sábado, 2 de outubro de 2010

Precisamos do coração de Camus, rebelado contra a “mortalidade” do mundo


Por Laura Cioni

No último texto de Albert Camus, O primeiro homem, encontrado entre os destroços do carro em que morreu, o escritor reconstrói episódios da sua infância na Algéria. De fato, seu pai, morto durante a Primeira Guerra mundial, está ainda presente nas lembranças de quem o tinha conhecido na Algéria. Camus narra episódios da vida cotidiana, a infância com a avó, a pobreza, a escola e as amizades, as tradições, os sonhos, como nesse trecho sobre o corte dos cabelos:
A mãe de Jacques, tinha voltado para casa, numa noite, fresca e rejuvenecida e com os cabelos cortados, afirmando, com uma alegria falsa, atrás da qual transparecia uma inquietude, ter querido fazer-lhes uma surpresa. Com efeito, foi uma surpresa para a avó que se limitou apenas a dizer, diante do seu filho, que agora ela parecia uma puta. E, em seguida, voltou para a cozinha. Catherine parou de sorrir, e em seu rosto apareceram toda a miséria e o cansaço do mundo. Depois, cruzou o olhar do filho, tentou ainda um sorriso, mas os lábios tremeram e correu, chorando, para o seu quarto. Jacques se aproximou dela. “Mamãe, mamãe”, disse, tocando-a timidamente com uma mão. “Você está muito bonita assim”. Mas, ela não o tinha escutado e, com um gesto da mão, lhe pediu para deixá-la só. E o menino recuou até à porta e, encostado no umbral, começou, por sua vez, a chorar de amor e de impotência.
Camus levanta também o véu sobre o seu secreto desejo de vida:
aquele coração angustiado, ávido de vida, rebelado contra a ordem mortal do mundo, continuava a bater com a mesma força contra o muro que o separava do segredo de cada vida, com a vontade de ir mais adiante, de ir além, e de saber, antes de morrrer, saber para finalmente ser, uma única vez, um segundo apenas, mas para sempre.
Anos antes, ele tinha trabalhado por muito tempo na elaboração de Calígula. Os intelectuais contemporâneos reconheceram, atrás da máscara do imperador louco, a figura de Hitler, e é bem visível em outros personagens a consciência lúcida de quem, naquele tempo, ainda que consciente da tirania, não soube se opor a ela, por causa da fragilidade da própria identidade cultural.
A esse respeito, é bastante significativa a breve passagem na qual o filósofo Cherea declara aos senadores, então decididos à conspiração para eliminar Calígula: “Devo reconhecer que este homem exerceu sobre mim uma influência inegável.  Isso me obriga a pensar. Obriga-me inteiro a pensar”. Ou seja, a tirania obriga o pensamento a se dar conta de um processo de cancelamento da liberdade e a desmascará-lo.
Mas, por mais interessante que seja, esta leitura não faz justiça a um texto que apresenta outras sugestões. A célebre cena na qual Calígula exprime o excruciante desejo de felicidade, pedindo a lua a seu confidente, Helicon, sintetiza com eficácia outros traços da figura do imperador: a lucidez, a melancolia, uma vergonhosa ternura, o lamento pelo amor perdido, a assustadora solidão, o desencanto e a ferocidade.
Outro ponto revela a lúcida análise de Cherea, que desmascara o perigo mortal da unidade entre poesia e poder, elementos que levam o homem que pode fazer o que quer à total desumanidade.
Através de Calígula, pela primeira vez na história, a poesia provoca a ação e o sonho a realiza. Ele faz aquilo que sonha fazer. Ele transforma a sua filosofia em cadáveres. Vós dizeis que ele é um anárquico. Ele crê ser um artista. Mas, no fundo, não há diferença. Eu estou convosco, com a sociedade. Não porque me agrade. Mas, porque não sou eu que tenho o poder, portanto a vossa hipocrisia e a vossa vileza me dão maior proteção – maior segurança – do que as melhores leis. Matar Calígula é o mesmo que me dar segurança. Enquanto Calígula estiver vivo, eu estarei à completa mercê do acaso e do absurdo, ou seja da poesia. Vejo no vosso rosto ressentido o suor do medo. Eu também estou com medo. Mas, eu tenho medo daquele lirismo desumano, comparado com o qual, a minha vida não é nada. É este o monstro que nos devora, eu vos digo. Se houver um único indivíduo puro, no bem e no mal, o nosso mundo estará em perigo.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 29 de setembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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