Mostrando postagens com marcador coração. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador coração. Mostrar todas as postagens

domingo, 1 de abril de 2012

Sejamos como mantos estendidos a Seus pés


Celebração do Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor
Homilia do Papa Bento XVI
Praça de São Pedro
XXVII Jornada Mundial da Juventude
Domingo, 1 de Abril de 2012

Queridos irmãos e irmãs!
O Domingo de Ramos é o grande portal de entrada na Semana Santa, a semana em que o Senhor Jesus caminha até ao ponto culminante da sua existência terrena. Ele sobe a Jerusalém para dar pleno cumprimento às Escrituras e ser pregado no lenho da cruz, o trono de onde reinará para sempre, atraindo a Si a humanidade de todos os tempos e oferecendo a todos o dom da redenção. Sabemos, pelos Evangelhos, que Jesus Se encaminhara para Jerusalém juntamente com os Doze e que, pouco a pouco, se foi unindo a eles uma multidão cada vez maior de peregrinos. São Marcos refere que, já à saída de Jericó, havia uma “grande multidão” que seguia Jesus (cf. Mc 10, 46).
Nesta última parte do percurso, tem lugar um acontecimento singular, que aumenta a expectativa sobre aquilo que está para suceder, fazendo com que a atenção geral se concentre ainda mais em Jesus. À saída de Jericó, na beira do caminho, está sentado pedindo esmola um cego, chamado Bartimeu. Quando ouve dizer que Jesus de Nazaré estava chegando, começa a gritar: “Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim!” (Mc 10, 47). Procuram silenciá-lo, mas sem sucesso; por fim Jesus manda-o chamar, convidando-o a aproximar-se. “O que queres que Eu te faça?” – pergunta-lhe. E ele: “Mestre, que eu veja!” (v. 51). Jesus responde: “Vai, a tua fé te curou”. Bartimeu recuperou a vista e começou a seguir Jesus pela estrada (cf. v. 52). Depois deste sinal prodigioso precedido pela invocação “Filho de Davi”, de repente levanta-se um frêmito de esperança messiânica no meio da multidão, fazendo com que muitos se perguntassem: Poderia este Jesus, que caminhava à sua frente para Jerusalém, ser o Messias, o novo Davi? Porventura teria chegado, com esta sua entrada já iminente na cidade santa, o momento em que Deus iria finalmente restaurar o reino de Davi?
Também a preparação da entrada, combinada por Jesus com os seus discípulos, ajuda a aumentar esta esperança. Como ouvimos no Evangelho de hoje (cf. Mc 11,1-10), Jesus chega a Jerusalém vindo de Betfagé e do Monte das Oliveiras, isto é, seguindo a estrada por onde deveria vir o Messias. De Betfagé, Ele envia à sua frente dois discípulos, com a ordem de Lhe trazerem um jumentinho que encontrarão no caminho. De fato encontram o jumentinho, soltam-no e levam-no a Jesus. Naquele momento, o entusiasmo apodera-se dos discípulos e também dos outros peregrinos: pegam nos seus mantos e colocam-nos uns sobre o jumentinho e outros estendidos no caminho por onde Jesus passa montado no jumento. Depois cortam ramos das árvores e começam a apregoar expressões do Salmo 118, antigas palavras de bênção dos peregrinos que, naquele contexto, se tornam uma proclamação messiânica: “Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito seja o reino que vem, o reino de nosso pai Davi! Hosana no mais alto dos céus!” (vv. 9-10). Esta aclamação festiva, transmitida pelos quatro evangelistas, é um brado de bênção, um hino de exultação: exprime a convicção unânime de que, em Jesus, Deus visitou o seu povo e que o Messias ansiado finalmente chegou. E todos permanecem lá, numa crescente expectativa da ação que Cristo realizará quando entrar na sua cidade.
Mas qual é o conteúdo, o sentido mais profundo deste grito de júbilo? A resposta nos é dada pela Escritura no seu conjunto, quando nos lembra que no Messias se cumpre a promessa da bênção de Deus, a promessa feita por Deus originariamente a Abraão, o pai de todos os crentes: “Farei de ti um grande povo e te abençoarei (...). Em ti serão abençoadas todas as famílias da terra!” (Gen 12, 2-3). Trata-se de uma promessa que Israel mantivera sempre viva na oração, especialmente na oração dos Salmos. Por isso, Aquele que a multidão aclama como o Bendito é, ao mesmo tempo, Aquele em quem será abençoada a humanidade inteira. Assim, na luz de Cristo, a humanidade reconhece-se profundamente unida e, de certo modo, envolvida pelo manto da bênção divina, uma bênção que tudo permeia, tudo sustenta, tudo redime, tudo santifica.
E aqui podemos descobrir uma primeira grande incumbência que nos chega da festa de hoje: o convite a adotar a visão reta sobre a humanidade inteira, sobre os povos que formam o mundo, sobre suas diversas culturas e civilizações. A visão que o crente recebe de Cristo é um olhar de bênção: um olhar sapiencial e amoroso, capaz de captar a beleza do mundo e condoer-se da sua fragilidade. Nesta visão, manifesta-se o próprio olhar de Deus sobre os homens que Ele ama e sobre a criação, obra das suas mãos. Lemos no Livro da Sabedoria: “De todos tens compaixão, porque tudo podes, e fechas os olhos aos pecados dos mortais, para que se arrependam. Sim, amas tudo o que existe e não desprezas nada do que fizeste; (...) a todos, porém, tratas com bondade, porque tudo é teu, Senhor amigo da vida” (Sb 11, 23-24.26).
Voltando à passagem do Evangelho de hoje, perguntemo-nos: Que pensavam, realmente, em seus corações aqueles que aclamam Cristo como Rei de Israel? Certamente tinham a sua ideia própria do Messias, uma ideia do modo como devia agir o Rei prometido pelos profetas e há muito esperado. Não foi por acaso que a multidão em Jerusalém, poucos dias depois, em vez de aclamar Jesus, grita para Pilatos: “Crucifica-O!”, enquanto os próprios discípulos e os outros que O tinham visto e ouvido ficam mudos e confusos. Na realidade, a maioria ficara desapontada com o modo escolhido por Jesus para Se apresentar como Messias e Rei de Israel. É precisamente aqui que se situa o ponto fulcral da festa de hoje, mesmo para nós. Para nós, quem é Jesus de Nazaré? Que ideia temos do Messias, que ideia temos de Deus? Esta é uma questão crucial, que não podemos evitar, até porque, precisamente nesta semana, somos chamados a seguir o nosso Rei que escolhe a cruz como trono; somos chamados a seguir um Messias que não nos garante uma felicidade terrena fácil, mas a felicidade do céu, a bem-aventurança de Deus. Por isso devemos perguntar-nos: Quais são as nossas reais expectativas? Quais são os desejos mais profundos que nos animaram a vir aqui, hoje, celebrar o Domingo de Ramos e iniciar a Semana Santa?
Queridos jovens, aqui reunidos! Em todos os lugares da terra onde a Igreja está presente, este Dia é especialmente dedicado a vós. Por isso, vos saúdo com muito carinho! Que o Domingo de Ramos possa ser para vós o dia da decisão: a decisão de acolher o Senhor e segui-Lo até ao fim, a decisão de fazer da sua Páscoa de morte e ressurreição o sentido da vossa vida de cristãos. Tal é a decisão que leva à verdadeira alegria, como quis recordar na Mensagem aos Jovens para este seu Dia – “Alegrai-vos sempre no Senhor” (Fil 4, 4) –, e como se vê na vida de Santa Clara de Assis, que há oitocentos anos – exatamente no Domingo de Ramos –, movida pelo exemplo de São Francisco e dos seus primeiros companheiros, deixou a casa paterna para consagrar-se totalmente ao Senhor: com dezoito anos, teve a coragem da fé e do amor para se decidir por Cristo, encontrando nEle a alegria e a paz.
Queridos irmãos e irmãs, dois sentimentos nos animem particularmente nestes dias: o louvor, como fizeram aqueles que acolheram Jesus em Jerusalém com o seu “Hosana”; e a gratidão, porque, nesta Semana Santa, o Senhor Jesus renovará o dom maior que se possa imaginar: dar-nos-á a Sua vida, o Seu corpo e o Seu sangue, o Seu amor. Mas um dom assim tão grande exige que o retribuamos adequadamente, ou seja, com o dom de nós mesmos, do nosso tempo, da nossa oração, do nosso viver em profunda comunhão de amor com Cristo que sofre, morre e ressuscita por nós. Os antigos Padres da Igreja viram um símbolo de tudo isso num gesto das pessoas que acompanhavam Jesus na sua entrada em Jerusalém: o gesto de estender os mantos diante do Senhor. O que devemos estender diante de Cristo – diziam os Padres – é a nossa vida, ou seja, a nós mesmos, em sinal de gratidão e adoração. Para concluir, escutemos o que diz um desses antigos Padres, Santo André, Bispo de Creta: “Em vez de mantos ou ramos sem vida, em vez de arbustos que alegram o olhar por pouco tempo, mas depressa perdem o seu vigor, prostremo-nos nós mesmos aos pés de Cristo, revestidos da sua graça, ou melhor, revestidos dEle mesmo (…); sejamos como mantos estendidos a Seus pés (…), para oferecermos ao vencedor da morte não já ramos de palmeira, mas os troféus da sua vitória. Agitando os ramos espirituais da alma, aclamemo-Lo todos os dias, juntamente com as crianças, dizendo estas santas palavras: ‘Bendito o que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel’” (PG 97, 994). Amém!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 1 de abril de 2012. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A Quaresma com os santos

A circuncisão do coração 

Das Demonstrações de Afraates, bispo (Séc.IV)
(Dem.11,De circumcisione, 11-12:PS 1,498-503)

A lei e a aliança foram totalmente mudadas. Primeiramente Deus substituiu o pacto com Adão por outro que estabeleceu com Noé; e ainda estabeleceu outro com Abraão, substituindo-o depois por um novo, feito com Moisés. Como a aliança mosaica não era observada, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus firmou uma aliança que não seria mais mudada. Com efeito, a Adão Deus ordenara não comer da árvore da vida, a Noé dera o arco-íris, a Abraão, já escolhido por causa da sua fé, deu mais tarde a circuncisão, como sinal característico de seus descendentes; a Moisés deu o cordeiro pascal para ser imolado como propiciação pelo povo. Todas essas alianças eram diferentes umas das outras. Mas a circuncisão que agrada ao autor de todas elas é aquela de que fala Jeremias: Circuncidai o vosso coração (Jr 4,4). Pois se o pacto estabelecido por Deus com Abraão foi firme, também este é firme e imutável e não seria possível estabelecer depois outra lei, seja por parte dos que estão fora da Lei ou dos que a ela estão submetidos. O Senhor deu a lei a Moisés, com todas as suas observâncias e preceitos; como não cumpriram, anulou a lei e seus preceitos e prometeu fazer uma nova aliança, que seria, como disse, diferente da primeira, embora fosse um só o doador de ambas. E é esta a aliança que prometeu dar: Todos se reconhecerão, do menor ao maior deles (Jr 31,34). Nessa aliança não há mais a circuncisão da carne como sinal de pertença a seu povo. Sabemos com certeza, caríssimos irmãos, que durante várias gerações Deus estabeleceu leis que estiveram em vigor enquanto foi de Seu agrado, e que mais tarde caíram em desuso, como disse o Apóstolo: “No passado, o reino de Deus assumiu formas diversas, segundo os diversos tempos”. O nosso Deus é veraz e os Seus preceitos são fidelíssimos. Por isso, cada uma das alianças foi em seu tempo firme e verdadeira. Agora, os circuncisos de coração têm a vida por meio da nova circuncisão que se realiza no verdadeiro Jordão, isto é, por meio do batismo para a remissão dos pecados. Josué, filho de Nun, com uma faca de pedra circuncidou o povo pela segunda vez, quando ele e seu povo atravessaram o rio Jordão. Jesus, nosso Salvador, circuncidou pela segunda vez, com a circuncisão do coração, os povos que nEle creram purificados pelo batismo e circuncidados com a espada que é a palavra de Deus, mais cortante do que qualquer espada de dois gumes (Hb 4,12). Josué, filho de Nun, introduziu o povo na terra da promissão; Jesus, nosso Salvador, prometeu a terra da vida a todos que atravessassem o Jordão, cressem nEle e fossem circuncidados no coração. Felizes, portanto, os que foram circuncidados em seu coração e renasceram das águas da segunda circuncisão! Estes receberão a herança prometida, juntamente com Abraão, guia fiel e pai de todos os povos, porque a sua fé lhe foi atribuída como justiça.

sábado, 7 de janeiro de 2012

A lei divina é fonte de vida


Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro

Quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Nas últimas catequeses meditamos sobre alguns Salmos que são exemplos dos gêneros típicos de oração: lamento, confiança, louvor. Na catequese de hoje gostaria de me dedicar ao Salmo 119 segundo a tradição hebraica, 118 segundo a greco-latina: um Salmo muito particular, único no seu gênero. Antes de mais, o é por seu comprimento: é composto, de fato, por 176 versículos divididos em 22 estrofes de oito versículos cada uma. Depois, tem a peculiaridade de ser um “acróstico alfabético”: ou seja, é construído segundo o alfabeto hebraico, que é composto por 22 letras. Cada estrofe corresponde a uma letra deste alfabeto, e com tal letra começa a primeira palavra dos oito versículos da estrofe. Trata-se de uma construção literária original e muito exigente, na qual o autor do Salmo teve que colocar em jogo toda a sua habilidade.
Mas, o que para nós é mais importante é a temática central deste Salmo: trata-se, de fato, de um imponente e solene canto sobre a Torá do Senhor, ou seja, sobre a Sua Lei, termo que, na sua acepção mais ampla e completa, é compreendido como ensinamento, instrução, direcionamento de vida; a Torá é revelação, é Palavra de Deus que interpela o homem e provoca a sua resposta de obediência confiante e de amor generoso. E é de amor pela Palavra de Deus que este Salmo é todo atravessado; ele celebra a sua beleza, a sua força salvífica, a sua capacidade de dar alegria e vida. Porque a Lei divina não é jugo pesado de escravidão, mas dom de graça que torna livres e leva à felicidade. “Nos Teus decretos me deleito; não esquecerei Tua palavra” (v. 16), afirma o Salmista; e em seguida: “Dirige-me na senda dos teus mandamentos, porque nela está minha alegria” (v. 35); e ainda: “Quanto amo a tua lei; passo o dia todo a meditá-la” (v. 97. A Lei do Senhor, a Sua Palavra, é o centro da vida do orante; nela ele encontra consolação, faz dela objeto de meditação, a conserva no seu coração: “Conservo no coração tuas promessas para não te ofender com o pecado” (v. 11), é este o segredo da felicidade do Salmista; e depois ainda: “Caluniaram-me os insolentes, de todo coração guardarei teus preceitos” (v. 69).
A fidelidade do Salmista nasce da escuta da Palavra, a ser guardada no seu interior, meditando-a e amando-a, exatamente como Maria, que “guardava, meditando-as no seu coração” as palavras que lhe eram dirigidas e os eventos maravilhosos nos quais Deus Se revelava, pedindo o seu assentimento de fé (cf. Lc 2, 19.51). E se o nosso Salmo começa nos primeiros versículos proclamando “felizes” os “que caminham na Lei do Senhor” (v. 1b) e “os que guardam os Seus ensinamentos” (v. 2a), é ainda a Virgem Maria quem leva à plena realização a perfeita figura do crente descrito pelo Salmista. É Ela, de fato, a verdadeira “feliz”, proclamada por Isabel porque “creu no cumprimento daquilo que o Senhor lhe disse” (Lc 1, 45), e é dEla e de sua fé que Jesus mesmo dá testemunho quando, à mulher que lhe havia gritado “Feliz o seio que te carregou”, responde “Mais felizes são aqueles que escutam a palavra de Deus e a põem em prática!” (Lc 11, 27-28). Certamente, Maria é feliz porque o seu seio carregou o Salvador, mas sobretudo porque acolheu o anúncio de Deus, porque foi atenta e amorosa custodiadora da Sua Palavra.
O Salmo 119 é, portanto, todo tecido ao redor desta Palavra de vida e de felicidade. Se o seu tema central é a “Palavra” e a “Lei” do Senhor, ao lado destes termos aparecem, em quase todos os versículos, sinônimos como “preceitos”, “decretos”, “mandamentos”, “ensinamentos”, “promessa”, “juízos”, e tantos verbos vinculados a estes como observar, guardar, compreender, conhecer, amar, meditar, viver. Todo o alfabeto passa através das 22 estrofes deste Salmo, e também todo o vocabulário do relacionamento confiante do crente com Deus; encontramos nele o louvor, o agradecimento, a confiança, mas também a súplica e o lamento, sempre, porém, atravessados pela certeza da graça divina e da potência da Palavra de Deus. Mesmo os versículos mais marcados pela dor e pelo senso de escuridão permanecem abertos à esperança e são permeados de fé. “Estou prostrado no chão; dá-me vida conforme tua palavra” (v. 25), reza confiante o Salmista; “Sou como um odre exposto à fumaça, mas não esqueço teus estatutos” (v. 83), é o grito do crente. A sua fidelidade, mesmo se colocada à prova, encontra força na Palavra do Senhor: “a quem me insulta, poderei responder que tenho confiança na tua palavra” (v. 42), ele afirma com firmeza; e mesmo diante da perspectiva angustiante da morte, os mandamentos do Senhor são o seu ponto de referência e a sua esperança de vitória: “Por pouco não me expulsaram deste mundo, mas não abandonei teus preceitos” (v. 87).
A lei divina, objeto do amor apaixonado do Salmista e de todo crente, é fonte de vida. O desejo de compreendê-la, de observá-la, de orientar a ela todo o próprio ser é a característica do homem justo e fiel ao Senhor, que a “medita dia e noite”, como recita o Salmo 1 (v. 2); é uma lei, a de Deus, que deve ser mantida “no coração”, como diz o bem conhecido texto do Shemá no Deuteronômio:
“Ouve, ó Israel! (...) trarás gravadas no teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás com insistência a teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em casa ou andando a caminho, quando te deitares ou te levantares” (Dt 6, 4.6-7).
Centro da existência, a Lei de Deus solicita a escuta do coração, uma escuta feita de obediência não servil, mas filial, confiante, consciente. A escuta da Palavra é encontro pessoal com o Senhor da vida, um encontro que deve se traduzir em escolhas concretas e se tornar caminho e seguimento. Quando Lhe é perguntado o que fazer para ter a vida eterna, Jesus aponta o caminho da observância da Lei, mas indicando como fazer para levá-la à realização: “Só te falta uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (Mc 10, 21). A realização da Lei é seguir Jesus, andar no caminho de Jesus, em companhia de Jesus. 
O Salmo 119 nos leva, portanto, ao encontro com o Senhor e nos orienta para o Evangelho. Há nele um versículo sobre o qual eu gostaria de me dedicar: é o versículo 57 – “Eu disse: Minha porção, Senhor, é guardar Tuas palavras”. Também em outros Salmos o orante afirma que o Senhor é a sua “porção”, a sua herança: “O Senhor é a minha parte da herança e meu cálice”, recita o Salmo 16 (v. 5a), “rochedo do meu coração e minha porção é Deus para sempre!” é a proclamação do fiel no Salmo 73 (v. 26b), e ainda, no Salmo 142, o Salmista grita ao Senhor: “És meu refúgio, és a minha porção na terra dos vivos” (v. 6b).
Este termo – “porção” – evoca o evento da repartição da terra prometida entre as tribos de Israel, quando aos Levitas não é dada nenhuma porção do território, porque a sua “porção” era o Senhor mesmo. Dois textos do Pentateuco são explícitos quanto a isto, utilizando o termo em questão: “O Senhor disse a Aarão: ‘Tu não terás herança na terra dos israelitas, nem haverá porção para ti em seu meio. Eu sou tua porção e tua herança no meio deles’”, assim declara o Livro dos Números (Nm 18, 20), e o Deuteronômio reitera: “Por isso Levi não tem porção nem herança com seus irmãos, porque o próprio Senhor é a sua herança, como o Senhor teu Deus lhe prometeu” (Dt 10, 9; cf. Dt 18, 2; Js 13, 33; Ez 44, 28).
Os sacerdotes, pertencentes à tribo de Levi, não podem ser proprietários de terras no país que Deus dava como herança para o seu povo, realizando a promessa feita a Abraão (cf. Gn 12, 1-7). A posse da terra, elemento fundamental de estabilidade e de possibilidade de sobrevivência, era sinal de bênção, porque implicava a possibilidade de construir uma casa, de criar os filhos, de cultivar os campos e de viver dos frutos da terra. Pois bem, os Levitas, mediadores do sagrado e da bênção divina, não podem possuir, como os outros israelitas, este sinal exterior da bênção e esta fonte de subsistência. Inteiramente doados ao Senhor, devem viver apenas dEle, abandonados ao Seu amor providente e à generosidade dos irmãos, sem ter herança porque Deus é a sua porção da herança, Deus é a sua terra, que os faz viver em plenitude.
E agora, o orante do Salmo 119 aplica a si esta realidade: “A minha porção é o Senhor”. O seu amor por Deus e pela Sua Palavra o leva à escolha radical de ter o Senhor como único bem e também de guardar as Suas palavras como dom precioso, mais valioso do que toda herança, e do que toda posse terrena. O nosso versículo, de fato, tem a possibilidade de uma dupla tradução e poderia mesmo ser lido da seguinte maneira: “A minha porção, Senhor, eu disse, é guardar as Tuas palavras”. As duas traduções não se contradizem, mas se completam: o Salmista está afirmando que a sua porção é o Senhor, mas também que guardar as palavras divinas é a sua herança, como, em seguida, dirá no versículo 111: “Minha herança para sempre são teus testemunhos, são esses a alegria do meu coração”. É esta a felicidade do Salmista: a ele, assim como para os Levitas, foi dada como porção de herança a Palavra de Deus.
Caríssimos irmãos e irmãs, estes versículos são de grande importância também hoje para todos nós. Antes de mais para os sacerdotes, chamados a viver apenas do Senhor e da Sua Palavra, sem outras seguranças, tendo Ele como único bem e única fonte de verdadeira vida. Nesta luz se compreende a livre escolha do celibato pelo Reino dos céus, que deve ser redescoberto na sua beleza e força. Mas estes versículos são importantes também para todos os fiéis, povo de Deus pertencente apenas a Ele, “reino de sacerdotes” para o Senhor (cf. 1Pd 2, 9; Ap 1, 6; Ap 5, 10), chamados à radicalidade do Evangelho, testemunhas da vida trazida pelo Cristo, novo e definitivo “Sumo Sacerdote” que se ofereceu em sacrifício para a salvação do mundo (cf. Hb 2, 17; Hb 4, 14-16; Hb 5, 5-10; Hb 9, 11ss). O Senhor e a Sua Palavra: isto é a nossa “terra”, na qual viver na comunhão e na alegria.
Deixemos, portanto, que o Senhor coloque em nosso coração este amor pela Sua Palavra, e nos conceda ter sempre no centro da nossa existência Ele e Sua santa vontade. Peçamos que a nosssa oração e toda a nossa vida sejam iluminadas pela Palavra de Deus, lâmpada para os nossos passos e luz para o nosso caminho, como diz o Salmo 119 (cf. v. 105), de forma que nosso caminhar seja seguro, na terra dos homens. E Maria, que acolheu e gerou a Palavra, seja nossa guia e nosso conforto, estrela polar que indica a via da felicidade. 
Então, também nós poderemos nos alegrar em nossa oração, como o orante do Salmo 16, com os dons inesperados do Senhor e pela imerecida herança que coube a nós:
“O Senhor é a minha porção da herança e meu cálice. Nas tuas mãos, a minha porção. Para mim a sorte caiu em lugares deliciosos, maravilhosa é minha herança” (Sl 16, 5-6).

* Extraído do site do Vaticano, do dia 9 de novembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Comentário ao Evangelho do dia - Advento


2ª Semana do Advento - Sexta-feira

1ª Leitura - Is 48, 17-19
Isto diz o Senhor, o teu libertador, o Santo de Israel: "Eu, o Senhor teu Deus, te ensino coisas úteis, te conduzo pelo caminho em que andas. Ah, se tivesses observado os Meus mandamentos! Tua paz teria sido como um rio e tua justiça como as ondas do mar; tua descendência seria como a areia do mar e os filhos do teu ventre como os grãos de areia; este nome não teria desaparecido nem teria sido cancelado de Minha presença"

Salmo - Sl 1
R. Senhor, quem vos seguir, terá a luz da vida. (Jo 8, 12)
Feliz é todo aquele que não anda*
conforme os conselhos dos perversos;
que não entra no caminho dos malvados,*
nem junto aos zombadores vai sentar-se;
mas encontra seu prazer na lei de Deus*
a medita, dia e noite, sem cessar. R. 

Eis que ele é semelhante a uma árvore,*
que à beira da torrente está plantada;
ela sempre dá seus frutos a seu tempo,
e jamais as suas folhas vão murchar.*
Eis que tudo o que ele faz vai prosperar. R. 

Mas bem outra é a sorte dos perversos.
Ao contrário, são iguais à palha seca*
espalhada e dispersada pelo vento.
Pois Deus vigia o caminho dos eleitos,*
mas a estrada dos malvados leva à morte. R.

Evangelho - Mt 11, 16-19
Naquele tempo, disse Jesus às multidões: "Com quem vou comparar esta geração? São como crianças sentadas nas praças, que gritam para os colegas, dizendo: 'Tocamos flauta e vós não dançastes. Entoamos lamentações e vós não batestes no peito!'. Veio João, que não come nem bebe, e dizem: 'Ele está com um demônio'. Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: 'É um comilão e beberrão, amigo de cobradores de impostos e de pecadores'. Mas a sabedoria foi reconhecida com base em suas obras".

Comentário feito por Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787)
bispo e doutor da Igreja 

"Fogo sempre ardente, diremos com Santo Agostinho, inflama as nossas almas." Jesus Cristo, fizeste-Te homem para acender nos nossos corações o fogo do amor divino: como pudeste encontrar em nós tamanha ingratidão? Tudo fizeste para que Te amassem; chegaste a sacrificar o Teu sangue e a Tua vida. Porque razão ficam os homens insensíveis a tantas graças? Será que as ignoram? Não, eles sabem, eles creem que, por amor deles, vieste do céu revestir a carne humana e carregar com as suas misérias; eles sabem que, por amor deles, quiseste levar uma vida de sofrimento permanente e sofrer uma morte ignominiosa. Depois disto, como explicar que vivam no completo esquecimento da Tua bondade extrema? Eles amam os pais, eles amam os amigos, eles chegam mesmo a amar os animais [...]; é somente por Ti que não sentem amor nem gratidão! Mas que digo eu? Ao acusar os outros de ingratidão, estou a condenar-me a mim mesmo, pois o meu comportamento para conTigo foi pior do que o deles. Porém, a Tua misericórdia dá-me coragem; sei que ela me sustentou durante tanto tempo, para me perdoar e incendiar-me com o Teu amor, com a única condição de eu querer arrepender-me e amar-Te. Sim, meu Deus, quero arrepender-me [...]; quero amar-Te com todo o meu coração. Reconheço que o meu coração [...] Te negligenciou para amar as coisas deste mundo; mas também vejo que, apesar desta traição, Tu continuas a chamá-lo. É por isso que, com toda a força da minha vontade, eu o dedico a Ti e o dou a Ti. Digna-Te incendiá-lo com o Teu santo amor; faz com que doravante ele só ame a Ti. [...] Amo-Te, meu Jesus; amo-Te, meu soberano Bem! Amo-Te, único amor da minha alma. Maria, minha mãe, tu que és "a Mãe do amor formoso" (Ecle 24, 24), obtém-me a graça de amar o meu Deus; é de ti que o espero.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Comentário ao Evangelho do dia - Advento


2ª Semana do Advento - Quarta-feira

1ª Leitura - Is 40,25-31
"Com quem haveis de me comparar, e a quem seria eu igual?" - fala o Santo. Levantai os olhos para o alto e vede: Quem criou tudo isto? - Aquele que expressa em números o exército das estrelas e a cada uma chama pelo nome: tal é a grandeza e força e poder de Deus que nenhuma delas falta à chamada. Então, por que dizes, Jacó, e por que falas, Israel: "Minha vida ocultou-se da vista do Senhor e meu julgamento escapa ao do meu Deus?". Acaso ignoras, ou não ouviste? O Senhor é o Deus eterno que criou os confins da terra; ele não falha nem se cansa, insondável é sua sabedoria; Ele dá coragem ao desvalido e aumenta o vigor do mais fraco. Cansam-se as crianças e param, os jovens tropeçam e caem, mas os que esperam no Senhor renovam suas forças, criam asas como as águias, correm sem se cansar, caminham sem parar.

Salmo - Sl 102 (103)
R. Bendize, ó minha alma ao Senhor.
Bendize, ó minha alma, ao Senhor, *
e todo o meu ser, seu santo nome!
Bendize, ó minha alma, ao Senhor, *
nâo te esqueças de nenhum de seus favores! R. 

Pois Ele te perdoa toda culpa, *
e cura toda a tua enfermidade;
da sepultura Ele salva a tua vida *
e te cerca de carinho e compaixão. R. 

O Senhor é indulgente, é favorável, *
é paciente, é bondoso e compassivo.
Não nos trata como exigem nossas faltas, *
nem nos pune em proporção às nossas culpas. R.

Evangelho - Mt 11,28-30
Naquele tempo, tomou Jesus a palavra e disse: "Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve".

Comentário feito por Pedro de Celles (c. 1115–1183)
monge, depois bispo

Senhor, envia-nos o Cordeiro; é do cordeiro que precisamos e não do leão (cf. Ap 5, 5-6); do Cordeiro que não Se irrita e cuja mansidão nunca Se perturba; do Cordeiro que nos dará a Sua lã, branca como a neve, para aquecer em nós aquilo que está frio, para cobrir a nossa nudez; do Cordeiro que nos dará a Sua carne a comer, para não morrermos de fraqueza no caminho (cf. Jo 6, 51; Mt 15, 32). Envia-O cheio de sabedoria porque, com a Sua prudência divina, Ele vencerá o espírito orgulhoso; envia-O cheio de força, porque está escrito que Ele é "o Senhor, poderoso herói, o Senhor, herói na batalha" (Sl 24, 8); envia-O cheio de mansidão, pois Ele descerá "como os aguaceiros que regam a terra" (Sl 72, 6); envia-O como vítima, porque Ele deverá ser vendido e imolado para nos resgatar (cf. Mt 26, 15; Jo 19, 36; Ex 12, 46); envia-O, não para exterminar os pecadores, pois "não veio chamar os justos, mas os pecadores" (cf. Mt 9, 13); envia-O, enfim, "digno de receber a glória, a honra e a força, [...] digno de receber o livro e de abrir suas páginas seladas" (Ap 4, 11; Ap 5, 9), isto é, o mistério inexprimível da Encarnação.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Quem nos livrará das ilusões do mau desejo?



Por Francesco Botturi

Num recente trabalho de Pietro Barcellona foi reproposto o tema da modernidade tecnológica e da sua orientação ao pós-humano, na qual se delineia uma alternativa prático-histórica para as “tradições culturais humanistas” com seu patrimônio ético-religioso e metafísico. Uma reflexão renovada, em suma, acerca da potencial, e em parte já atual, sublevação antropológica, de que falavam também dois recentes e interessantes textos de Antonio Allegra.
A questão é hoje fundamental; persistiríamos em não querer compreender o nosso tempo se não  notássemos que ele é atravessado por uma tendência, altamente sintomática ainda que minoritária, a considerar antiquado e falido o humanismo ocidental (veja-se, por exemplo, Sloterdijk recordado por Allegra) e a encarar como única alternativa possível e desejável uma disponibilização técnica integral do homem e do mundo, como racionalização criativa da existência. Portanto, não tanto uma alternativa laica própria do humanismo tradicional (para ficar claro, o humanismo dos direitos humanos, da solidariedade internacional, da democracia liberal etc.), mas uma alternativa frontal e global à ideia do humano como paradigma e medida intangível de sentido.
Trata-se não de uma forma nova de humanismo, mas de uma hipótese pós-humanista, na qual o humano encontra novo sentido na medida em que é sujeito-objeto ao mesmo tempo das mais avançadas possibilidades de transformação técnica. Uma técnica não mais concebida a serviço de um grande projeto reformador (estaríamos ainda numa visão humanista de um ideal meta-técnico colocado como guia dos processos históricos), mas uma técnica entendida como operadora de uma grande e integral transformação consequente ao seu experimentalismo mesmo (da qual, segundo penso, a ideia do “futurismo” italiano foi uma antecipação artístico-cultural interessante: a técnica não mais como executora de projetos, mas como criadora em si mesma de novidades, produtora, por si mesma, de nova antropologia).
Esta visão exasperada do nosso futuro se mantém e se torna atraente em razão de um concurso de fatores persuasivos, que é oportuno evidenciar: racionalidade técnico-científica, exercício de poder e experiência de liberdade. Uma síntese operativa que, na realidade, não deixa ninguém indiferente, porque coloca em jogo fatores antropológicos primários. Por isto, mesmo quem não assume como sua uma visão pós-humanista hard, compartilha facilmente dela a perspectiva de fundo que considera o homem como um constructo psíquico ou social modificável conforme o gosto – como recorda Barcellona –, como já é particularmente visível no vasto âmbito da biopolítica contemporânea; ou melhor, a aceitação de tais perspectivas é o modo normal com o qual o humanismo tradicional se desintegra por dentro no uso contemporâneo.
Isto adquirido, não acredito, porém, que seja proveitoso proceder através de uma sistemática contraposição entre o novo paradigma e o da tradição humanista. Mesmo porque neste tipo de confronto – entre aquilo que tem um seu passado e aquilo que tem um seu futuro – é óbvio que sai ganhando quem for mais persuasivo... Trata-se muito mais de entrar na síndrome antropológica que fundamenta a perspectiva pós-humana para compreender o que do humano está em jogo e o que torna tão atraente assim este jogo do humano.
Falei acerca de três fatores convergentes significativos; consideremo-los outra vez. A importância da racionalidade científica e técnica é óbvia, assim como é evidente o reducionismo que faz dela o paradigma do conhecimento e da ação. A crítica a tal reducionismo já é habitual e facilmente compartilhada: outras formas de conhecer e agir são essenciais para o homem e para a sua condição histórica. Menos usual é, porém, a consideração acerca da motivação que torna fascinante tal reducionismo. Ela está ligada ao baricentro da síndrome pós-humanista, que está no exercício de poder, expressão prática, concreta e eficiente de um fator humano subentendido, absolutamente decisivo: o desejo.
O fascínio da perspectiva pós-humanista – ainda que se leve em consideração suas exasperações e loucuras – é o seu apelo secreto ao desejo humano de transformação da sua condição histórica numa condição qualitativamente superior. Desejo que é o vetor irreprimível da aventura humana (como tentei mostrar no texto La generazione del beneA geração do bem, em tradução livre – publicado pela Vita e Pensiero, em 2009). A impotência contemporânea da tradição humanista – segundo penso – deriva principalmente da sua incapacidade de se fazer competitiva no plano do desejo humano, da discussão sobre seu objeto adequado, da sua proposta como forma possível de vida. Então, mesmo o terceiro elemento de fascínio, a experiência da liberdade, poderia assumir um significado diferente do de um exercício libertário e subjetivo da escolha para se tornar compromisso voluntarista com a aventura do desejo e relação solidária com as outras liberdades.
Para uma perspectiva neo-humanista não é suficiente a contraposição ao pós-humanismo; é necessária uma perspectiva sensata, na qual os fatores de influência do pós-humanismo – saber, desejo e poder, liberdade – encontrem uma amplitude e uma síntese melhores.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 20 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Artistas, fazei resplandecer a verdade nas vossas obras

Inauguração da Mostra
“O esplendor da verdade, a beleza da caridade
Homenagem  dos artistas a Bento XVI pelos seus 60 anos de sacerdócio

Discurso do Santo Padre Bento XVI

Átrio da Sala Paulo VI
Segunda-feira, 4 de julho de 2011

Senhores Cardeais,
Venerados Irmãos no Episcopado e no Sacerdócio,
Caros amigos,
Para mim, é uma grande alegria encontrar-vos e receber a vossa criativa e multiforme homenagem por ocasião do 60º aniversário da minha Ordenação Sacerdotal. Sou sinceramente grato a vós pela vossa proximidade nesta ocasião tão significativa e importante para mim. Na Celebração Eucarística do dia 29 de junho passado, Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo, agradeci ao Senhor pelo dom da vocação sacerdotal. Hoje, agradeço-vos pela amizade e pela gentileza que me manifestais. Saúdo cordialmente o Cardeal Angelo Sodano, decano do Sacro Collegio, e o Cardeal Gianfranco Ravasi, Presidente do Pontifício Conselho da Cultura, que, junto a seus colaboradores, organizou esta manifestação artística particular, e agradeço também por suas palavras corteses a mim dirigidas. Dirijo também a minha saudação a todos os presentes, de modo particular a vós, caros artistas, que acolhestes o convite para apresentar uma criação vossa nesta Mostra.
O presente encontro, no qual tenho a alegria e a curiosidade de admirar as vossas obras, quer ser uma nova etapa daquele percurso de amizade e de diálogo que empreendemos no dia 21 de novembro de 2009, na Capela Sistina, um evento que ainda trago impresso no espírito. A Igreja e os artistas voltam a se encontrar, a conversar, a sustentar a necessidade de um colóquio que quer e deve se tornar cada vez mais intenso e articulado, também para oferecer à cultura, ou melhor às culturas do nosso tempo, um exemplo eloquente de diálogo fecundo e eficaz, orientado para tornar este nosso mundo mais humano e mais belo. Hoje, vós me apresentais o fruto da vossa criatividade, da vossa reflexão, do vosso talento, expressões dos vários âmbitos artísticos que aqui representais: pintura, escultura, arquitetura, ourivesaria, fotografia, cinema, música, literatura e poesia. Antes de admirá-las convosco, permiti-me dedicar algum momento para refletir convosco acerca do sugestivo título desta Exposição: “O esplendor da verdade, a beleza da caridade”. Na Homilia da Missa pro eligendo pontifice, comentando a bela expressão de São Paulo da Carta aos Efésios “veritatem facientes in caritate” (Ef 4, 15) – eu definia o “fazer a verdade na caridade” como uma fórmula fundamental da existência cristã. E acrescentava: “Em Cristo, verdade e caridade coincidem. Na medida em que nos aproximamos de Cristo, também na nossa vida, verdade e caridade se fundem. A caridade sem verdade seria cega; a verdade sem caridade seria como ‘um címbalo que retine’ (1Cor 13, 1)”. É próprio da união, ou melhor, da sinfonia, da perfeita harmonia de verdade e caridade, que emana a autêntica beleza, capaz de suscitar admiração, maravilhamento e alegria verdadeira no coração dos homens. O mundo no qual vivemos precisa que a verdade resplandeça e não seja ofuscada pela mentira ou pela banalidade; precisa que a caridade inflame e não seja oprimida pelo orgulho e pelo egoísmo. Precisamos que a beleza da verdade e da caridade toque o íntimo do nosso coração e o torne mais humano.
Caros amigos, gostaria de renovar a vós e a todos os artistas um apelo amigável e apaixonado: nunca separai a criatividade artística da verdade e da caridade, nunca buscai a beleza longe da verdade e da caridade, mas com a riqueza da vossa genialidade, do vosso ímpeto criativo, sejais sempre, com coragem, buscadores da verdade e testemunhas da caridade; fazei resplandecer a verdade nas vossas obras e fazei que a sua beleza suscite no olhar e no coração de quem as admira o desejo e a necessidade de tornar bela e verdadeira a existência, cada existência, enriquecendo-a com aquele tesouro que nunca diminui, que faz da vida uma obra de arte e de cada homem um extraordinário artista: a caridade, o amor. O Espírito Santo, artífice de toda beleza que há no mundo, vos ilumine sempre e vos guie em direção à Beleza última e definitiva, aquela que aquece a nossa mente e o nosso coração e que esperamos poder contemplar, um dia, em todo o seu esplendor.
Uma vez mais, obrigado pela vossa amizade, pela vossa presença e porque levais ao mundo um raio desta Beleza, que é Deus. De coração, transmito a todos vós, aos vossos entes queridos e a todo o mundo da arte, a minha Bênção Apostólica.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 4 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Entendi, com meus alunos, o que é a escola...


Por Mario Caponnetto

Depois de seis anos ensinando no Centro de Formação Profissional In-presa, neste ano me perguntei qual a incidência que os adultos têm no percurso dos jovens e, sobretudo, qual a incidência que os professores têm entre os alunos, visto que, frequentemente, o professor é uma figura a ser suportada mais do que alguém de quem se aprende algo. Buscando responder a estas perguntas, li com atenção as redações de fim de ano, das quais consegui uma ajuda para julgar, de modo realista, o meu percurso como professor.
Dei-me conta de que aconteceu uma experiência verdadeiramente educativa, porque foram respeitadas certas condições.
Antes de mais, nada daquilo que aconteceu foi censurado, porque tudo foi acolhido e julgado. “Durante o estágio, tive alguns desentendimentos com Marco e Mathias e, às vezes, a vontade de ir trabalhar ia embora”, diz Simone, aluno do I Elétrico; da mesma forma, Mirco, seu colega de sala, que na carta final na qual faz um resumo de como o ano passou, escreve: “Cara Emilia, eu me chamo Mirco e estou na escola há um ano. Gostei muito, mesmo tendo tido alguns desentendimentos com os professores por causa dos meus modos de estar em sala”. Os desentendimentos acontecem, mas não são tudo, se forem julgados: podem representar um passo verdadeiro em direção a uma conquista maior.
O primeiro modo de julgar os limites é aceitá-los, como diz Luigi acerca de seu tutor na empresa: “Cara Emilia, sou Luigi... os meus pontos de referência mais importantes foram os tutores na empresa, particularmente Rossano. Ele foi muito mais do que alguém que me deu um trabalho, porque, mesmo sendo consciente das minhas escassas capacidades, me aceitou e elogiou por aquilo que fiz”.
É apenas assim que se descobre que alguém pode lhe dar uma mão, que você não está sozinho com o seu limite, mas que pode olhá-lo de frente. “No início, eu me sentia sem lugar, a minha situação era parecida com a de um peixe fora d’água, eu tinha sido colocado na cozinha sem ao menos saber as técnicas básicas, eu me sentia inútil... Esta situação melhorou mês após mês, até atingir a autonomia nas tarefas mais elementares e superar problemas que, no início, me pareciam intransponíveis. Giacomo me deu uma mão e tanto”, disse Riccardo do I Auxiliar de Cozinha. Gabriele, um aspirante a eletricista, diz algo parecido: “No laboratório, não sou muito prático, mas os professores me dizem que é normal, de fato aprendi muitas coisas que eu não sabia, e para im isto quer dizer que tenho satisfações”.
Eis outra grande descoberta: posso estar diante dos meus limites apenas se tem alguém que me ajuda a olhar para eles, alguém que vê mais, que vê na frente. O adulto se encontra ali para me ajudar a olhá-los, não para censurá-los; por isto, é alguém que me deixa mais livre, como disse Cristian: “O tutor na empresa sempre me fez sentir em casa, me fez sentir livre para aprender e errar! Teve muita paciência, visto que, no início, eu era como uma criança que engatinha, não sabia caminhar”. É um adulto que ajuda a ver a realidade, que introduz na realidade, até dentro dos aspectos mais difíceis, aqueles a que é necessário se habituar: “Durante o primeiro mês de estágio, eu não estava satisfeita com meu trabalho. Quando comecei a me habituar com os horários e os tempos do restaurante, comecei a me sentir satisfeita com o meu trabalho”, disse Giulia.
O adulto, de um lado, faz entender o valor da fadiga que deve realizar, mas, de outro, oferece a possibilidde de se apaixonar por um pedaço da realidade, como nos testemunha Carlos: “A minha matéria preferida é Cidadania, uma matéria muito importante, porque nos mantém sempre informados de coisas interessantes”. Também Michael se interessou por uma matéria: “A minha matéria preferida é Inglês; tendo uma garota tão bonita como professora, é possível fazer as tarefas melhor e com mais vontade”. É uma paixão que tem que ver com a descoberta do belo, às vezes através do rosto de uma bela professora, mas tem que ver também com uma gratificação, como disse Stefano: “Por hora, o prato que mais gostei de fazer foi a crostata. Mais do que um prato, é um doce e digo que me dei muito bem porque o professor me disse isso, ele havia dito também que era melhor do que a que ele havia feito”.
Depois de ter descoberto uma paixão, um professor, um tutor, Alessandro, um aluno do segundo ano, chegou a dizer: “Para mim, o estágio é como uma partida de futebol: é bonito, mas cansa”. E Niccolò chegou a falar da escola em termos quase poéticos: “para definir a escola eu usaria a metáfora da neblina, porque a neblina, depois de um tempo, se dissolve. Quando cheguei aqui, não sabia nada, mas agora estou começando a entender esta profissão, exatamente como a neblina que se dissolve”.
Pode acontecer que um aluno entenda mais o que quer fazer e decida mudar o percurso: “Cara Emilia, me chamo Simone, sou do II B Elétrico e tenho 16 anos. Este ano foi bom. Consegui encontrar minha pérola! No início do ano, tive a oportunidade de ver se o eletricista era o meu caminho e, de fato, não era; assim, experimentei o curso de arquivista, mas também este não era o meu caminho. Assim, escolhi seguir a minha paixão, ou seja, estar em contato com os animais e fiquei bem. [...] Quem sabe, quando eu estiver grande, poderei me especializar como adestrador”. Pode acontecer também que se abra algo que estava fechado há tempos ou que, talvez, nunca se tenha aberto: “Sempre fui uma garota daquelas que odeia estudar, mas esta escola conseguiu me fazer abrir a vontade de estudar, de conhecer e aprender a história das paixões que tenho dentro de mim, daquilo que escolhi como o trabalho do meu grande futuro”, disse Yuney, aluna do I Auxiliar de Cozinha.
Por isto, Mattia, depois de ter descoberto que pode enfrentar os seus limites sem censurá-los, depois de ter descoberta que também ele pode ter uma paixão, que tem alguém pronto a acolhê-lo e a ensinar-lhe uma profissão, pode dizer: “Para mim, este ano voou, sem que eu nem me desse conta”.
Portanto, o que é a escola? Marco é quem explica muito bem: “Cara Emilia, estou freqüentando a sua escola porque quero ter um futuro, ser alguém, mesmo porque ser garçon é o que eu sempre quis fazer, e esta escola, a sua escola, me permite realizar este meu sonho”.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de junho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 21 de junho de 2011

O homem não pode viver sem esta busca pela verdade sobre si mesmo

Visita Pastoral à Diocese de San Marino-Montefeltro

Encontro com os jovens da diocese de San Marino-Montefeltro

Discurso do Santo Padre Bento XVI

Praça Vittorio Emanuele – Pennabilli
Domingo, 19 de junho de 2011

Caros jovens,
Estou muito contente de estar, hoje, em vosso meio e convosco! Sinto toda a vossa alegria e o entusiasmo que caracterizam a vossa idade. Saúdo e agradeço o vosso Bispo, D. Luigi Negri, pelas cordiais palavras de acolhida, e o vosso amigo que se fez intérprete dos pensamentos e dos sentimentos de todos, e formulou algumas questões muito sérias e importantes. Espero que, durante esta minha exposição, se encontrem também os elementos para encontrar as respostas a estas perguntas. Saúdo com afeto os Sacerdotes, as Irmãs, os animadores que compartilham convosco o caminho da fé e da amizade; e naturalmente também os vossos pais, que se alegram ao ver-vos crescendo fortes no bem.
O nosso encontro aqui, em Pennabilli, diante desta Catedral, coração da Diocese, e nesta Praça, nos remete, com o pensamento, aos numerosos e diversos encontros de Jesus, que nos são contados pelos Evangelhos. Hoje, gostaria de chamar a atenção para o célebre episódio no qual o Senhor estava no caminho e um tal – um jovem – correu ao seu encontro e, se ajoelhando, lhe fez esta pergunta: “Bom Mestre, o que devo fazer para ter por herança a vida eterna” (Mc 10, 17). Talvez, nós, hoje, não diríamos assim, mas o sentido da pergunta é o mesmo: o que devo fazer, como devo viver para viver realmente, para encontrar a vida? Portanto, dentro desta interrogação podemos ver encerrada a ampla e variada experiência humana que se abre à busca do significado, do sentido profundo da vida: como viver, por que viver. A “vida eterna”, de fato, à qual se refere aquele jovem do Evangelho, não indica apenas a vida depois da morte, não quer saber apenas como se chega ao céu. Quer saber: como devo viver, agora, para ter já a vida que pode ser também, depois, a eterna. Portanto, nesta pergunta, este jovem manifesta a exigência de que a existência cotidiana encontre sentido, encontre plenitude, encontre verdade. O homem não pode viver sem esta busca pela verdade sobre si mesmo – o que sou eu, para que devo viver –, verdade que impulsione a abrir o horizonte e a ir além daquilo que é material, não para fugir da realidade, mas para vivê-la de modo ainda mais verdadeiro, mais rico de sentido e de esperança, e não apenas na superficialidade. E acredito que esta – e eu o vi e ouvi nas palavras do vosso amigo – seja também a vossa experiência. As grandes interrogações que carregamos dentro de nós permanecem sempre, renascem sempre: quem somos?, de onde viemos?, para quem vivemos? E estas questões são o sinal maior da transcendência do ser humano e da capacidade que temos de não parar na superfície das coisas. E é exatamente olhando para nós mesmos com verdade, com sinceridade e com coragem que intuímos a beleza, mas também a precariedade da vida e sentimos uma insatisfação, uma inquietude que nada de concreto consegue preencher. No fim, todas as promessas se demonstram frequentemente insuficientes.
Caros amigos, convido-vos a tomar consciência desta saudável e positiva inquietude, a não ter medo de vos colocar perguntas fundamentais sobre o sentido e sobre o valor da vida. Não parai nas respostas parciais, imediatas, certamente mais fáceis no momento e mais cômodas, que podem dar algum momento de felicidade, de exaltação, de embriaguez, mas que não vos levam à verdadeira alegria de viver, aquela que nasce de quem constrói – como disse Jesus – não sobre a areia, mas sobre a rocha sólida. Aprendei, então, a refletir, a ler de modo não superficial, mas em profundidade, a vossa experiência humana: descobrireis, com maravilhamento e com alegria, que o vosso coração é uma janela aberta para o infinito! Esta é a grandeza do homem e também a sua dificuldade. Uma das ilusões produzidas no curso da história foi a de pensar que o progresso técnico-científico, de modo absoluto, poderia dar respostas e soluções a todos os problemas da humanidade. E vemos que não é assim. Na realidade, mesmo se tivesse sido possível, nada e ninguém poderia ter cancelado as perguntas mais profundas sobre o significado da vida e da morte, sobre o significado do sofrimento, de tudo, porque estas perguntas estão inscritas no espírito humano, no nosso coração, e ultrapassam a esfera das necessidades. O homem, mesmo na era do progresso científico e tecnológico – que nos deu tanto – permanece um ser que deseja mais, mais do que a comodidade e o bem-estar, continua aberto à verdade inteira de sua existência, que não pode parar nas coisas materiais, mas se abre a um horizonte muito mais amplo. Tudo isto vós experimentais continuamente, cada vez que vos perguntais “mas, por quê?”. Quando contemplais um pôr do sol, ou uma música, movem-se em vós o coração e a mente; quando experimentais o que quer dizer amar verdadeiramente; quando sentis com força o sentido da justiça e da verdade, e quando sentis também a falta de justiça, de verdade e de felicidade.
Caros jovens, a experiência humana é uma realidade que nos acomuna a todos, mas a elas se podem dar diversos níveis de significado. E é aqui que se decide a forma como orientar a própria vida e se escolhe a quem confiá-la, a quem se confiar. O risco é sempre o de permanecer aprisionado ao mundo das coisas, do imediato, do relativo, do útil, perdendo a sensibilidade por aquilo que se refere à nossa dimensão espiritual. Não se trata, de fato, de desprezar o uso da razão ou de rejeitar o progresso científico, mas exatamente o contrário; trata-se muito mais de entender que cada um de nós não é feito somente de uma dimensão “horizontal”, mas compreende também aquela dimensão “vertical”. Os dados científicos e os instrumentos tecnológicos não podem substituir-se ao mundo da vida, aos horizontes de significado e de liberdade, à riqueza das relações de amizade e de amor.
Caros jovens, é exatamente na abertura para a verdade inteira de nós, de nós mesmos e do mundo, que vemos a iniciativa de Deus para conosco. Ele vem ao encontro de cada homem e lhe faz conhecer o mistério do Seu amor. No Senhor Jesus, que morreu e ressuscitou por nós e nos deu o Espírito Santo, somos mesmos tornados partícipes da vida de Deus, pertencemos à família de Deus. NEle, em Cristo, podeis encontrar a resposta para as perguntas que acompanham o vosso caminho, não de modo superficial, fácil, mas caminhando com Jesus, vivendo com Jesus. O encontro com Cristo não se resolve na adesão a uma doutrina, a uma filosofia, mas aquilo que Ele vos propõe é compartilhar a Sua mesma vida e, assim, aprender a viver, aprender o que é o homem, o que sou eu. Para aquele jovem, que Lhe havia perguntado o que fazer para entrar na vida eterna, ou seja, para viver verdadeiramente, Jesus responde, convidando-o a largar os seus bens e acrescenta: “Vem! Segue-me!” (Mc 10, 21). A palavra de Cristo mostra que a vossa vida encontra significado no mistério de Deus, que é Amor: um Amor exigente, profundo, que vai além da superficialidade! O que seria da vossa vida sem este amor? Deus cuida do homem desde a criação até ao final dos tempos, quando levará à realização o seu projeto de salvação. No Senhor Ressuscitado a certeza da nossa esperança! Cristo mesmo, que foi até às profundezas da morte e ressuscitou, é a esperança em pessoa, é a Palavra definitiva pronunciada sobre a nossa história, é uma palavra positiva.
Não temeis enfrentar as situações difíceis, os momentos de crise, as provações da vida, porque o Senhor vos acompanha, está convosco! Encorajo-vos a crescer na amizade com Ele, através da leitura frequente do Evangelho e de toda a Sagrada Escritura, da participação fiel à Eucaristia como encontro pessoal com Cristo, do compromisso no interior da comunidade eclesial, do caminho com uma orientação espiritual válida. Transformados pelo Espírito Santo, podereis experimentar a autêntica liberdade, que é tal quando é orientada para o bem. Deste modo, a vossa vida, animada por uma contínua busca do rosto do Senhor e da vontade sincera de dar vós mesmos, será, para tantos de vossos coetâneos, um sinal, um chamado de atenção eloquente a viver de forma tal que o desejo de plenitude que está em todos nós se realize finalmente no encontro com o Senhor Jesus. Deixai que o mistério de Cristo ilumine toda a vossa pessoa! Então, podereis levar aos diversos ambientes aquela novidade que pode mudar as relações, as instituições, as estruturas, para construir um mundo mais justo e solidário, animado pela busca do bem comum. Não cedei à lógica individualista e egoísta! Conforte-vos o testemunho de tantos jovens que atingiram a meta da santidade: pensai em Santa Teresinha do Menino Jesus, em São Domingos Sávio, em Santa Maria Gorete, no Beato Pier Giorgio Frassati, no Beato Alberto Marvelli – que é desta terra! – e em tantos outros, desconhecidos de nós, mas que viveram o seu tempo na luz e na força do Evangelho, e encontraram a resposta: como viver, o que fazer para viver.
Como conclusão deste encontro, quero confiar cada um de vós à Virgem Maria, Mãe da Igreja. Como Ela, possais pronunciar e renovar o vosso “sim” e glorificar sempre o Senhor com a vossa vida, porque Ele vos dá palavras de vida eterna! Coragem, então, caros jovens e caras jovens, no vosso caminho de fé e de vida cristã também eu estarei próximo de vós e vos acompanharei com minha Bênção. Obrigado pela vossa atenção!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 19 de junho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Oração


Oração
A banda mais bonita da cidade


Meu amor, essa é a última oração
Pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na dispensa
Cabe o meu amor!
Cabe em três vidas inteiras
Cabe em uma penteadeira
Cabe nós dois
Cabe até o meu amor
Essa é a última oração pra salvar seu coração
Coração não é tão simples quanto pensa
Nele cabe o que não cabe na dispensa
Cabe o meu amor!
Cabe em três vidas inteiras
Cabe em uma penteadeira
Cabe essa oração

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Bin Laden e o perdão


Por Lorenzo Albacete

Não há dúvida de que quem sofreu na carne ou viu sofrendo algum ente querido as consequências dos ataques terroristas de 2001 a notícia da morte de Bin Laden tenha suscitado um sentimento de “saúde emotiva”. Como na reação de Lee Lelpi, um bombeiro aposentado de New York cujo filho, que também era um bombeiro, perdeu a vida no desabamento das Torres Gêmeas, e que declarou no Il Politico: “não tenho palavras; estou aqui, sentado, chorando. Temia que este dia nunca fosse chegar... mas, a justiça prevaleceu”.
Posso entender esta reação, pensando nos parentes dos hispânicos, na paróquia na qual eu trabalhava, que morreram no atentado terrorista. O que me perturba é outro tipo de reação. Tão logo se difundiu a notícia da execução de Bin Laden, no final da noite de domingo, uma multidão aplaudindo e agitando bandeiras se amontoou diante da Casa Branca. Esse encontro desencadeou uma entusiasmada expressão de alegria e de orgulho patriótico, que muitos compararam à solidariedade que uniu todos os norte-americanos no dia 11 de setembro de 2001.
Outra massa de pessoas se reuniu para festejar em New York, em torno do venerado Ground Zero. Pouco a pouco, o mesmo aconteceu por toda a nação, especialmente perto dos campi universitários, inclusive da Academia Militar de West Point. Como alguém me disse: “Parecia a comemoração da vitória de um time de futebol”.
Michael Bloomberg, prefeito de New York, tentou explicar assim estas reações: “O assassinato de Osama Bin Laden não diminui o sofrimento que os nova-iorquinos e os norte-americanos experimentaram por sua causa, mas é uma vitória muito importante para a nossa nação. Em New York, esperamos por esta notícia por quase dez anos. A minha esperança é que traga conforto e um pouco de paz a todos aqueles que perderam alguém no dia 11 de setembro de 2001”. O problema desta explicação é que os participantes destas manifestações públicas eram universitários, que tinham 10 ou 12 anos quando dos ataques terroristas, e fica difícil imaginar que tenham esperado dez anos para essa comemoração.
Uma reação semelhante foi a de Condoleezza Rice, ex-Secretária de Estado e conselheira para a segurança nacional de Bush, que definiu a notícia como “absolutamente excitante”. “O fim de Osama Bin Laden é uma vitória enorme para o povo norte-americano”, disse Rice, “nada pode fazer com que as vítimas de Bin Laden voltem à vida, mas talvez isto possa ser uma bálsamo para as feridas de seus entes queridos que sobreviveram”.
Todavia, os funcionários que agiram durante os devastantes ataques, sobretudo os de New York, saudaram a morte de Bin Laden como um triunfo, mas nunca como uma contrapartida de mesma medida das vidas perdidas nestes fatos. Outros, porém, veem o assassinato de Bin Laden como um ato divino. Um bombeiro disse: “Deus abençoe o presidente Bush e Deus abençoe o presidente Obama por isso. É um grande alívio para as famílias, tanto quanto poderiam ter. É algo de grande para nós”.
Até ao final da manhã, os automóveis, nas ruas perto da Casa Branca, marcavam ao som de buzina o seu júbilo, enquanto que os pedestres se reuniam nas esquinas, como que seguindo o convite do presidente Obama: “Esta noite, lembremo-nos do sentido de unidade que prevaleceu” no momento dos ataques terroristas. “O resultado de agora é um testemunho da grandeza de nosso país e da determinação do povo norte-americano”.
Alguns entreviram a mão da divina Providência na data da execução de Bin Laden. No dia primeiro de maio, mais ou menos na mesma hora do discurso de Obama para a nação, a rádio alemã, em 1945, anunciava a morte de Hitler; e também nesse dia, J. Edgar Hoover era nomeado chefe do FBI. Aqueles, porém, que haviam definido o ataque terrorista um juízo de Deus sobre a imoralidade americana ainda não deram o ar da graça.
No entanto, há ainda outra possível manifestação do juízo divino nesta semana: a beatificação do Papa João Paulo II, no dia primeiro de maio, durante as celebrações do Domingo da Divina Misericórdia, festa criada pelo mesmo Beato João Paulo II. Lembro-me muito bem do estupor dos norte-americanos diante da capa da Time Magazine que mostrava o Papa enquanto abraçava aquele que havia tentado assassiná-lo.
A grande palavra da semana foi “alívio”, em sentido psicológico. Agora, finalmente, podemos “curar” os nossos corações feridos. Mas, será de fato possível? Podemos, verdadeiramente, ficar satisfeitos com a justiça feita por um poder humano?
A justiça que pode trazer uma verdadeira paz para os nossos coração feridos se chama perdão e deriva da fé em Cristo, como o Beato João Paulo II nos mostrou. Esta é a Divina Misericórdia que Jesus mesmo demonstrou ao homem crucificado ao Seu lado, um criminoso que, em termos modernos, chamaríamos de terrorista.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 4 de maio de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Uma lição para Marilena

Por Paulo R. A. Pacheco

Há pouco menos de 10 anos atrás, eu acordava num hotel em Curitiba... enquanto me trocava para ir a um colóquio de filosofia no qual inscrevera um trabalho meu, liguei a televisão e me deparei com imagens que me chocaram: o WTC em chamas. Alguns minutos para me inteirar dos fatos e chegavam aos meus ouvidos as primeiras "informações" de que parecia se tratar de um atentado... pouco antes de desligar a televisão, a confirmação. Era o dia 11 de setembro de 2001.
Corri para a PUC do Paraná, onde acontecia o "IV Colóquio Internacional de Estudos Filosóficos do Século XVII - Liberdade, Necessidade e Contingência"... Estava absolutamente aturdido com tudo o que vira e ouvira. Sentei-me enquanto via a mesa da manhã se compondo. Não me lembro dos nomes de todos os membros, mas me lembro claramente de que a Prof.a Marilena Chauí coordenava a mesa e dava abertura aos trabalhos daquela manhã. Para minha surpresa, seu comentário inicial foi de uma infelicidade sem tamanho - mais tarde, entendi que comentários infelizes não são lapsos quando se trata dessa senhora, mas são traços do seu mau gosto intelectual: "Os que sempre se vangloriaram de ser a nação poderosa da liberdade aprenderam, hoje, finalmente, qual é o seu lugar no mundo". Um intertexto decorado com um sorriso cínico e o balouçar aprovador de cabeças "pensantes" deu um ar de sabedoria às palavras da ínclita personagem. Senti-me mal por participar daquilo. Ouvi duas ou três palavras do conferencista daquela manhã - um professor francês que se esforçava por mostrar a inteligência de Descartes na vitória sobre a hegemonia de pensamento da Igreja -, levantei-me e voltei para o hotel. Liguei a televisão. E telefonei para minha orientadora. Enquanto assistia à cobertura dos acontecimentos, conversava com ela, contando tudo o que ouvira pela manhã, e lhe dizia de minha vontade de não mais apresentar meu trabalho - a Prof.a Chauí, a propósito, coordenaria a mesa de comunicações da qual eu participaria na parte da tarde. Evidentemente, minha orientadora não permitiu que eu fizesse isso.
Almocei e, antes de voltar para a PUC, resolvi ir à missa... No caminho para a catedral, pensava no como podemos ser maus. Na liturgia daquele dia, se lia a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios: "E, quando tudo lhe estiver sujeito, então também o próprio Filho renderá homenagem àquele que lhe sujeitou todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos" (1Cor 15, 28)... Voltei para a PUC com aquelas palavras ressoando por dentro: "a fim de que Deus seja tudo em todos". E, aos poucos, o juízo anterior sobre a maldade, mudava em pergunta, em pedido: "como, Senhor, numa situação dessas, é possível haver Tua presença? Mostra-Te!".
De volta a Ribeirão Preto, no dia seguinte, soubera que, naquele 11 de setembro, a FFLCH/USP promovera, em São Paulo, a "Osama Bin Reagge"... Estranho? Não! Que algo do gênero tivesse sido proposto pela intelligentzia uspiana, tão bem formada por "cabeças" (?) como a de Marilena Chauí - alcunhada muito a propósito por Bruno Tolentino de Marxilena Xuxauí -, é esperado... e, o que mais assusta, é louvado naquele antro de lixo do pensamento.

Nesses dias, após o assassinato de Osama Bin Laden - o patrono do festim diabólico da Fefelech -, certamente deve estar pairando, nos ares da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o cheiro da dor e do luto, misturado àquela maresia descolada que faz olhar para a morte de um líder do naipe do Osama como o nascimento de um novo mártir, que, muito seguramente, ocupará um lugar de destaque ao lado de ícones como o de Che Guevara. Nesses dias, após o assassinato de Osama Bin Laden - o professor que "ensinou aos EUA o seu lugar" -, me pergunto o que deve estar passando na cabeça da nossa mais aclamada pensadora: a preclara Prof.a Marilena Chauí. O que será que aprendemos disso, professora? Qual a extensão do sorriso cínico que se desenhará, agora, no seu rosto? Será feita festa sobre o cadáver do Osama com a mesma desenvoltura com a qual se fez festa sobre o cadáver de 3000 inocentes?
Não, a sua morte não é motivo de louvor, nem  de alegria... a morte de um não sacia a sede de justiça pela morte de três mil. Assim como a morte de três mil continuaria a ser insuficiente para saciar esta mesma sede infinita. Não, professora! Acredito que sua morte sirva apenas para que desperte nos corações aquela sede de justiça que, há dez anos atrás, me levou a perguntar e pedir: "como, Senhor, numa situação dessas, é possível haver Tua presença? Mostra-Te!". 
No seu Jesus de Nazaré, Bento XVI nos lembra que "somente se Jesus ressuscitou é que aconteceu algo de verdadeiramente novo, que muda o mundo e a situação do homem. Então Ele, Jesus, torna-Se o critério em que nos podemos fiar; porque, então, Deus manifestou-Se verdadeiramente". Somente Tua Presença, Senhor, muda o mundo e a situação do homem. Muda-nos, Senhor!

domingo, 10 de abril de 2011

Nosso coração se estende para além do muro da morte...

Bento XVI

Angelus

Praça São Pedro
Domingo, 10 de abril de 2011.

Caros irmãos e irmãs!
Faltam somente duas semanas para a Páscoa, e as Leituras bíblicas deste domingo falam da ressurreição. Não ainda da de Jesus, que irromperá como uma novidade absoluta, mas da nossa ressurreição, aquela a que aspiramos e que Cristo mesmo nos deu, ressurgindo dos mortos. Com efeito, a morte representa, para nós, como que um muro que nos impede de ver além; e no entanto o nosso coração se estende para além deste muro, e mesmo se não podemos conhecer aquilo que ele esconde, todavia o pensamos, o imaginamos, exprimindo com símbolos o nosso desejo de eternidade.
Ao povo hebreu, no exílio distante da terra de Israel, o profeta Ezequiel anuncia que Deus abrirá os sepulcros dos deportados e os fará retornar para a sua terra, para repousarem em paz (cf. Ez 37, 12-14). Esta aspiração ancestral do homem de ser sepultado junto com os seus pais é saudade de uma “pátria” que o acolha no término das fadigas terrenas. Esta concepção não contém ainda a ideia de uma ressurreição pessoal da morte, que aparece somente por volta do final do Antigo Testamento, e que, no tempo de Jesus, ainda não era muito bem recebida por todos os judeus. De resto, mesmo entre os cristãos, a fé na ressurreição e na vida eterna, não raramente, é acompanhada de muitas dúvidas, de muita confusão, porque se trata sempre de uma realidade que ultrapassa os limites da nossa razão, e requer um ato de fé. No Evangelho de hoje – a ressurreição de Lázaro – escutamos a voz da fé da boca de Marta, a irmã de Lázaro. A Jesus que lhe diz: “Teu irmão ressuscitará”, ela responde: “Sei que ressurgirá na ressurreição do último dia” (Jo 11, 23-24). Mas, Jesus replica: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, mesmo se morrer, viverá” (Jo 11, 25-26). Eis a verdadeira novidade, que irrompe e supera toda barreira! Cristo abate o muro da morte, nEle habita toda a plenitude de Deus, que é vida, vida eterna. Por isto, a morte não teve poder sobre Ele; e a ressurreição de Lázaro é sinal do seu pleno domínio sobre a morte física, que diante de Deus é como um sono (cf. Jo 11, 11).
Mas, há outra morte, que custou a Cristo a luta mais dura, até ao preço da cruz: é a morte espiritual, o pecado, que ameaça arruinar a existência de todo homem. Para vencer esta morte, Cristo morreu, e a sua Ressurreição não é o retorno à vida anterior, mas é a abertura de uma realidade nova, uma “nova terra”, finalmente reunificada com o Céu de Deus. Por isto, São Paulo escreve: “Se o Espírito de Deus, que ressuscitou Jesus dos mortos, habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo dos mortos dará a vida também aos vossos corpos mortais por meio do seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 11). Caros irmãos, voltemo-nos para a Virgem Maria, que já participa desta Ressurreição, para que nos ajude a dizer com fé: “Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus” (Jo 11, 27), a descobrir verdadeiramente que Ele é a nossa salvação.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 10 de abril de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Quaresma XX


"Em meu coração há uma grande sede de reconhecer totalmente o nada de tudo que não é Deus. Assim, minha oração é uma espécie de louvor que se ergue do centro do Nada e do Silêncio." (T. Merton)

Minha alma tem sede de Deus, e deseja o Deus vivo. 
Sl 41(42), 3

* Extraído da Sociedade dos Amigos Fraternos de Thomas Merton.

quinta-feira, 3 de março de 2011

O mito da excelência: corrida em direção à felicidade ou em direção ao nada?


Por Anna Alemani

Alguns dias atrás, no ginásio de uma escola de bairro (Paulus Hook, Jersey City, NJ), assisti à projeção de Race to Nowhere (Corrida para lugar nenhum; ndt), um documentário sobre um aspecto muito debatido do atual sistema escolar dos Estados Unidos: a crescente pressão a que são submetidos os estudantes para atingirem a excelência – acadêmica, mas não só. Race to Nowhere concentra-se sobre o caso dos adolescentes que frequentam a escola, mas a corrida começa quando ainda são pequenos: todo o sistema escolar público está se transformando num mecanismo para formar e selecionar os estudantes melhores, aqueles destinados a vencer a competição com os seus coetâneos e entrar nas universidades mais prestigiosas dos EUA, ter acesso às profissões mais desejáveis, ganhar o máximo e poder, finalmente, viver contentes.
Vicki H. Abeles, diretora de primeira viagem, aponta o dedo contra os programas públicos como No Child left Behind (Nenhuma criança deixada para trás; ndt) da administração Bush e Race to the Top (Corrida para o topo; ndt), a principal iniciativa dedicada à educação do presidente Obama. Estes programas fundaram a reforma do sistema escolar sobre a introdução de rígidos critérios de seleção para os professores e padrões acadêmicos para os estudantes. A reforma, além do mais, encorajou a competição entre os institutos escolares, dado que os fundos que vêm do governo federal para os estados dependem diretamente do atingimento deste padrão, e portanto dos resultados nos testes sobre determinadas matérias a que são submetidos os estudantes de vários níveis.
Fundada sobre a convicção de que a introdução de objetivos quantificáveis no nível da aprendizagem contribua para melhorar os resultados individuais, a reforma causou um deslocamento da atenção dos estudantes do “aprender” para o “aprender a fazer prova”, e do “preparar-se para a universidade” para o preparar-se para “se apresentar bem” na universidade. A competição para entrar numa faculdade Ivy League (as oito universidades mais famosas do nordeste dos EUA: Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Princenton, University of Pennsylvania e Yale; ndr) é implacável e não basta ter a nota mais alta da classe, é preciso também ter sucesso no esporte, participar de atividades culturais, fazer voluntariado etc. Muitos adolescentes acabam buscando atalhos, como copiar nas provas ou usar remédios que potencializam o desempenho.
Abeles, mãe de três filhos, está particularmente preocupada com os efeitos imediatos deste processo de doutrinação de massa: estresse, anorexia, depressão e uma crescente taxa de suicídio entre os adolescentes. Todavia, são evidenciadas também algumas consequências indiretas: para render ao máximo nas provas os estudantes tendem a memorizar passivamente aquilo que sabem que será pedido na prova, ao invés de aprenderem aquilo que é necessário aprender para se tornarem bons profissionais. Essas provas de múltipla escolha se concentram, de fato, em critérios mensuráveis como capacidade linguística e matemática, enquanto que outros conhecimentos humanistas são considerados inúteis até mesmo para serem avaliados. E no entanto é evidente que capacidades técnicas não bastam para formar gestores, inovadores, pensadores e empresário. Além do mais, é razoável nos perguntarmos se os estudantes que não são motivados pela curiosidade, pela paixão e satisfação pessoal, não acabarão buscando atalhos ou agindo de forma pouco ética também na sua vida profissional.
Além da ênfase colocada sobre o fato de que a tensão compromete a saúde física e mental dos adolescentes, uma conclusão interessante do filme é que, frequentemente, o motivo que move estes jovens a participar da corrida é o seu desejo de uniformidade, de serem aceitos e satisfazerem as expectativas de outros, antes de tudo de seus pais. Como se o desejo de ter sucesso na escola fosse assumido como próprio, mas não coincidisse com o seu verdadeiro desejo. Neste cenário, nem mesmo os professores oferecem uma solução, avaliados e pagos, eles também, a partir de seus resultados em provas idênticas. Antes pelo contrário, muitos professores qualificados abandonam o sistema público, desencorajados e desmotivados.
Race to Nowhere dá uma descrição vívida e realista da realidade, mas não fornece uma resposta satisfatória para a questão colocada e, em alguns momentos, soa muito mais como uma lamentação.
Qualquer um que tenha experimentado o processo de admissão numa faculdade dos EUA sabe que pode ser estressante: você deve escrever sobre você mesmo e suas motivações, apresentar carta de recomendação, fazer testes de comportamento e colóquios pessoais. As escolas tentam selecionar os candidatos mais fortes, aqueles que com o seu sucesso contribuirão para fazer a reputação da escola crescer, e para fazer isto utilizam critérios simples e superficiais que garantirão, se não a certeza, pelo menos a maior probabilidade de escolher os melhores. É darwinismo, pelo menos na versão mais simplista, aplicado à educação: promove-se uma seleção natural das características que aumentam a capacidade de competir de um indivíduo.
O objetivo é minimizar o risco do processo: risco de selecionar um estudante destinado a falhar, risco de ensinar algo que se revelará inútil, risco de encorajar comportamentos não conformes. E no entanto, selecionando e promovendo apenas os estudantes considerados “melhores” com base nestes critérios mensuráveis, descuida-se daqueles que têm outras capacidades úteis mas não facilmente mensuráveis. Eliminando o risco, sacrificamos também um ganho potencial. “As naturezas desviantes – explica Nietzsche em Humano, demasiado humano – são da mais alta importância onde quer que se queira produzir algum progresso... as naturezas mais fortes conservam o tipo, enquanto que as mais frágeis contribuem para fazê-lo evoluir”.
A educação, por si mesma, é feita de uma proposta livre de pais, educadores ou professores para seus jovens. É a liberdade compreendida nesta proposta que permite distinguir uma pressão positiva de uma pressão negativa. O que torna a pressão negativa é o uso incondicionado de padrões e teorias para avaliar o progresso e a aprendizagem individual. Este confronto contínuo com o padrão é contraproducente, porque a realidade nunca coincidirá com a abstração.
A mesma tensão pode ser positiva se se parte do desejo de conhecer e aprender com o qual todos nascemos, fornecendo aos estudantes os meios para seguir esta inclinação natural. Ao lado destes métodos de reforma, seria necessário utilizar abordagens mais abertas e individuais, que prestem atenção na unicidade de cada estudante e na sua motivação, deixando-os livres para explorar, arriscar, errar e corrigir-se ao invés de obrigá-los a aderir, imitar ou agradar. Sobretudo, é preciso professores especialistas e dotados de liberdade de currículo, colocados em condição de poder chamar a atenção dos próprios alunos para esta curiosidade original e motivá-los sem criar pressão.
Mas, é extremamente difícil manter este positivo, e é muito mais simples ficar ligado ao padrão, sobretudo com os próprios filhos, porque este positivo implica uma liberdade e a liberdade implica um risco e o risco dá medo. Parece-me que os adolescentes de Race to Nowhere sejam jovens que perderam a segurança em si mesmos. E assim também seus pais. Parece-me que os EUA, como povo, perderam a segurança nas próprias capacidades na competição com povos mais esfomeados e motivados, como os da China ou da Índia. Talvez, pertençamos a povos muito viciados e tenhamos nos esquecido do que nos motiva, do que nos move. A motivação não nasce do que “deve” fazer, mas do que “quer” fazer.
Mais do que reduzir os programas, eliminar as notas ou não dar mais tarefas (como o filme propõe), a questão da pressão da corrida poderia se tornar tensão em direção à própria satisfação, se se desenvolvesse a consciência da própria motivação e se se partisse do próprio desejo. Os pais deveriam também começar a ter confiança nos próprios filhos, considerando os adolescentes responsáveis e competentes com os próprios desejos. Sair-se bem na escola seria, então, visto como expressão de e não oposição ao próprio desejo de satisfação. Para dizer em duas palavras: não se é obrigado a ir para a universidade para se ser feliz. Mas, se o deseja, isto é o que a realidade lhe pede para fazer.
Em A causa das crianças, a psicanalista francesa Françoise Dolto disse que “o objetivo é a saída de um obscurantismo latente que cresce a grandes passos quanto àquilo que diz respeito à educação dos jovens... são criados de modo inteligente apenas as crianças que cresceram sob a confiança dos pais. Pais que se empenham em guiar e sustentar o desejo dessas crianças no limite do possível. Aceitam que o desejo se manifeste. As crianças têm confiança nos pais respeitosos do próprio acesso à autonomia que encorajam, confiando na confiança dos filhos em si mesmos. O futuro de uma população é representado pela sua juventude”.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 3 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

127 horas: o filme que é uma viagem interior para descobrir a verdadeira liberdade


Por Ezio Goggi

Aron Ralston, chegado à plena maturidade da juventude, grande esportista e amante dos vastos espaços das canyonlands do Utah, entusiasta da ação e da liberdade, decidiu fazer um grande passeio solitário de mountain bike na área do Blue John Canyon. O dia e as paisagens são esplêndidos e ele chega a encontrar casualmente duas belas garotas com quem resolve fazer mergulho num laguinho escondido.
Mas, o tempo estava mesmo muito bonito, por que se contentar com pouco, então? Despediu-se das garotas e, sozinho outra vez, decidiu percorrer uma profunda e estreita fenda que mergulhava no coração da rocha. Descuidadamente, Aron move uma pedra que, caindo e se reacomodando, fica presa contra a parede do canyon prendendo o seu braço direito. O protagonista, que havia se preparado para uma saída de um dia apenas, se viu sem comida e com pouca água: é nesse ponto que começa a odisséia do filme 127 horas
Seria fácil, neste ponto, pensar numa história escura e claustrofóbica na qual o lento aproximar-se do fim é marcado pelo mover-se das sombras e dos pensamentos sombrios do protagonista. Mas, os eventos de 127 horas desenrolam-se de forma muito diferente. A partir do momento do acidente, a narração passa a acontecer sob dois planos distintos: o que experiência presente e o da experiência do passado. Duas lógicas temporais diversas mas, ao mesmo tempo, ligadas indissociavelmente à pessoa que a vive (ou que a viveu).
A experiência do presente, ainda que trágica e aparentemente sem solução, é sustentada pela recordação do que foi vivido, pelas escolhas feitas ou perdidas, pelos encontros e pelos amores começados e terminados. O protagonista, na sua solidão, medita se, de fato, a sua liberdade pode ser reduzida ao percorrer grandes espaços, sem comunicar a ninguém a sua meta, para, dessa forma, afirmar a própria independência, ou se a liberdade está em outro lugar, no afeto dos próprios entes queridos, dos amigos e no olhar de uma garota amada e perdida pelo medo de se vincular. A fenda não é mais um espaço fechado, mas se torna o ponto de partida de uma viagem na qual o si mesmo tenta resistir, para não se perder no delírio de um homem já convencido de morrer.
O filme está enquadrado no gênero “aventura”, mas percorre esse tema de forma um pouco anormal já que apenas em parte pode ser caracterizado por uma ação física: a parte principal da história é um inesperado percurso dentro de si, que todavia não se encerra numa introspecção sem saída, mas se abre sobre a história pessoal do protagonista, relendo-a sob uma nova luz.
Os pareceres sobre o filme foram muitos diferentes, mesmo que, geralmente, positivos; mas a leitura sempre varia de acordo com os críticos. Acredito, porém, que este seja um grande valor do filme: sendo uma história pessoal, inevitavelmente é lida pelo expectador a partir da própria experiência, dos valores e dos sentidos que cada um dá às coisas. Creio que vai agradar aos alpinistas (que poderão encontrar temas que foram tratados, por exemplo, em Tocando o vazio de Kevin MacDonald), aos trekkers e a todos aqueles que não vivem os grandes espaços apenas como um elemento geográfico ou geológico, mas também espiritual.
É notável a interpretação do protagonista James Franco, capaz de uma imitação extraordinariamente realista, que interpreta com grande humanidade os vários estados de ânimo; muito interessante a ideia de confiar a dois diferentes diretores de fotografia a descrição do momento real e a dos flashbacks, o que leva a propor os dois tempos com uma perspectiva diferente.
O diretor Danny Boyle, depois do sucesso de Quem quer ser um milionário?, provavelmente poderia ter filmado qualquer coisa (até lhe propuseram filmar um 007); porém, escolher um filme difícil, contando uma história verdadeira com a qual poderia ter, facilmente, corrido o risco de escorregar no noire ou na espetacularização trágica. Acredito que ter conseguido manter a narrativa de um relato de grande humanidade é já um grande mérito.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 3 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

P.S.: Traduzi a resenha do filme 127 horas. Ela foi publicada no site da Revista Internacional de Comunhão e Libertação - Passos-CL.