo o desejo de felicidade como aquela pessoa, mas ao mesmo tempo nenhuma pessoa é mais incapaz de satisfazê-lo do que aquela mesma pessoa. Por isso, não se deve repreender o marido ou a mulher por causa dessa incapacidade, mas se deve entender que ela é parte da vocação, que aquela pessoa lhe é dada para despertar todo o desejo de caminhar juntos no rumo dAquele que é capaz de satisfazer o desejo (por isso, é uma vocação, porque é a possibilidade de chegar ao destino). Se você, pelo contrário, identifica o destino como sendo aquela pessoa e para nela, acontece como com todos: “Ah! Agora sei por que nasci!”. Qual se torna, na cabeça de vocês, a utilidade para o mundo? Querer aquela mulher, ponto! “Por que tenho que ir além? Por que tenho que me abrir para o além?”. Depois disso, sufocam e se separam, porque não são capazes mais de viver um com o outro: são tão feitos um para a outra que não conseguem mais viver juntos! Se cometemos esse erro, acabaremos como vemos que acabam tantos, hoje em dia, porque não compreendemos a natureza da experiência amorosa, daquilo para o que o Mistério nos faz, ao nos fazer assim: para que nos abramos mais Àquele que pode saciar a vida. “No âmbito cristão, a realidade deste estado [que é fazer uma família] é fundamental por que a isso é confiada a possibilidade mesma do prolongar-se do reino de Deus no mundo [através dos filhos]” [18].
Mas, na vida da Igreja há um outro estado de vida, que é aquele da virgindade, “que se constitui, também, numa função fundamental e que aparecerá também mais claramente na medida em que recuperarmos o motivo último e exaustivo pelo qual nos oferecemos a Deus: este motivo é a imitação de Cristo [Cristo, o Mistério feito carne, colocou na história uma modalidade de se ser útil ao reino de Deus que é viver para este reino, viver para fazer a vontade de Deus, dando toda a própria vida para isto: é exatamente o que fez Jesus, que não constituiu família, deu toda a sua vida para isso]. A imitação de Cristo é a lei de todos os cristãos, porém a escolha de um estado deste gênero toca objetivamente o seu vértice [uma vocação à virgindade toca o seu vértice], porque é a imitação do estado de Cristo na sua plenitude. O estado de Cristo na sua plenitude era um relacionamento com o Pai que, de um certo ponto de vista, como pessoa, não era mediado por nada [assim como no matrimônio o relacionamento com o Pai é mediado por outro, aqui o relacionamento com o Pai não é mediado por nada]” [19]. Aqueles que são chamados a este estado são chamados a um relacionamento único, imediato, direto com o Mistério. Esta é a virgindade: Deus chama, Deus introduz na vida uma semente, uma experiência do viver tal que torna você tão pleno, tão grato, que torna possível a você uma experiência de vida que lhe permite dizer: “Eu quero isto”, e isto lhe torna livre para dar toda a vida, não para mutilá-la. É por uma plenitude, não por um sacrifício, é por ter ficado fascinado por Cristo que uma pessoa sente a urgência de dar-Lhe tudo: “Eu sou para ti, Cristo”. Atenção, que ninguém pense neste caminho por outro motivo que não seja a plenitude! Não é porque é mais perfeito, não é porque é mais bonito, não; é porque a pessoa vive suspensa sobre um cheio e não quer perdê-lo por nada desse mundo, tanto é verdade que as pessoas que encontram essa plenitude, às vezes, nunca nem pensaram nesse caminho, mas, de repente, descobrem essa plenitude e dizem: “isso é demais, isso é bonito demais para não ser seguido”. Por isso, padre Giussani diz: “Cristo, com a sua virgindade, não era um mutilado. Por isso, o conceito de renúncia, se indica a ressonância psicológica que a existência gera naquele caso, do ponto de vista do valor, do ponto de vista ontológico, não é renúncia a algo, mas é o entrar na posse mais profunda e mais última das coisas. A virgindade de Cristo era um modo mais profundo de possuir a mulher, um modo mais profundo de possuir as coisas. Isto teve, por assim dizer, a sua realização no fato da ressurreição, através da qual Cristo possuiu todas as coisas, como nós possuiremos no fim do mundo. Neste sentido, a virgindade, no âmbito da comunidade cristã, é a situação paradigmática, exemplificativa, ideal de referência a todos” [20]. É o paradigma, o exemplo, o ideal não de uma não-posse, mas da posse verdadeira.
Outro dia, na pausa de uma aula na Católica [refere-se à Universidade Católica de Milão; ndt], uma garota veio até a mim para dizer, depois de anos de noivado: “Gostaria de voltar àquele primeiro momento, àquele primeiro vislumbre do relacionamento com meu namorado”, quando ainda não se tinham tocado: esta é a virgindade! E por que esta garota, depois de anos, ainda tem saudade daquele instante? Porque tudo o que aconteceu depois não foi capaz de recriar nem um pouquinho da plenitude que havia experimentado então. Esta garota está noiva ainda, mas deseja isto, deseja uma posse do outro assim, e ser possuída pelo seu noivo assim, como naquele primeiro instante comovente. A virgindade é um modo mais profundo de possuir a mulher, um modo mais profundo de possuir as coisas. E hoje, que é a Ascensão, é a festa disso: quando Cristo ressuscitado entrou na profundidade das coisas, possuindo-as. Também nós as possuiremos no fim dos tempos, é uma realização verdadeira, afetivamente falando, porque é aquilo a que todos somos chamados: “A virgindade, portanto, na vida da Igreja [no reino de Deus], representa a função suprema, tanto é verdade que a história da Igreja identificou o testemunho nas suas formas supremas em dois pontos: a virgindade e o martírio. A virgindade, no âmbito da comunidade cristã, constitui-se em função e testemunho para o fim da vida” [21]. Nela podemos gritar a todos: “Preste atenção no fato de que aquilo pelo que você ama a sua namorada, o seu namorado, aquilo pelo que você se casa, pelo que você tem filhos, tem um nome que eu grito para você através da minha vida: Cristo. E é possível aquilo pelo que você foi feito tendo a mulher e os filhos, existe, eu o testemunho para você. Por quê? Porque eu dou a vida para isso e a minha vida não existiria, não seria o que é se Ele não existisse. Seria impossível se Cristo não tivesse entrado na história e nos tivesse fascinado tanto a ponto podermos viver dEle”.
Quais dos dois caminhos abraçar, então? “A escolha entre um e outro caminho não pode ser uma ‘criação’ nossa, mas deve ser um ‘reconhecimento’ nosso. Devemos reconhecer algo para o que fomos destinados. Não deve ser uma decisão nossa no sentido de que a nossa vontade construa a própria posição, mas no sentido de que a nossa liberdade adira à indicação que nos assinala o caminho” [22]. Então, a questão fundamental para a escolha da vocação é nos educarmos ao Mistério, educarmo-nos a permanecer escancarados, tesos a descobrir os sinais através dos quais eu possa entender a que sou chamado.
E isto, tantas vezes, é complicado, amigos. Porque somos feitos para o “portanto”, devemos chegar à clareza e, por isso, queremos acelerar o caminho quando não nos é ainda claro – sentimos um estranho mal-estar, uma impaciência. Como essa posição é vertiginosa, queremos superá-la o mais rápido possível e, tantas vezes, acabamos errando; ao invés de esperar que emerjam os sinais através dos quais o Mistério me dá todas as indicações às quais devo obedecer, ou decidimos nós ou fazemos com que outros decidam por nós. Porque o caminho é, no fundo, uma obediência; é uma obediência que tem dentro de si tudo aquilo para o que eu fui feito, que leva em consideração todos os fatores que me tornam verdadeiramente o que eu sou, não é uma decisão “minha”.
b) A vocação como escolha da profissão
Tudo o que dissemos até agora nos ajuda a entender também o caminho da escolha da profissão a desenvolver, mas gostaria de sublinhar fundamentalmente uma coisa. “A concepção moderna da vida nunca se mostra tão distante do Espírito de Cristo como neste ponto. O critério com o qual a mentalidade de hoje habitua a olhar o futuro tem como centro o proveito, o gosto ou a facilidade do indivíduo. O caminho a escolher, a pessoa a amar, a profissão a desempenhar, a faculdade em que se matricular, tudo é determinado de modo a erigir como critério absoluto a utilidade particular do indivíduo. E isto parece tão óbvio e normal que a subversão causada pelo chamado se mostra, mesmo a muitas pessoas de bem, um desafio ao bom senso, um fanatismo, um exagero. São acusações repetidas até por educadores que se sentem cristãos, ou por pais preocupados com o sucesso humano dos filhos: os juízos nas situações privadas e públicas, os conselhos para bem viver, as advertências e repreensões, tudo é ditado por um ponto de vista do qual estão totalmente ausentes a devoção ao todo e a preocupação com o Reino, e a realidade de Cristo é exilada” [23]. Podemos ser de GS [Giuventù Studentesca – Juventude Estudantil –, é o âmbito dos colegiais de Comunhão e Libertação; ndt], podemos ter encontrado a Cristo, mas no momento decisivo das escolhas fundamentais Ele não tem nada que ver. Por isso, é dramático este momento, só de falar sobre isso sinto arrepios; imagino que arrepios vocês que estão para escolher devem sentir, tanto é contrário a toda a mentalidade no qual estamos imersos.
Vocês entendem por que é uma luta? A luta em nós é entre seguir a voz única do ideal (que seja aquela a nos indicar o caminho) ou deixar-nos engolir pela mentalidade do mundo. Se não nos dizemos estas coisas, não somos amigos; eu digo isso a vocês porque sou amigo de vocês, porque a questão é o objetivo da vida, a questão é o que estamos fazendo aqui. Se nós, neste momento-chave da decisão, não vinculamos a escolha da profissão ao o que estamos fazendo aqui, nos perderemos pelo caminho. “‘O que o todo poderá me dar? Como obter o maior proveito possível do todo?’: estes são os critérios imanentes à sabedoria mais difundida e ao bom senso mais reconhecido. A mentalidade cristã, ao contrário, derruba essas perguntas, as contradiz e as mortifica e agiganta o imperativo exatamente oposto: ‘Como eu poderei doar-me, com aquilo que sou, servir mais ao todo, ao Reino, a Cristo?’. Este é o único critério educativo da personalidade humana redimida pela luz e pela força do Espírito de Cristo” [24].
“Na escolha do trabalho e da profissão deve vir à tona aquela terceira categoria sobre a qual falamos [antes]: as necessidades da sociedade. Mas, para o cristão estas não podem ser um critério isolado de outro conceito mais profundo: a necessidade da comunidade cristã” [25]. Então, o que significa, no fundo, esta disponibilidade se não prontidão, disponibilidade à vocação? É isto que devemos pedir: que o Senhor nos dê a graça de ver todos os sinais que nos permitem identificar a vocação de modo tal que não nos enganemos no caminho e nos tornemos disponíveis – porque, às vezes, podemos ver com muita clareza e não estarmos disponíveis.
“A profunda disponibilidade de toda a própria vida no serviço ao todo é de extrema importância exatamente também para compreender qual a função que se é chamado a desempenhar, qual a vocação pessoal” [26]. Porque a vocação, amigos, não é uma ordem, ninguém ordena nada a vocês aqui, nesta manhã, nem mesmo Cristo deu uma ordem; é uma sugestão, um convite, uma possibilidade entrevista, e deixa intacta a liberdade de vocês. Depois de tudo o que dissemos, toda a liberdade, dramaticamente, está nas mãos de vocês.

Notas
[1] CHIEFFO, C. “Parsifal (Canzone dell’ideale)”, em Canti. Milano: Cooperativa Editoriale Nuovo Mondo, 2002, p. 236.
[2] Idem.
[3] CHIEFFO, C. “Il popolo canta”, em Cantos. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2002, p. 292.
[4] GIUSSANI, L. O caminho para a verdade é uma experiência. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2006, p. 143.
[5] RILKE, R. M. “Segunda Elegia”, em Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 115.
[6] GIUSSANI, L. Intervento alle Vacanze Maturati, Campitello, 28 a 30 de julho de 1964 [Arquivo de CL].
[7] At 17, 26-27.
[8] GIUSSANI, L. O senso religioso: primeiro volume do PerCurso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pp. 186-187.
[9] AQUINO, T. Summa Theologiae, Q. I, Art. 1, 1.
[10] GIUSSANI, L. “La vocazione della vita”, em Tracce – Litterae Communionis, n. 6, julho de 2005, p. 2.
[11] GIUSSANI, L. Intervento alle Vacanze Maturati, Campitello, 28 a 30 de julho de 1964 [Arquivo de CL].
[12] Idem.
[13] Idem.
[14] Idem.
[15] Idem.
[16] GIUSSANI, L. “La vocazione della vita”, em Tracce – Litterae Communionis, n. 6, julho de 2005, p. 4.
[17] Idem, p. 2.
[18] Idem.
[19] Idem.
[20] Idem, pp. 2-3.
[21] Idem, p. 3.
[22] Idem, p. 4.
[23] GIUSSANI, L. O caminho para a verdade é uma experiência. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2006, pp. 144-145.
[24] Idem, p. 145.
[25] GIUSSANI, L. “La vocazione della vita”, em Tracce – Litterae Communionis, n. 6, julho de 2005, p. 5.
[26] GIUSSANI, L. O caminho para a verdade é uma experiência. São Paulo: Companhia Ilimitada, 2006, p. 145

* Extraído do Site Internacional de Comunhão e Libertação. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco, sem correção do autor.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Fazer o Cristianismo 02

"E este jovem, que entrou na 'máquina' [refere-se à ideia de atalho para facilitar a entrada dos jovens no mecanismo, que é o oposto a mistério; confira o post abaixo; ndt], dura quanto tempo? É essa a pergunta que eu fiz a vocês, no início, porque ou este jovem é criado segundo um desígnio que não é o nosso e ao qual devemos nos dobrar, ou então ficaremos sempre no medo. Porque, no fundo, nós temos medo de que o jovem faça mal a si mesmo. E assim estamos no centro da questão. Vocês podem girar ao redor o quanto quiserem, mas o problema de vocês é que têm medo, porque o Mistério correu o risco de deixar as pessoas livres (é o aspecto antropológico do problema do Inferno). E isto nos escandaliza e, por isso, temos medo. Mas o Mistério não tem esse medo! Somos nós que não somos capazes de estar diante do drama da liberdade. O que não quer dizer que nos desinteressemos pelo outro; ninguém assuma isto como justificativa para a preguiça. Pelo contrário, é preciso fazer tudo o que for possível, desafiar o outro de todas as maneiras. Mas, o outro permanece livre, queira ou não queira, porque não fui eu quem o fez.
A questão é se nós somos capazes de transmitir o olhar de Cristo: então seremos capazes de desafiar os outros até o fundo, e eles cederão diante de uma presença. E isto não depende apenas dos gestos que fazemos, mas da diversidade com a qual os fazemos! É verdadeiro gesto aquilo que torna Cristo presente hoje. Às vezes, achamos que estamos fazendo tudo muito bem; mas vocês estão seguros de que são o rosto do Mistério para aqueles que encontram? E é, depois, culpa do jovem que não entende? Mas, estamos loucos! E nós, não devemos mudar nada? Não devemos fazer pessoalmente um caminho para que, depois, se transmita esta diversidade? Não, nós já fizemos tudo muito justo, fizemos todos os gestos adequados, e reconhecê-Lo é um problema dos outros! Calma, amigos. Isto cabe dizê-lo a quem nos encontra. É o jovem que encontramos que deve dizê-lo, não nós. Estamos seguros de que algo aconteceu apenas - apenas! - quando o outro responde, de outra forma poderia ser uma imaginação nossa. A adesão do outro é um aspecto da verificação que estamos fazendo do caminho de relacionamento com o Senhor. Porque quer dizer que foi despertada toda a sua liberdade e toda a sua afeição para aderir. E apenas então, apenas naquele momento posso estar, de fato, certo. Mas que outro modo temos para sabê-lo se não este?
O Mistério colocou nas mãos de cada pessoa que encontramos o critério de juízo - por isso, correu o 'risco' de criá-la livre - , e por isso a questão do coração sempre estará presente. E vocês o veem muito mais que qualquer um no jovem. Ele tem o critério! Por quê? Porque é ele que deve decidir diante desta correspondência que descobre. Isto não é uma questão particular - da página 325, nota 48 de um livro qualquer -, mas pertence ao núcleo da impostação de Giussani, ao PerCurso, de O Senso Religioso ao Por que a Igreja: começa falando da experiência, do coração como critério de juízo, o retoma quando explica como alguém pode estar diante da concepção que Jesus tem da vida, e termina dizendo que toda a proposta da Igreja se submete ao juízo da pessoa. Sim ou não? Giussani é, de fato, consciente de que este é um diálogo misterioso entre duas liberdades. Ou entendemos isto ou ficaremos procurando atalhos, que não servem. Porque é inútil... você pode fazê-lo participar das iniciativas, mas o seu coração não é tomado. É o que diz Giussani falando do encontro de João e André (...). O problema é este: não que participe, mas se sinta agarrado. Depois, pode sobrevir que isto aconteça de modo 'intermitente'. É um problema de tempo quando este ser agarrado floresce: a pessoa pode ter visto acontecer e não estar de acordo ou recusá-lo por anos, até quando um acontecimento o faz entender todo o alcance daquilo que sobreveio. E não sabemos quando aquela semente produzirá fruto."
(CARRÓN, Julián. Fare il cristianesimo. Tracce. 2010, pp. 2-3)

sábado, 3 de abril de 2010

Semana Santa com Giussani

"... é preciso ter presente todo o breve discurso que fizemos no Sábado Santo. A primeira palavra era?

Mistério.

Por que dissemos 'Mistério'?

Porque a realidade tem um desígnio.
Porque na origem de tudo tem um mistério.

Porque a origem de tudo é o Mistério. Por isso, realizar um gesto, isto é, estabelecer um relacionamento com a realidade - qualquer que seja, de qualquer relacionamento se trate -, este 'estabelecimento' não é verdadeiro se não partir da consciência do Mistério. (...) Se tudo nasce do Mistério, a ação do homem - que é o intervir naquilo que nasce do Mistério (...) - não é justa se não parte da consciência deste Mistério ao qual pertence: (...) o relacionamento não aparece bem, se não partir da consciência do Mistério. Se chamamos 'senso religioso' a consciência do Mistério, a nossa intervenção no mundo não é verdadeira se não nascer do senso religioso (porém, usemos a palavra 'mistério' que é melhor).
Mas, eu sempre disse que, para que seja justo, um relacionamento deve partir da consciência de sermos pecadores. Como ficam juntas estas duas observações? O sermos pecadores, o pecado, e a falha na consciência do Mistério. A consciência do Mistério é memória; a ausência da consciência do Mistério é pecado (...). Mas, em que sentido falhamos? É porque somos pequenos e o Mistério é grande? Isto é suficientemente fácil de admitir. É por causa da desproporção: a desproporção é estar diante do Mistério não na disposição, ou na postura na qual fomos concebidos. O Mistério expõe um desígnio, é a fonte de um grande desígnio (...). Um relacionamento é desproporcional quando não nasce segundo o desígnio, quando começa sem levar em consideração o fato de que pertencemos a algo de imensamente grande."
(GIUSSANI, Luigi. L'attrattiva Gesù. 1999, pp. 232-233)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Cartas do P.e Aldo 11

Asunción, 02 de fevereiro de 2009.

Caros amigos,
Como gostaria de responder a todos pessoalmente! Como não consigo, para a maior parte dos que me escrevem garanto minhas orações. Tantas perguntas, tantos problemas, sofrimentos, dramas que nos acomunam, de tal forma que certas coisas que eu vivo me parecem úteis a todos e, portanto, respondo como estou fazendo. Não sei ainda como ajudar a todos que me escrevem os seus dramas, aqueles que, como nos lembra Carrón, carregam dentro de si uma ferida que é como um soco da consciência. Um dos dramas que mais aparece é o do trabalho: muitos estão aposentados, outros desempregados... com tudo aquilo que comporta essas situações.
Pois bem, hoje, depois de guiar o retiro dos noviços sobre o segundo capítulo d’O Senso Religioso, retiro que, na Itália, foi guiado por Carrón e que eu traduzi e repropus, tal e qual, aos noviços do Paraguai, me deparei com uma afirmação que diz: “tantas pessoas podem me descrever toda a lógica do capítulo dez d’O Senso Religioso, (...) sem viver nem um minuto da maravilha da qual parte aquele capítulo; isto é, faz todo o percurso lógico contra o método descrito naquele capítulo”. Belíssimo!
Retomei o capítulo dez e, quando cheguei ao terceiro ponto – “Realidade providencial” –, li o seguinte: “não apenas o homem toma consciência de que esta Presença inexorável é bela, atrae possui uma ordem harmônica; constata também que se move segundo um desígnio que pode lhe ser favorável. Esta realidade contém, de modo estável, o dia, a noite, a manhã, a tarde, o outono, o inverno, o verão, a primavera; contém estabelecidos os ciclos nos quais o homem pode rejuvenescer, refrescar-se, manter-se, reproduzir-se... Esta é a característica de qualquer religião: a Providência”.
Amigos caros, vocês entendem onde está o problema que nem os estudantes da Bocconi, nem os Chicago Boys, conseguem mais intuir e, creio, mesmo poucos entre nós? Olho a minha vida e choro de comoção ao ler este capítulo, estas linhas que despertam, desde que eu tinha 7 anos, as grandes perguntas, as grandes exigências do meu coração. Meu Deus! Pensem naquilo que Giussani disse, em como, aqui, é evidente, mas também e ainda mais na minha e na vida de vocês. Então, o problema não é a saúde, a doença, a depressão, o dinheiro, o trabalho, o seguro desemprego, a aposentadoria, a família, os filhos. É somente um o problema: acredito ou não nesta realidade Providencial? Que significado tem e o que significa na minha vida este capítulo dez, que Carrón cita sempre?
Olhem para a minha casa religiosa: vivemos juntos duas enfermeiras, outras três pessoas com problemas diversos, que vêm da Europa e da América Latina, P.e Paolino, um ex-motorista, Padre Daf e eu, o chefe dos “deprimidos”. A cada dia almoçamos juntos, às 13h. Tem aqueles que falam sempre, quem não fala nunca, quem não suporta o outro, quem reivindica o próprio espaço, quem tem problemas de dieta e quem não... Em suma, um circo... não previsto pelo Código de Direito Canônico. Porém, para mim, espero sempre, a cada dia, que chegue o relógio marque as 13h, para comermos juntos. E de onde é que pode nascer minha alegria de almoçar junto?
1. da certeza de que somente Cristo reconhecido me permite esta graça, esta alegria de estar neste belíssimo circo. Tudo se joga na minha familiaridade com Cristo.
2. é o abraço de D. Gius que continua vivo em cada coisa que faço e vivo. Não posso mais viver sem vibrar por aquele abraço que se historiciza nesta grande comunidade na qual tem tudo o que é humano, da concepção à morte. E os milagres se vêem. (...) Hoje nasceu uma empresa de água mineral. (...) Quem é o empresário? Um amigo com problemas de depressão que veio da Itália, que, levando a sério o que disse Maria – a enfermeira de Milão que vive conosco, ajudando, com Anna, na clínica (...) –, prestou contas com a realidade e a realidade, sendo que é providencial, deu à luz esta empresa única no gênero, aqui no Paraguai. Vocês entendem o que quer dizer conseguir a autorização para usar o subsolo, quando mesmo no 3° mundo se estão cada vez mais incrementando as leis restritivas? Além do mais, estamos usando exatamente o gigantesco Acquífero Guarani.
Pois bem, aqui a Providência fez o milagre. E, além do mais, trata-se de uma água declarada ótima pelas faculdades químicas que possui e que nasce do maior acquifero do mundo, o Acquífero Guarani que abraça o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai. O meu amigo com “problemas”, graças à companhia deste circo, passou da lamentação à letícia, da situação de desocupado à de ocupado.
Em suma, o problema não são as leis do mercado, mas eu e Deus, eu e o Mistério, eu e a Divina Providência. Ver para crer. Como gostraia que vocês acreditassem no que eu estou contando para vocês! E esta é apenas a última iniciativa acontecida, nos últimos tempos, e que faz bem mesmo quando a pessoa está mal.
A realidade é mesmo providencial para o homem. É preciso apenas, como escreve Marta – a garota que veio para cá, para trabalhar gratuitamente com Anna, a outra jovem enfermeira –, que alguém nos indique a realidade
A realidade é sacramental, de tal forma que não tem nada que aconteça, mesmo a perda do emprego, que nos impeça de encontrar um caminho positivo.
Cheguei aqui como um pobre deprimido, que como muito esforço conseguia ficar de pé, estou sempre circundado de pessoas com problemas com este... e olhem o que acontece quando obedecemos à realidade, quando não lemos o capítulo dez d’O Senso Religioso ideologicamente. Não é preciso a Bocconi para resolver a crise econômica (e a Bocconi é importantíssima, heim?! Se tem quem quer ir, que vá!), mas é preciso gente fascinada, que pula da cadeira de alegria quando se dá conta que possui um instrumento como o capítulo dez d’O Senso Religioso.
Para mim, o segredo de tudo o que se cria aqui na clínica está neste capítulo. É como, hoje, quando, às 6h da manhã, o vice-presidente veio para rezar conosco e eu lembrei a ele que só estamos juntos para nos lembrar este capítulo e levá-lo a sério, como continuamente nos tem repetido, comovidamente, Padre Carrón. Partamos disso para viver a crise econômica e as coisas, de repente, começam a mudar: não tem trabalho aqui... pois bem, inventemos! Assim, nasceu a empressa de água mineral; assim, nasceu, recentemente, a creche, para acolher aquelas crianças cujas mães trabalham na rua, vendendo de tudo e não sabem onde colocar os seus pequenos... com a creche, elas os trazem de manhãzinha e o pegam de volta à noite... é a realidade que é sempre providencial. Cabe à minha liberdade e à de vocês reconhecê-la... o resto, é com ela, mesmo o aspecto econômico.
Com afeto
P.e Aldo

P.S.: Segue uma cópia do email que Maria me mandou no último dia 31 de janeiro:
olá!
Neste um mês que estou aqui, vi que você está usando um método novo comigo: você não é o tipo que se perde em mil discursos e palavrórios, mas é alguém que me diz “olha!”, e me aponta os lugares que são Sacramentais, como a clínica.
Quando fomos às Reduções, fiquei comovida quando vi que, como um pai, você nos fazia ver cada mínimo particular das ruínas, dizendo-nos que uma atenção assim, como tinham os jesuítas, só é possível por um amor a Cristo, e dizia: “olha que bonito! Olha que bonito!”... e si via a simplicidade com a qual você colhia a correspondência entre aquilo que tinha diante dos olhos e as exigências do seu coração, porque se não nos dissessem respeito aquelas ruínas, elas seriam apenas como um monte de pedras. Isto quer dizer “entender”. E, para mim, é desejável; mesmo que, às vezes, eu queira passar mais tempo com você, vejo que o modo com o qual me trata é mais educativo do que qualquer discurso.
Obrigada.
Maria

Cartas do P.e Aldo 10


Asunción, 05 de fevereiro de 2009.

Caros amigos,
olhar para a realidade, vivê-la, é sempre um estar em pé olhando para o Mistério, com aquela dramaticidade que lhe faz dizer continuamente “eu sou Tu que me fazes”. O Mistério de que a realidade é sinal e caminho me faz viver comovido e sempre como as “scolte di Asisi”. Por isso, vivo surpreso por tudo e cada coisa é um imprevisto, uma novidade.
Ontem de manhã, o Arcebispo de Asunción me telefonou: “Padre Aldo, preciso de um favor seu. O Arcebispo emérito Dom Santiago Benitez Avalo (nasceu no dia 1° de maio de 1926, na cidade de Piribebuy, no Paraguay, e faleceu no último dia 19 de março, na cidade de Asunción; ndt) está quase chegando na meta e gostaríamos de interná-lo na clínica São Riccardo Pampuri, pois acabou de se recupear de uma infecção hospitalar (estava internado no mais belo hospital de Asunción). Por favor, vocês têm um quarto?”. “Claro que sim, Eminência. Desde a construção da clínica o primeiro pensamento que tive foi que deveria ser para sacerdotes, religiosos, bispos, que nessa terra não têm nenhuma estrutura que os acolha. Além do mais, D. Benitez, além de ser um dos maiores bispos do Paraguai e da América Latina (padre conciliar; redator, com o Papa atual, do Catecismo da Igreja Católica; desempenhou papéis fundamentais no CELAM etc.), foi o padre que, há 20 anos, me acolheu e primeiro quis CL no Paraguai. Deus se serviu dele para acolher este filho pródigo mandado por Giussani e, agora, o filho pródigo acolhe o Pai que tanto se prodiga por ele. Bem, que venha D. Benitez”.
Imaginem a minha alegria: assistir àquele que me acolheu, aquele que foi, aqui, a dilatação do grande abraço de Giussani para mim! Que graça este hospital, onde todo tipo de pessoa é acolhida, amada, ajudada a morre em letícia. Vocês já se perguntaram por que São Francisco chamava “nossa santa morte corporal” ou “irmã morte”?
A realidade é o corpo de Cristo. Olhem esta foto: é um doente de AIDS que está se casando. Aconteceu no domingo passado, dia 1° de fevereiro. Logo depois que disse “sim” e colocou o anel no dedo de sua mulher, entrou em coma. Impressionante: SIM e, depois, perdeu os sentidos. Alguém poderia dizer: mas de que lhe serviu se casar naquelas condições? Amigos, o amor é eterno. O que acaba é o aspecto fenomênico da sexualidade, mas a sexualidade, dimensão constitutiva do eu e origem de cada relação, é para sempre. Não esqueçamos o dogma da Assunção...
O SIM deles não era ligado ao uso dos genitais, mas ao destino deles, depois de 35 anos de concubinato. De outra forma, não conseguirei entender porque todos os meus doentes, antes de morrer – aqueles que vivem em concubinato –, querem se casar, usando como motivo: “quero morrer em paz”. Deixo a vocês o desafio de entrar na profundidade dessa afirmação que, como nada mais, explica o que significa amar, o que significa o sacramento do Matrimônio. Para mim, a morte, o olhar para ela em cada instante, encará-la é, de fato, reviver a beleza, a majestade de cada detalhe da liturgia para os defuntos. Peço-lhes, experimentem pedir a um padre que lhes mostre como a Igreja educa para a morte. Para não falar dos cantos, da Missa de Requiem, no “Dies Irae” (hino composto, no século XIII, por Thomas de Celano; ndt) ou no “De Profundis” (trata-se do salmo 130 - 129 da Vulgata; ndt) etc. Como é bela a realidade, porque a liturgia é a realidade na sua máxima expressão. Sempre mais a clínica está se tornando um lugar de missão. Muitos dos internados são evangélicos que se afastaram da Igreja católica por diversos motivos, mas um motivo em particular se repete: não tem espaço para escutar o homem.
Obviamente que o simples pensamento de encontrar um padre ou um quadro de Nossa Senhora pendurado na parede ou a Eucaristia já cria neles um mal-estar... que, porém, dura poucos dias. O que acontece? Três vezes ao dia faço a procissão com o Santíssimo Sacramento, mas nos quartos onde estão evangélicos paro à porta e lhes dou uma bênção. Enquanto que, com os outros, não apenas os abençoo, mas me coloco de joelhos e beijo a cada um deles. Com os evangélicos, pelo contrário, coloco-me de joelhos e lhes dou um beijo, sem Jesus nas mãos. Ou seja, parto deles, da certeza de que a realidade é o corpo de Cristo. Parto deles, não de Cristo, para que consigamos nos entender... e, com o tempo, aquela realdiade que é o corpo de Cristo lhes conduz a pedir os Sacramentos, a beijar um santinho, a gritar pela Eucaristia. Como é verdade que a missão é a alegria de viver a realidade com a certeza de que ela é o corpo de Cristo.
Assim, vocês entendem o quanto me faz sofrer ler, nos jornais daqui, notícias a respeito de Eluana... sofro porque ela é o corpo de Cristo. E olho para Victor que está em condições muito piores: mas ele é o corpo de Cristo. Amigos, a batalha por Eluana é somente para que o capítulo décimo d’O Senso Religioso se torne nosso e de todos. De outra forma, cairemos na ideologia. Se vocês viverem aquele capítulo como comoção, poderão entender porque falo, olho a morte com certos olhos e desejo que todos a olhem assim, porque é a única maneira de olhar para a vida, para a realidade.
P.e Aldo

terça-feira, 31 de março de 2009

Cartas do P.e Aldo 09

Asunción, 06 de fevereiro de 2009.

Caros amigos,
Mesmo aqui os jornais deram a notícia do que está acontecendo na Itália, no caso de Eluana. Mesmo aqui eles falam a linguagem do mundo: a Itália, a Igreja divididas em duas – conservadores versus progressistas. A raiva é humana, e mesmo a dor: como a minha pátria, a pátria do Direito Romano etc., chegou a este ponto? Todos nós somos responsáveis pelo que está acontecendo no Corpo de Cristo. Todos nós que, como dizia Giussani, “nos envergonhamos de Cristo”. Sejamos sinceros: não é assim? Se penso no que se reduziu a nossa Presença, hoje, na realidade, no que é a realidade para nós, não posso não perguntar isso.
Carrón, em La Thuile (vilarejo no Vale da Aosta, na Itália, onde se realizam anualmente alguns encontros de Comunhão e Libertação; ndt), falava de “intimismo”. Aquelas palavras são, para mim, um soco no estômago. Olho para Eluana e revejo o capítulo décimo d’O Senso Religioso e me pergunto: mas, eu pulo da cadeira diante da comoção daquelas palavras, diante da realidade? E se não é assim, eu, você, nós somos claramente responsáveis pelo que está acontecendo com Eluana. O que quer dizer, para nós, que a “realidade é providencial”? Mas, o mundo no qual vivemos pula da cadeira pela alegria de nos ver vivendo, trabalhando no hospital?
Olho para a minha clínica, olho para o pequeno Victor, em coma irreversível, cheio de feridas na cabeça, sem crânio, que se alimenta apenas através de uma sonda, e não posso não me comover diante do Mistério palpável que ele é... ele que, inexplicavelmente, continua vivendo. Ele é, está ali, na sua caminha, está ali, me lembrando de que a “realidade é providencial”, tal como nos diz o capítulo décimo d’O Senso Religioso... e do meu coração sai um grito impressionante pelo Infinito: vem, Senhor Jesus... cada vez que eu penso em como nós nos movemos diante da pergunta: “fazemos ou não uma transfusão de sangue (sobre o que já lhes falei)? É possível melhorar a sua qualidade de vida mesmo que por um instante (o mundo diz que eu sou louco)?”. Então, resolvemos incomodar o Instituto João Paulo II, em Roma, para ter uma luz sobre o assunto... e me permito mostrar-lhes de novo a resposta deles.

Caro Padre Aldo,
Tomei conhecimento do caso do pequeno Victor, que você me encaminhou.
Não sendo um especialista em medicina, pedi o parecer de uma professora do nosso Instituto, médica e especialista em bioética.
Com ela e com um outro colega, o Padre Noriega, revisamos toda a problemática que você nos expôs.
Ao final, a Doutora Di Pietro propôs o seguinte parecer, que reflete a opinião amadurecida em conjunto, e que lhe dou a conhecer:
“Tomado conhecimento das condições clínicas de Victor Quinones, nascido no dia 14 de abril de 2007 e, atualmente, internado na Casa Divina Providência de Asunción (Paraguai), sustentamos que – esperando uma definição diagnóstica das causas da anemia progressiva – seja oportuno proceder com a hemotransfusão, a partir de uma via venosa central. No caso em exame, de fato, a hemotransfusão parece ser a intervenção mais significativa para melhorar a qualidade de vida do paciente ou, ao menos, não permitir uma piora do quadro, eliminando a presente sintomatologia. A progressiva redução da hemoglobina e da oxigenação poderia expor os tecidos – e particularmente o cérebro – a uma condição de baixa oxigenação, que agravaria as suas já comprometidas condições. Em um segundo momento, deve-se continuar com o tratamento previsto no protocolo clínico.”
Espero que este parecer seja uma ajuda para você.
Asseguro-lhe uma viva recordação na minha oração ao Senhor da Vida.
Um abraço
P.e Lívio

Isto porque o homem é um Mistério e eu, nós devemos nos render e reconhecê-Lo de joelhos. Dolorosamente, não sendo mais a realidade o ponto de partida, consigo entender (se é mesmo verdade) que tenha havido mesmo alguns padres de Udine que assinaram um apoio à morte de Eluana. Somente quem vive comovido diante da “realidade providencial”, quem está diante do fato, da realidade, pode viver adorando o Mistério de Eluana, de Victor.
Amigos, nunca, como agora, entendo que a nossa batalha é levar a sério o que Giussani nos tem dito através de Carrón. Partamos daqui e Eluana sairá vitoriosa, viva, qualquer que seja a sentença diabólica de quem ficou cego pela ideologia e perdeu a cabeça.
Para mim, olhando os meus doentes em coma há tempos, vejo a beleza de Eluana, que continuará viva na medida em que eu, nós estivermos comovidos diante do que nos diz Giussani no capítulo décimo d’O Senso Religioso.
Creiam-me, é preciso aprendê-lo de cor, pular da cadeira de tanta comoção, para que o caso Eluna não se repita outra vez.
Com afeto
P.e Aldo, Victor, Celeste, Cristina, Aldo etc.

sexta-feira, 27 de março de 2009

Cartas do P.e Aldo 06

Asunción, 10 de fevereiro de 2009.

Caros amigos,
Matamos Eluana e, agora, neste exato momento, morreu o pequeno André. Tinha 22 anos, pesava 18kg. Santo Hermano, o Coxo (o monge cirteciense Hermann der Lahme, nascido em 1013, na cidade de Altshausen, e falecido no ano de 1054, no mosteiro alemão de Reichenau, foi o compositor do Salve Regina; ndt), era saudável e “perfeito” se comparado com o meu filho. Além do mais, vivia como em estado vegetativo, se alimentando através de uma sonda. Morreu quando matamos Eluana.
Estou aqui, ao lado do seu cadáver. Será um problema colocá-lo em um caixão por causa do seu corpo todo deformado. Eu olho para ele... mas, hoje, os meus olhos e o meu coração estão sendo duramente provados, como o são todos os dias, quando vejo morrer todos os meus filhos que chegam aqui. Mais de 600 em quatro anos e meio. Só quem já perdeu um filho pode me entender. Ou melhor, só quem perdeu um filho, tendo o coração apaixonado por Cristo. É uma dor como a de Nossa Senhora aos pés da cruz, mas cheio de paz. Sinto o coração dobrado até mesmo fisicamente e, ao mesmo tempo, vejo as portas do Paraíso abertas. André morreu cercado por nós, que estávamos de joelhos ao seu lado, celebrando a Missa. A sua longa e dolorosa agonia... Os seus gemidos me sufocavam as palavras na garganta, durante a Missa. Ver, pela seiscentésima vez, um filho morrer... É sempre uma dor nova e profunda. É sempre reviver o Mistério da morte e da ressurreição de Cristo.
Muitos me perguntam: “mas, como você consegue resistir?”. O que responderia um pai apaixonado por Cristo? Eis aí o coração de tudo... É vivendo a realidade, a dor da realidade, a partir de um abraço como aquele de Giussani por mim, que transformamos a dor em uma porta que introduz mais à realidade, de forma a descobrir a beleza do Mistério que, mediante a morte, nos leva consigo para poder vê-Lo “face a face”.
O corpinho frio de André está aqui, ao meu lado. Caberia dentro de um saquinho. Mas, ele, André, é o meu Jesus nos braços de Nossa Senhora, aos pés da cruz. Que belo é este seu corpo, que tanto adorei na companhia dos meus amigos médicos e de todo o pessoal. Como gostaria que Eluana, neste momento, nos dissesse: “tenham a coragem de olhar na cara a realidade... retomem o 'Capítulo X' d’O Senso Religioso... é o único caminho para que não continuemos matando a realidade, o coração de cada pessoa”. Os meus filhos que morrem, as minhas crianças completamente mudas pela doença, todos com a sonda para se alimentar... são todas pequenas Eluanas... e me remetem ao Mistério feito carne neles. Eles são Jesus na cruz.
Mas, vocês entendem o que quer dizer, para mim, e por que escrevo para vocês desta maneira?... dessa maneira que pode cansar a quem não é uma pai, a quem nunca perdeu um filho... a quem é burguês. É possível estar diante da morte de Eluana da mesma maneira como estamos, normalmente, diante da realidade: distraídos.
A Virgindade é uma plenitude de paternidade e de maternidade, com uma ferida que se fechará apenas quando me encontrar definitivamente com Cristo. A Virgindade exige as feridas do coração e somente assim se torna a forma mais alta de dor, de amor e de alegria, de paternidade. Que Eluana nos perdoe o pouco amor à realidade, o pouco sentido do Mistério que vivemos... e que André nos conceda a graça de morrer como ele: na companhia de Jesus, Maria e José. A companhia de quem nos quer bem.
Confio sua alma às orações de vocês. Amanhã, o levarei comigo para o cemitério. Vem-me à mente aquela mulher de “Os Noivos” (romance de Alessandro Manzoni; ndt), que saia de casa com o pequeno corpo de seu filho morto pela peste, nos braços... É como o meu André, pequeno como ele, enterrado entre os meus outros filhos mortos, na companhia desse pobre pecador e dos meus amigos. Gostaria tanto que fosse sempre a maravilha a nos mover, porque só assim descobriremos que a realidade é Providencial... única possibilidade de entender como Eluana e André podem se tornar caminho para o reconhecimento do Mistério.
Termino esta carta e já é manhã. Dormi pouco e nem mesmo o sonífero serviu para me fazer dormir. Ou melhor, serviu para que a primeira coisa que eu fizesse esta manhã tenha sido confessar-me... porque, sendo o corpo místico de Cristo, todos somos responsáveis pelo que aconteceu a Eluana. “Deem-me quatro pessoas apaixonadas por Cristo e colocarei fogo na Itália”, dizia Santa Catarina de Sena. Deus queira que estejamos entre estes quatro.
Com afeto
P.e Aldo

sexta-feira, 13 de março de 2009

Cartas do P.e Aldo 01

Começo, hoje, a publicar algumas cartas do P.e Aldo Trento (sobre o qual escreverei mais tarde). Esta que publico, agora, é a tradução da que foi enviada no dia 04 de março de 2009.

Queridos amigos,
muitos me perguntam: "como você conseguiu se recuperar da depressão e como pode afirmar que a depressão é uma graça e não uma doença?".
1. a coisa é muito simples e dramática: levei a sério "O senso religioso" (obra do padre italiano Luigi Giussani, falecido em 2005, publicada em português pela editora Nova Fronteira; ndt) e, em particular as três premissas (realismo, razoabilidade e moralidade; descritas nos três primeiros capítulos da referida obra; ndt). Ali está tudo. Aprendi aquelas coisas de cor e as vivi mesmo nas vírgulas. Não tive necessidade de psiquiatras (a não ser por questões relativas aos medicamentos... mas, quando me disseram que tinha que ficar internado, abandonei-os). O constante confronto com a Escola de Comunidade (encontro catequético de Comunhão e Libertação; ndt) foi e é a minha única terapia.
2. obediência total à realidade, assim como Giussani (fundador do Movimento católico Comunhão e Libertação; ndt) e Carrón (atual responsável mundial do Movimento Comunhão e Libertação; ndt) nos explicaram: dizer pão ao pão e vinho ao vinho. Nada de sentimentalismos ou emoções... a realidade chama e ou a pessoa tem a humildade de responder ou se arruina. Se a depressão faz fugir da realidade, a pessoa deve, imediatamente, pedir que seja preso pela realidade.
3. o abraço de alguém a quem obedecer, como uma criança. Mas aqui, se a pessoa não tem a humildade da razão, nada acontecerá. Para mim, isto era e é claro, como clara é a luta para que o orgulho, que é o contrário da adesão à realidade, não vença em mim.
4. uma graça, porque tudo aquilo que me permite mendigar Cristo é uma graça. E, acredito, dada a cabeça dura que temos, que não existe nada mais eficaz do que a doença para nos fazer cair de joelhos. Certamente tem a beleza. Mas, tristemente, para nós, a beleza é só um esteticismo que não nos move, que não nos dobra. Então, bendita seja a dor.
No fundo o ponto é apenas um: ou Deus existe ou não existe. Mas, se existe tudo aquilo que nos remete a "eu sou Tu que me fazes" é uma graça. O meu hospital é, para mim, o maior milagre que tenho, porque mesmo os tumores de 1kg no rosto dos meus doentes se transformam em graça, isto é, em encontro com Cristo.
Amigos, ou estamos convencidos disto ou é melhor a anarquia. Ou Cristo ou nada
Ciao
P.e Aldo