sábado, 7 de janeiro de 2012

A lei divina é fonte de vida


Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro

Quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Nas últimas catequeses meditamos sobre alguns Salmos que são exemplos dos gêneros típicos de oração: lamento, confiança, louvor. Na catequese de hoje gostaria de me dedicar ao Salmo 119 segundo a tradição hebraica, 118 segundo a greco-latina: um Salmo muito particular, único no seu gênero. Antes de mais, o é por seu comprimento: é composto, de fato, por 176 versículos divididos em 22 estrofes de oito versículos cada uma. Depois, tem a peculiaridade de ser um “acróstico alfabético”: ou seja, é construído segundo o alfabeto hebraico, que é composto por 22 letras. Cada estrofe corresponde a uma letra deste alfabeto, e com tal letra começa a primeira palavra dos oito versículos da estrofe. Trata-se de uma construção literária original e muito exigente, na qual o autor do Salmo teve que colocar em jogo toda a sua habilidade.
Mas, o que para nós é mais importante é a temática central deste Salmo: trata-se, de fato, de um imponente e solene canto sobre a Torá do Senhor, ou seja, sobre a Sua Lei, termo que, na sua acepção mais ampla e completa, é compreendido como ensinamento, instrução, direcionamento de vida; a Torá é revelação, é Palavra de Deus que interpela o homem e provoca a sua resposta de obediência confiante e de amor generoso. E é de amor pela Palavra de Deus que este Salmo é todo atravessado; ele celebra a sua beleza, a sua força salvífica, a sua capacidade de dar alegria e vida. Porque a Lei divina não é jugo pesado de escravidão, mas dom de graça que torna livres e leva à felicidade. “Nos Teus decretos me deleito; não esquecerei Tua palavra” (v. 16), afirma o Salmista; e em seguida: “Dirige-me na senda dos teus mandamentos, porque nela está minha alegria” (v. 35); e ainda: “Quanto amo a tua lei; passo o dia todo a meditá-la” (v. 97. A Lei do Senhor, a Sua Palavra, é o centro da vida do orante; nela ele encontra consolação, faz dela objeto de meditação, a conserva no seu coração: “Conservo no coração tuas promessas para não te ofender com o pecado” (v. 11), é este o segredo da felicidade do Salmista; e depois ainda: “Caluniaram-me os insolentes, de todo coração guardarei teus preceitos” (v. 69).
A fidelidade do Salmista nasce da escuta da Palavra, a ser guardada no seu interior, meditando-a e amando-a, exatamente como Maria, que “guardava, meditando-as no seu coração” as palavras que lhe eram dirigidas e os eventos maravilhosos nos quais Deus Se revelava, pedindo o seu assentimento de fé (cf. Lc 2, 19.51). E se o nosso Salmo começa nos primeiros versículos proclamando “felizes” os “que caminham na Lei do Senhor” (v. 1b) e “os que guardam os Seus ensinamentos” (v. 2a), é ainda a Virgem Maria quem leva à plena realização a perfeita figura do crente descrito pelo Salmista. É Ela, de fato, a verdadeira “feliz”, proclamada por Isabel porque “creu no cumprimento daquilo que o Senhor lhe disse” (Lc 1, 45), e é dEla e de sua fé que Jesus mesmo dá testemunho quando, à mulher que lhe havia gritado “Feliz o seio que te carregou”, responde “Mais felizes são aqueles que escutam a palavra de Deus e a põem em prática!” (Lc 11, 27-28). Certamente, Maria é feliz porque o seu seio carregou o Salvador, mas sobretudo porque acolheu o anúncio de Deus, porque foi atenta e amorosa custodiadora da Sua Palavra.
O Salmo 119 é, portanto, todo tecido ao redor desta Palavra de vida e de felicidade. Se o seu tema central é a “Palavra” e a “Lei” do Senhor, ao lado destes termos aparecem, em quase todos os versículos, sinônimos como “preceitos”, “decretos”, “mandamentos”, “ensinamentos”, “promessa”, “juízos”, e tantos verbos vinculados a estes como observar, guardar, compreender, conhecer, amar, meditar, viver. Todo o alfabeto passa através das 22 estrofes deste Salmo, e também todo o vocabulário do relacionamento confiante do crente com Deus; encontramos nele o louvor, o agradecimento, a confiança, mas também a súplica e o lamento, sempre, porém, atravessados pela certeza da graça divina e da potência da Palavra de Deus. Mesmo os versículos mais marcados pela dor e pelo senso de escuridão permanecem abertos à esperança e são permeados de fé. “Estou prostrado no chão; dá-me vida conforme tua palavra” (v. 25), reza confiante o Salmista; “Sou como um odre exposto à fumaça, mas não esqueço teus estatutos” (v. 83), é o grito do crente. A sua fidelidade, mesmo se colocada à prova, encontra força na Palavra do Senhor: “a quem me insulta, poderei responder que tenho confiança na tua palavra” (v. 42), ele afirma com firmeza; e mesmo diante da perspectiva angustiante da morte, os mandamentos do Senhor são o seu ponto de referência e a sua esperança de vitória: “Por pouco não me expulsaram deste mundo, mas não abandonei teus preceitos” (v. 87).
A lei divina, objeto do amor apaixonado do Salmista e de todo crente, é fonte de vida. O desejo de compreendê-la, de observá-la, de orientar a ela todo o próprio ser é a característica do homem justo e fiel ao Senhor, que a “medita dia e noite”, como recita o Salmo 1 (v. 2); é uma lei, a de Deus, que deve ser mantida “no coração”, como diz o bem conhecido texto do Shemá no Deuteronômio:
“Ouve, ó Israel! (...) trarás gravadas no teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás com insistência a teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em casa ou andando a caminho, quando te deitares ou te levantares” (Dt 6, 4.6-7).
Centro da existência, a Lei de Deus solicita a escuta do coração, uma escuta feita de obediência não servil, mas filial, confiante, consciente. A escuta da Palavra é encontro pessoal com o Senhor da vida, um encontro que deve se traduzir em escolhas concretas e se tornar caminho e seguimento. Quando Lhe é perguntado o que fazer para ter a vida eterna, Jesus aponta o caminho da observância da Lei, mas indicando como fazer para levá-la à realização: “Só te falta uma coisa: vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me” (Mc 10, 21). A realização da Lei é seguir Jesus, andar no caminho de Jesus, em companhia de Jesus. 
O Salmo 119 nos leva, portanto, ao encontro com o Senhor e nos orienta para o Evangelho. Há nele um versículo sobre o qual eu gostaria de me dedicar: é o versículo 57 – “Eu disse: Minha porção, Senhor, é guardar Tuas palavras”. Também em outros Salmos o orante afirma que o Senhor é a sua “porção”, a sua herança: “O Senhor é a minha parte da herança e meu cálice”, recita o Salmo 16 (v. 5a), “rochedo do meu coração e minha porção é Deus para sempre!” é a proclamação do fiel no Salmo 73 (v. 26b), e ainda, no Salmo 142, o Salmista grita ao Senhor: “És meu refúgio, és a minha porção na terra dos vivos” (v. 6b).
Este termo – “porção” – evoca o evento da repartição da terra prometida entre as tribos de Israel, quando aos Levitas não é dada nenhuma porção do território, porque a sua “porção” era o Senhor mesmo. Dois textos do Pentateuco são explícitos quanto a isto, utilizando o termo em questão: “O Senhor disse a Aarão: ‘Tu não terás herança na terra dos israelitas, nem haverá porção para ti em seu meio. Eu sou tua porção e tua herança no meio deles’”, assim declara o Livro dos Números (Nm 18, 20), e o Deuteronômio reitera: “Por isso Levi não tem porção nem herança com seus irmãos, porque o próprio Senhor é a sua herança, como o Senhor teu Deus lhe prometeu” (Dt 10, 9; cf. Dt 18, 2; Js 13, 33; Ez 44, 28).
Os sacerdotes, pertencentes à tribo de Levi, não podem ser proprietários de terras no país que Deus dava como herança para o seu povo, realizando a promessa feita a Abraão (cf. Gn 12, 1-7). A posse da terra, elemento fundamental de estabilidade e de possibilidade de sobrevivência, era sinal de bênção, porque implicava a possibilidade de construir uma casa, de criar os filhos, de cultivar os campos e de viver dos frutos da terra. Pois bem, os Levitas, mediadores do sagrado e da bênção divina, não podem possuir, como os outros israelitas, este sinal exterior da bênção e esta fonte de subsistência. Inteiramente doados ao Senhor, devem viver apenas dEle, abandonados ao Seu amor providente e à generosidade dos irmãos, sem ter herança porque Deus é a sua porção da herança, Deus é a sua terra, que os faz viver em plenitude.
E agora, o orante do Salmo 119 aplica a si esta realidade: “A minha porção é o Senhor”. O seu amor por Deus e pela Sua Palavra o leva à escolha radical de ter o Senhor como único bem e também de guardar as Suas palavras como dom precioso, mais valioso do que toda herança, e do que toda posse terrena. O nosso versículo, de fato, tem a possibilidade de uma dupla tradução e poderia mesmo ser lido da seguinte maneira: “A minha porção, Senhor, eu disse, é guardar as Tuas palavras”. As duas traduções não se contradizem, mas se completam: o Salmista está afirmando que a sua porção é o Senhor, mas também que guardar as palavras divinas é a sua herança, como, em seguida, dirá no versículo 111: “Minha herança para sempre são teus testemunhos, são esses a alegria do meu coração”. É esta a felicidade do Salmista: a ele, assim como para os Levitas, foi dada como porção de herança a Palavra de Deus.
Caríssimos irmãos e irmãs, estes versículos são de grande importância também hoje para todos nós. Antes de mais para os sacerdotes, chamados a viver apenas do Senhor e da Sua Palavra, sem outras seguranças, tendo Ele como único bem e única fonte de verdadeira vida. Nesta luz se compreende a livre escolha do celibato pelo Reino dos céus, que deve ser redescoberto na sua beleza e força. Mas estes versículos são importantes também para todos os fiéis, povo de Deus pertencente apenas a Ele, “reino de sacerdotes” para o Senhor (cf. 1Pd 2, 9; Ap 1, 6; Ap 5, 10), chamados à radicalidade do Evangelho, testemunhas da vida trazida pelo Cristo, novo e definitivo “Sumo Sacerdote” que se ofereceu em sacrifício para a salvação do mundo (cf. Hb 2, 17; Hb 4, 14-16; Hb 5, 5-10; Hb 9, 11ss). O Senhor e a Sua Palavra: isto é a nossa “terra”, na qual viver na comunhão e na alegria.
Deixemos, portanto, que o Senhor coloque em nosso coração este amor pela Sua Palavra, e nos conceda ter sempre no centro da nossa existência Ele e Sua santa vontade. Peçamos que a nosssa oração e toda a nossa vida sejam iluminadas pela Palavra de Deus, lâmpada para os nossos passos e luz para o nosso caminho, como diz o Salmo 119 (cf. v. 105), de forma que nosso caminhar seja seguro, na terra dos homens. E Maria, que acolheu e gerou a Palavra, seja nossa guia e nosso conforto, estrela polar que indica a via da felicidade. 
Então, também nós poderemos nos alegrar em nossa oração, como o orante do Salmo 16, com os dons inesperados do Senhor e pela imerecida herança que coube a nós:
“O Senhor é a minha porção da herança e meu cálice. Nas tuas mãos, a minha porção. Para mim a sorte caiu em lugares deliciosos, maravilhosa é minha herança” (Sl 16, 5-6).

* Extraído do site do Vaticano, do dia 9 de novembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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