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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A grande alternativa proposta por Bento XVI entre o Mistério e a falta de sentido



Entrevista realizada por Federico Ferraù com Nikolaus Lobkowicz

“Como reconhecer o que é justo?” É esta a pergunta fundamental que está no centro da extraordinária reflexão sobre os fundamentos do direito que Bento XVI desenvolveu no seu discurso no Bundestag, durante a última viagem apostólica à Alemanha. IlSussidiario.net conversou a respeito dele com o filósofo Nikolaus Lobkowicz, que foi reitor da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique e Presidente da Universidade Católica de Eichstätt, e atualmente é diretor do ZIMOS - Zentral Institut für Mittel- und Osteuropastudien, centro de estudos dedicado à Europa Central e Oriental.

Professor Lobkowicz, o discurso que o Papa Bento XVI dirigiu ao Parlamento Federal Alemão é, de verdade, tão importante assim?
Certamente. Não era a primeira vez que um Papa falava diante de um Parlamento: pensem nos discursos de Paulo VI e de João Paulo II diante da Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas, é a primeira vez que um Papa, a convite do Presidente do Parlamento Alemão, discursa diante dele. A Alemanha é o país de origem de Martinho Lutero, do homem de quem brotou a primeira grande divisão da cristandade na época moderna. A maior parte das divisões ocorridas depois foi apenas uma consequência direta ou indireta deste acontecimento. Em primeiro lugar, é certo que Bento XVI aceitou o convite do Parlamento da sua pátria, mas, segundo penso, o significado verdadeiro do seu discurso diante do Parlamento Federal está no fato de se inserir nos esforços do Pontífice no sentido de promover a “reunificação” dos cristãos.

Uma reunificação? Mas, será uma proposta realista?
Esta reunificação é, para um católico, invariavelmente uma “recondução”, não à força, para a Igreja romana católica assim como se encontra hoje, mais especificamente à comunidade dos cristãos tal como a queria o Senhor e da qual a Igreja católica sempre se concebeu e ainda se concebe como a representante. Bento XVI certamente foi convidado como um chefe de Estado, a Cidade do Vaticano. Todavia, todos entenderam este convite não como um convite de um Estado a outro Estado, mas como o convite àquele que é o chefe da comunidade cristã de longe a mais numerosa, uma comunidade que se considera como a comunidade dos cristãos da qual se dividiram todas as outras. Naturalmente, hoje, a Alemanha não é apenas um país de católicos ou protestantes. Muitos membros do Parlamento alemão são mais ou menos explicitamente ateus. Por isto, Bento XVI, entre as possíveis numerosas variantes para a sua alocução, escolheu um discurso que não sublinhasse aquilo que é especificamente católico e nem mesmo aquilo que é cristão, mas, por assim dizer, aquilo que é direito natural. Aquilo que a Igreja chama “direito natural” é, sim, provavelmente, compreensível particularmente a partir de um ponto de vista católico, mas é, em última instância, acessível a qualquer um, seja cristão ou não. A doutrina do direito natural está fundamentada na ordem da criação e não especificamente na obra de Redenção de Jesus Cristo.

Segundo o Papa, não podemos descobrir e explicar aquilo que é “justo” sem retornar ao conceito de “natureza”. Por quê?
Porque, para descobrir o que é justo, é preciso aprofundar a pergunta que diz respeito ao quê (ou quem) é o homem. “Natureza”, neste contexto, é compreendida não, ou somente incidentalmente, como a realidade fora do homem, mas como a essência do homem, assim como Deus o criou e quis. Este homem é danificado pelo pecado, pelo “pecado original”. Mas a sua essência não é destruída por ele – como, pelo contrário, afirmam os protestantes. Uma das diferenças mais importantes entre a compreensão do homem católica e a protestante consiste no fato que, para Lutero, nada daquilo que o homem realiza sem a graça de Deus pode ser ordenado e bom, enquanto que a Igreja católica sempre sustentou que a graça realiza a natureza, por isso a pressupõe e constrói sobre ela. Paradoxalmente, a compreensão protestante do homem fez como que não se pudesse quase mais falar daquilo que é o homem segundo a sua essência.

Explique isto melhor, professor.
Uma vez que tudo é destruído pelo pecado, até às suas últimas raízes, no fim o homem pode fazer tudo o que lhe vem em mente. Até mesmo a maior das perversões é, em última instância, legítima ou, pelo menos, compreensível, porque Deus, se o homem se arrepende do que fez, na medida em que é Deus misericordioso, o perdoa. Por assim dizer, deve perdoar: onde nada de humano é legítimo por si mesmo, tudo aquilo que o homem é e faz deve ser perdoado. Porém, a Igreja católica sempre sustentou que o homem, não obstante o dano causado pelo pecado original, é bom segundo a sua essência. Deve simplesmente agir e viver em conformidade com sua essência, e não contra ela. A graça constrói sobre esta essência e a realiza. Certamente falta algo se não há a graça, por exemplo, se um homem não encontrou a Cristo e não foi batizado. Mas, isto não significa que algo ou alguém a quem falta algo é inevitavelmente mau ou mesmo malvado.

Os pagãos confirmam isso, como dizia São Paulo.
Sim. Para o pagão, mesmo o do mundo moderno, falta algo, mas, por isto, não é também automaticamente um celerado que, ao final, deve ser condenado e danado. Neste sentido, a doutrina católica é um convite para conhecer Deus e se aproximar dEle, enquanto que a protestante é, em última instância, sempre a tentativa de uma salvação da danação. Por vezes, a radicalidade quase absurda desta concepção, a concepção protestante, levou a pensar que, no fundo, tudo aquilo que o homem faz para si e para os outros seja compreensível e, por isso mesmo, perdoável. Naturalmente, é preciso considerar que quase desde o seu início não existiu “a” doutrina protestante: desde sua origem ela se dividiu em um número de variantes constantemente em crescimento. Algumas delas até mesmo se aproximaram de novo da perspectiva católica.

Segundo o senhor, qual é a pedra angular de todo o discurso do Papa? Por quê?
Sendo que o Papa falou para pessoas de convicções muito diferentes, falou quase como um filósofo, naturalmente um filósofo cristão, e não em primeiro lugar como um teólogo. Isto foi simples para ele: de fato, Ratzinger, assim como Hans Urs von Balthasar ou Henri de Lubac, meio século atrás, é um dos homens mais cultos do nosso tempo e também um dos mais cultos da longa história de bispos de Roma. Eu consideraria como pensamento fundamental do seu discurso a intuição segundo a qual até certo ponto não é necessário ser um cristão crente para reconhecer o que é correto e justo, o que cabe ao homem e o que não cabe. Exatamente por isso o seu discurso tocou também os deputados que não queriam saber nada sobre a fé cristã. Teria tocado também aqueles que não queriam escutar o seu discurso e que, por isso, se mantiveram distantes. As maiorias não podem decidir o que é verdadeiro e o que é falso, justo ou injusto, o que faz bem ao homem e o que lhe traz algum dano. Por isto, é necessária a justa compreensão da essência da realidade e, sobretudo, do homem, uma compreensão que a Igreja católica sempre afirmou como possível e urgente. A fé cristã não nega esta compreensão, mas a realiza.

O Papa citou várias vezes o “coração dócil” (literalmente o “coração que escuta”; ndt) de Salomão. Este coração é razão, mas é também definido como consciência. Não tem um pouco de... confusão? Por quê?
Há duas maneiras para descrever aquilo que, em alemão, se chama “consciência”. De um lado a consciência é descrita como uma voz no fundo da nossa autoconsciência que adverte e condena; de outro lado, com este conceito se entende uma dedução graças à qual podemos saber quais das nossas ações seria ou era moral ou imoral, errada ou justa. Nesta última descrição, a razão desempenha um papel decisivo. Se se pensa sobre o que é ou seria razoável, busca-se o modo justo de agir. É preciso apenas prestar atenção no fato que “razoável” e “justo” significam, neste caso, algo de totalmente diferentes de “esperto”, “que promete sucesso” ou coisas parecidas. Razoáveis, neste sentido, são todas aquelas decisões e ações que, de verdade, consideram tudo aquilo de que se deve ser tido em conta, por exemplo que Deus nos deu, junto com nossa essência, também uma ordem moral, que devemos respeitar e que devemos considerar em todas as nossas decisões.

É este o “coração que escuta”?
Aquilo a que o Papa se refere quando fala do “coração que escuta” é exatamente isto: se escutamos a nossa consciência, escutamos a razão, neste sentido. Isto pressupõe, naturalmente, que não escutemos as premissas de uma ideologia que falsifica a realidade. No fundo, cada um de nós conhece esta situação: sabemos o que seria “a coisa justa”, porém nos persuadimos continuamente de que seria justo algo diferente, às vezes tão distante no tempo que a nossa consciência “emudece” e não é mais possível escutar a sua voz de advertência. Se eu torturo ou mato alguém, traio a minha mulher ou roubo algo, no fundo, sempre sei, independentemente da minha visão de mundo, que isto “não é justo”; só que me convenço que, levando em consideração as minhas circunstâncias, isto é justo ou até mesmo necessário. Naquele momento, sei perfeitamente que estou me iludindo, mas tendo me distrair, me convenço, minto para mim mesmo.

Na primeira parte, o Papa disse que “aquilo que é justo” não é mais evidente. Por onde passa o caminho (o método) para reencontrar esta evidência? Como nós, homens pós-modernos, podemos encontrar isto? 
Aquilo que eu acabei de descrever se tornou cada vez menos claramente reconhecível na nossa cultura, por causa do desaparecimento das tradições cristãs. Desde a Idade Média (Ratzinger escreveu sua tese de habilitação para a Universidade de Munique sobre Boaventura) nasceram sempre mais frequentemente filosofias ou modos de pensar comuns que apagaram e, por assim dizer, renegaram as tradições cristãs e, deste modo, também aquelas partes do pensamento da antiguidade pré-cristã retomadas pelo cristianismo. Isto causou uma atrofia ou mesmo um ressecamento das convicções tradicionais sobre o que é “justo”. Eu, no fundo, acredito que seja um absurdo esta frase feita sobre os “pós-modernos”. De fato, a ruptura é muito mais antiga, sobretudo na cultura alemã. Pensadores como Kant, Hegel ou Nietzsche, que tinham muita coisa justa para dizer, mas descuidaram da verdade sobre questões essenciais, marcaram a cultura alemã de modo determinante. Mesmo se Hegel, por exemplo, tivesse ficado horrorizado ao conhecer a ideologia dos nazistas ou dos comunistas, ainda assim algumas convicções atuais, particularmente nos países de língua alemã, são referidas a ele e aos seus herdeiros. Assim, a Igreja católica, a partir de muitos pontos de vista, se tornou quase a única instituição a manter vivo aquilo que a cultura ocidental entendeu. Eu acredito, por isso, que seja possível readquirir as justas convicções sobre aquilo que é verdadeiro, significativo, correto e justo, somente na medida em que o mundo, e sobretudo os países de língua alemã, se tornem “mais católicos” outra vez.

O que o senhor quer dizer com isso?
Com isto não entendo necessariamente que todos devem se tornar católicos. Mas se trata de um modo de pensar que somente os católicos conseguem levar adiante, e também uma parte essencial dos crentes ortodoxos e anglicanos. Com efeito, não gostaria de excluir que nos estamos aproximando de um tempo que, na tradição cristã, é descrito como o do anticristo. Exatamente nas últimas décadas, por exemplo, se tornou particularmente atual a visão do anticristo apresentada por Vladimir Soloviov no início do século XX. Talvez o fim da história da humanidade, o “fim do mundo”, esteja mais perto do que geralmente pensamos...

É necessário chamar em causa a razão criativa de Deus para tornar a unir razão e natureza?
Sim, porque em última instância apenas a ideia segundo a qual Deus é o criador, de um lado, de toda a realidade, e de outro, também da nossa razão, é que nos permite ver ambas como ordenadas uma à outra. Se não somos nada mais do que macacos por acaso altamente desenvolvidos, vivemos num mundo no qual tudo o que está em jogo é a sobrevivência; mas o homem não sobreviverá para sempre. Somente na medida em que se admite que Deus criou o mundo por amor ao homem, é que a nossa existência tem um sentido neste mundo. Para aqueles que veem em nós um macaco que, por acaso, é mais desenvolvido, de forma que tudo se deve ao acaso de uma cega evolução que poderia mesmo ter terminado de uma forma completamente diferente da forma como terminou, não é possível existir nenhum sentido “objetivo” para a existência do homem. Então, não somos nada mais do que produto do acaso, que, um dia, se apagará novamente e desaparecerá. Então, nada tem sentido; e o homem não é nada mais nada menos do que um Prometeu que, um dia, desaparecerá de novo. Às vezes me espanto ao ver como os homens conseguem apenas suportar uma tal ideia; provavelmente podem suportá-la somente porque nunca a levaram até às suas extremas conclusões. Houve homens, no século passado, que se suicidaram por causa desta visão, com a ideia, por assim dizer, que a única coisa na qual podemos ainda dar prova de nós e que nos demonstra nossa unicidade consiste no fato que somos o único ser vivo sobre a terra que pode “eliminar” a si mesmo intencional e conscientemente. Dostoievski descreveu de forma persuasiva esta visão das coisas no seu romance Os Demônios...

Por que o Papa falou do “movimento ecológico na política alemã a partir dos anos 1970”? Qual é o sentido desta referência específica?
João Paulo II já havia falado de um dever do cristão de preservar o ambiente da destruição, ao invés de simplesmente desfrutar dele até que não reste mais nada. Não devemos esquecer que o movimento e o partido dos “verdes”, na Alemanha, tem sua origem, sim, a partir dos marxistas, mas atraiu também muitos cristãos que estavam preocupados com a destruição do ambiente. Conheço pessoalmente alguns “verdes” que são cristãos convictos. O desejo de proteger a criação é mais do que um mero sentimentalismo; no fundo, todos queremos viver num mundo que não tenha perdido completamente a sua natureza original. Por trás disto há também a preocupação com o sustento da humanidade que continua crescendo...

Por que a doutrina do direito natural não é mais popular no pensamento católico?
Este, efetivamente, é um problema: eu o descreveria como uma preocupante “protestantização” de uma parte dos teólogos católicos e da teologia ensinada por eles. Ver o jusnaturalismo como uma premissa importante e como uma implicação da interpretação da fé pertence à grande tradição da teologia católica. Para mim, há dois motivos que justificam a cada vez menor disponibilidade a se ocupar deste tema: em primeiro lugar, o influxo dos protestantes agnósticos (“somente a Sagrada Escritura vale!”), em segundo lugar, alguns modernos desenvolvimentos do direito natural, que argumentam de modo completamente diverso daquele da tradição cristã. Para dizer a verdade, emerge também o fato que não é fácil continuar a desenvolver o direito natural clássico da Igreja católica: parece que já foi dito tudo o que era essencial. Parece-me que o significado da doutrina do direito natural consista sobretudo no fato que contradiz a ideia segundo a qual existam apenas duas alternativas: a ciência moderna, frequentemente positivista, e a fé cega, quase irracional. Já há bastante tempo, desde antes de se tornar papa, que Ratzinger tem realçado o significado da terceira alternativa: o jusnaturalismo como uma representação daquilo que emerge da essência corretamente entendida do homem. Trata-se de não esquecer uma determinada visão de homem: do homem como criatura, a que a fé cristã não se opõe, mas realiza.

O Papa disse durante a celebração ecumênica em Erfurt, na sexta-feira passada que “a fé não é algo que concebemos ou com o que concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos”. O que significa isto para o diálogo interreligioso na Europa cristã?
Antes que o Papa viesse à Alemanha, houve, na Alemanha e na Áustria, uma discussão acalorada e vivaz. De um lado, alguns protestantes esperavam que o Papa, por assim dizer, canonizasse, pelo menos em parte, Lutero (e também Calvino e Zwingli); de outro lado, houve um movimento entre os teólogos católicos que queria abolir o celibato e até mesmo ordenar mulheres. Diante disto, Bento XVI sublinhou que a unidade dos cristãos e o seu restabelecimento não pode ser, em última instância, obra do homem, ou seja, não se trata de algo que se alcançará (como é no caso de questões políticas) através de tratados e compromissos. Somente o Espírito Santo, e não a negociação entre nós, pobres homens, pode indicar o caminho. Ao mesmo tempo, as palavras do Papa foram um chamado de atenção “para o caminho que já trilhamos”. Há meio século atrás, uma oração ecumênica como aquela que houve em Erfurt seria impensável. As palavras do Papa que o senhor acabou de citar, recordam a “longa duração” que sempre foi característica da Igreja católica: a disponibilidade do coração aberto para esperar até que o Senhor nos indique o caminho.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Como reconhecemos o que é justo?



Visita ao Parlamento Federal

Discurso do Papa Bento XVI 

Palácio Reichstag de Berlim
Quinta-feira, 22 de setembro de 2011  

Ilustre Senhor Presidente Federal!
Senhor Presidente do Bundestag!
Senhora Chanceler Federal!
Senhor Presidente do Bundesrat!
Senhoras e Senhores Deputados!
E, para mim, uma honra e uma alegria falar diante desta Câmara Alta, diante do Parlamento da minha Pátria alemã, que se reúne aqui em representação do povo, eleita democraticamente para trabalhar pelo bem da República Federal da Alemanha. Quero agradecer ao Senhor Presidente do Bundestag o convite que me fez para pronunciar este discurso, e também as amáveis palavras de boas-vindas e de apreço com que me acolheu. Neste momento, dirijo-me a vós, prezados Senhores e Senhoras, certamente também como concidadão que se sente ligado por toda a vida às suas origens e acompanha solidariamente as vicissitudes da pátria alemã. Mas o convite para pronunciar este discurso foi dirigido a mim como Papa, como Bispo de Roma, que carrega a responsabilidade suprema da Igreja Católica. Deste modo, vós reconheceis o papel que compete à Santa Sé como parceira no seio da Comunidade dos Povos e dos Estados. Em base a esta minha responsabilidade internacional, quero vos propor algumas considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito.
Seja-me permitido começar as minhas reflexões sobre os fundamentos do direito com uma pequena narrativa tirada da Sagrada Escritura. Conta-se, no Primeiro Livro dos Reis, que Deus concedeu ao jovem rei Salomão fazer um pedido por ocasião da sua entronização. Que irá pedir o jovem soberano neste momento tão importante: sucesso, riqueza, uma vida longa, a eliminação dos inimigos? Não pede nada disso; mas sim: “Concede ao teu servo um coração dócil, para saber administrar a justiça ao teu povo e discernir o bem do mal” (1Re 3, 9). Com esta narrativa, a Bíblia quer nos indicar o que deve ser, em última análise, importante para um político. O seu critério último e a motivação para o seu trabalho como político não devem ser o sucesso e menos ainda o lucro material. A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições de fundo para a paz. Naturalmente um político procurará o sucesso, sem o qual não poderia jamais ter a possibilidade de uma ação política efetiva; mas o sucesso há de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de atuar o direito e à inteligência do direito. É que o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindo assim o caminho para a falsificação do direito, a destruição da justiça. “Se se põe de lado o direito, em que se distingue então o Estado de um grande bando de ladrões?” – sentenciou uma vez Santo Agostinho (De civitate Dei IV, 4, 1). Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estas palavras não são fúteis. Experimentamos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu pisotear o direito, de tal modo que o Estado se tornou o instrumento para a destruição do direito: tornou-se um bando de ladrões muito bem organizado, que quase chegou a ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício. Servir ao direito e combater o domínio da injustiça é e permanece sendo a tarefa fundamental do político. Num momento histórico em que o homem adquiriu um poder até agora impensável, esta tarefa torna-se particularmente urgente. O homem é capaz de destruir o mundo. Pode manipular-se a si mesmo. Pode, por assim dizer, criar seres humanos e excluir outros seres humanos de serem homens. Como reconhecemos o que é justo? Como podemos distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente? O pedido de Salomão permanece sendo a questão decisiva perante a qual se encontram também hoje o homem político e a política.
Grande parte da matéria que se deve regular juridicamente pode ter por critério suficiente o da maioria. Mas é evidente que, nas questões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade, o princípio majoritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação. No século III, o grande teólogo Orígenes justificou assim a resistência dos cristãos a certos ordenamentos jurídicos em vigor: “Se alguém se encontrasse no povo de Cítia que tem leis irreligiosas e fosse obrigado a viver no meio deles, (…) estes agiriam, sem dúvida, de modo muito razoável se, em nome da lei da verdade que precisamente no povo da Cítia é ilegalidade, formassem juntamente com outros, que tenham a mesma opinião, associações mesmo contra o ordenamento em vigor” [Contra Celsum GCS Orig. 428 (Koetschau); cf. FÜRST, A. (2006). “Monotheismus und Monarchie. Zum Zusammenhang von Heil und Herrschaft in der Antike”. Theol.Phil. 81, pp. 321-338; a citação está na página 336; cf. também RATZINGER, J. (1971). Die Einheit der Nationem, Eine Vision der Kirchenväter. Salzburg-München, p. 60].
Com base nesta convicção, os combatentes da resistência agiram contra o regime nazista e contra outros regimes totalitários, prestando assim um serviço ao direito e à humanidade inteira. Para estas pessoas era evidente de modo incontestável que, na realidade, o direito vigente era injustiça. Mas, nas decisões de um político democrático, a pergunta sobre o que corresponda agora à lei da verdade, o que seja verdadeiramente justo e possa tornar-se lei não é igualmente evidente. Hoje, de fato, não é por si mesmo evidente aquilo que seja justo e possa se tornar direito vigente m relação às questões antropológicas fundamentais. À questão de saber como se possa reconhecer aquilo que verdadeiramente é justo e, deste modo, servir à justiça na legislação, nunca foi fácil encontrar resposta e hoje, na abundância dos nossos conhecimentos e das nossas capacidades, uma tal questão tornou-se ainda muito mais difícil.
Como se reconhece o que é justo? Na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens. Ao contrário de outras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado de uma revelação. Mas apelou para a natureza e para a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre razão objetiva e subjetiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus. Deste modo, os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II (a.C.). De fato, na primeira metade do século II pré-cristão, deu-se um encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos filósofos estóicos, e autorizados mestres do direito romano [cf. WALDSTEIN, W. (2010). Ins Herz geschrieben. Das Naturrecht als Fundament einer menschlichen Gesellschaft. Augsburg, pp. 31-61]. Neste contato nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da humanidade. Desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos e depois à nossa Lei Fundamental alemã, pela qual o nosso povo reconheceu, em 1949, “os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo”.
Foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem colocado ao lado da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação. Esta opção já havia sido realizada por São Paulo, quando afirma na Carta aos Romanos: “Quando os gentios que não têm a Lei [a Torá de Israel], por natureza agem segundo a Lei, eles (…) são lei para si próprios. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, como resulta do testemunho da sua consciência” (Rm 2, 14-15). Aqui aparecem os dois conceitos fundamentais de natureza e de consciência, sendo aqui a “consciência” o mesmo que o “coração dócil” de Salomão, a razão aberta à linguagem do ser. Deste modo se até à época do Iluminismo, da Declaração dos Direitos Humanos depois da II Guerra Mundial e até à formação da nossa Lei Fundamental, a questão acerca dos fundamentos da legislação parecia esclarecida, no último meio século verificou-se uma dramática mudança da situação. Hoje considera-se a ideia do direito natural uma doutrina católica bastante singular, sobre a qual não valeria a pena discutir fora do âmbito católico, de tal modo que quase se tem vergonha mesmo só de mencionar o termo. Queria brevemente indicar como se veio a criar esta situação. Antes de mais nada é fundamental a tese segundo a qual haveria entre o ser e o dever ser um abismo intransponível: do ser não poderia derivar um dever, porque se trataria de dois âmbitos absolutamente diversos. A base de tal opinião é a concepção positivista de natureza, quase adotada por todos hoje em dia. Se se considera a natureza – no dizer de Hans Kelsen - “um agregado de dados objetivos, unidos uns aos outros como causas e efeitos”, então realmente dela não pode derivar qualquer indicação que seja de algum modo de caráter ético (Waldstein, op. cit., 15-21). Uma concepção positivista de natureza, que compreende a natureza de modo puramente funcional, tal como a conhecem as ciências naturais, não pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas apenas funcionais. Entretanto o mesmo vale para a razão numa visão positivista, que é considerada por muitos como a única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável ou falsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito. Por isso, a ética e a religião devem ser atribuídas ao âmbito subjetivo, caindo fora do âmbito da razão no sentido estrito do termo. Onde vigora o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, o caso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas de conhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. Esta é uma situação dramática que interessa a todos e sobre a qual é necessário um debate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção essencial deste discurso.
O conceito positivista de natureza e de razão, a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar. Mas ela mesma no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. Digo isto pensando precisamente na Europa, onde vastos ambientes procuram reconhecer apenas o positivismo como cultura comum e como fundamento comum para a formação do direito, reduzindo todas as outras convicções e os outros valores da nossa cultura ao estado de uma subcultura. Assim a Europa se coloca, face às outras culturas do mundo, numa condição de falta de cultura e suscitam-se, ao mesmo tempo, correntes extremistas e radicais. A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de concreto armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus. E no entanto não podemos iludir-nos, pois em tal mundo autoconstruído bebemos em segredo e igualmente nos “recursos” de Deus, que transformamos em produtos nossos. É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo para a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo.
Mas, como fazê-lo? Como encontramos a entrada justa na vastidão, no conjunto? Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? Chamo à memória um processo da história política recente, esperando não ser mal entendido nem suscitar demasiadas polêmicas unilaterais. Diria que o aparecimento do movimento ecológico na política alemã a partir dos anos 1970, apesar de não ter talvez aberto janelas, todavia foi, e continua a ser, um grito que anseia por ar fresco, um grito que não se pode ignorar nem deixar de lado, porque se vislumbra nele muita irracionalidade. Pessoas jovens deram-se conta de que, nas nossas relações com a natureza, há algo que não está bem; que a matéria não é apenas um material para nossa factura, mas a própria terra traz em si a sua dignidade e devemos seguir as suas indicações. É claro que aqui não faço propaganda por um determinado partido político; nada me seria mais alheio do que isso. Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos refletir seriamente sobre o conjunto e todos somos remetidos à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura. Seja-me permitido deter-me um momento mais neste ponto. A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que – a meu ver –, hoje como ontem, é negligenciado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.
Voltemos aos conceitos fundamentais de natureza e razão, de onde partíramos. O grande teórico do positivismo jurídico, Kelsen, em 1965 – com a idade de 84 anos (consola-me o fato de ver que, aos 84 anos, ainda se é capaz de pensar algo de razoável) –, abandonou o dualismo entre ser e dever ser. Antes, ele tinha dito que as normas só podem derivar da vontade. Consequentemente – acrescenta ele – a natureza só poderia conter em si mesma normas, se uma vontade tivesse colocado nela estas normas. Mas isto – diz ele – pressuporia um Deus criador, cuja vontade se inseriu na natureza. “Discutir sobre a verdade desta fé é absolutamente vão” – observa ele a tal propósito (citado segundo Waldstein, op.cit., 19). Mas sê-lo-á verdadeiramente? – eu perguntaria. É verdadeiramente desprovido de sentido refletir se a razão objetiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?
Aqui deveria vir em nossa ajuda o patrimônio cultural da Europa. Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade. A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico.
Ao jovem rei Salomão, na hora de assumir o poder, foi concedido formular um seu pedido. Que sucederia se nos fosse concedido a nós, legisladores de hoje, fazer um pedido? O que é que pediríamos? Penso que também hoje, em última análise, nada mais poderíamos desejar que um coração dócil, a capacidade de distinguir o bem do mal e, deste modo, estabelecer um direito verdadeiro, servir à justiça e à paz. Agradeço-vos pela vossa atenção!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 22 de setembro de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.