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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Oração a São José


São José, dado como pai ao Filho de Deus,
Vós sois bendito entre todos os homens
E bendito é o fruto de vossa virginal esposa.
Fostes o guarda fiel da Virgem Maria e do Menino Jesus;
Dignai-vos guardar também a nós
Em todos os nossos problemas de saúde, de família e de trabalho
Até os nossos últimos dias.
E alcançai-nos do Senhor a graça
De uma mente reta e de um coração puro e casto
Para mais amar Jesus Cristo, a Virgem Maria e os homens.
Amém

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Entendi, com meus alunos, o que é a escola...


Por Mario Caponnetto

Depois de seis anos ensinando no Centro de Formação Profissional In-presa, neste ano me perguntei qual a incidência que os adultos têm no percurso dos jovens e, sobretudo, qual a incidência que os professores têm entre os alunos, visto que, frequentemente, o professor é uma figura a ser suportada mais do que alguém de quem se aprende algo. Buscando responder a estas perguntas, li com atenção as redações de fim de ano, das quais consegui uma ajuda para julgar, de modo realista, o meu percurso como professor.
Dei-me conta de que aconteceu uma experiência verdadeiramente educativa, porque foram respeitadas certas condições.
Antes de mais, nada daquilo que aconteceu foi censurado, porque tudo foi acolhido e julgado. “Durante o estágio, tive alguns desentendimentos com Marco e Mathias e, às vezes, a vontade de ir trabalhar ia embora”, diz Simone, aluno do I Elétrico; da mesma forma, Mirco, seu colega de sala, que na carta final na qual faz um resumo de como o ano passou, escreve: “Cara Emilia, eu me chamo Mirco e estou na escola há um ano. Gostei muito, mesmo tendo tido alguns desentendimentos com os professores por causa dos meus modos de estar em sala”. Os desentendimentos acontecem, mas não são tudo, se forem julgados: podem representar um passo verdadeiro em direção a uma conquista maior.
O primeiro modo de julgar os limites é aceitá-los, como diz Luigi acerca de seu tutor na empresa: “Cara Emilia, sou Luigi... os meus pontos de referência mais importantes foram os tutores na empresa, particularmente Rossano. Ele foi muito mais do que alguém que me deu um trabalho, porque, mesmo sendo consciente das minhas escassas capacidades, me aceitou e elogiou por aquilo que fiz”.
É apenas assim que se descobre que alguém pode lhe dar uma mão, que você não está sozinho com o seu limite, mas que pode olhá-lo de frente. “No início, eu me sentia sem lugar, a minha situação era parecida com a de um peixe fora d’água, eu tinha sido colocado na cozinha sem ao menos saber as técnicas básicas, eu me sentia inútil... Esta situação melhorou mês após mês, até atingir a autonomia nas tarefas mais elementares e superar problemas que, no início, me pareciam intransponíveis. Giacomo me deu uma mão e tanto”, disse Riccardo do I Auxiliar de Cozinha. Gabriele, um aspirante a eletricista, diz algo parecido: “No laboratório, não sou muito prático, mas os professores me dizem que é normal, de fato aprendi muitas coisas que eu não sabia, e para im isto quer dizer que tenho satisfações”.
Eis outra grande descoberta: posso estar diante dos meus limites apenas se tem alguém que me ajuda a olhar para eles, alguém que vê mais, que vê na frente. O adulto se encontra ali para me ajudar a olhá-los, não para censurá-los; por isto, é alguém que me deixa mais livre, como disse Cristian: “O tutor na empresa sempre me fez sentir em casa, me fez sentir livre para aprender e errar! Teve muita paciência, visto que, no início, eu era como uma criança que engatinha, não sabia caminhar”. É um adulto que ajuda a ver a realidade, que introduz na realidade, até dentro dos aspectos mais difíceis, aqueles a que é necessário se habituar: “Durante o primeiro mês de estágio, eu não estava satisfeita com meu trabalho. Quando comecei a me habituar com os horários e os tempos do restaurante, comecei a me sentir satisfeita com o meu trabalho”, disse Giulia.
O adulto, de um lado, faz entender o valor da fadiga que deve realizar, mas, de outro, oferece a possibilidde de se apaixonar por um pedaço da realidade, como nos testemunha Carlos: “A minha matéria preferida é Cidadania, uma matéria muito importante, porque nos mantém sempre informados de coisas interessantes”. Também Michael se interessou por uma matéria: “A minha matéria preferida é Inglês; tendo uma garota tão bonita como professora, é possível fazer as tarefas melhor e com mais vontade”. É uma paixão que tem que ver com a descoberta do belo, às vezes através do rosto de uma bela professora, mas tem que ver também com uma gratificação, como disse Stefano: “Por hora, o prato que mais gostei de fazer foi a crostata. Mais do que um prato, é um doce e digo que me dei muito bem porque o professor me disse isso, ele havia dito também que era melhor do que a que ele havia feito”.
Depois de ter descoberto uma paixão, um professor, um tutor, Alessandro, um aluno do segundo ano, chegou a dizer: “Para mim, o estágio é como uma partida de futebol: é bonito, mas cansa”. E Niccolò chegou a falar da escola em termos quase poéticos: “para definir a escola eu usaria a metáfora da neblina, porque a neblina, depois de um tempo, se dissolve. Quando cheguei aqui, não sabia nada, mas agora estou começando a entender esta profissão, exatamente como a neblina que se dissolve”.
Pode acontecer que um aluno entenda mais o que quer fazer e decida mudar o percurso: “Cara Emilia, me chamo Simone, sou do II B Elétrico e tenho 16 anos. Este ano foi bom. Consegui encontrar minha pérola! No início do ano, tive a oportunidade de ver se o eletricista era o meu caminho e, de fato, não era; assim, experimentei o curso de arquivista, mas também este não era o meu caminho. Assim, escolhi seguir a minha paixão, ou seja, estar em contato com os animais e fiquei bem. [...] Quem sabe, quando eu estiver grande, poderei me especializar como adestrador”. Pode acontecer também que se abra algo que estava fechado há tempos ou que, talvez, nunca se tenha aberto: “Sempre fui uma garota daquelas que odeia estudar, mas esta escola conseguiu me fazer abrir a vontade de estudar, de conhecer e aprender a história das paixões que tenho dentro de mim, daquilo que escolhi como o trabalho do meu grande futuro”, disse Yuney, aluna do I Auxiliar de Cozinha.
Por isto, Mattia, depois de ter descoberto que pode enfrentar os seus limites sem censurá-los, depois de ter descoberta que também ele pode ter uma paixão, que tem alguém pronto a acolhê-lo e a ensinar-lhe uma profissão, pode dizer: “Para mim, este ano voou, sem que eu nem me desse conta”.
Portanto, o que é a escola? Marco é quem explica muito bem: “Cara Emilia, estou freqüentando a sua escola porque quero ter um futuro, ser alguém, mesmo porque ser garçon é o que eu sempre quis fazer, e esta escola, a sua escola, me permite realizar este meu sonho”.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de junho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Por trás do abandono, a crise de um desejo “impotente”


Por Salvatore Abbruzzese

Os dados sobre o abandono escolar fazem refletir e preocupam, não apenas devido à sua extensão, mas também devido à sua capacidade de atravessar a Itália inteira, a ponto de não poder ser confinado apenas às áreas frágeis do país, nem podem ser remetidos aos contextos sociais mais desfavorecidos. Mesmo querendo levar em consideração aquela cota consistente dos que, trabalhando no escuro, aparecem como inativos (e, portanto, a cifra de 120 mil apresentada pela investigação de Tuttoscuola pode ser, consistentemente, reduzida), o dado não deixa de ser preocupante. Quando se abandonam as escolas, os institutos técnicos e os centros de formação profissional, quando se fecham os cadernos na metade de um percurso e se levam os livros para a garagem, se está diante de um juízo de inutilidade que diz respeito ao coração mesmo do percurso formativo e de inserção social. Não se percebe apenas a falta de eficácia do título de estudo, mas a inutilidade do processo cognoscitivo em si.
Tal problema não é, de fato, apenas de caráter escolar. Quando, a um semelhante juízo negativo sobre o próprio percurso formativa vem acompanhada uma falta de inserção no mundo do trabalho, então pelo menos uma parte do problema se refere a um contexto que vai para além das salas de aula escolar. Observando a partir do plano dos processos culturais de médio prazo, não há dúvida de como é exatamente a vontade de crescimento de toda uma sociedade, com as suas motivações e seus projetos, que está em vias de transformação. É notável como o impulso dos anos 1960 – aqueles que, na França, são chamados os “trinta gloriosos”, ou seja, os anos entre 1945 e 1975 – tenha se exaurido completamente no plano econômico; poucos parecem se dar conta de como, inclusive, tenha se exaurido também no plano cultural e moral.
O trabalho, assim com o mercado o oferece hoje, ligado a tarefas fragmentadas, genéricas e pouco qualificadas, mesmo quando fornece uma autonomia econômica pessoal, não funda a possibilidade de uma independência efetiva. No entanto, o problema da falta de inserção no mundo do trabalho não reside na insuficiência deste último na capacidade de garantir uma inserção adequada e permitir uma autonomia efetiva. Na realidade, é possível – e sempre foi – trabalhar, suportar o baixo salário do primeiro, segundo e terceiro trabalhos, dedicar-se a tarefas marginais e mal remuneradas (obviamente dentro de determinados limites). Foi o que aconteceu às gerações precedentes.
A diferença reside no fato de que aquelas gerações enfrentavam a precariedade em função de um projeto mais amplo de promoção profissional e de emancipação pessoal, um projeto do qual o trabalho era apenas um componente. Em outros termos, sempre foi possível trabalhar com poucos ganhos, desde que o trabalho constituísse apenas uma parte do próprio percurso de vida, e desde que este último coincidisse com um projeto pessoal, com um desejo elementar de realização, de promoção de si próprio e dos próprios objetivos: quer estes fossem a simples emancipação profissional e econômica, ou, pelo contrário, fossem a verdadeira e efetiva promoção pessoal, fundada sobre competências adquiridas ou adquiríveis.
Quando se está diante de um abandono tanto do estudo quanto do trabalho, a verdadeira emergência se torna a de uma crescente incapacidade de estruturar o próprio desejo de realização. O problema fundamental consiste exatamente no fato de que os objetivos mínimos, que desde sempre sustentaram as vontades de emancipação da família de origem e de inserção profissional, não são mais, hoje em dia, percebidos como eram no passado. Falta a formalização do desejo, a sua tradução no plano operativo: o realismo crítico degenera rapidamente na renúncia a toda dimensão realizadora, uma renúncia que, num contexto de escassa tensão moral, conduz rapidamente à inatividade.
É possível trabalhar mesmo num contexto de precariedade e de dependência, quando o trabalho consente que se adquiram competências percebidas como importantes, ou mesmo quando consente que se siga um percurso de formação paralelo, subjetivamente percebido como significativo (é o caso dos estudantes-trabalhadores). É possível suportar toda precariedade ou insatisfação quando se tem no bolso e no coração um projeto de vida para o qual aquele mesmo trabalho pode ser funcional, ou que, pelo menos, não seja um obstáculo.
Por trás das dezenas de milhares de abandonos escolares que não são resolvidos com uma inserção no mercado de trabalho substancial, há algo de mais grave do que a simples insatisfação escolar. Na realidade, há uma incapacidade (ou uma renúncia) dos sujeitos em definir o próprio desejo, está presente uma crise de projetualidade que transita, e este é o verdadeiro drama, em direção a um subdimensionamento da própria existência, onde o cotidiano basta a si e mesmo o pensar no futuro é tomado como um puro (e inútil) exercício de fantasia. A possibilidade de poder prolongar a própria permanência na família de origem permite uma semelhante atitude de prolongar-se ao infinito e de parar, em parte, somente diante do trabalho fixo, possivelmente numa estrutura pública, pronta para suportar e tolerar uma postura que, seja como for, continuará sendo substancialmente renunciadora.
Mas, se esta é a chave para compreender o tipo de problema que se está delineando, parece então importante mover a roda ruma a uma direção completamente nova. É preciso uma reviravolta antropológica, capaz de provocar uma recuperação da atenção pela dimensão projetual, onde por projeto se entende o simples e elementar desejo de realização pessoal, consequência direta de uma visão não redutiva de si próprio. É preciso que educadores e pais saibam restituir ao sujeito a paixão por uma realização que nunca é somente profissional, mas também pessoal e existencial.
O problema não tem, portanto, a sua própria solução em meio aos programas escolares, mesmo que a escola deva ser, de qualquer forma, consciente dele. Isso não se reduz à escola de dar ou não, na escola, uma formação imediatamente profissionalizante ou, pelo contrário, fornecer os elementos de uma tradição humanista comum. Ambos são inúteis se não concorrem para alimentar uma dignidade e uma consciência daquilo que o sujeito é chamado a ser, reconhecendo e perseguindo objetivos realizáveis que não podem ser suprimidos.
Uma escola orientada em sentido estritamente profissionalizante, pressupondo que o universo do trabalho tenha, em si, ainda hoje, as motivações para bastar a si mesmo e o sujeito não deva, portanto, dotar-se de um percurso de formação mais amplo, é de fato simplesmente ingênua (são exatamente os institutos profissionalizantes que registram as taxas mais altas de abandono). Por sua vez, uma formação humanista que não desenvolva capacidades concretas (saber redigir, refletir, expor e argumentar, conhecendo o que já foi dito, ou seja, uma específica tradição de pensamento) acaba por decair na pura erudição, se tornando assim não apenas inútil, como também enganosa e danosa, na medida em que olha para o dedo que indica a lua, mais do que para a lua mesma.
A recuperação da geração cinza, que abandonou a escola sem entrar no mundo do trabalho, passa pela recuperação do direito de cada um de construir e edificar. Implica considerar tal direito como um elemento fundamental e inalienável da existência humana, um aspecto não negociável de realização da pessoa, a sua constituição deve ser parte integrante do percurso educativo e de formação. Uma sociedade avançada como a Itália é profunda e intimamente ligada a uma cultura do crescimento e da formação permanentes; e essa cultura é indissociável da imagem de um sujeito que deseja, e desejando, constrói, põe a mão na massa, consciente da cultura e da memória das quais é herdeiro.
Uma sociedade que se esquece de tal objetivo, uma escola que não leva em consideração tal necessidade, devem se preparar para um embate com uma cota crescente de indiferentes, até chegar ao ponto das salas de aula vazias.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 22 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Somewhere, somehow

Porque é possível fazer
a verdade disso tudo
como quem faz um estudo,
sem que ao cabo do lazer,

do prazer de havê-lo feito,
tenha-se enfim feito nada
daquilo tudo: a estocada
já estava mesmo no peito.

Imagino algum poeta
nalguma língua estrangeira
este mesmo instante à beira
de escrever isso... Há uma reta

que, pelo meio da gente
como uma régua da vida,
é uma frase repetida,
a mesma, insistentemente:

"... porque é possível fazer
toda a realidade disso
sem o enfadonho exercício
de fazê-lo, de o viver..."

TOLENTINO, Bruno. As horas de Katharina com a peça inédita A andorinha, ou: A cilada de Deus. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 76.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

A ousadia da santidade


Por Carlos Alberto Di Franco*

Paul Johnson é um dos grandes historiadores e intelectuais da atualidade. Colaborador da revista britânica The Spectator, seus textos são provocadores. Dono de uma cultura invejável e sinceridade afiada, Johnson não sucumbe aos clichês vazios. Em seu livro Os Heróis, destaca a importância das lideranças morais.
"Os heróis", diz, "inspiram, motivam. (?) Eles nos ajudam a distinguir o certo do errado e a compreender os méritos morais da nossa causa." Os comentários de Johnson trazem à minha memória um texto que exerceu forte influência no rumo da minha vida: Amar o Mundo Apaixonadamente, homilia proferida por São Josemaría Escrivá, fundador do Opus Dei e primeiro grão-chanceler da Universidade de Navarra, durante missa celebrada no campus daquela prestigiosa instituição. São Josemaría - cuja festa a Igreja celebrou no dia 26 de junho - foi um mestre na busca da santidade no trabalho profissional e nas atividades cotidianas. A Editora Quadrante, de São Paulo, acaba de lançar uma primorosa reedição da homilia.
Propunha, naquela homilia vibrante e carregada de ousadia, "materializar a vida espiritual". Queria afastar os cristãos da tentação de "levar uma espécie de vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e, por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas". O cristianismo encarnado nas realidades cotidianas: eis o miolo da proposta de São Josemaría. "Não pode haver uma vida dupla, não podemos ser esquizofrênicos, se queremos ser cristãos", sublinha. E, numa advertência contra todas as manifestações de espiritualismo mal entendido e de beatice, afirma de modo taxativo: "Ou sabemos encontrar o Senhor na nossa vida de todos os dias, ou não o encontraremos nunca."
"A vocação cristã consiste em transformar em poesia heroica a prosa de cada dia." A vida, o trabalho, as relações sociais, tudo o que compõe o mosaico da nossa vida é matéria para ser santificada. São Josemaría, um santo alegre e otimista, olha a vida com uma lente extremamente positiva: "O mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus." O autêntico cristão não vive de costas para o mundo nem encara o seu tempo com inquietação ou nostalgia do passado. "Qualquer modo de evasão das honestas realidades diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus." A luta do nosso tempo, com suas luzes e sombras, é sempre o desafio mais fascinante.
O pensamento de São Josemaría, apoiado numa visão transcendente da vida e, ao mesmo tempo, com os pés bem fincados na realidade material e cotidiana, consegue, de fato, captar plenamente a contextura humana e ética dos acontecimentos. Ele tem, no fundo, a terceira dimensão: a religiosa e ética - e só com esse foco é possível entender plenamente o mundo em que vivemos. Na verdade, o esgotamento do materialismo histórico e a crescente frustração do consumismo hedonista prenunciam uma mudança comportamental: o mundo está sedento de liberdade, mas nostálgico de certezas.
Articular verdade e liberdade é, talvez, um dos mais interessantes recados de São Josemaría. Insurge-se, vigorosamente, contra o clericalismo que se oculta na mentalidade de discurso único, na injusta dogmatização das coisas que são legitimamente opináveis. São Josemaría afirma que um cristão não deve "pensar ou dizer que desce do templo ao mundo para representar a Igreja" nem que "as suas soluções são as soluções católicas para aqueles problemas". Por defender esse pluralismo sofreu incompreensões, até mesmo de algumas pessoas da Cúria Romana, que entendiam, por exemplo, que na Itália os católicos tinham o dever de votar no Partido da Democracia Cristã.
São Josemaría não deixa de enfatizar o valor insubstituível da liberdade - particularmente a liberdade de expressão e de pensamento - contra todas as formas de intolerância e sectarismo. Para ele, o pluralismo nas questões humanas não é algo que deve ser tolerado, mas, sim, amado e procurado.
A sua defesa da liberdade, no entanto, não fica num conceito descomprometido, mas mergulha na raiz existencial da liberdade: o amor - amor a Deus, amor aos homens, amor à verdade. Sua defesa da fé e da verdade não é, de fato, "antinada", mas a favor de uma concepção da vida que não pretende dominar, mas, ao contrário, é uma proposta que convida a uma livre resposta de cada ser humano.
Seus ensinamentos se contrapõem a uma tendência cultural do nosso tempo: o empenho em confrontar verdade e liberdade. Frequentemente, as convicções, mesmo quando livremente assumidas, recebem o estigma de fundamentalismo. Tenta-se impor, em nome da liberdade, o que poderíamos chamar de dogma do relativismo. Essa relativização da verdade não se manifesta apenas no campo das ideias. De fato, tem inúmeras consequências no conteúdo ético da informação.
A tese, por exemplo, de que é necessário ouvir os dois lados de uma mesma questão é irrepreensível; não há como discuti-la sem destruir os próprios fundamentos do jornalismo. Só que passou a ser usada para evitar a busca da verdade. A tendência a reduzir o jornalismo a um trabalho de simples transmissão de diversas versões oculta a falácia de que a captação da verdade dos fatos é uma quimera. E não é. O bom jornalismo é a busca apaixonada da verdade. O jornalismo de qualidade, verdadeiro e livre, está profundamente comprometido com a dignidade do ser humano e com uma perspectiva de serviço à sociedade.
A figura de São Josemaría Escrivá, o seu amor à verdade e a sua paixão pela liberdade tiveram grande influência em minha vida pessoal e profissional. Amar o Mundo Apaixonadamente não é apenas um texto moderno e forte. Sua mensagem, devidamente refletida, serve de poderosa alavanca para o exercício da nossa atividade profissional.

* Carlos Alberto Di Franco é Doutor em Comunicaçaõ, professor de Ética e Diretor do Master em Jornalismo. O texto foi extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 28 de junho de 2010.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Etsuro Sotoo

Acabei de chegar da Escola de Comunidade. Trabalhamos, hoje, a introdução dos Exercícios Espirituais da Fraternidade de Comunhão e Libertação - Pode um homem nascer de novo, sendo velho?
Dois amigos que estiveram, no último fim de semana, no Paraguai contaram o encontro que fizeram com Etsuro Sotoo, o arquiteto que "herdou" a Sagrada Família de Gaudí e que irá realizar as obras da fachada da nova clínica do Padre Aldo. Recolhi algumas das coisas que eles contaram do encontro feito, sobretudo algumas frases que, como notas de memória, ficaram gravadas neles... notas que, comunicadas, deixaram suas marcas também em mim.


É o trabalho que converte o humano.

Sofrimento, beleza e verdade são inseparáveis.

Quanto a gente se apaixona, não importa mais onde está o corpo, mas onde está o coração; porque, quando a gente se apaixona, o coração não é mais nosso, mas está na pessoa por quem a gente se apaixonou.

É preciso atenção à realidade. Não adianta querer forçar a realidade... é ela quem dita a forma como se relacionar com ela.

Na vida, é preciso paciência e atenção ao tempo... tudo tem o tempo certo.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Trabalho e vida

Há alguns dias atrás, conversando com a Renata, nos perguntávamos se ainda tínhamos um texto que havíamos lido na época da faculdade... tratava-se de um texto datilografado que era a transcrição de uma conferência proferida pela falecida professora Sônia Viegas. Conversa vai, conversa vem, resolvemos procurar o texto no meio dos papéis velhos... e eis que topamos com ele. É realmente uma pérola que precisava ser resgatada! Decidi, então, transcrever o texto, corrigir alguns erros de datilografia e publicá-lo aqui, para o deleite dos muitos que frequentemente andam por aqui e daqueles que, por acaso, passarem.

Por Sônia Viegas

... eu acho que é um tema belíssimo. E, apesar de não ter nenhuma especialidade no assunto, vou tentar desenvolver em torno dessa relação – trabalho e vida – que envolve as coisas mais essenciais da relação do homem com os outros homens, da relação do homem com a realidade, com o ambiente. (corte)
... essa etimologia da palavra. E fiquei um pouco espantada mesmo. Ela tem uma raiz que significa fixar, enterrar no solo, afundar. (corte)
... já de uma derivação dessa raiz, que é a palavra “palus”, que significa pau, ou palha. E trabalho seria “tripallium”, que é, originariamente, um instrumento de tortura formado de três paus.
No século XII, a palavra significava precisamente tormento, sofrimento. No século XIII, ela ganhou uma nova acepção, muito próxima: dispositivo para imobilizar os grandes animais. Então, seria uma espécie de canga. Inclusive, a palavra canga é usada como metáfora de trabalho.
Fiquei impressionada, porque tantas e tantas são as acepções que a palavra trabalho foi tomando, e acepções tão ricas e tão positivas e, etimologicamente, o que caracteriza a palavra é exatamente o sentido negativo, o sentido de não realização, de uma coisa imposta.
Então, fiquei pensando, por exemplo, no texto bíblico, quando a questão do trabalho aparece. E que aparece também, pelo menos manifestamente, com sentido de castigo, de condenação, quando Adão cai em pecado, transgride a lei divina e, junto com Eva é expulso do Paraíso e é condenado ao trabalho, ou seja, a ganhar a vida com o suor do seu rosto.
Pelo menos a gente aprende a religião, lê o catecismo, desde criança, e a significação que é passada é a de uma coisa penosa, de uma coisa forçada, como se o ideal para o ser humano fosse o não-trabalho, ou seja, o Paraíso. Essa seria a perspectiva da palavra, do conceito que puxa a sua significação para um aspecto negativo.
Mas, na verdade, existe outra palavra que nos ajuda a pensar a questão do trabalho no sentido positivo, ou seja, não no sentido de exaustão de forças, mas no sentido de construção do ser, que é a palavra “labor”. A palavra labor está ligada, exatamente na sua origem latina, às atividades agrícolas, à lavra, à laboração no campo. Quer dizer, trabalhar significa cultivar. Então, trabalhar, enquanto cultivar, é uma palavra que nos remete diretamente ao sentido da palavra cultura. Cultivar é fazer cultura. A cultura é cultivada, é fruto de um processo de enriquecimento, de um processo de transformação.
Então, temos de um lado o sentido negativo, de tormento, de tortura mesmo, de imobilidade, de condenação. E, de outro lado, temos um sentido altamente positivo, que nos liga à palavra labor, lavra, elaboração, laborar, laborioso – um esforço laborioso. É uma palavra extremamente sugestiva e que nos convida a imagens de crescimento e não a imagens de degeneração ou exaustão. Temos então esses dois aspectos.
Acho que não podemos deixar passar de liso o que a linguagem nos mostra, o que a língua nos mostra e o que a própria filologia, a própria etimologia da língua nos mostra. Ou seja, que talvez a nossa cultura tenha se apropriado mais do sentido negativo da palavra. E que a gente tenha que resgatar, dentro de condições especiais, ou seja, com um esforço de sensibilidade, de reflexão especial, o sentido positivo.
Acredito que isto devesse estar na cabeça de vocês quando me pediram este tema, porque vocês são educadores, são pessoas assistentes, ou seja, são pessoas voltadas para o bem social, o bem-estar social, e devem viver na pele a contradição desses dois sentidos, sobretudo trabalhando na instituição em que trabalham.
Acho que chegam até vocês as pessoas que foram acidentadas pelo trabalho, as pessoas que foram fisicamente maltratadas pelo trabalho. E a instituição toda visa, exatamente, a um curvar-se incessante, de alguma maneira e com toda precariedade que a gente sabe que existe numa instituição de bem-estar social no Brasil. Mas de qualquer maneira ela está inteiramente curvada sobre o sentido positivo da palavra e vivendo toda a injunção do sentido negativo.
Acredito que vocês tenham uma consciência muito profunda dessa contradição, dessa dualidade. E que não tenha sido à toa, mas que tenha sido com base em uma experiência já adensada, que vocês me pediram esse tema. É o tema com que vocês lidam.
E acho que temos que pensá-lo nas duas óticas, nos dois lados: por que será que o trabalho tornou-se esse sentido negativo? Será que o sentido negativo que a sociedade capitalista carrega, de trabalho como sendo alguma coisa que priva o tempo de lazer, que tira o tempo do lazer, será que esse sentido negativo, anti-vida, quer dizer, colocar no trabalho o sentido de a pessoa não viver; a pessoa fala assim: “pronto, agora posso viver, não tenho mais que trabalhar”. Será que esse sentido é o mesmo que está na Bíblia?
Acredito que não, porque a linguagem da Bíblia é uma linguagem mito-poética, é uma linguagem simbólica. Quando ela fala da dureza do trabalho, fala da dureza de se ter que se fazer, de se ter que se construir dia a dia, numa sobrevivência num só sentido material e espiritual: do mesmo pão que eu como, tiro a fisionomia e a imagem do meu ser.
Então, essa imagem dessa dureza é um risco, é o incômodo de ser livre, ou seja, de poder ultrapassar uma legalidade que me coloca no cerne da natureza; o preço incômodo disso é a liberdade. E a maneira de construir essa liberdade é o risco incessante de ser, ou seja, é o trabalho cotidiano.
Então, o sentido bíblico não é, necessariamente, o sentido negativo. O sentido negativo que conhecemos, dentro de uma sociedade civil, dentro de um modelo de desigualdade, dentro de uma sociedade burocratizada, calcada pela divisão do trabalho, é o sentido que já foi amplamente analisado, desde o século passado, por Karl Marx. Ou seja, é o trabalho alienado.
Esse sim, é um trabalho anti-vida. É um trabalho que, quando muito, pode ser dito ocupação, mas não pode ser dito elaboração, ou seja, não pode ser dito construção do ser da pessoa. A construção do ser da pessoa, por mais incômoda, por mais angustiante que seja, produz um intensíssimo prazer.
Eu posso sair esgotada de uma aula, às vezes até emocionalmente, mas o prazer que sinto é muito grande. O prazer, por exemplo, de estar aqui falando com vocês supera qualquer cansaço, qualquer esgotamento, no sentido de exaustão, de degenerescência.
Quanto mais me coloco, mais eu recebo, porque mais retorno tenho, então, mais enriquecida saio. E o outro sentido, o negativo, é o empobrecimento, no sentido de uma força que vai se esvaindo e você não vê, ou não tem o retorno dela no seu ser.
Esse sentido é um sentido muito específico da sociedade civil, de uma sociedade que trabalha em cima da divisão do trabalho, ou seja, que opera produtivamente em cima da divisão do trabalho e que faz do trabalho uma força ou um fenômeno desvinculado do ser que trabalha.
O que se assiste hoje é exatamente o contrário do que se vê no texto bíblico. Nesse texto, o que Deus, Iahweh, fazia com Adão era incorporar, colocar dentro da sua condição de existência, intrínseca à sua existência, o ato do trabalho. E o que a sociedade civil, a sociedade de pura ficção faz, é separar o sujeito do trabalho, fazer com que ele e seu próprio trabalho sejam coisas distintas.
E é exatamente nesse seccionamento que o trabalho se torna alguma coisa de fora que incide sobre a pessoa, ou seja, uma canga, um instrumento de tortura, uma coisa alheia, uma coisa em que a pessoa não se encontra. Ou, em suma, um trabalho alienado, alienante.
Marx fala: “o produto do trabalho é trabalho incorporado em objeto”. Dentro dessa relação alienada, o trabalho fica incorporado ao objeto e se converte em coisa fisica. Ou seja, ele se objetiva, se objetifica, se torna uma coisa, se reifica. Então, o sujeito que fez aquilo não consegue se enxergar, se ver.
A razão fundamental porque uma pessoa atua na natureza, ligada diretamente à sobrevivência básica, é a modelagem de seu rosto. Ela está buscando o objeto, esculpir a sua imagem. Quando trabalho um objeto, faço do meu trabalho uma coisa altamente simbólica. Eu cubro, incorporo à dimensão física da natureza uma dimensão simbólica, que é exatamente a forma e toda a sugestão e significação que esta forma atinge.
E essa forma, que é uma possibilidade incessante de novas significações, porque vai ser objeto do meu diálogo com os outros homens e objeto do meu diálogo comigo mesmo, objeto do meu diálogo com meu passado e objeto da minha possibilidade de me projetar na frente, ela vai ser então um centro de significações incessantes, de novas significações. É essa dimensão simbólica que confere ao mundo bruto que eu estranho, que me choca, que me restringe à minha imagem. Mas não uma imagem imperialisticamente colocada no mundo, mas uma imagem que acabo de improvisar lá, para que possa me reconhecer fora de mim e me tornar maior do que eu mesmo. É uma coisa realmente fundamental.
Agora, imaginem que, no trabalho alienado, o objeto parece que é uma esponja que bebe a significação. Então, ela absorve e torna pedra, torna coisa todo o gesto que faço. Então não consigo me enxergar no meu trabalho. Em vez de me encontrar nele, me perco nele.
Aí fala Marx: “objetificação significa perda, e o trabalhador se perverte”. Perverte por quê? Porque de agente ele se torna paciente. De elemento ativo ele se torna o passivo. E quando ele se apropria do objeto para tentar se encontrar lá, se aliena nessa apropriação, se perde também, se aliena de si mesmo nessa apropriação.
Então, ele vai ter que apropriar, apropriar, apropriar e vai se alienar de duas maneiras: ou se alienar na posse incessante, na posse compulsiva, ou seja, em um desdobramento infinito das próprias necessidades e dos meios de satisfação dessas necessidades que, contraditoriamente, garantem a produtividade social também ao infinito, porque torna a sociedade altamente produtiva; ou, de outro lado, vai se perder na impossibilidade de apropriar, na indigência, na penúria de não ter objeto, não poder ter o pão, não poder ter a cama, não poder ter a casa, não poder, não poder, não poder. De qualquer maneira, é uma situação pervertida que vale pelo seu contrário e não pela sua intenção.
“Quanto mais o trabalhador se desgasta no trabalho” diz Marx, “tanto mais poderoso se torna o mundo de objetos por ele criados em face dele mesmo”. O mundo de objetos fica poderoso e ele cada vez mais pobre. Tanto no que se refere à sua vida interior quanto no que se refere à sua auto-estima. Sua vida interior se torna cada vez mais pobre e ele cada vez se pertence menos a si mesmo.
E a relação com a natureza? A relação com a natureza também vai ficar comprometida com isso. Por quê? Porque, não podendo esculpir a sua imagem e não podendo se apropriar dos objetos e se encontrar nos objetos, porque o puro ter não dá para ele essa identidade, a liberdade desse sujeito, desse trabalhador se reduzirá, diz Marx, “a exercer as funções animais: beber, comer e procriar”.
Vocês poderiam argumentar, e o próprio Marx argumenta, o homem não consegue exercer, no nível puramente animal, nem a função de beber, nem a função de comer, nem a função de procriar. Mas acontece que o homem, alienado de si e despojado da sua imagem, realiza abstratamente essas funções. Então, ele come como um animal, bebe como um animal e procria como um animal.
É claro que aí existe uma visão pejorativa do animal, porque ele come muito pior do que o animal, exatamente por não ser animal. Ou seja, o animal come abstratamente, para matar a fome, enquanto que o ser humano, no pleno uso de suas potencialidades espirituais, jamais come apenas para matar a fome. Um ser humano, no pleno uso de suas potencialidades espirituais pode ser o mais primitivo dos homens, que no ato, no exercício mais imediato da satisfação da necessidade básica está simbolizando, ou seja, está incorporando conteúdo espiritual.
E sabemos disso porque o recém-nascido reproduz isso; o recém-nascido recebe, simultaneamente, os conteúdos internos do seu ser, que vai se formando junto com as primeiras sugadas que dá no seio materno.
Dizer que ele realiza abstratamente é dizer que realiza a coisa de uma forma desvinculada desse seio afetivo, desse tecido afetivo que é o único possível para que o homem possa ter uma relação plena com essa exterioridade que é a natureza, e que é o seu meio de subsistência, é o seu meio provedor, é a sua grande diferença, e é o palco, o cenário onde ele vai buscar se encontrar, buscar a sua imagem, para poder dialogar ou comunicar essa imagem com os outros homens e encontrar os outros homens nessa imagem que ele projeta de si mesmo.
Vocês já devem ter experimentado isto. Um desenho que a gente faz, uma modelagem que a gente faz, uma música que a gente toca, e que a gente se colocou. A gente olha para o outro para ver se o outro nos reconheceu lá e olha para o outro de alegria e satisfação porque acabamos de reconhecer o outro lá também. É uma possibilidade de comunicação que surge exatamente disso.
O trabalho alienado seria esse trabalho que se caracteriza por essa perversão do sentido da criação humana. O trabalho, no sentido pleno estaria ligado à construção do ser do homem, como eu disse, ou seja, à criação, à criatividade. Trabalho é “poiesis”, é poesia. Poiesis é um termo que é usado tanto para a natureza quanto para o ser humano.
A natureza, para o grego é “poiética”, ou seja, é produtiva, ela produz, é abundante. Vocês já viram como as unhas-de-vaca e as azaléias estão, na cidade, explodindo, em pleno inverno? A beleza? Isso é poesia. Isso é poiesis. A natureza não mede, é absolutamente generosa. Tem outra também, não sei se é ipê, os ipês roxos, os ipês rosas. Estamos em pleno inverno com os ipês roxos, rosas, azaléias e unhas-de-vaca explodindo por todos os cantos da cidade. Realmente é uma poiesis. Então, a poiesis existe no nível da natureza, mas também no nível do ser humano. O que é poiesis no nivel da natureza? É produção de vida. A natureza, em mim, é poiética, é poética. Se ela não estiver doente, produz vida, muita vida.
E o que posso estabelecer como analogia para a poiesis humana? O que a poiesis humana vai produzir para fazer jus a essa poiesis natural, a essa poesia natural? Como vou ser poeta, no sentido humano da palavra, para estar à altura da poesia da natureza? O que vou fazer? Vou produzir significações, vou produzir significados, linguagem. E produzo linguagem com toda a expressão do meu ser. Quanto mais conseguir me colocar no mundo e conseguir estabelecer, nessa colocação, uma linha que permita um encontro, uma confraternização com os outros homens, seja através do meu imaginário pregresso, da minha memória, da memória do meu povo, do imaginário do meu povo, que eu canto, ou através das obras que faço, ou das coisas que transmito, seja de que maneira for que cada homem faça este trabalho de significação, ele está criando. Está criando fora dele e, quanto mais cria fora dele, mais constrói dentro dele próprio.
Aí, acontece com ele um fenômeno no nível do simbólico muito análogo ao que acontece no nível da vida natural: quanto mais uma planta, por exemplo, desabrocha, quanto mais mudas você tira dela, mais bonita ela fica. Quer dizer, quanto mais o homem coloca de si no mundo, mais conteúdo interior ele vai adquirindo.
E é exatamente esse o sentido vinculado à vida. Trabalho é a forma humana de fazer jus à vida, é a forma humana de produzir, não no sentido de criar objetos reificados, simplesmente, mas no sentido de criar significações. Significações que se desdobram indefinidamente. Há uma reverberação infinita das significações humanas, e isso é belíssimo.
Por quê? Porque, a partir do momento em que alguma coisa é feita, você não controla mais, não detém mais. Porque aquilo, naquele momento, teve um significado para você, a pessoa que olha já vê outra coisa. Daí a dez anos, seu filho mais novo descobre aquilo e já dá outra significação; a outra geração que vem dá outra significação. E a gente escava as grutas pré-históricas e descobre coisas que estão lá há milênios e milênios; e as significações não cessam de acontecer.
Essas significações não visam apenas a desenterrar um significado primeiro, mas a fazer com que ele reverbere, com que ele dê linha à espinha dorsal da nossa história, a continuidade do nosso ser através do tempo e faz com que a gente se identifique nessa linha evolutiva da humanidade e que a gente se sinta justificado no mundo.
É essa a condição do trabalho. O trabalho equivale, na vida humana, ao que a vida faz na natureza. Então, é realmente a melhor ligação, a melhor conexão possível. Não podia existir outra mais perfeita do que a que vocês pensaram para mim. E não podia existir tema mais bonito do que o que vocês me deram: trabalho e vida.
Agora vamos tentar pensar um pouco isso.
Por que será que o homem tem que trabalhar? O animal está envolvido com o processo vital de uma maneira imediata. Se eu perguntar para vocês: a abelha trabalha? O que vocês responderiam? Ela trabalha? Só antropomorficamente, faz mel, gostoso, é uma operária, uma mão de obra gratuita. A formiga, tão laboriosa, será que ela trabalha? Podemos empregar esse termo metaforicamente, mas na verdade, nem a formiga trabalha e nem a abelha trabalha. Agora, podemos colocar esses animais, antropomorficamente, a trabalhar para nós. Põe uma canga no boi, faz com que ele se torne uma força de trabalho. Pode obrigar a abelha a ficar produzindo indefinidamente o mel e tira o excedente. Ou, talvez pela própria lei da natureza já haja esse excedente para que outros animais possam, em uma economia de trocas da própria natureza, se beneficiar com esse excedente, entre eles até o homem.
Mas o sentido de trabalho não existe aí. Porque o que a abelha faz, o que a formiga faz, é uma coisa instintiva, ou seja, é uma continuação, um prolongamento do seu próprio ser. O seu ser não se acrescenta, o seu ser se desdobra.
Dá para ver a diferença? O trabalho acrescenta o que sou ao que não sou, acrescenta o que não sou ao que sou. Ele dá uma dimensão virtual para o meu ser. Enquanto que a atividade puramente instintual é um desdobramento... (corte).

... grande essência, a essência nuclear do trabalho é a novidade. Por isso que ele é, fundamentalmente, criativo. É por isso que a repetição, por exemplo, esse ensino escolar repetitivo, é uma perversão no sentido do trabalho, do labor humano.
A natureza desdobra algo que já existe e tem seus ciclos, a sua regularidade, os seus determinismos. E é dentro desses ciclos e desses determinismos que ela se improvisa e que vai, na individualidade, na especificidade de cada aqui e de cada agora, de cada nascer do sol e de cada flor que desponta, de cada animal que nasce, é que ela vai improvisar a sua criação. Mas tudo dentro desse ritual, dessa dimensão cíclica.
O homem não. O trabalho dele o coloca diante do desconhecido que ele é. Ele tem que se reinventar a cada instante, ele tem que se improvisar.
Aí é que vem a grande judiação de uma sociedade meramente produtiva. Ela retira exatamente isso da condição do trabalho, porque vai imprimir ao trabalho uma segunda natureza, ou seja, os grandes ciclos burocráticos da produtividade. Então, o trabalho, em vez de obedecer ao tempo da criação vai obedecer ao tempo da produção ou ao tempo de consumo. Ele vai ser amarrado por uma segunda natureza, ou seja, uma natureza forjada de acordo com uma determinação da vida que ultrapassa qualquer exigência de formação da humanidade do homem. Isso é uma pena, porque o trabalho vai perder exatamente a sua essência.
Então, ele é criativo, é construtivo. Então, está intimamente ligado não apenas à essa sobrevivência básica – a matar a fome, o frio, a sede –, mas também está ligado à construção do universo interior, à formação de conteúdos interiores, como eu disse, e que chamamos de memória. O trabalho é responsável pela consolidação da memória.
Vocês já repararam como a nossa memória social é pior que memória de galinha? Que a sociedade capitalista, a sociedade de consumo, a sociedade pós-industrial tem pouquíssima memória? Ela tem muitas formas de registro, muitas, sofisticadíssimas. Tem tudo computadorizado, ela pode registrar todos os acontecimentos, microfilmar, colocar na memória do computador. Isso não significa memória no sentido criativo da palavra.
A única coisa que pode nos proporcionar memória é a elaboração do nosso ser, é a construção do nosso ser. É isso: você trabalha uma relação, cada sorriso no rosto da pessoa desta relação tem uma história, toda a sua vida pregressa está estampada naquele olhar, naquele sorriso. Você tem memória ali.
A memória está intimamente associada ou vinculada à dimensão do trabalho. O trabalho cria a memória. Sem esse sentido pleno de trabalho, esse sentido criativo de trabalho, dificilmente você teria condição de consolidar a memória.
Então, memória seria o quê? O que estou chamando de memória? Mais do que simplesmente registro, acontecimentos, acumulação. A memória seria uma aprendizagem. E que aprendizagem? Em que sentido ela seria aprendizagem? Como vou dizer que é uma aprendizagem? Porque exatamente a cada momento eu me surpreendo, a cada momento tenho que me reconhecer. Cada momento meu me obriga a uma reavaliação de todos os momentos anteriores. Então, ele estabelece uma conexão, um pacto, um vínculo indelével, indestrutível com tudo que fui.
Se me repito, saio fora da temporalidade interna da minha consciência, fico subjugada à temporalidade externa dos acontecimentos, só, mais nada. Então, não há porque eu ter memória, basta que eu registre as coisas no calendário, na agenda e ponto final.
É interessante isso, como é importante a memória, porque é a partir da memória, da possibilidade de resgatar as coisas, de reinventar as coisas, de reavaliar os acontecimentos e de compreender o passado infinitas vezes, que é magnífico isso. Só para fazer isso vale a pena viver.
Você poder olhar o passado e dizer: “gente, mas aquele dia, puxa vida; eu não tinha percebido isso. Mas é bom demais”. Mas, por que não percebi antes? Porque não estava preparada. Uai?! Mas não estava preparada – vivi o acontecimento? Pois é, por incrível que pareça, agora estou preparada para perceber, captar uma essência desse acontecimento que estava lá, virtualmente me esperando como uma semente guardada nas areias do deserto, esperando o momento das chuvas para poder transbordar, desabrochar. Estava guardado lá aquele sentido virtual, lá no passado.
Lá? Onde está meu passado? Lá? Num lugar? Numa caixa? Aqui. O meu passado está aqui na minha possibilidade de re-significá-lo. Por isso o fato de conservar a memória está intimamente vinculado à minha possibilidade de renovar meu passado.
Depois de ter vivido “n” experiências em seguida àquela, retorno àquela com um olhar que me permite descobrir alguma coisa nela que não tinha visto. E essa coisa nela, que não tinha visto é a razão de ser do meu presente e é a riqueza do meu presente. É o meu ser hoje. O meu ser hoje é poder compreender o meu passado assim, assado, dessa maneira, de outra maneira.
Então, o trabalho, a elaboração, está vinculado a essa produção de memória, a essa produção do que estou chamando de vida interior.

(Pergunta inaudível)... quando você fala exercício da memória, você quer dizer a capacidade de memorizar, de guardar coisas, de registrar coisas?
Mas você está falando de decorar?
Tem um filósofo que faz uma distinção entre a memória como repetição, registro, e a memória como lembrança, como rememoração, reminiscência. Cada um tem um exercício diferente. A repetição é um exercício de automatismo. Você pode exercitar a sua memória como registro e pode conseguir coisas incríveis. Você pode guardar uma série de coisas na cabeça, você pode fazer esse exercício. Mas ele leva a quê? A nada.

Acho que ele leva (inaudível)...
Nesse sentido sim. Mas, inclusive, inútil hoje, porque você tem instrumentos muito mais adequados. Você obriga o menino a decorar um monte de datas. Para quê? Dá um computador para ele que põe na memória do computador e, quando ele precisar, vai lá. Para que ficar torturando o menino para decorar aquela quantidade de coisas?
Inclusive, é também uma deturpação do próprio sentido de decorar. Saber de cor é saber de coração. “Cor” é coração em latim. Vocês vejam como a gente faz com as palavras.
Agora, tem outro exercício. O outro exercício é o da atenção. Aí, é diferente; é o exercício da atenção. Tem gente distraída que não se lembra de nada, mas dá vontade de bater; não se lembra de nada não é porque não tem uma cabeça capaz de guardar, é porque não tem atenção. Uma pessoa que não tem atenção é uma pessoa que está dispersa. É uma pessoa que não se concentra, que não se reúne, que não recolhe, é uma pessoa que não trabalha, cisca. Ela cisca. Ela fica ali..., o tempo todo. Faz coisas e coisas, mas não faz nada especificamente que mostre.
O exercício da atenção é um exercício de sensibilidade e afeto, de amor. Você presta atenção quando você ama. E o sintoma de que você ama é que você sente prazer em perceber, em encontrar. Então, é um exercício extremamente significante. Ninguém, em sã consciência, abre mão desse exercício. Deve ter alguma coisa...

(Comentário inaudível da platéia). Vem daí. O que o artista faz? Ele presta atenção nas coisas e depois faz sua própria improvisação.
Em sã consciência uma pessoa não abre mão desse exercício, porque ele é muito gratificante. Você prestar atenção, atentar nas coisas e perceber as diferenças, as nuances. Um bom jardineiro presta atenção nas nuances, nos matizes das flores. O horticultor dedicado vai saber: “engraçado, a folha do agrião, esse ano, ficou mais larga; o verde está diferente, está mais sedoso”. Ele vai perceber os menores nuances e vai significá-los, vai entender o que está acontecendo, qual a história que está por trás daquilo.
É um exercício de amor. É um exercício gratificante, de compreensão e de nutrição espiritual. Você se nutre, se interioriza, você ganha uma intimidade com você mesmo, ganha um conteúdo interno.
Então, esse exercício da memória não passa por ficar ali, se forçando a decorar. As coisas são guardadas porque são significativas. Por isso, elas são guardadas dentro da sua cabeça.
Falar assim: “engraçado, aquele dia que fizemos aquele piquenique, não consigo esquecer aquela cena na beira do rio”. Por quê? Porque ela é exatamente significativa, por isso não esqueço essa cena. Quem esquece uma coisa significativa? Pode esquecer temporariamente.
Então, não se trata da memória acumulativa, se trata do exercício da atenção. Aí é que vem a questão da criatividade que você colocou muito bem, que vai desenvolver essa minha possibilidade de ver as coisas sob varias ópticas, vários ângulos, de várias maneiras.
Outra questão ligada a trabalho: eu tinha uma amiga, queridíssima – infelizmente morreu – que tinha um complexo danado, se sentia culpada porque não trabalhava. Ela tinha um meio de subsistência, uma pensão que dava para ela viver, ela ficava incomodada. Achava ótimo, mas se sentia culpada. E eu trabalhando feito uma desventurada, aí é que ela ficava mais culpada ainda. A gente sentava para conversar e ela falava assim: “Sônia, mas eu penso, sento na minha cadeira de balanço e penso. Acho que faço uma coisa importante. Será que sou desocupada? Será que sou improdutiva, à-toa?”. Eu falava: “não, é diferente. Existe uma diferença entre improdutividade e ócio; você é uma pessoa ociosa”. E ela ficou felicíssima. “Está ótimo, então não preciso me preocupar mais.” Não, não precisa se preocupar mais não, boba, aproveita que você está ociosa, e aproveita bastante.
É diferente. Realmente se faz uma diferença – a sociedade de consumo, sobretudo, a sociedade calcada na produtividade –, entre trabalho e inatividade. O trabalho é produtivo, a inatividade é improdutiva. A sociedade tem que ter reservas para a manutenção de uma improdutividade incontornável e é, geralmente, impiedosa com a improdutividade em geral.
Impiedosa com os velhos. Impiedosíssima com os velhos. Exatamente. E, no entanto, o velho, numa sociedade calcada, por exemplo, no poder da memória, pode não estar fazendo coisas, mas está trabalhando intensamente. Ele é altamente laborioso, porque está produzindo incessantemente a memória da coletividade, sem a qual a coletividade não vive. Então, ele é valorizado.

(Pergunta inaudível)...
Acho que é um exemplo muito interessante este que você está colocando, porque acho que o Japão é realmente uma civilização, uma cultura contraditória, desconcertante. Porque ela tem as duas características muito fortes. Ela é uma sociedade altamente tecnológica, está num nível altíssimo. Inclusive as previsões futuras colocam o Japão como a potência que vai dominar o mundo. E, ao mesmo tempo, é uma cultura calcada na tradição.
Agora, acho que as duas coisas não estão organicamente ligadas. É como se fossem dois níveis de realidade, mas fortíssimos.
E você tem razão. Tudo que é criativo na cultura japonesa – que não é simplesmente a produção mecânica, a produção do engenho, da técnica – tem uma carga imensa da memória ancestral, milenar. Você pega a arte japonesa, inclusive a arte contemporânea, os pintores contemporâneos; você pega as músicas japonesas; o filme japonês é belíssimo; é um negócio de uma força, de uma intensidade! A língua é trabalhada também com intensidade.
Então, realmente, você tem razão, é isso mesmo. Mas é uma coisa meio desconcertante, é uma contradição. Não sei como ela vai se resolver. Porque são duas coisas muito difíceis de serem conciliadas, porque os modelos, os padrões de existência são outros. E o padrão urbano do Japão e o padrão pós-industrial. Não é o padrão da tradição. Não sei como fica.
Mas, voltando à questão do ócio... a sociedade divide o que é ativo e inativo. Essa divisão do ativo e do inativo é típica de uma compreensão já deturpada do trabalho. É como se o trabalho fosse só a atividade. Não tivesse o momento da meditação, o momento da introspecção, o momento da parada, da ruptura, da lacuna.
Assim como as significações valem tanto pelo que se diz quanto pelo que não se diz, assim como a poesia fala pelas entrelinhas, a atividade se complementa visceralmente com a inatividade, com o ócio, ou seja, com uma disponibilidade, como se fosse com bolsões, com aberturas que ela vai criando dentro dela para não se tornar uma compulsividade desenfreada, que é mais ou menos o que a gente vê.

(Comentário inaudível)...
Engrenar como? Explica o que você esta perguntando?

(Pergunta inaudível)...
Você perguntou: uma pessoa que traz, registrado no seu corpo, uma memória penosa do seu próprio trabalho, será que ela pode resgatar uma memória restauradora, recuperadora do seu ser? Quer dizer, simultaneamente a uma recuperação física, ela pode resgatar uma recuperação simbólica do seu trabalho? É isso?
É. Acho que aí a questão é um pouco difícil, Rosa, porque, para resgatar uma coisa, é necessário que ela tenha existido. Você não pode inventar o que não existiu. E muitas vezes, aquele que vem até vocês é um sujeito que foi acidentado por um trabalho mecanizado, automatizado, compulsivo, alienante, e não por um trabalho criador.
É um momento até de parada.

(Comentário inaudível)...
É. Talvez funcionar nesse sentido de criação de um espaço. Mas, isso implica também uma tramitação social, institucional. Não é uma coisa que você possa fazer no nível da sua relação individualizada com a pessoa, com o acidentado. É uma coisa que a instituição tem que assumir também. Essa possibilidade dele voltar e encontrar ali uma gratificação, ou seja, uma indenização humana.
Se ele não pode resgatar o outro lado da moeda, quem sabe ele pode ser indenizado? Mas não no sentido indenizado materialmente apenas. Porque ele deveria ser indenizado materialmente. Ele deveria ser, e muito bem indenizado. O mutilado pelo trabalho deveria ser muitíssimo bem indenizado. Em país desenvolvido, ele é.
Agora, além disso, como ele vai ser indenizado espiritualmente? Abrindo uma comporta de gratificação que possa dar para ele, num outro nível, uma coisa que ele perdeu no nível de cá. Porque é muito terrível.
Acho que o mutilado por um trabalho maquinal, por mais inconsciente ou por mais inocente que ele esteja, por mais crítico que seja, deve dar uma sensação de pobreza mesmo, de exaustão interna. Deve ser muito difícil. Psicologicamente muito difícil. Acredito que deva ser tão ou mais que o mutilado de guerra.
Acho que o trabalho que vocês desenvolvem com essas pessoas, pensando nesses aspectos, ganha uma dimensão gravíssima, muito importante. Mas não saberia te responder como fazer isso dentro da instituição que a gente tem, que se aproveita de uma greve, por exemplo, para fazer economia. Aproveita-se de uma greve do INPS para fazer economia nos cofres públicos. Realmente é difícil responder a isso.

(Comentário inaudível)
Revolta é um sentimento positivo de afirmação de vida que, se puder ser trabalhado, ou seja, se puder ser transformado com uma relação com o mundo...

(Comentário inaudível)
Desligado por quê? Porque, se ligado, dói demais... desligam-no.
Mas, estava falando que, na verdade, se você considera o sentido criativo de trabalho, o ócio esta dentro. O ócio é uma disposição. A gente usa a palavra disposta, fala assim: “arrumei uma pessoa para fazer o serviço; ela e disposta, você precisava ver”. Quer dizer, disponível. A disponibilidade faz parte do menor entusiasmo que você tem do trabalho. E o ócio é precisamente isso: essa disponibilidade.
Você pode ter a disponibilidade meramente manual e pode ter uma disponibilidade inteira. Quando você está engajada numa coisa, você é inteiramente disponível. Quando não está, não precisa pelejar que dali não sai.
Seria preciso fazer uma realimentação. É necessário para você realimentar as energias, é necessário para você fruir, é necessário para você contemplar.
Leiam o texto bíblico: Deus trabalhou sete dias. Ele para toda hora. Vocês já repararam como Ele para? Toda hora, Ele para, descansa um pouquinho, olha as coisas. Ele descansa mesmo para valer no sétimo, mas Ele dá umas paradas, olha, fala que está bom. Fala: “está bom”. Continua. Daí a pouco, olha de novo, vê que está bom; “é, ficou bom”. Continua.
Você tem que fruir, você tem que se encontrar naquilo que você faz. Se não, não dá. É o ócio. Essa realimentação, essa fruição, esse prazer de retirar prazer do trabalho.

(Comentário inaudível). O prazer? O ócio.
Claro, se amadurecer é aumentar os canais de fruição do viver, é claro que tem que aumentar com a idade. Uma das vantagens de ficar mais velho é poder sentir mais prazer nas coisas.
Então, é interessante que, ideologicamente há uma dicotomia. O trabalho está vinculado a quê? A dever. E prazer está vinculado a quê? A não trabalho, a lazer, a ficar à-toa, a não fazer, a não agir, à inatividade. Lazer é fruição. E o lazer está intimamente associado ao operar, ao agir, ao atuar, ao dinamismo. Não tem que estar separado. O que separa é uma dicotomia ideológica, ou seja, tendenciosa, que atende aos interesses que não são os interesses de quem está vivendo a separação.
Vejam como a coisa vai mais fundo: ligar o trabalho ao dever é ligar o trabalho à culpa, à culpabilidade. Então, o trabalho vira castigo. Eu trabalho porque sou culpado e tenho que ser castigado para depois que ficar bem castigado, aí morro e vou para o céu. Aí, fico à-toa, olhando, olhando. Aí, não vai é saber ficar à-toa: como faz? Pois é, como faz? Aí, vai ser o inferno. Ficar à-toa. É igual marido, domingo, dentro de casa, andando para baixo e para cima. Nós, lá no céu, à-toa, aquele inferno, não tem nada para fazer. Então, essa ligação é uma ligação ideológica.

* Conferência pronunciada aos profissionais do Centro de Reabilitação Profissional do INSS. Belo Horizonte, 12 de julho de 1989. Revisada por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O trabalho é para ressuscitar

Por Pigi Colognesi

Em uma rápida reunião de redação do IlSussidiario.net decidimos que o editorial de hoje tenha como tema o trabalho, visto que amanhã é primeiro de maio. Comecei a pensar a respeito enquanto ia para a biblioteca - uma importante biblioteca pública de Milão - para procurar um livro que me seja útil para o meu trabalho.
Enquanto preenchia os formulários necessários para o ingresso, a empregada que estava diante de mim diz, entre deprimida e rancorosa, para a sua colega: "Não é o trabalho que me cansa. São as pessoas que me irritam". Pareceu-me falso e redutivo e quis, então, entender por quê. Decidi, assim, que o editorial iria começar daqui.
Antes de mais, volta-me à mente o fato que quando, esperando um volume qualquer, aconteceu de eu escutar as conversas dos empregados daquela biblioteca, o argumento era, frequentemente, a lamentação quanto a um colega qualquer, ausente obviamente, ou quanto ao chefe: alguém que deixou o lugar em desordem, ou aquela que chegou atrasada, o chefe que definiu as férias injustamente, e por aí vão as lamentações. Mas, somando tudo, isso me parece suficientemente normal. Cada convivência, sobretudo quando não é escolhida, tem seus espinhos e asperezas.
Depois, pensei que também eu, como usuário, no fundo, sou alguém que irrita, porque coloco problemas, tenho uma exigência, interrompo uma leitura ou um discurso, sou um fator de distúrbio quando se pensa no programa estabelecido. Mas isso se pode dizer de cada relacionamento de trabalho.
E se uma pessoa cansa e a tratamos mal, imaginemos o que possa acontecer com as coisas que, diferentemente dos homens, sequer se lamentam. Entendo bem, então, de onde vem o descuido de tantos ambientes de trabalho, aquela desordem feia que denota falta de respeito pelas coisas e pela beleza dos seus relacionamentos equilibrados.
Volta à minha mente a grande conferência que François Michelin proferiu no Meeting [de Rímini; ndt] de alguns anos atrás. O dono da fábrica de pneus surpreendeu a todos ao expor o princípio sobre o qual ele fazia todas as suas escolhas econômicas e organizativas: o respeito pelo dado. Cada trabalho, ele dizia, é um relacionamento que se assume com algo de diferente de você, algo de preexistente às nossas próprias imaginações, cálculos, previsões.
Trabalhar - e ter sucesso no trabalho - significa dobrar-se a esta irredutível e fecunda alteridade: o colega, o operário, o fornecedor, o cliente. Até mesmo a matéria-prima; sim, porque o homem não é criador, como Deus, e pode modelar a matéria segundo os seus objetivos tão somente se lhes respeitar as características.
É evidente, então, que a verdadeira dificuldade que frequentemente encontramos no trabalho, aquela insatisfação que se torna o fundo do cotidiano que somos obrigados a carregar, provêm diretamente da não aceitação do dado - pessoas e coisas -, da pretensão de assumir apenas uma realidade selecionada pelos nossos gostos, prazeres e desejos.
E assim nos condenamos à esterilidade de quem não encontra nunca algo de novo. Condenamos-nos a não fazer nunca a experiência descrita pelo poeta polonês Kiprian Norwid: "A beleza existe para suscitar admiração que, depois, leva ao trabalho: o trabalho é para ressuscitar".

* Publicado no IlSussidiario.net, do dia 30 de abril de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.