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quinta-feira, 7 de julho de 2011

Cartas do P.e Aldo 200

Asunción, 6 de julho de 2011.

Caros amigos,
É impressionante como a Presença do Mistério se impõe na minha vida, na medida em que olho e vivo a realidade como sinal! Não existe coisa, circunstância, fato que não seja a evidência da desproporção entre o meu nada e o Mistério que a realidade me revela continuamente. Viver suspensos na certeza de sermos queridos agora, agora que posso estar mal ou estar bem, estar emocionalmente no alto ou embaixo, ser simpático ou não. Ser querido por um Outro, assim como sou, e olhar com ironia para os meus limites. Dar-me conta e me surpreender, a cada dia, com o imprevisto que desfaz os meus projetos, as minhas programações, fazendo-me ver como é a realidade de fato e descobrir como a Providência Divina me faz vibrar pelo cêntuplo evidente em cada instante da vida. Um cêntuplo que não apenas é um a mais de vida, de humanidade, mas também é um a mais econômico e também de ação.
Hoje, por exemplo, chegaram-me dois emails: um de Barcelona, e outro de Reggio Emilia.
O primeiro me comunicava a feliz notícia de que Jordi (o arquiteto-chefe da “Sagrada Família” de Barcelona) e  Sotoo – que alguns dias faz, num fim de semana, havia se retirado para rezar, meditar, estudar o projeto, na belíssima Basílica de Nossa Senhora de Montserrat – terminaram tanto os cálculos estruturais, como odesejo do conjunto de imagens esculpidas em pedra e que estarão na fachada da nova clínica. Trata-se de comentar, na pedra, a frase de São Paulo aos Romanos: “A natureza mesma geme as dores de parto, esperando a ressurreição do Filho de Deus”. Assim, a nova clínica terá como base a Capela toda incrustada em madeira revestida com o “pão de ouro” do Santíssimo Sacramento e, no ponto mais alto, a imagem de Cristo saindo da terra, como num parto, traz consigo (“arrastra”: em espanhol é mais profundo) toda a realidade na plenitude da vida, no paraíso que será a realidade na sua perfeição máxima. Por isso, em breve o braço direito de Sotoo, Manolo, virá para dar início à obra.
Hoje, Francisco morreu de AIDS, um jovem abandonado por todos, mas que morreu entre os nossos braços. Tudo isto só é possível porque, quando o eu é agarrado pelo Mistério, gera uma cadeia de relações, como me escreve de modo comovente esta minha amiga de Reggio Emilia:
Caro Padre Aldo,
Quando as suas cartas nos chegam, fico me perguntando como é que chegam exatamente quando precisamos! Obrigada.
Assim, queríamos que você soubesse que, entre as tantas, aquela do “testamento da viúva” (de 27 de março de 2011) nos comoveu tanto que nos sentimos cobrados e organizamos uma venda extraordinária de “cappelletti” (você sabe, somos de Reggio Emilia, e aqui, eles são bem quistos!) feitos em casa. Apresentamos a proposta aos nossos amigos e algumas mulheres nos encontramos (de todas as idades!) para fazê-los. Aquilo que foi arrecado foi enviado para você nesses dias, num depósito de 500 euros.
Não é muito, uma gota no mar de necessidade, mas nasce de uma comoção depois de outro, porque foi assim aquilo que vimos brotar deste nosso pequeno “movimento”, nascido de forma impetuosa, porque ficamos tocados pela simplicidade da pertença daquela mulher que, tendo encontrado “a verdade da sua vida”, quis deixar tudo o que tinha.
Obrigada! Em anexo vão algumas fotos do nosso trabalho e, abraçando-o, pedimos-lhe que se lembre de nós na sua oração, junto de todos aqueles que trabalharam conosco.
Maura Bezzecchi
Maura Caprari
P.S.: Da próxima vez que vier à Itália, será nosso convidado para comer “cappelletti” conosco.
Como podem ver, não se trata de dotes particulares ou de capacidades, mas tão somente de deixar-se tomar pelo Mistério que, numa das leituras da semana passada, na Missa, dizia, através de Moisés, ao povo judeu: “Tu és a minha propriedade”, “eu me apaixonei por ti, por ti que és o menor de todos os povos”.
Amigos, espero que vocês vivam juntos este tempo, comovidos, rezando, como dizia a oração da coleta do último domingo, “Deus, que por meio da humilhação do Teu Filho, levantou a humanidade decaída, concedei-nos a VERDADEIRA ALEGRIA, para que, libertos da escravidão do pecado, possamos atingir a plenitude da felicidade” (em espanhol, “a felicidade sem fim”), como que dizendo de plenitude em plenitude.
Padre Aldo.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

E houve grande alegria...

Bento XVI

Regina Coeli

Praça São Pedro
Domingo, 29 de maio de 2011.

Caros irmãos e irmãs!
O livro dos Atos dos Apóstolos diz que, depois de uma primeira perseguição violenta, a comunidade cristã de Jerusalém, excetuados os apóstolos, se dispersou nas regiões vizinhas e Felipe, um dos diáconos, chegou a uma cidade da Samaria. Ali, pregou Cristo ressuscitado, e o seu anúncio foi acompanhado de numerosas curas, de forma que a conclusão do episódio é muito significativa: “E houve grande alegria naquela cidade” (At 8, 8). A cada vez, ficamos tocados por esta expressão que, na sua essencialidade, nos comunica um senso de esperança; como se dissesse: é possível! É possível que a humanidade conheça a verdadeira alegria, porque aonde chega o Evangelho floresce a vida; como um terreno árido que, irrigado pela chuva, de repete se torna verde outra vez. Felipe e os outros discípulos, com a força do Espírito Santo, fizeram nos vilarejos da Palestina aquilo que Jesus havia feito: pregaram a Boa Nova e operaram sinais prodigiosos. Era o Senhor que agia por meio deles. Como Jesus anunciava a vinda do Reino de Deus, assim os discípulos anunciaram Jesus ressuscitado, professando que Ele é o Cristo, o Filho de Deus, batizando no seu nome e expulsando toda doença do corpo e do espírito.
“E houve grande alegria naquela cidade.” Lendo este trecho, é espontâneo que se pense na força curadora do Evangelho, que no curso dos séculos “irrigou”, como rio benéfico, tantas populações. Alguns grandes santos e santas levaram esperança e paz a cidades inteiras – pensemos em São Carlos Borromeu em Milão, no tempo da peste; na beata Madre Teresa em Calcutá; e em tantos missionários, cujos nomes são conhecidos por Deus, que deram a vida para levar o anúncio de Cristo e fazer florescer entre os homens a alegria profunda. Enquanto que os poderosos deste mundo buscavam conquistar novos territórios por interesses políticos e econômicos, os mensageiros de Cristo iam a todos os lugares com o objetivo de levar Cristo aos homens e os homens a Cristo, sabendo que somente Ele pode dar a verdadeira liberdade e a vida eterna. Ainda hoje a vocação da Igreja é a evangelização: seja das populações que não foram ainda “irrigadas” pela água viva do Evangelho, seja daquelas que, mesmo tendo antigas raízes cristãs, têm necessidade de nova seiva para fazer brotar novos frutos, e redescobrir a beleza e a alegria da fé.
Caros amigos, o Beato João Paulo II foi um grande missionário, como está documentado pela mostra que, durante esses dias, está montada em Roma. Ele lançou a missão ad gentes outra vez e, ao mesmo tempo, promoveu a nova evangelização. Confiemos uma e outra à intercessão de Maria Santíssima. A Mãe de Cristo acompanhe sempre e em todos os lugares o anúncio do Evangelho, para que se multipliquem e se alarguem no mundo os espaços nos quais os homens reencontrem a alegria de viver como filhos de Deus.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 29 de maio de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Homens, não super-heróis


Por Pigi Colognesi

Peço desculpas por voltar ao tema da Beatificação de João Paulo II; sei que muito já se escreveu sobre o tema. Mas, quando estávamos em Roma, naquele dia, o que vimos? Deixemos de lado, por um momento, os elementos, por assim dizer, acessórios: a multidão enorme, o desfile de autoridades eclesiásticas e civis, as vigílias de oração e as dificuldades para chegar e conseguir lugar.
No que consistiu, em si, a beatificação? Um gesto muito simples, quase prosaico. O bispo da diocese no qual o candidato beato morreu subiu os degraus que o separavam do sólio papal, tomou o microfone e disse ao Papa que a vida de um certo batizado de nome Karol Wojtyla merecia atenção e explicou o motivo, contando os principais momentos de sua vida. Em poucas palavras, podemos dizer que foi uma vida digna de ser recordada como uma vida bem sucedida, “beata”.
E o Papa respondeu que sim, que aquela vida de homem poderia mesmo ser chamada de beata. Fim da cerimônia de beatificação. Nesta troca simplicíssima de palavras, a Igreja demonstra, no entanto, uma coragem excepcional. Diz, com isso, que é possível, hoje em dia, sermos homens autênticos, verdadeiros; ser um homem para quem se possa olhar e afirmar, sem ironia, mas como surpresa: “Feliz dele”. O santo, no fundo, não é nada além disso: um homem verdadeiro.
Quem mais poderia ousar propor uma semelhante esperança para a nossa vida? Quando tudo está bem, nos recomendam que nos contentemos com a excelência em um ou outro setor da existência, nos sugerem que nos mantenhamos em forma e que tentemos “estar bem conosco mesmos”, que evitemos muitas complicações na busca de amor, justiça, verdade. O mundo, nos dizem, é uma selva, o tempo escorre inexoravelmente, as expectativas são sistematicamente desapontadas. Não é, de fato, possível ser verdadeira e completamente homens. E, diabos, nivelemos por baixo: o verdadeiro homem é uma quimera.
A Igreja, pelo contrário, anuncia exatamente que a humanidade realizada – em todas as suas dimensões, inclusive na exigência de eternidade e de misteriosa salvação do mal de que é feita cada existência – é possível. E não o diz como presságio ou como imperativo moral; ela o diz mostrando o exemplo no qual isto aconteceu: um homem com nome e sobrenome, que viveu nos mesmos anos em que eu vivi, que respirou a mentalidade, enfrentando as dificuldades, que sofreu os dramas que eu também vivi.
Em suma, a beatificação é um grande gesto de estima pelo homem. Confirmada pelo fato de que a plenitude do humano não é considerada como o êxito de uma habilidade particular da pessoa indicada como exemplo, mas de algo muito mais simples. “Feliz de ti porque creste” é a frase com a qual o evangelho descreve Maria, a fundadora da linhagem dos santos, e que Bento XVI usou para explicar a plenitude humana do novo beato.
Não se trata de nenhum heroísmo titânico, mas da simplicidade da fé. E quando aplaudimos diante da proclamação do novo beato, no fundo, estávamos exultando pela renovada e doce esperança quanto à mísera e grande humanidade de cada um de nós.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 9 de maio de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Postagens de hoje

Quanto mais abafada for a voz do nosso coração, mais vigorosamente ela deve insistir até se sobrepor ao tumulto dos pensamentos invasores e tocar o ouvido fiel do Senhor. 

... um inesperado percurso dentro de si, que todavia não se encerra numa introspecção sem saída, mas se abre sobre a história pessoal do protagonista, relendo-a sob uma nova luz.

Um entrevista com Fabrice Hadjadj sobre o ateísmo e o senso religioso.

Sair-se bem na escola seria, então, visto como expressão de e não oposição ao próprio desejo de satisfação. Para dizer em duas palavras: não se é obrigado a ir para a universidade para se ser feliz. Mas, se o deseja, isto é o que a realidade lhe pede para fazer.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Direito à felicidade

Miguel Reale Júnior*

Em fins do ano passado foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado a denominada Emenda Constitucional da Felicidade, que introduz no artigo 6.º da Constituição federal, relativo aos direitos sociais, frase com a menção de que são estes essenciais à busca da felicidade.
Assim, pretende-se alterar o artigo 6.º da nossa Carta Magna para direcionar os direitos sociais à realização da felicidade individual e coletiva. O texto sugerido é o seguinte: "Art. 6.º - São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".
Segundo o senador Cristovam Buarque, a mudança na lei vai forçar os entes públicos a garantir condições mínimas de vida aos cidadãos, ao lado de se "humanizar a Constituição brasileira para tocar o coração com a palavra felicidade".
Igualmente, na Câmara dos Deputados foi apresentada emenda constitucional pela deputada gaúcha Manuela D"Ávila, cuja justificativa é "elevar o sentimento ou estado de espírito que, invariavelmente, é a felicidade, ao patamar de um autêntico direito".
Pondera-se, também, que a busca individual pela felicidade pressupõe a observância da felicidade coletiva. Há felicidade coletiva quando são adequadamente observados os itens que tornam mais feliz a sociedade. E a sociedade será mais feliz se todos tiverem acesso aos básicos serviços públicos de saúde, educação, previdência social, cultura, lazer, dentre outros, ou seja, justamente os direitos sociais essenciais para que se propicie aos indivíduos a busca da felicidade.
Na justificativa da emenda, refere-se como exemplo o artigo 1.º da Declaração de Direitos da Virgínia, de 12 de junho de 1776, no qual se diz: "Art.1.º - Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança".
Igualmente, lembra-se o Preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em cujo final se afirma que a declaração é feita para lembrar aos homens os seus direitos naturais, inalienáveis e sagrados, e também a fim de que as reclamações dos cidadãos, dali em diante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.
Pensa-se possível obter a felicidade a golpes de lei, em quase ingênuo entusiasmo, ao imaginar que por dizer a Constituição serem os direitos sociais essenciais à busca da felicidade se vai, então, forçar os entes públicos a garantir condições mínimas de vida para, ao mesmo tempo, humanizar a Constituição. Fica por conta do imaginário, sempre bem recebido em nosso país, a ilusão de que é concretamente importante "elevar o sentimento ou estado de espírito que invariavelmente é a felicidade ao patamar de um autêntico direito".
A menção à felicidade era própria da concepção de mundo do Iluminismo, quando a deusa razão assomava ao Pantheon e a consagração dos direitos de liberdade e de igualdade dos homens levava à crença na contínua evolução da sociedade para a conquista da felicidade plena sobre a Terra. Os espíritos estavam dominados por grande otimismo em face do desfazimento da opressão do Ancien Régime e da descoberta dos direitos do homem. Trazer para os dias atuais, depois de todos os percalços que a História produziu para os direitos humanos, a busca da felicidade como fim do Estado de Direito é um anacronismo patente, sendo inaceitável hoje a inclusão de convicções apenas compreensíveis no irrepetível contexto ideológico do Iluminismo.
Confunde-se nessas proposições bem-intencionadas, politicamente corretas, o bem-estar social com a felicidade. A educação, a segurança, a saúde, o lazer, a moradia, e outros mais, são considerados direitos fundamentais de cunho social pela Constituição exatamente por serem essenciais ao bem-estar da população no seu todo. A satisfação desses direitos constitui prestação obrigatória do Estado visando dar à sociedade bem-estar, sendo desnecessária, portanto, a menção de que são meios essenciais à busca da felicidade para se gerar a pretensão legítima ao seu atendimento.
O povo pode ter intensa alegria, por exemplo, ao se ganhar a Copa do Mundo de Futebol, mas não há felicidade coletiva, e sim bem-estar coletivo. A felicidade é um sentimento individual tão efêmero como variável, a depender dos valores de cada pessoa.
Em nossa época consumista, a felicidade pode ser vista como a satisfação dos desejos, muitos ditados pela moda ou pelas celebridades, como um passeio pelo Rio Nilo. A felicidade pode ser a obtenção de glórias, de poder, de dinheiro, com a sofreguidão de que a satisfação de hoje empurra a um novo desejo amanhã. A felicidade pode residir no reconhecimento dos demais, por vezes importantes para o juízo que se faz de si mesmo. Ter orgulho, ter sucesso profissional podem trazer felicidade, passível de ser desfeita por um desastre, uma doença.
Também a felicidade pode advir, como propõe o budismo, de estar liberto dos desejos, ou por ficar realizado apenas com a satisfação dos desejos acessíveis. A felicidade é possível pela perda do medo das perdas, por ter harmonia com a natureza, graças ao conformismo com as contingências, pela imersão na vida espiritual e pela contemplação, na dedicação aos necessitados, bem como em vista de uma relação afetiva.
Assim, os direitos sociais são condições para o bem-estar, mas nada têm que ver com a busca da felicidade. Sua realização pode impedir de ser infeliz, mas não constitui, de forma alguma, dado essencial para ser feliz.

* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 5 de fevereiro de 2011.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Cartas do P.e Aldo 178








Asunción, 26 de janeiro de 2011.

Caros amigos,
Olhem como elas são felizes, e no entanto todos têm um passado de violência. Olhem para Vitória: que olhos belíssimos! E foi abandonada pela mãe tão logo nasceu... encontrada perto de uma tumba.
Por que são felizes? Porque o DNA delas é totalmente definido por “eu sou Tu que me fazes”. Têm um monte de problemas, mas são felizes porque amados. É a surpresa até mesmo para a psicóloga que caminha conosco.
Ela fala de contenção, acerca do comportamento delas, eu falo de comoção, de olhar como aquele que Zaqueu encontrou. Não sei se já lhes disse, mas as minhas crianças em idade escolar passaram todas de ano com média 4 (a nota máxima, aqui, é 5).
Amigos, a vida é uma pertença, e não uma preocupação ou uma estratégia.
Assim, quando pintam o sete e a paciência chega ao limite, explode aquela certeza – “eu sou Tu que me fazes” – e olhar se torna maravilhamento e retoma o caminho.
Padre Aldo

domingo, 28 de novembro de 2010

A arte será capaz de nos dar aquela “única felicidade possível” de Elsa Morante?


Por Uberto Motta 

Excessivo e totalizante: dois adjetivos bastariam para definir o mundo narrativo de Elsa Morante (1912-1985). Uma mulher para quem escrever era a coisa mais séria da vida, como forma de participação absoluta na energia e nas cores da realidade. 
A sua maior glória repousa em quatro títulos aos quais se doou inteira e se transfundiu: Menzogna e sortilegio (1948), L’isola de Arturo (1957), La Storia (1974) e Aracoeli (1982) [dos quatro títulos, apenas A ilha de Arturo foi traduzido para o português pela editora Berlendis & Vertecch; ndt]. Falou-se de “incessante metamorfose”. Cada livre, diferente do anterior, foi cuidado e amado como se fosse o último possível, o êxito de uma concentração firme e total. Os leitores, geralmente, ficam seduzidos ou desgostosos; enquanto que os críticos, por muito tempo, olharam-na com presunção ou antipatia. E, ainda hoje, há alguma dificuldade em, de certa maneira, reconhecer sua grandeza.
No centro da sua aventura, biográfica e literária, há uma ferida. A tragédia foi dupla e concomitante. Em 1962, Elsa perdeu primeiro o seu caríssimo amigo, o jovem pintor norte-americano Bill Morrow (que morreu de repente, pulando de um arranha-céu); depois, perdeu o marido, Alberto Moravia, que a abandonou. Numa página de diário, reconhece em si toda a extensão do drama do homem e, disso, consegue retirar a força de resgate, como tensão irreprimível para a fraternidade: “Dois anos depois daquele 30 de abril. E eu continuo vivendo como se estivesse viva. Em certos momentos, eu mesma me esqueço do horror. Uma consolação chega, como se eu te encontrasse em outras coisas. Mas, o choque é advertido de novo, de repente. [...] O único remédio para chegar ao fim humanamente é não ser eu, mas todos os outros, todo o resto. Não separar. Ser todos os outros passados presentes futuros vivos e mortos. Assim, posso ser também tu. [...] Única felicidade possível: não ser si mesmo, mas todos”.
A partir desse rasgo, Morante renasceu diferente. Amadureceu e cresceu. Despertou-se nela uma consciência adormecida, e descobriu o valor do empenho generoso, do testemunho benéfico.
No dia 19 de fevereiro de 1965, no Teatro Carignano de Turim, ela proferiu uma conferência – A favor ou contra a bomba atômica. O mesmo texto foi lido em Roma, no Teatro Eliseo, e em seguida foi editado no L’Europa Letteraria [revista de crítica literária fundada por Giancarlo Vigorelli, em 1960; ndt]. A afirmação que dá início ao texto é radical: “Dir-se-ia que a humanidade contemporânea experimenta a oculta tentação de se desintegrar”. E a proliferação ameaçadora das armas expressa a vontade inconsciente contra a qual a poesia se opõe.
“A arte é o contrário da desintegração. Porque a razão própria da arte, a sua justificação, é esta: impedir a desintegração da consciência humana, no seu cotidiano, e seu uso exaustivo e alienante na relação com o mundo; restituir-lhe continuamente, na confusão irreal e fragmentária dos relacionamentos externos, a integridade do real, ou em uma palavra, a realidade. [...] A pureza da arte não consiste em evitar aqueles motes da natureza que a lei social censura como perversos ou imundos; mas em reacolhê-los espontaneamente dentro da dimensão real, onde se reconhecem naturais e, portanto, inocentes. A qualidade da arte é libertadora, e portanto, nos seus efeitos, é sempre revolucionária. Qualquer momento da experiência real e transitória se torna, na atenção poética, um momento religioso”. Por trás de semelhantes palavras, que honram quem as pensou e pronunciou, é lícito, hoje, distinguir a herança mais sincera, a lição mais resistente de Elsa Morante.
Assim, em 1974, apareceu o romance La Storia: primeiro, acolhido com clamor (e sucesso, se se prescindir dos pronunciamentos, a favor ou contra, da crítica oficial), e depois caiu no silêncio. Morante abandonou o estilo alado, complexo e aristocrático dos exórdios, e começou a perseguir um ideal novo, de “narração democrática”. Elsa escreveu “como se os personagens tivessem a pena nas mãos” (C. Cases). Nele, ela se move livremente entre os dialetos, o italiano popular e a linguagem infantil (da inocência, da interioridade e do isolamento). Desce do sublime em direção ao humilde, para exprimir sua solidariedade com os pobres, com os necessitados. Explica-se, nesta ótica, a citação evangélica adotada como epígrafe do romance. Escondeste estas coisas aos doutos e aos sábios, e as revelaste aos pequenos... porque, assim, foi do teu agrado. Foi esta, para Elsa, a única (verdadeira) consolação possível.

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 25 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

15 de outubro de 1922

Há 88 anos nascia, em Désio, na Itália, Luigi Giussani...


... para quem a educação é algo que acontece num encontro, na relação com um mestre que acompanha o aluno na sua abertura original para a realidade, que desperta a consciência de si como exigência de beleza, verdade, justiça, bem, felicidade e que sustenta a sua busca por um significado para a vida que seja unitário e completo.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Italo Calvino: “o humano chega aonde chega o amor”


Por Alessandro Banfi

Há vinte cinco anos atrás morria, em Siena, o escritor italiano. A sua abordagem científica da realidade, a poderosa fantasia e o registro envolvente o tornaram célebre. Resta o lamento de não o ter encontrado...

Era uma vez um escritor que nos deu o gosto de ler Ariosto [trata-se de Ludovido Ariosto (1474-1533), poeta italiano; ndt], de contar uma fábula, de sonhar com uma existência inteira passada em uma árvore. Mas que também nos permitiu o gosto da escrita da prosa em hendecassílabos. Chamava-se Italo Calvino, nome fascinante e autêntico, apesar das aparências. Morreu há vinte cinco anos atrás num hospital de Siena, deixando-nos o incômodo de não termos lido suficientemente sua literatura arguta. Sua crítica literária, mas também sua narrativa. E, aqui, não queremos dar um juízo de valor, juízo que, por tanto tempo, não chegou a esclarecer e que ainda divide os críticos. Foi um grande escritor, mas entre os menores do século XX, para citar o que Geno Pampaloni [(1918-2001), jornalista e escritor italiano; ndt] escreveu, quando Calvino faleceu? Ou será que ele foi um gênio anti-manzoniano absoluto, como Goffredo Parise [(1929-1986), jornalista e escritor italiano; ndt] sustentou numa visão compartilhada, certamente ainda hoje, por seu amigo Eugenio Scalfari [jornalista, escritor e político italiano nascido em 1924; ndt], fundador de La Repubblica [jornal italiano que circula desde 1976; ndt]?
É difícil entrar nessa disputa com uma opinião definitiva. Para mim, leitor apaixonado, Calvino é, antes de mais nada, um amante da palavra e do mecanismo narrativo. Um autor racional e iluminista, sempre em busca da verdade, quase científica. Um empirista, para quem os sentidos contam, quando escancaram para a imaginação. Antes e não obstante toda teorização e superestrutura. Como os seus pais amaram a natureza através da botânica, assim também ele, desde jovem, descobriu na linguagem e no relato a chave, quase científica, para redimir a realidade, para atenuar suas dores e evitar suas armadilhas. Para buscar, na nossa vida labiríntica e objetivamente irônica, o percurso para chegar à completude. Passando através do neo-realismo de A trilha dos ninhos de aranha até chegar à fábula urbana do Marcovaldo. Com Calvino é possível ir à lua, como acontece com Ariosto, mas se atravessa também a história, como acontece com Manzoni [Alessandro Manzoni (1785-1873), escritor, poeta e dramaturgo italiano; ndt].
Certamente, a impressão que fica é que tanta literatura, nele, tenha mantido a vida distante. Aquela vida violenta e verdadeira de todos os dias. Mas, não é assim. Da aparência gelada, da leveza ariostesca, passa-se, às vezes, para um registro autenticamente envolvente e emotivo que coloca a questão no centro. Ele escreve em O dia de um escrutinador: “O humano chega aonde chega o amor”. E é, de fato, assim: a sua abordagem racional, científica da realidade convive com uma poderosa fantasia. Resolve-se na imaginação. O seu aparente distanciamento emotivo não cancela o coração, mas, pelo contrário, frequentemente o repropõe como instância última no final de uma trajetória. Como acontece para todos os gênios (Calvino, junto com Primo Levi, é o escritor italiano do século XX mais conhecido no mundo), o seu relato, ao final, coloca uma pergunta sobre a verdade. A sua busca, basta pensar na coletânea estupenda das Fábulas Italianas, chega a colocar a questão da identidade do homem e da sua comparação com o destino. A sua oscilação entre a prosa e a poesia (mesmo no seu Se um viajante numa noite de inverno) leva ao núcleo duro da narração e da língua. E, no fundo dela, assim como nos primeiros versículos do Gênesis e do Evangelho de João, há uma profundidade e uma luz que dizem respeito ao relacionamento misterioso e, ao mesmo tempo, histórico entre o ser humano e Deus. É como para Primo Levi [(1919-1987) escritor italiano; ndt]: resta-nos o lamento de não termos falado com ele, de não o termos encontrado ou de não o termos feito encontrar alguém que lhe pudesse comunicar, de verdade, a única histórica que realmente conta. A grande narração que, hoje, nos salva. Mas, isso vale para todos, todos os dias. Mesmo para nós e para o nosso vizinho no metrô, que sentimos como estranho e a quem não temos a coragem de dizer: vem e vê, há alegria neste mundo.

* Extraído de Tracce.it, do dia 21 de setembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sábado, 2 de outubro de 2010

Precisamos do coração de Camus, rebelado contra a “mortalidade” do mundo


Por Laura Cioni

No último texto de Albert Camus, O primeiro homem, encontrado entre os destroços do carro em que morreu, o escritor reconstrói episódios da sua infância na Algéria. De fato, seu pai, morto durante a Primeira Guerra mundial, está ainda presente nas lembranças de quem o tinha conhecido na Algéria. Camus narra episódios da vida cotidiana, a infância com a avó, a pobreza, a escola e as amizades, as tradições, os sonhos, como nesse trecho sobre o corte dos cabelos:
A mãe de Jacques, tinha voltado para casa, numa noite, fresca e rejuvenecida e com os cabelos cortados, afirmando, com uma alegria falsa, atrás da qual transparecia uma inquietude, ter querido fazer-lhes uma surpresa. Com efeito, foi uma surpresa para a avó que se limitou apenas a dizer, diante do seu filho, que agora ela parecia uma puta. E, em seguida, voltou para a cozinha. Catherine parou de sorrir, e em seu rosto apareceram toda a miséria e o cansaço do mundo. Depois, cruzou o olhar do filho, tentou ainda um sorriso, mas os lábios tremeram e correu, chorando, para o seu quarto. Jacques se aproximou dela. “Mamãe, mamãe”, disse, tocando-a timidamente com uma mão. “Você está muito bonita assim”. Mas, ela não o tinha escutado e, com um gesto da mão, lhe pediu para deixá-la só. E o menino recuou até à porta e, encostado no umbral, começou, por sua vez, a chorar de amor e de impotência.
Camus levanta também o véu sobre o seu secreto desejo de vida:
aquele coração angustiado, ávido de vida, rebelado contra a ordem mortal do mundo, continuava a bater com a mesma força contra o muro que o separava do segredo de cada vida, com a vontade de ir mais adiante, de ir além, e de saber, antes de morrrer, saber para finalmente ser, uma única vez, um segundo apenas, mas para sempre.
Anos antes, ele tinha trabalhado por muito tempo na elaboração de Calígula. Os intelectuais contemporâneos reconheceram, atrás da máscara do imperador louco, a figura de Hitler, e é bem visível em outros personagens a consciência lúcida de quem, naquele tempo, ainda que consciente da tirania, não soube se opor a ela, por causa da fragilidade da própria identidade cultural.
A esse respeito, é bastante significativa a breve passagem na qual o filósofo Cherea declara aos senadores, então decididos à conspiração para eliminar Calígula: “Devo reconhecer que este homem exerceu sobre mim uma influência inegável.  Isso me obriga a pensar. Obriga-me inteiro a pensar”. Ou seja, a tirania obriga o pensamento a se dar conta de um processo de cancelamento da liberdade e a desmascará-lo.
Mas, por mais interessante que seja, esta leitura não faz justiça a um texto que apresenta outras sugestões. A célebre cena na qual Calígula exprime o excruciante desejo de felicidade, pedindo a lua a seu confidente, Helicon, sintetiza com eficácia outros traços da figura do imperador: a lucidez, a melancolia, uma vergonhosa ternura, o lamento pelo amor perdido, a assustadora solidão, o desencanto e a ferocidade.
Outro ponto revela a lúcida análise de Cherea, que desmascara o perigo mortal da unidade entre poesia e poder, elementos que levam o homem que pode fazer o que quer à total desumanidade.
Através de Calígula, pela primeira vez na história, a poesia provoca a ação e o sonho a realiza. Ele faz aquilo que sonha fazer. Ele transforma a sua filosofia em cadáveres. Vós dizeis que ele é um anárquico. Ele crê ser um artista. Mas, no fundo, não há diferença. Eu estou convosco, com a sociedade. Não porque me agrade. Mas, porque não sou eu que tenho o poder, portanto a vossa hipocrisia e a vossa vileza me dão maior proteção – maior segurança – do que as melhores leis. Matar Calígula é o mesmo que me dar segurança. Enquanto Calígula estiver vivo, eu estarei à completa mercê do acaso e do absurdo, ou seja da poesia. Vejo no vosso rosto ressentido o suor do medo. Eu também estou com medo. Mas, eu tenho medo daquele lirismo desumano, comparado com o qual, a minha vida não é nada. É este o monstro que nos devora, eu vos digo. Se houver um único indivíduo puro, no bem e no mal, o nosso mundo estará em perigo.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 29 de setembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 22 de agosto de 2010

Comentário ao evangelho do dia

1ª Leitura - Is 66,18-21
Assim diz o Senhor: Eu que conheço suas obras e seus pensamentos, virei para reunir todos os povos e línguas; eles virão e verão minha glória. Porei no meio deles um sinal, e enviarei, dentre os que foram salvos, mensageiros para os povos de Tarsis, Fut, Lud, Mosoc, Ros, Tubal e Javã, para as terras distantes, e, para aquelas que ainda não ouviram falar em mim e não viram minha glória. Esses enviados anunciarão às nações minha glória, e reconduzirão, de toda parte, até meu santo monte em Jerusalém, como oferenda ao Senhor, irmãos vossos, a cavalo, em carros e liteiras, montados em mulas e dromedários - diz o Senhor -, e como os filhos de Israel, levarão sua oferenda em vasos purificados para a casa do Senhor. Escolherei dentre eles alguns para serem sacerdotes e levitas, diz o Senhor.

2ª Leitura - Hb 12,5-7.11-13
Irmãos: Já esquecestes as palavras de encorajamento que vos foram dirigidas como a filhos: "Meu filho, não desprezes a educação do Senhor, não te desanimes quando ele te repreende; pois o Senhor corrige a quem ele ama e castiga a quem aceita como filho". É para a vossa educação que sofreis, e é como filhos que Deus vos trata. Pois qual é o filho a quem o pai não corrige? No momento mesmo, nenhuma correção parece alegrar, mas causa dor. Depois, porém, produz um fruto de paz e de justiça para aqueles que nela foram exercitados. Portanto, "firmai as mãos cansadas e os joelhos enfraquecidos; acertai os passos dos vossos pés", para que não se extravie o que é manco, mas antes seja curado.

Evangelho - Lc 13,22-30
Naquele tempo: Jesus atravessava cidades e povoados, ensinando e prosseguindo o caminho para Jerusalém. Alguém lhe perguntou: "Senhor, é verdade que são poucos os que se salvam?". Jesus respondeu: "Fazei todo esforço possível para entrar pela porta estreita. Porque eu vos digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão. Uma vez que o dono da casa se levantar e fechar a porta, vós, do lado de fora, começareis a bater, dizendo: 'Senhor, abre-nos a porta!'. Ele responderá: 'Não sei de onde sois'. Então começareis a dizer: 'Nós comemos e bebemos diante de ti, e tu ensinaste em nossas praças!'. Ele, porém, responderá: 'Não sei de onde sois. Afastai-vos de mim todos vós que praticais a injustiça!'. Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac e Jacó, junto com todos os profetas no Reino de Deus, e vós, porém, sendo lançados fora. Virão homens do oriente e do ocidente, do norte e do sul, e tomarão lugar à mesa no Reino de Deus. E assim há últimos que serão primeiros, e primeiros que serão últimos".

Comentário feito por Santo Anselmo (1033-1109)
monge, bispo, Doutor da Igreja 

Que grande felicidade é possuir o Reino de Deus! Que grande alegria para ti, coração humano, pobre coração habituado ao sofrimento e esmagado pela dor, quando usufruíres de uma felicidade tal. [...] E contudo, se outra pessoa, alguém que amasses como a ti mesmo, participasse de felicidade idêntica, a tua alegria redobraria, porque te alegrarias tanto por ti como por ele. E se dois ou três, ou muitos mais, possuíssem essa mesma felicidade, sentirias por cada um deles a mesma alegria que sentes por ti próprio, porque amarias cada um deles como a ti mesmo. Assim, pois, nesta plenitude de amor que unirá os numerosos bem-aventurados, em que ninguém amará os outros menos que a si mesmo, cada um usufruirá da felicidade dos outros como da própria. E o coração do homem, incapaz de conter a própria alegria, será imerso no oceano de tão grandes e numerosas beatitudes. Ora, como sabeis, cada um se alegra com a felicidade dos outros na medida em que os ama; assim, nesta beatitude perfeita em que cada um amará a Deus incomparavelmente mais do que a si mesmo e a todos os outros, a felicidade infinita de Deus será para todos uma fonte de incomparável alegria. 

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Felicidade

"Quem se contenta com o que tem e aceita o fato incontornável de que sempre lhe faltará algo, é muitíssimo mais feliz do que aquele que tem mais, porém se preocupa com o que lhe falta. Isto porque não podemos aproveitar ao máximo o que somos se o nosso coração está sempre dividido entre o que somos e o que não somos."
Thomas Merton

sábado, 31 de julho de 2010

Cícero ensina aos nossos políticos como aspirar à felicidade...

Por Laura Cioni

Num recente artigo publicado em Vita e Pensiero, Mary Ann Glendon expôs a concepção política de Cícero, exaltando a sua figura e redimensionando os juízos frequentemente maldosos sobre suas incoerências. A estudiosa evidencia, com seu artigo, a contribuição dada pelo orador romano para a manutenção da res publica em tempos em que esta se voltava perigosamente para a ditadura. A carreira de Cícero passou por frequentes e imprevistas mudanças de rota por prudência, segundo alguns, por oportunismo, segundo outros. Ele mesmo, em seu epistolário, reconhece ter falhado muitas vezes no viver à altura da sua visão política. Visão que é exposta com precisão bastante singular em uma obra que teve muito sucesso até a Idade Média e que se tornou o ponto alto da leitura em escolas: o Sonho de Scipião, última parte do vasto e em parte perdido Sobre a República. Trata-se de uma reflexão refinada sobre o homem, de uma imagem de indivíduo e de sociedade bastante empenhativa e atraente.
Cícero retoma a ideia platônica do corpo encarcerado na alma e com uma concretude bastante romana não desvaloriza o empenho na colaboração com uma vida o mais feliz possível na terra. Rejeita, por exemplo, o recurso ao suicídio como meio hipotético para alcançar a felicidade, por força do munus que cada homem recebe do deus que rege o universo: tal palavra, em latim, tem o duplo significado de dom e de tarefa a ser cumprida.
Ele afirma que não apenas os filósofos, uma vez que retornam ao deus que os gerou, podem viver felizes, mas todos aqueles que ajudaram, conservaram ou fizeram crescer a res publica também tem este privilégio. A sua obra é voltada para a classe dirigente de Roma, para as grandes famílias de senadores e de militares, num contexto que era, geralmente, incrédulo quanto a existência da vida ultraterrena. Cícero acrescenta que, para conquistar a imortalidade, é preciso cultivar a justiça e a piedade.
O romanos definem a justiça com expressões lapidares. Algumas podem ser lidas na fachada do tribunal de Milão: sumus ad iustitiam nati, neque opinione sed natura constitutum est ius (nascemos para a justiça e o direito foi estabelecido não pelo pensamento, mas pela natureza); iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribure (as normas do direito são estas: viver honestamente, não ultrajar o outro, dar a cada um o que é seu).
Por pietas o mundo latino entende o vínculo reconhecido que cada homem tem com a origem da vida, isto é, com os pais, com a pátria, com os deuses; ela gera atos que vão além do vínculo jurídico. Não cabe aqui se perguntar se e em que medida tais palavras foram honradas pelo mundo romano. É mais útil levar em consideração o fato de que elas foram cunhadas com um significado que, em sua grande parte, permaneceu o mesmo no nosso modo de pensar.
Outra palavra de Cícero muitas vezes repetida na obra, glória, induz a alguns esclarecimentos. Com essa palavra se indica certamente o sucesso pessoal, mas além disso a potência mesma da res publica de que os romanos são tão orgulhosos, porque de modo diverso todos contribuem para ela. E no entanto, no texto, o domínio romano que se estende por vastos territórios, visto da perspectiva do céu, é pequeno, risível quando se pensa na vastidão do universo e das terras ainda desconhecidas. Quanto à glória pessoal, Cícero escreve: “Diz-me sobre que valor se apoia a tua glória humana? Pode durar algo mais do que a pequena parte de um único ano? Se tu quiseres olhar mais para cima não deves te colocar sob a mercê das fofocas da massa nem deves medir teu destino a partir dos elogios que obténs dos homens. A bondade deve atingir, por si mesma, o próprio incentivo para a verdadeira glória”.
Uma concepção que, embora muitas vezes ignorada, produziu frutos duradouros. 

* Extraido do IlSussidiario.net, do dia 28 de julho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Audiência Geral - São Boaventura (3)

Papa Bento XVI

Quarta-feira, 17 de março de 2010

São Boaventura de Bagnoregio

Queridos irmãos e irmãs
Esta manhã, continuando a reflexão de quarta-feira passada, gostaria de aprofundar convosco outros aspectos da doutrina de São Boaventura de Bagnoregio. Ele é um teólogo eminente, que merece ser posto ao lado de outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo, São Tomás de Aquino. Ambos perscrutaram os mistérios da Revelação, valorizando os recursos da razão humana, naquele diálogo fecundo entre fé e razão que caracteriza a Idade Média cristã, fazendo dela uma época de grande vivacidade intelectual, e também de fé e de renovação eclesial, muitas vezes não suficientemente evidenciada. Eles são irmanados por outras analogias: tanto Boaventura, franciscano, como Tomás, dominicano, pertenciam às Ordens Mendicantes que, com o seu vigor espiritual, como recordei em catequeses precedentes, renovaram no século XIII a Igreja inteira e atraíram muitos seguidores. Ambos serviram a Igreja com diligência, com paixão e com amor, a ponto de terem sido convidados a participar no Concílio Ecumênico de Lion em 1274, o mesmo ano em que vieram a falecer:  Tomás, enquanto ia a Lion, Boaventura durante a realização do mesmo Concílio. Também na Praça de São Pedro as imagens dos dois Santos são paralelas, colocadas precisamente no início da Colunata, a partir da fachada da Basílica Vaticana:  uma na Ala da esquerda, e a outra na Ala da direita. Não obstante todos estes aspectos, podemos ver nos dois grandes Santos duas abordagens diversas da pesquisa filosófica e teológica, que mostram a originalidade e a profundidade de pensamento de um e do outro. Gostaria de mencionar algumas destas diferenças.
Uma primeira diferença diz respeito ao conceito de teologia. Ambos os doutores perguntam se a teologia é uma ciência prática ou uma ciência teórica, especulativa. São Tomás reflete sobre duas possíveis respostas contrastantes. A primeira diz:  a teologia é reflexão sobre a fé, e a finalidade da fé é que homem se torne bom, viva segundo a vontade de Deus. Portanto, a finalidade da teologia deveria ser a de guiar pelo caminho recto, bom; por conseguinte, no fundo, ela é uma ciência prática. A outra posição diz:  a teologia procura conhecer Deus. Nós somos obra de Deus; Deus está acima do nosso agir. Deus realiza em nós o agir justo. Por conseguinte, trata-se substancialmente não do nosso fazer, mas de conhecer Deus, não do nosso agir. A conclusão de São Tomás é: a teologia implica ambos os aspectos: é teórica, procura conhecer Deus cada vez mais, e é prática: procura orientar a nossa vida para o bem. Mas há um primado do conhecimento:  sobretudo, temos que conhecer Deus, depois vem o agir segundo Deus (cf. Summa Theologiae, ia, q. 1, art. 4). Este primado do conhecimento em relação à prática é significativo para a orientação fundamental de São Tomás.
A resposta de São Boaventura é muito semelhante, mas os matizes são diferentes. São Boaventura conhece os mesmos argumentos em ambas as direções, como São Tomás, mas para responder à pergunta se a teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma distinção tríplice – portanto, amplia a alternativa entre teórico (primado do conhecimento) e prático (primado da prática), acrescentando uma terceira atitude, que chama "sapiencial" e afirmando que a sabedoria abrange ambos os aspectos. E depois, continua:  a sabedoria procura a contemplação (como a mais elevada forma do conhecimento) e tem como intenção "ut boni fiamus" – que nos tornemos bons, sobretudo isto: tornar-nos bons (cf. Breviloquium, Prologus, 5). Depois, acrescenta:  "A fé está no intelecto, de tal modo que provoca o afeto. Por exemplo:   saber que Cristo morreu 'por nós" não permanece conhecimento, mas torna-se necessariamente afeto, amor" (Proemium in I Sent., q. 3).
A sua defesa da teologia, ou seja, da reflexão racional e metódica da fé, move-se na mesma linha. São Boaventura enumera alguns argumentos contra a prática da teologia, talvez difundidos também entre alguns dos frades franciscanos e presentes inclusive no nosso tempo: a razão esvaziaria a fé, seria uma atitude violenta em relação à palavra de Deus, temos que ouvir e não analisar a palavra de Deus (cf. Carta de São Francisco de Assis a Santo Antônio de Pádua). A estes argumentos contra a teologia, que demonstram os perigos existentes na própria teologia, o Santo responde: é verdade que existe um modo arrogante de fazer teologia, uma soberba da razão, que se põe acima da palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o trabalho racional da teologia verdadeira e boa tem outra origem, não a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez melhor e sempre mais o amado; a verdadeira teologia não empenha a razão e sua busca motivada pela soberba, "sed propter amorem eius cui assentit" – "motivada pelo amor daquele a quem deu o seu consentimento" (Proemium in I Sent., q. 2), e que conhecer melhor o amado:  esta é a intenção fundamental da teologia. Portanto, no final para São Boaventura é determinante o primado do amor.
Por conseguinte, São Tomás e São Boaventura definem de modo diferente o destino último do homem, a sua plena felicidade: para São Tomás o fim supremo ao qual se dirige nosso desejo é: ver Deus. Neste simples gesto de ver Deus todos os problemas encontram solução: estamos felizes, nada mais é necessário.
Para São Boaventura, o destino último do homem é outro: amar Deus, o encontrar-se e o unir-se do Seu e do nosso amor. Esta é, para ele, a definição mais adequada da nossa felicidade.
Nesta linha, poderíamos dizer também que para São Tomás a categoria mais elevada é a verdade, enquanto para São Boaventura é o bem. Seria errado ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambos, a verdade é também o bem, e o bem é também a verdade; ver Deus é amar, e amar é ver. Portanto, trata-se de aspectos diferentes de uma visão fundamentalmente comum. Ambos os aspectos formaram diferentes tradições e diversas espiritualidades, e assim mostraram a fecundidade da fé, uma só na diversidade das suas expressões.
Voltemos a São Boaventura. É evidente que o aspecto específico da sua teologia, do qual só dei um exemplo, se explica a partir do carisma franciscano: o Pobrezinho de Assis, para além dos debates intelectuais do seu tempo, tinha mostrado com toda a sua vida o primado do amor; era um ícone vivo e apaixonado de Cristo e assim, na sua época, tornou presente a figura do Senhor não convenceu os seus contemporâneos com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as obras de São Boaventura, precisamente também as obras científicas, escolares, vê-se e encontra-se esta inspiração franciscana; ou seja, observa-se que ele pensa a partir do encontro com o Pobrezinho de Assis. No entanto, para compreender a elaboração concreta do tema "primado do amor", temos que ter presente mais uma fonte: os escritos do chamado Pseudodionísio, um teólogo sírio do século VI, que se escondeu sob o pseudônimo de Dionísio, o Areopagita, referindo-se com este nome a uma figura dos Atos dos Apóstolos (cf. 17, 34). Este teólogo tinha criado uma teologia litúrgica e uma teologia mística, e falara amplamente das diversas ordens dos anjos. Os seus escritos foram traduzidos em latim no século IX; na época de São Boaventura –  estamos no século XIII – surgia uma nova tradição, que despertou o interesse do Santo e dos outros teólogos do seu século. Duas coisas chamavam a atenção de São Boaventura de modo particular: 
1. O Pseudodionísio fala de nove ordens dos anjos, cujos nomes tinha encontrado na Escritura e depois disposto à sua maneira, desde os anjos simples até aos serafins. São Boaventura interpreta estas ordens dos anjos como degraus na aproximação da criatura a Deus. Assim eles podem representar o caminho humano, a elevação rumo à comunhão com Deus. Para São Boaventura não há qualquer dúvida: São Francisco de Assis pertencia à ordem seráfica, à ordem suprema, ao coro dos serafins, ou seja: era puro fogo de amor. E assim deveriam ser os franciscanos. Mas São Boaventura sabia bem que este último grau de aproximação a Deus não pode ser inserido num ordenamento jurídico, mas é sempre um dom particular de Deus. Por isso, a estrutura da Ordem franciscana é mais modesta, mais realista, porém deve ajudar os membros a aproximar-se cada vez mais de uma existência seráfica de amor puro. Na quarta-feira passada, falei sobre esta síntese entre realismo sóbrio e radicalidade evangélica no pensamento e no agir de São Boaventura.
2. Contudo, São Boaventura encontrou nos escritos do Pseudodionísio outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo Agostinho o intellectus, o ver com a razão e o coração, é a última categoria do conhecimento, o Pseudodionísio dá mais um passo: na escalada rumo a Deus pode-se chegar a um ponto em que a razão já não vê. Mas, na noite do intelecto, o amor ainda vê – vê aquilo que permanece inacessível à razão. O amor estende-se além da razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. São Boaventura sentia-se fascinado por esta visão, que se encontrava com a sua espiritualidade franciscana. Precisamente na noite obscura da Cruz aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão já não vê, o amor vê. As palavras conclusivas do seu "Itinerário da mente em Deus", a uma leitura superficial podem parecer como expressão exagerada de uma devoção sem conteúdo; por outro lado, lidas à luz da teologia da Cruz de São Boaventura, elas são uma expressão límpida e realista da espiritualidade franciscana:  "Se agora desejas saber como isto acontece (ou seja, a escalada para Deus), interroga a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; o gemido da oração, não o estudo da letra; ...não a luz, mas o fogo, que tudo inflama e transporta em Deus" (VII, 6). Tudo isto não é anti-intelectual e não é anti-racional:  supõe o caminho da razão, mas transcende-o no amor de Cristo crucificado. Com esta transformação da mística do Pseudodionísio, São Boaventura coloca-se nos primórdios de uma corrente mística, que elevou e purificou em grande medida a mente humana: é um ápice na história do espírito humano.
Esta teologia da Cruz, nascida do encontro entre a teologia do Pseudodionísio e a espiritualidade franciscana, não nos deve fazer esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis também o amor pela criação, a alegria pela beleza da criação de Deus. Cito nesta altura uma frase do primeiro capítulo do "Itinerário":  "Quem... não vê os inúmeros esplendores das criaturas, é cego; aquele que não desperta com tantas vezes, é surdo; quem não louva a Deus por todas estas maravilhas, é mudo; aquele que de tantos sinais não se eleva ao primeiro princípio, é estulto" (I, 15). Toda a criação fala em voz alta de Deus, do Deus bom e belo, do Seu amor.
Portanto, toda a nossa vida é, para São Boaventura, um "itinerário", uma peregrinação – uma escalada rumo a Deus. Mas só com as nossas forças, não podemos elevar-nos à altura de Deus. O próprio Deus deve ajudar-nos, deve "puxar-nos" para o alto. Por isso, é necessária a oração. A oração – como diz o Santo – é a mãe e a origem da elevação – "sursum actio", ação que  nos  leva  para  o  alto – diz Boaventura. Por isso, concluo com a prece, com a qual ele começa o seu "Itinerário":  "Portanto, oremos e digamos ao nosso Senhor Deus:  'Conduza-me, Senhor, pela Tua via, e eu caminharei na Tua verdade. Alegre-se o meu coração no temor do Teu nome'" (I, 1).

* Extraído do Site do Vaticano.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Os cento e dez anos do nascimento do pequeno príncipe

Por Laura Cioni

Antoine de Saint-Exupéry nasceu em Lion, no dia 24 de junho de 1900. A vida deste homem sensível e aventureiro é rica de ações: começa com uma juventude solitária; aos 12 anos voa pela primeira vez e, desde então, a sua paixão será o voo. Primeiro, torna-se piloto em uma companhia comercial que fazia o trajeto Toulouse-Dakar; depois, em 1930, vai para Buenos Aires, onde se torna diretor do correio aéreo entre Argentina e França e, ali, encontra a mulher de sua vida. O casamento foi tempestuoso, mas também a companhia na qual Saint-Exupéry trabalhava se encontrava em águas agitadas; muito rapidamente, passou para as mãos da Air France.
O piloto, então, passou a se dedicar ao jornalismo e à escrita; tentou transferir-se para a rota Paris-Saigon, mas a empresa se transformou num desastre no deserto da Líbia. A paixão pelo voo o induziu a se alistar na aeronáutica francesa durante a Segunda Guerra Mundial. A morte o surpreendeu em 1944, enquanto sobrevoava o mar Mediterrâneo, em um acidente que nunca foi esclarecido por completo. “Transporte de cartas, transporte da voz humana, transporte de imagens tremidas – neste século, como em outros, os nossos maiores progressos sempre tiveram o único objetivo de colocar os homens em contato”: assim o piloto descrevia o significado do seu trabalho e não é difícil encontrar nessa paixão pelo vínculo entre os seres humanos a resposta para a sua solidão de criança.
De resto, o seu pequeno príncipe representa a nostalgia da infância, mas também personifica a solidão na qual frequentemente as crianças são deixadas em um mundo que não considera a sua necessidade profunda de relações significativas, que não sejam aquelas dependentes do ter e do fazer ter. Deste ponto de vista, a criatura de Saint-Exupéry não demonstra os seus anos (o livro é publicado em 1943, em inglês) e mantém o frescor e a melancolia, que foram os fatores do seu sucesso em todo o mundo. É a fábula suave de um encontro no deserto entre um aviador e uma misteriosa criança caída do céu.
Os dois falam de coisas aparentemente sem importância, mas depois se tornam amigos; e o pequeno príncipe, de forma cândida, revela ao homem maduro o seu segredo de amor por uma rosa e a beleza dos pores do sol e da cor do trigo. Assim, se separam; mas permanecerá sempre, para o aviador, o encanto daquela pequena figura vinda das estrelas, que tem a doçura das crianças, mas também a severa dignidade dos cavaleiros antigos. Se há algo que ainda pode fascinar neste conto de fadas não é a acusação lançada contra o mundo adulto de não compreender as crianças e nem mesmo a ternura francesa dos diálogos.
É muito mais a vastidão do deserto, o lugar mais parecido com o céu, no qual tudo ocorre e que explica em parte a profundidade do que acontece; é também a advertência sobre a grande solidão do homem no cosmo e sua necessidade de uma companhia adequada a si e à sua exigência de sentido e de amor. Por isso, todos somos um pouco afeiçoados pelo pequeno príncipe e pelo afortunado aviador que o encontrou, por ambos que foram embora da terra de forma misteriosa.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 29 de junho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O New York Times ensina o pessimismo, mas se esquece de como é feito o coração humano



Por Andrea Staiti

Há alguns dias, o notável filósofo Peter Singer (alferes das lutas em favor dos animais e de todos os temas caros à ala mais radical da cultura liberal) publicou no site de New York Times um artigo com um título provocativo: Should This Be the Last Generation? (“Será que somos a última geração?”).
A argumentação do filósofo é, em síntese, a seguinte: frequentemente se pensa que seja injusto colocar no mundo um filho cuja vida será cheia de sofrimento, por exemplo, por causa de uma doença genética. Todavia, nunca acontece que se use como argumento para sustentar a decisão de ter um filho o fato de que terá, provavelmente, uma vida feliz e satisfatória. A pergunta, então, é: quão feliz e satisfatória deve ser a vida da criança em perspectiva, para tornar a decisão de colocá-lo no mundo razoável? E será que a vida média de um ser humano em uma nação civilizada é considerável para esse padrão?
Neste ponto, Singer cita Schopenhauer, o célebre filósofo alemão segundo o qual mesmo a vida mais “feliz” que se possa pensar é, em última instância, trágica porque a maior parte dos nossos desejos fica insatisfeito e, mesmo se se satisfaça uma parte, a insaciabilidade que nos caracteriza nos fará desejar ainda, impedindo-nos assim de sermos felizes. Portanto, se colocar no mundo um filho doente é causar-lhe um dano, isto não significa que colocar no mundo um filho saudável seja causar-lhe um benefício. Além do mais, acrescenta Singer, o constante aumento demográfico na Terra acelera o esgotamento dos recursos, criando uma perspectiva de futuro certamente difícil para as gerações futuras. Assim sendo, a partir do que foi dito, colocando no mundo filhos prejudicamos certamente as crianças do futuro (obrigados a viver em um planeta exaurido) sem, por outro lado, beneficiar a ninguém (porque os nossos filhos, como quer Schopenhauer, serão, de qualquer forma, infelizes como todo ser humano está destinado a ser).
Chegado a este ponto da argumentação, Singer propõe um experimento de pensamento (puramente fictício, mas filosoficamente relevante): por que não fazer da nossa a última geração sobre a Terra, através de uma esterilização em massa? Deste modo, livres dos pensamentos sobre as gerações futuras, poderíamos simplesmente gozar do tempo que nos separa da extinção, desfrutando livremente do planeta, conscientes do fato de que a extinção do gênero humano não seria nada de trágico: sendo a vida humana, em última instância, infeliz, não prejudicamos a ninguém impedindo-os de vir ao mundo. No fim das contas, se nos damos conta disso, que problema pode ter imaginar uma Terra sem homens?
Gostaria de mencionar dois pontos que tornam o argumento de Singer (mesmo que lúdico, claro e provocativo, como a filosofia deveria ser) no mínimo problemático.
O primeiro. A consequência mais lógica que advém da sua visão da vida humana não é a esterilização em massa seguida de uma party até a extinção mas, como Schopenhauer tinha compreendido, o suicídio ou uma dramática ascese para eliminar aquele desejo insaciável que nos caracteriza. Se a vida é, em última instância, negatividade e insatisfação, o ponto não é extinguir a futura mas a presente: se há, pelo contrário, alguma (mesmo que macabra) positividade no cenário pensado por Singer – da esterilização em massa, seguida de uma festiva marcha em direção à extinção – então, fazendo da nossa geração a última, estaríamos privando a próxima geração precisamente da única coisa que Singer parece caracterizar de forma positiva: fazer da nossa geração a última.
Seguindo Singer, que direito teríamos de privar a próxima geração do gosto/direito de ser a última? E a próxima que direito teria de privar a seguinte do mesmo direito/gosto? E assim até o infinito. É verdade que  próxima geração, de fato, não existe (ainda) mas me sinto autorizado a usar, tanto quanto Singer, referências às gerações não-existentes na economia do meu argumento. Ou não há nada pelo que valha a pena viver, e então o suicídio é a resposta mais lógica, ou há, mesmo que fosse apenas o gosto de fazer da própria geração a última, e então não teríamos o direito de impedir este gosto aos nossos filhos.
O segundo. Mas, então, o argumento de Schopenhauer revisitado por Singer, segundo o qual a vida é, em última instância, negativa e, portanto, colocar no mundo um filho não é prestar-lhe um bom serviço, está, de fato, em pé? Eu não acredito. O ponto é que o que torna a vida grande e apaixonante não é a somatória dos nossos desejos satisfeitos ou frustrados, mas o acontecer imprevisto de fatos, pessoas, circunstâncias que correspondem inesperadamente às exigências profundas do nosso eu, aquelas que Dom Luigi Giussani chamou sistematicamente de “coração”. Estou convencido de que cada homem sobre a face da Terra, mesmo na condição mais desagradável e miserável que se possa pensar, se interrogado, seria capaz de mencionar pelo menos um fato, um episódio no qual pressentiu com clareza que a vida, a realidade, o ser são, em última instância, positivos (uma bela paisagem? Uma paixão, independente da forma como ela se consumou? Uma vitória esportiva? Cada um pense por si mesmo).
Este pressentimento pode ter sido, depois, recoberto e derrotado por circunstâncias adversas ou mesmo descartado como sentimentalismo ingênuo. E se, pelo contrário, não fosse sentimentalismo mas o primeiro passo, a ocasião (colhida ou deixada de lado) para empreender um caminho de conhecimento mais razoável de si mesmo e da realidade? Em todo caso, aqueles fatos que, mesmo que apenas por um instante, despertaram um pressentimento de bem para si e para o mundo – desafiando, assim, a nossa razão e a nossa liberdade – valem mais do que os balanços das sucessivas falhas nas quais, é verdade, acabamos mal, ainda que estejamos doentes ou vencidos, ou perfeitamente sãos e fortes.
Colocar no mundo filhos, portanto, não é razoável simplesmente levando-se em consideração um cálculo de probabilidade de que tenham uma vida feliz (a partir de que padrões?), mas levando em consideração a certeza de que acontecerão a ele, como a cada um de nós, fatos e circunstâncias nos quais pressentirão que a realidade contém uma promessa de bem. O que farão deste pressentimento será, como para cada um de nós, um desafio aberto e apaixonante.

* Extraído de IlSussidiario.net, do dia 18 de junho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 23 de maio de 2010

De Arte Voluntatis


Estou, há alguns meses, traduzindo e publicando num blog especialmente dedicado a isso, a obra de Juan Eusebio Nieremberg, chamada De Arte Voluntatis. Trata-se, na verdade, de uma parte de meu projeto de pós-doutorado... e gostaria de compartilhar com todos. Além do mais, gostaria de pedir que, na medida em que forem lendo e identificando problemas com a tradução (ou problemas de compreensão - certamente devidos à tradução), que me informem. Todos os comentários serão bem-vindos.
Para acessar o blog, clique aqui.

House no raio-x


Peço licença ao pessoal da Dicta & Contradicta, especialmente ao Joel Pinheiro, para publicar este texto de 18 de março de 2010... a fineza da análise me obriga a partilhar com os amigos... e me obriga, outrossim, a indicar a todos os que por aqui passam a darem sempre uma olhada no que por lá se publica.

Por Joel Pinheiro

Não há atualmente melhor série televisiva do que House (salvo um possível concorrente: The Good Wife). Personagens marcantes e um mistério envolvente a cada episódio levam-me à tela toda quinta à noite. E me entretém ainda mais a profundidade filosófica da série ao expor com honestidade sua concepção do ser humano e da relação entre razão e sentimentos, concepção aliás muito comum, cujos atrativos e fraquezas ficam explícitos, pois não se foge das possíveis contradições e dos becos sem-saída existenciais aos quais suas premissas básicas naturalmente levam.
Como é comum em tantas séries, House entrelaça duas narrativas: uma de curto e outra de longo prazo. A de curto prazo consiste em House e sua equipe desvendarem e curarem uma doença misteriosa a cada episódio, numa fórmula que pouco varia a cada semana. Isso permite ao espectador não-assíduo acompanhar qualquer episódio, tendo, ao fim dele, uma boa idéia do que é a série. Já a narrativa de longo prazo desenrola-se ao longo de vários episódios e até de temporadas. Nela, acompanhamos as mudanças na equipe do hospital e no relacionamento de seus membros, com o foco nos altos e baixos pessoais de House, que ora parece se afundar ainda mais em seus vícios, ora parece tornar-se, passo a passo, uma pessoa melhor. O que faz dessa série algo muito superior à média é que a narrativa de longo prazo mina e questiona as verdades tidas como evidentes na narrativa de curto prazo.

O curto prazo
O gancho que prende o espectador não é o enredo, mas os personagens, principalmente o protagonista, o médico Gregory House, que encarna à perfeição a idéia contemporânea de racionalidade: no âmbito do pensamento, a busca da verdade pelo método científico e, no da ação, a adequação de meios a fins. Nada que fuja disso é racional. A razão é entendida como oposta a sentimentos, a qualquer fé ou crença não-científica, e à moralidade (todos os três províncias das paixões). Sendo assim, a motivação de House enquanto médico não é salvar vidas (o que seria uma intromissão dos sentimentos, da empatia) mas pura e simplesmente descobrir a verdade, desvendar os enigmas apresentados pelos pacientes que lhe são encaminhados. Sua inteligência lhe permite, além disso, ser igualmente brilhante no diagnóstico das motivações humanas e dos relacionamentos alheios, que também o interessam sobretudo enquanto enigmas e objetos de manipulação. Como não poderia deixar de ser, racionalidade significa ateísmo convicto e uma visão cínica da humanidade (todo indivíduo é egoísta). O que o salva de ser insuportável é o senso de humor, que não se priva de nenhuma tirada espirituosa. Nem a paz de espírito e nem a ilusão de bondade devem vir antes da busca pela verdade que, por mais dura que seja, não nos impede de rir dela.
É até eufemismo chamar House de brilhante, pois o mesmo adjetivo se aplicaria a todos os médicos da série, verdadeiros manuais de medicina ambulantes, com casos excepcionais e notas de rodapé na ponta da língua. A racionalidade superdesenvolvida de House faz com que ele ascenda ao patamar da genialidade. Frequentemente, após tentar, sem sucesso, descobrir de todas as maneiras a doença que aflige um paciente, ele encontra a resposta numa situação não-relacionada ao caso. Uma conversa com seu colega Wilson, ou com a coordenadora do hospital, Cuddy, um comentário espirituoso ou um fato aleatório lhe leva ao insight inesperado que soluciona o caso. O trabalho de processamento e interpretação dos dados é automático e constante, de forma que a resposta apareça quando menos se espera. É essa genialidade do intelecto, essa faísca criativa e penetrante, que faz de House um médico superior aos demais; e é ela também que o torna mestre em decifrar pessoas.
Sua segunda característica distintiva é consequência da aplicação consistente da racionalidade às ações: a total ausência de escrúpulos na adequação de meios a fins. Quebras de protocolo; transgressões da lei, de mandamentos religiosos e de absolutos morais; métodos heterodoxos; procedimentos arriscadíssimos (ex: matar temporariamente um paciente para logo depois trazê-lo de volta à vida); nada o detém. Sua genialidade justifica ações que, num médico inferior, seriam condenáveis. Nos casos mais extremos, está disposto a praticar o aborto e a eutanásia sem titubeios (felizmente, na imensa maioria dos episódios ele salva vidas). Apesar do grave problema moral envolvido aí, é impossível negar que, aceitas as premissas por trás da narrativa mestra, seria arbitrário impor limites éticos (ou seja, sentimentais) à conduta do gênio, o único capaz de chegar ao fim almejado.
O médico gênio é, no entanto, um fracasso pessoal. Divorciado, solitário, recluso, ressentido. A personalidade anti-social, a língua afiada, a ironia implacável e a facilidade psicológica com que engana e manipula aqueles à sua volta fazem com que seja quase impossível aguenta-lo por muito tempo.
O único amigo de House é Wilson, seu oposto humano (embora também ótimo médico). Wilson vive em contato com seus sentimentos e – mais importante – com os sentimentos dos outros; não para desmascará-los e desmistificar a bondade alheia, como faz House, mas para oferecer consolo a quem precise. Dar conforto emocional é sua razão de existir, e por isso ele não vê grandes problemas em deixar cada um com suas crenças (ao contrário da intransigência cientificista do amigo); a paz interior pode ter prioridade sobre a verdade – mesmo porque muitos dos seus pacientes (ele é oncologista) têm apenas a morte pela frente, enquanto os de House costumam padecer de doenças curáveis.

O longo prazo
O melhor da série é que ela não simplifica e não estereotipa as coisas; há uma honestidade e um realismo maior do que estamos acostumados na TV. A narrativa de curto prazo pinta o quadro do racionalista bem-resolvido que enxerga a realidade como ela é, embora pague um preço alto por isso. A narrativa de longo prazo indica que há mais coisas entre o céu e a terra do que ele sonha. House renega suas emoções e sua consciência, mas nem por isso elas deixam de existir. Diz que sua motivação é puramente intelectual, mas diversos episódios revelam que a empatia e o desejo de curar os pacientes também o movem.
A frieza irônica, por sua vez, é um mecanismo de defesa, fruto de uma personalidade profundamente ferida. Sua vida é marcada pelo arrependimento e pela falta de coragem de ir atrás do que realmente quer (por exemplo, o amor de sua vida). Além disso, uma dor crônica na perna (não se sabe até que ponto física ou psicológica) o deixa permanentemente manco e mal-humorado, e o humor cruel é uma forma de partilhar a frustração que sente. Fica confortável apenas naquela atividade em que exerce total controle e superioridade. O vício em analgésicos é um símbolo dos vícios de comportamento. Longe de transformar House num ser desprezível, contudo, esse lado mais humano torna-o digno da simpatia do espectador. Não se trata, afinal de um psicopata, desprovido de uma consciência que o guie. Por mais que, teoricamente, encare seu senso moral como um entrave emotivo a uma vida puramente racional, também não quer se livrar dele.
Já Wilson, muito mais confortável com seus sentimentos e relacionamentos, também tem uma vida pessoal em frangalhos. Três divórcios (e muitos casos que não levam a nada) e incontáveis arrependimentos. Embora seja uma boa pessoa sempre disposta a ajudar, seu caráter é ambíguo. Ser amigo de Wilson é enredar-se numa malha de culpas, sensibilidades e auto-piedade; é cair numa teia de tentáculos emocionais que constituem uma prisão da alma. Usando a expressão perspicaz de Nietzsche, o oncologista parece ser daqueles sempre a procura de vítimas para suas boas ações, e que termina por sufocar quem dele depende. Assim, se Wilson é o único com a paciência e a disposição para ser amigo de House, House é o único com o devido distanciamento, frieza e ironia para aguentar a amizade de Wilson. Tudo considerado, Wilson é um ser humano mais completo e maduro do que House, e na maior parte das vezes tem bons conselhos a oferecer; mesmo assim, fica claro que a vida dos sentimentos e relacionamentos não oferece uma saída e, assim como a suposta razão pura, ela também pode esconder fraquezas de caráter e desejos mais baixos.
Há um certo pessimismo acerca do lado “humano” da vida. Se na ciência chegamos a verdades e certezas, na vida pessoal não há solução. Todos os casamentos e relacionamentos amorosos terminam em separação ou são vítimas da infidelidade, e todas as amizades e lealdades, quando não baseadas desde o início em alguma ilusão, estão sujeitas ao desapontamento e ao rompimento.

Um diagnóstico?
No final das contas, a série não se decide. É possível um ato não-egoísta? Qual é a postura mais de acordo com a realidade: a racionalista ou a sentimental? Oscila-se entre duas possíveis concepções de moral: uma positiva, segundo a qual a ética consiste em sentimentos que nos levam a ajudar os outros e nos sentir bem – paixões irracionais, é verdade, mas a constituição humana demanda uma certa irracionalidade e o resultado final é bom; e outra negativa, segundo a qual a ética é um resíduo de instintos e pressões sociais acumulados que nos torna infelizes e, pior ainda, serve de máscara para o egoísmo.
Felizmente, é a primeira visão que costuma prevalecer nos momentos mais importantes. É uma visão pobre, admito, mas é tão longe quanto a série pode ir sem abandonar sua concepção de mundo inicial: a idéia de que razão e sentimentos, verdade e moralidade, ciência e fé, vida profissional e pessoal ocupam esferas completamente separadas, quando não antagônicas. Na ciência, verdade objetiva; no trato com pessoas, na conduta ética e na religião, apenas subjetividade. A idéia antiga de uma ciência da felicidade (ou seja, a ética), de que as paixões humanas devem obedecer a um ordenamento racional e que a razão recebe delas dados importantes, em suma, que a objetividade seja possível tanto nas “humanas” quanto nas “exatas”, é totalmente alheia ao seriado.
Bem, quase totalmente, pois há duas exceções. A primeira delas, bem pouco explorada, é a arte, em particular a música, que funciona como a válvula criativa de House. A segunda é o sentimento de culpa, cujos efeitos devastadores sobre os personagens a série não tem pudores de mostrar. Isso indica a percepção de uma ordem objetiva nos atos humanos, passível de ser violada. Contudo, ninguém sabe o que fazer com ela. A confissão da falta é frequentemente vista como um ato egoísta, um alívio da consciência às custas de quem ouve a confissão. E o perdão, mesmo quando sincero, é incapaz de restabelecer a ordem moral e a paz de espírito ao pecador. Fica-se entre duas escolhas ruins: a verdade dolorosa e que nos torna solitários, ou a felicidade e o companheirismo numa vida de ilusões. E não poderia ser diferente num mundo onde o Cristianismo enquanto possibilidade real de salvação morreu mas em que seus juízos de valor e idéias da importância do perdão permanecem como um resíduo sentimental que exige uma resposta. Mas se tudo que não é científico é subjetivo, então a razão é incapaz de nos tirar desse impasse.
No final das contas, temos que concluir que a concepção de razão da série (que é, enfim, a concepção moderna) é incapaz de lidar satisfatoriamente com a realidade. House não é o homem racional, e sim o homem que baniu a razão de todas as esferas de sua vida exceto uma, ainda que nessa uma ela opere excepcionalmente. Não há equilíbrio e nem justa medida. A razão elenca meios para se chegar aos fins, mas é incapaz de mostrar quais os fins nobres e dignos de serem perseguidos. Será possível uma mudança em House nessa direção de uma razão mais completa, ou seja, uma mudança outra que a mera intrusão irracionalista dos sentimentos na conduta, que o tornaria um médico pior e, pior ainda, nos privaria das tiradas satíricas pelas quais ele é tão amado? Não sei. Sei que, se isso acontecesse, a série acabaria; mas não deixaria de ser um belo final.

* Escrito por Joel Pinheiro; extraído de Dicta & Contradicta, do dia 18 de março de 2010.