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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

JMJ: a silenciosa semeadura do Senhor na contemporaneidade



Viagem Apostólica a Madri
Por ocasião da XXVI Jornada Mundial da Juventude
18 a 21 de agosto de 2011

Entrevista concedida pelo Santo Padre Bento XVI
aos jornalistas durante o voo para Madri

Voo Papal
Quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Padre Lombardi: Santidade, bem-vindo entre nós, muito obrigado por nos conceder, como é comum, este breve encontro durante o voo de ida. A “comunidade volante” dos jornalistas, aqui, é composta por 56 pessoas de vários países, mas os jornalistas que o esperam em Madri são mais de 4 mil. É um recorde para a Espanha e também se considerarmos os eventos mundiais. Todos nos comprometemos, naturalmente, a ecoar adequadamente suas palavras neste belíssimo acontecimento. Como é comum, proponho algumas perguntas que me foram dadas, há alguns dias, pelos jornalistas aqui presentes.

Santo Padre, estamos na 26ª Jornada Mundial da Juventude, a 12ª celebrada com um grande encontro mundial. João Paulo II, que as inventou, agora é Beato, e é o Protetor Oficial desta JMJ de Madri. No início do seu Pontificado, nos perguntávamos se o senhor iria continuar a linha do seu Predecessor. Agora, o senhor já está na sua terceira Jornada Mundial, depois de Colônia e de Sydney. Como o senhor vê o significado destes eventos na “estratégia” pastoral da Igreja universal no Terceiro Milênio?

Santo Padre: Caros amigos, bom dia! Fico contente de ir convosco para a Espanha por ocasião deste grande acontecimento. Depois de duas JMJ vividas também pessoalmente, posso apenas dizer que foi realmente uma inspiração a que foi dada ao Papa João Paulo II, quando criou esta realidade de um grande encontro dos jovens e do mundo com o Senhor. Eu diria que estas JMJ são um sinal, uma cascata de luz; dão visibilidade para a fé, visibilidade para a presença de Deus no mundo e criam, assim, a coragem de ser crente. Frequentemente os crentes se sentem isolados neste mundo, quase perdidos. Aqui, veem que não estão sozinhos, que há uma grande rede de fé, uma grande comunidade de crentes no mundo, que é belo viver nesta amizade universal. E, assim, me parece, nascem amizades, amizades que ultrapassam os confins das diversas culturas, dos diversos países. E este nascimento de uma rede universal de amizade, que liga o mundo e Deus, é uma importante realidade para o futuro da humanidade, para a vida da humanidade de hoje. Naturalmente, a JMJ não pode ser um acontecimento isolado: faz parte de um caminho maior, é preparado por este caminho da Cruz que passa por diversos países e já une jovens sob o sinal da Cruz e do maravilhoso sinal de Nossa Senhora. E assim a preparação da JMJ é muito mais que preparação técnica de um acontecimento com tantos problemas técnicos, naturalmente; é uma preparação interior, um colocar-se em caminho em direção aos outros, juntos rumo a Deus. E também, na sequência, após o estabelecimento de grupos de amizade, manter este contato universal que abre as fronteiras das culturas, dos contrastes humanos, religiosos, e assim é um caminho contínuo que guia a um novo vértice, a uma nova JMJ. Parece-me, neste sentido, que é preciso ver a JMJ como sinal, parte de um grande caminho; cria amizades, abre fronteiras e torna visível o fato de que é bonito estar com Deus, que Deus está conosco. Neste sentido, queremos dar continuidade a esta grande ideia do Beato Papa João Paulo II.

Padre Lombardi: Santidade, os tempos mudam. A Europa e o mundo ocidental em geral vivem uma crise econômica profunda, mas que também manifesta dimensões de grave inquietação social e moral e de grande incerteza pelo futuro, que se tornam particularmente dolorosas para os jovens. Nos dias passados vimos, por exemplo, os fatos acontecidos na Grã Bretanha, com desencadeamento de rebeliões ou de agressões. Ao mesmo tempo, há sinais de comprometimento generoso e entusiasmado, de voluntariado e de solidariedade, de jovens crentes e não crentes. Em Madri, encontraremos muitos jovens maravilhosos. Quais mensagens a Igreja pode dar para a esperança e o encorajamento dos jovens do mundo, sobretudo aqueles que, hoje, são tentados pelo desânimo e pela rebelião?

Santo Padre: Sim. Confirma-se, na atual crise econômica, aquilo que já havia aparecido na grande crise anterior, ou seja, que a dimensão ética não é algo exterior aos problemas econômicos, mas uma dimensão interior e fundamental. A economia não funciona apenas como uma autoregulamentação de mercado, mas precisa de uma razão ética para funcionar para o homem. E aparece outra vez aquilo que João Paulo II já havia dito na sua primeira encíclica social, isto é, que o homem deve ser o centro da economia e que a economia não deve ser medida segundo o proveito máximo, mas segundo o bem de todos, e que deve incluir a responsabilidade pelo outro e só funcionará verdadeiramente bem na medida em que funcionar de modo humano, respeitando o outro. E com as diversas dimensões: responsabilidade pela própria nação e não apenas por si mesmos; responsabilidade pelo mundo – também uma nação não está isolada, também a Europa não está isolada, mas é responsável por toda a humanidade e deve pensar nos problemas econômicos sempre a partir da responsabilidade pelas outras partes do mundo, por aquelas que sofrem, têm sede e fome, não têm futuro. E, portanto – terceira dimensão desta responsabilidade –, responsabilidade pelo futuro. Sabemos que é preciso proteger nosso planeta, mas devemos proteger – somando tudo – o funcionamento do serviço de trabalho econômico para todos e pensar que o amanhã é também o hoje. Se os jovens de hoje não encontram perspectivas na sua vida, também o nosso hoje é errado e “malvado”. Por isso, a Igreja, com a sua doutrina social, com a sua doutrina sobre a responsabilidade na relação com Deus, abre para a capacidade de renunciar ao proveito máximo e ver as coisas na dimensão humanista e religiosa, ou seja, ser um para o outro. Assim, novos caminhos podem se abrir. O grande número de voluntários que trabalham em diversos lugares do mundo, não para si, mas para o outro, e encontram exatamente assim o sentido da vida, demonstram que é possível fazer isto e que uma educação para estes grandes objetivos, como tenta fazer a Igreja, é fundamental para o nosso futuro.

Padre Lombardi: Santidade, os jovens do mundo de hoje vivem geralmente em ambientes multiculturais e multiconfessionais. A tolerância recíproca é mais necessária do que nunca. O senhor insiste sempre muito sobre o tema da verdade. O senhor não pensa que esta insistência sobre a verdade e sobre a única Verdade que é Cristo possa ser um problema para os jovens de hoje? Não acredita que esta insistência os dirija para a contraposição e para a dificuldade de dialogar e buscar junto com os outros?

Santo Padre: A vinculação entre verdade e intolerância, monoteísmo e incapacidade de diálogo com os outros, é um argumento que frequentemente retorna no debate sobre o cristianismo de hoje. E, naturalmente, é verdade que na história houve abusos, seja do conceito da verdade, seja do conceito do monoteísmo; mas foram abusos. A realidade é totalmente diferente. O argumento está errado, porque a verdade é acessível somente na medida em que há liberdade. Podem ser impostos, com violência, comportamentos, observâncias, atividades, mas não a verdade! A verdade se abre apenas para a liberdade, para o livre consentimento, e por isso liberdade e verdade são intimamente unidas, uma é condição para a outra. E, além do mais, buscar a verdade, os verdadeiros valores que dão vida e futuro, não tem alternativa: não queremos a mentira, não queremos o positivismo de normas impostas com uma certa força; somente os valores verdadeiro levam ao futuro, por isso, dizemos que é necessário buscar os valores verdadeiros e não permitir o arbítrio de alguns, não deixar que se fixe uma razão positivista que nos diz, acerca dos problemas éticos, dos grandes problemas do homem, que não existe uma verdade racional. Isto sim seria expor verdadeiramente o homem ao arbítrio daqueles que têm o poder. Devemos estar sempre em busca da verdade, dos verdadeiros valores; temos um núcleo nos valores, nos direitos humanos fundamentais; outros elementos fundamentais semelhantes são reconhecidos e, exatamente eles, nos permitem um diálogo uns com os outros. A verdade como tal é dialógica porque tenta conhecer melhor, entender melhor e o faz em diálogo com os outros. Assim, buscar a verdade e a dignidade do homem é a maior defesa da liberdade.

Padre Lombardi: Uma última pergunta, Santidade. As Jornadas Mundiais da Juventude são um tempo muito bonito e suscitam muitos entusiasmos, mas os jovens, depois, voltam para suas casas e encontram de novo um mundo no qual a prática religiosa está diminuindo cada vez mais fortemente. Muitos deles, provavelmente, não serão mais vistos na igreja. Como é possível dar continuidade aos frutos das Jornadas Mundiais da Juventude? O senhor acredita que, efetivamente, elas deem frutos de longa duração, para além dos momentos de grande entusiasmo?

Santo Padre: Deus sempre semeia silenciosamente, nunca aparece imediatamente nas estatísticas. E com a semente que o Senhor coloca na terra com as JMJ, acontece como a semente de que Ele fala no Evangelho: algumas caem no caminho e se perdem; outras caem sobre a pedra e se perdem; outras caem entre os espinhos e se perdem; mas algumas caem em terra boa e produzem muitos frutos. Exatamente assim é a semeadura da JMJ: muito se perde – e isto é humano. Com outras palavras do Senhor: o grão de mostarda é pequeno, mas cresce e se torna uma grande árvore. Com outras palavras ainda: certamente, muito se perde, e não podemos dizer que a partir de amanhã recomeça um grande crescimento da Igreja. Deus não age assim. Mas, cresce em silêncio e cresce muito. Sei das outras JMJ que muitas amizades nasceram, amizades para uma vida inteira; tantas novas experiências. E é sobre este crescimento silencioso que colocamos nossa confiança e estamos seguros, mesmo que as estatísticas não falem muito... a semente do Senhor realmente cresce e será, para muitas pessoas, o início de uma amizade com Deus e com outros, de uma universalidade do pensamento, de uma responsabilidade comum que realmente nos mostra que estes dias trazem frutos. Obrigado!

Padre Lombardi: Obrigado ao senhor, Santidade, por esta conversa que já nos orienta rumo aos temas essenciais destes dias belíssimos. Desejamos ao senhor, naturalmente, que estes dias sejam – não obstante o calor – cheios de alegria e de satisfação. Porém, antes de deixar o senhor retornar ao seu lugar, queria dizer que também para a nossa comunidade hoje é um dia de festa, porque há uma das nossas decanas, uma que fez todas as viagens de João Paulo II e todas as do senhor, exceto uma, porque não estava muito bem, e que hoje está fazendo aniversário. Os anos são naturalmente poucos, mesmo que as viagens tenham sido tantas. Trata-se de Paloma Gómez Borrero a quem felicitamos junto como senhor.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 18 de agosto de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Humm! Qualquer semelhança...

Há quase 80 anos atrás, no dia 10 de fevereiro de 1933, Joseph Goebbels, então futuro Ministro do Povo e da Propaganda do governo nazista, pronunciava o discurso abaixo (traduzido pelo Reinaldo Azevedo e que pode ser lido na íntegra aqui)... 11 dias depois, o adorável Adolf Hitler assumia como Chanceler da Alemanha...
Leiam um trecho do seu discurso... é preciso muito pouco para torná-lo um discurso que cabe muito bem na boca dos "inteliquituais" - nossos Ministros do Povo e da Propaganda (ou, para usar uma imagem bastante conhecida dos leitores de Orwell, Ministros da Verdade) - que assombram nossas universidades... Ai, ai! E a história se repete... e a impressão que tenho é que nada, ou muito pouco, se aprendeu... ou estamos de tal forma anestesiados e vacinados contra a verdade e os fatos que de nada adianta afirmá-los.

Companheiros,
Antes de o encontro começar, gostaria de chamar a atenção para alguns artigos da imprensa de Berlim que asseguram que eu não deveria merecer a atenção das rádios alemãs, uma vez que sou insignificante demais, pequeno demais e mentiroso demais para poder me dirigir ao mundo inteiro.
Nesta noite, vocês testemunharão um evento de massa como nunca aconteceu antes na história da Alemanha e, provavelmente, do mundo.(…)
Quando a imprensa judaica reclama que o movimento Nacional Socialista tem a permissão de falar em todas as rádios alemãs por causa de seu chanceler, podemos responder que só estamos fazendo o que vocês sempre fizeram no passado. Há alguns anos, não falávamos da boca pra fora quando dizíamos que vocês, judeus, são nossos professores e que só queremos ser seus alunos e aprender com vocês. Além disso, é preciso esclarecer que aquilo que esses senhores conseguiram no terreno da política de propaganda durante os últimos 14 anos foi realmente uma porcaria. Apesar de eles controlarem os meios de comunicação, tudo o que conseguiram fazer foi encobrir os escândalos parlamentares, que eram inúteis para formar uma nova base política.(…) Se hoje a imprensa judaica acredita que pode fazer ameaças veladas contra o movimento Nacional-Socialista e acredita que pode burlar nossos meios de defesa, então, não deve continuar mentindo. Um dia nossa paciência vai acabar e calaremos esses judeus insolentes, bocas mentirosas! E se outros jornais judeus acham que podem, agora, mudar para o nosso lado com as suas bandeiras, então só podemos dar uma resposta: “Por favor, não se dêem ao trabalho!”
Ademais, os nossos homens da SA e os companheiros de partido podem se acalmar: a hora do fim do terror vermelho chegará mais cedo do que pensamos. Quem pode negar que a imprensa bolchevique mente quando o [jornal] Die Rote Fahne, este exemplo da insolência judaica, se atreve a afirmar que o nosso camarada Maikowski e o policial Zauritz foram fuzilados por nossos próprios companheiros?
Esta insolência judaica tem mais passado do que terá futuro. Em pouco tempo, ensinaremos os senhores da Karl Liebnecht Haus [sede do Partido Comunista] o que é a morte, como nunca aprenderam antes. Eu só queria acertar as contas com os [nossos] inimigos na imprensa e com os partidos inimigos e dizer-lhes pessoalmente o que quero dizer em todas as rádios alemãs para milhões de pessoas.

Chesterton (2010), numa obra recentemente traduzida para o português - O homem eterno -, numa determinada altura do texto, faz uma longa sequência de argumentação acerca de uma certa tendência dos intelectuais em assumir falácias como se fossem verdades. Obviamente, que não o fazem ingenuamente... Ingênuo seria pensar que o fazem ingenuamente. Segundo ele, infelizmente há uma falácia que é muito fácil de ser assumida como verdadeira: "a falácia da suposição de que, pelo fato de uma ideia ser maior no sentido de mais ampla, ela é, por consequência, maior no sentido de mais fundamental, fixa e certa" (p. 77). Segue-se a essa afirmação um exemplo para ilustrá-la. Mas, podemos nos valer de um exemplo que nos é muito mais próximo: o lulo-petismo e toda a sua verborragia cheia de números acerca das melhorias sociais a que se chegou no país. Uma ideia, por mais ampla que seja, não é mais fundamental, fixa e certa. Converse (falo portanto daqueles com quem se pode conversar... porque há aqueles com quem é impossível um diálogo, visto que sequer levantam a cara da grama) com um petista e se entenderá o que estou dizendo: logo vem uma inundação de números para provar que, para que o miserável venha a ser pessoa, antes é necessário que tenha comida na barriga... Por mais vasta que seja a dedução a que chegam no seu "raciossímio", não passa de uma dedução... não é, portanto, uma verdade! Não é, portanto, nem fundamental, fixa nem certa, porque "embora a contradição possa lhes parecer um paradoxo, isso é exatamente o contrário da verdade. É a realidade grande que é secreta e invisível; é a realidade pequena que é evidente e enorme" (Chesterton, 2010, p. 79). Em outras palavras: enquanto se olhar para a enormidade dos números (que por verdadeiros que sejam são apenas deduções e não verdades), não se olhará para a pessoa, essa realidade "evidente e enorme", que não é aquilo que o Estado pensa dela... especialmente este Estado que se coloca acima do bem e do mal e que substitui a ontologia pelo moralismo... especialmente este Estado que, arrancando-nos o Ser e tudo que a Ele representa, arranca-nos a dignidade humana, arranca-nos a liberdade, arranca-nos o próprio ser, matando-nos aos poucos na medida em que nos imbeciliza e "mediocriza".

domingo, 26 de setembro de 2010

É indispensável o fundamento ético para a política

Viagem Apostólica de Sua Santidade Bento XVI
ao Reino Unido, por ocasião da beatificação do
Cardeal John Henry Newman
de 16 a 19 de setembro de 2010

Encontro com expoentes da sociedade civil, do mundo acadêmico, cultural e empresarial, com o corpo diplomático e com líderes religiosos, no Westminster Hall de Londres

17 de setembro de 2010

Onde pode ser encontrado o fundamento ético para as escolhas políticas? A tradição católica sustenta que as normas objetivas que governam o reto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da revelação. Segundo esta compreensão, o papel da religião no debate político [...] é ajudar na purificação e lançar luz sobre a aplicação da razão na descoberta dos princípios morais objetivos. [...] Só posso exprimir a minha preocupação diante da crescente marginalização da religião, particularmente do Cristianismo [...]. Existem alguns que sustentam que a voz da religião deveria ser calada, ou ao menos relegada à esfera puramente privada

Senhor Presidente,
Agradeço o senhor pelas palavras de boas-vindas que me dirigiu em nome de toda esta distinta assembleia. No dirigir-me a vós, sou consciente do privilégio que me é concedido de falar ao povo britânico e aos seus representantes no Westminster Hall, um edifício que tem um significado único na história civil e política dos habitantes destas Ilhas. Permiti-me manifestar a minha estima pelo Parlamento, que há séculos tem sede neste lugar e que teve uma influência tão profunda sobre o desenvolvimento de formas de governo participativas no mundo, especialmente no Commonwealth e mais em geral nos países de língua inglesa. A vossa tradição de “common law” constitui a base do sistema legal de muitas nações, e a vossa particular visão dos respectivos direitos e deveres do Estado e de cada cidadão, e da separação dos poderes, permanece como fonte de inspiração para muitos no mundo.
Enquanto falo a vós neste lugar histórico, penso nos inúmeros homens e mulheres que, ao longo dos séculos, fizeram a sua parte em importantes eventos que tiveram lugar entre essas paredes e marcaram a vida de muitas gerações de britânicos e de outros povos. Particularmente, gostaria de recordar a figura de Thomas More, o grande estudioso e estadista inglês, admirado por crentes e não crentes pela integridade com a qual foi capaz de seguir a própria consciência, mesmo que às custas de desagradar o soberano, de quem era um “bom servidor”, visto que tinha escolhido servir a Deus antes. O dilema com o qual Thomas More se confrontava, naqueles tempos difíceis, a perene questão da relação entre aquilo que é devido a César e aquilo que é devido a Deus, me oferece a oportunidade de refletir brevemente convosco sobre o justo lugar que o credo religioso mantém no processo político.
A tradição parlamentar deste país deve muito ao senso instintivo de moderação presente na nação, ao desejo de atingir um justo equilíbrio entre as legítimas exigências do poder do Estado e os direitos daqueles que lhe estão sujeitos. Se, de um lado, na vossa história, foram dados passos decisivos para colocar um limite ao exercício do poder, de outro lado, as instituições políticas da nação foram capazes de evoluir para um notável grau de estabilidade. Neste processo histórico, a Grã-Bretanha emergiu como uma democracia pluralista, que atribui um grande valor para a liberdade de expressão, para a liberdade e afiliação política e para o respeito do estado de direito, com um forte senso dos direitos e deveres dos indivíduos, e da igualdade de todos os cidadãos diante da lei. A doutrina social católica, mesmo que formulada em uma linguagem diferente, tem muito em comum com essa abordagem, se se considera a fundamental preocupação pela salvaguarda da dignidade de cada pessoa, criada a imagem e semelhança de Deus, e a sua ênfase sobre o dever das autoridades civis de promoverem o bem-comum.
E, na verdade, as questões de fundo que estavam em jogo no processo contra Thomas More continuam a se apresentar, em termos sempre novos, com o mudar das condições sociais. Cada geração, enquanto busca promover o bem-comum, deve se perguntar sempre de novo: quais são as exigências que os governos podem impor razoavelmente aos próprios cidadãos, e até onde eles podem se extender? A qual autoridade se pode apelar para resolver os dilemas morais? Estas questões nos levam diretamente aos fundamentos éticos do discurso civil. Se os princípios morais que sustentam o processo democrático não se fundam, por sua vez, sobre nada de mais sólido do que o consenso social, então a fragilidade do processo se mostra em toda a sua evidência. Aqui se encontra o desafio real para a democracia.
A inadequação de soluções pragmáticas, de curto prazo, para os complexos problemas sociais e éticos foi colocada em toda evidência da recente crise financeira global. Há um vasto consenso sobre o fato de que a falta de um fundamento ético sólido da atividade econômica tenha contribuído para criar a situação de grave dificuldade na qual se encontra, agora, milhões de pessoas no mundo. Assim como “cada decisão econômica tem uma consequência de caráter moral” (Caritas in Veritate, 37), analogamente, no campo política, a dimensão moral das políticas atuadas tem consequências de largo alcance, que nenhum governo pode se permitir ignorar. Um exemplo positivo disso pode ser encontrado numa das conquistas particularmente notáveis do Parlamento britânico: a abolição do comércio de escravos. A campanha que levou a esta legislação epocal baseou-se sobre princípios morais sólidos, fundados sobre leis naturais, e constituiu-se em contribuição para a civilização da qual esta nação pode ser, muito justamente, orgulhosa.
A questão central que está em jogo, portanto, é a seguinte: onde pode ser encontra o fundamento ético para as escolhas políticas? A tradição católica sustenta que as normas objetivas que governam o reto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da revelação. Segundo esta compreensão, o papel da religião no debate político não é tanto o de fornecer tais normas, como se essas não pudessem ser conhecidas pelos não crentes – ainda menos é o de propor soluções políticas concretas, o que é absolutamente fora das competências da religião –, mas é muito mais ajudar na purificação e lançar luz sobre a aplicação da razão na descoberta dos princípios morais objetivos. Este papel “corretivo” da religião na relação com a razão, todavia, não foi sempre bem acolhido, em parte porque formas distorcidas de religião, como o sectarismo e o fundamentalismo, podem se mostrar como causas de sérios problemas sociais. E, por sua vez, estas distorções da religião emergem quando é dada uma atenção insuficiente ao papel purificador e estruturante da razão dentro da religião. É um processo que funciona em via de mão dupla. Sem a correção fornecida pela religião, de fato, mesmo a razão pode cair com presa de distorções, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia, ou aplicada de modo parcial, que não leva em conta plenamente a dignidade da pessoa humana. Foi este uso distorcido da razão, no fim das contas, que deu origem ao comércio de escravos e, depois, aos muitos outros males sociais, até mesmo às ideologias totalitárias do século XX. Por isto, gostaria de sugerir que o mundo da razão e o mundo da fé – o mundo da secularidade racional e o mundo do credo religioso – têm necessidade um do outro e não deveriam temer entrar num profundo e contínuo diálogo, pelo bem de nossa civilização.
A religião, em outras palavras, para os legisladores não é um problema que precisa ser resolvido, mas um fator que contribui de modo vital para o debate público na nação. Neste contexto, devo exprimir a minha preocupação diante da crescente marginalização da religião, particularmente do Cristianismo, que está tomando forma em alguns ambientes, mesmo em nações que atribuem à tolerância um grande valor. Existem alguns que sustentam que a voz da religião deveria ser calada, ou pelo menos relegada à esfera puramente privada. Existem alguns que sustentam que a celebração pública de festividades como o Natal deveria ser desencorajada, segundo a discutível convicção de que ela poderia, de algum modo, ofender aqueles que pertencem a outras religiões ou a nenhuma. E existem outros ainda que – paradoxalmente com o objetivo de eliminar as discriminações – sustentam que os cristãos que assumem cargos públicos deveriam, em determinados casos, agir contra a própria consciência. Estes são sinais preocupantes da incapacidade de levar em conta nã apenas os direitos dos crentes à liberdade de consciência e de religião, como também o papel legítimo da religião na esfera pública. Gostaria, portanto, de convidar a todos vós, cada um nas respectivas esferas de influência, a buscar vias para promover e encorajar o diálogo entre fé e razão em cada nível da vida nacional.
A vossa disponibilidade neste sentido já se manifestou no convite sem precedentes que me fizestes hoje, e encontra expressão nestes setores de interesse nos quais o vosso governo se empenhou junto à Santa Sé. No campo da paz, houve trocas sobre a elaboração de um tratado internacional sobre o comércio de armas; acerca dos direitos humanos, a Santa Sé e o Reino Unido viram positivamente a difusão da democracia, especialmente nos últimos 65 anos; no campo do desenvolvimento, houve uma colaboração no alívio da dívida, no comércio justo e no financiamento para o desenvolvimento, sobretudo através da “International Finance Facility”, a “International Immunization Bond” e o “Advanced Market Commitment”. A Santa Sé está, além do mais, desejosa de buscar, com o Reino Unido, novos caminhos para promover a responsabilidade ambiental, para o benefício de todos.
Noto, outrossim, que o atual governo se empenhou para aplicar, até 2013, 0,7% da renda nacional a favor das ajudas para o desenvolvimento. Foi encorajante, nos últimos anos, notar os sinais positivos de um crescimento da solidariedade para com os pobres, que diz respeito ao mundo inteiro. Mas, para traduzir esta solidariedade em ação efetiva, é preciso novas ideias, que melhorem as condições de vida em áreas importantes como a produção de alimento, a formação, a ajuda às famílias, especialmente de imigrantes, e os serviços sanitários básicos. Quando está em jogo a vida humana, o tempo se faz sempre breve: na verdade, o mundo foi testemunha dos vastos recursos que os governos são capazes de recolher para salvar instituições financeiras tidas como “muito grandes para falirem”. Certamente, o desenvolvimento integral dos povos da terra não é menos importante: é um tarefa digna de atenção por parte de todo o mundo, verdadeiramente “muito grande para falir”. 
Este olhar geral para a cooperação recente enter Reino Unido e Santa Sé mostra bem o quanto o progresso tenha acontecido nos anos que transcorreram desde o estabelecimento de relações diplomáticas bilaterais, em favor da promoção no mundo dos muitos valores de fundo que compartilhamos. Espero e rezo para que esta relação continue a frutificar e que se reflita numa crescente aceitação da necessidade de diálogo e respeito, a todos os níveis da sociedade, entre o mundo da razão e o mundo da fé. Estou certo de que também neste país existem muitos campos nos quais a Igreja e as autoridades públicas podem trabalhar juntas pelo bem dos cidadãos, em harmonia com a histórica prática deste Parlamento de invocar a orientação do Espírito sobre aqueles que buscam melhorar as condições de vida de todo o gênero humano. Para que esta cooperação seja possível, as instituições religiosas, compreendido nisso aquelas ligadas à Igreja católica, devem ser livres para agir de acordo com os próprios princípios e as convicções específicas que lhes são próprias também, fundamentadas sobre a fé e sobre o ensinamento oficial da Igreja. Deste modo, poderão ser garantidos aqueles direitos fundamentais, como a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e a liberdade de associação. Os anjos que nos olham da magnífica abóbada desta antiga sala nos lembra a longa tradição de onde se desenvolveu o Parlamento britânico. Eles nos lembra que Deus vigia constantemente sobre nós, para nos guiar e nos proteger. E eles nos chamam a reconhecer o contributo vital que o credo religioso concedeu e pode continuar concedendo para a vida da nação.
Senhor Presidente, agradeço-lhe ainda por esta oportunidade de me dirigir brevemente a este distinto auditório. Permita-me assegurar ao senhor e ao senhor Presidente da Câmara dos Lords os meus votos e a minha constante oração por vós e pelo frutuoso trabalho de ambas as Câmaras deste antigo Parlamento.
Obrigado, e Deus vos abençoe a todos!

* Texto extraído de Totus Tuus, traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Quanto mais Estado, mais corrupção

Por Carlos Alberto Sardenberg *

Pode procurar em qualquer lugar do Brasil de hoje, em qualquer setor da economia, e você vai encontrar empresários, executivos e administradores empenhados em alcançar ganhos de produtividade. É a resposta correta ao ambiente de estabilidade macroeconômica. Se o planejamento não será destruído pela inflação, se os lucros não serão devorados por uma moeda sem valor, então vale a pena - na verdade se torna obrigatório - buscar eficiência dentro do próprio negócio. Agora, imaginem a sensação dessa gente de bem, do lado moderno do País, ao verificar que uma boa conexão em Brasília vale mais do que a criatividade e o esforço físico das pessoas envolvidas nas empresas.
O "capitalismo de compadres" tem esse efeito destruidor sobre o espírito empreendedor, sem o qual nenhum país vai para a frente.
De que adianta ter uma boa ideia e preparar um bom projeto se, para levá-lo adiante, precisa-se de uma decisão ou de um favor de alguém do governo? A conexão para viabilizar o projeto acaba se tornando mais importante do que o próprio projeto.
Vamos logo fazer as ressalvas de praxe: é claro que o mercado não funciona sem o Estado, as leis, os controles e as garantias institucionais; é claro que é indispensável a atuação dos governos em educação, saúde, segurança, transporte; é claro que é razoável a presença do Estado estimulando, de algum modo, setores novos da economia ou setores mais complicados.
Mas é claro também que o Estado no Brasil vai muito além desses pontos. Isso se manifesta em vários níveis. Os dois primeiros separam a atuação do Estado como regulador e fiscalizador da ação direta na economia. No primeiro nível estão, por exemplo, as agências reguladoras. No segundo estão as estatais, os bancos e as empresas públicas, além do próprio governo quando atua como construtor de estradas, portos, hidrelétricas, etc.
Certamente, em todos esses níveis de intervenção estatal pode haver eficiência e espírito público. Imaginem, por exemplo - para ir ao limite -, que os diretores das agências e das estatais fossem contratados no mercado por competentes e reconhecidas consultorias privadas de gestão de recursos humanos.
Absurdo? De jeito nenhum. Isso é até bastante comum pelo mundo afora. O atual presidente do banco central de Israel, Stanley Fischer, um economista americano, foi contratado assim, numa espécie de concorrência global. Aliás, basta abrir as páginas de classificados da revista The Economist: toda semana aparecem editais oferecendo vagas de diretores e presidentes de companhias públicas em diversos países, sem restrição de nacionalidade para os candidatos.
O Brasil, e especialmente no governo Lula, está no lado exatamente oposto. As nomeações são politizadas, cargos repartidos na base de apoio. Isso escancara as portas do "compadrio" e da pura e simples corrupção.
Reparem, um diretor de estatal ou de agência, contratado pela competência, terá compromissos com os resultados fixados por ocasião da admissão. Por exemplo: a diretoria dos Correios terá como objetivo dobrar o faturamento em tantos anos e reduzir o prazo de entrega da correspondência em tantas horas. Cumpriu, recebe o prêmio; não cumpriu, está fora.
Um diretor nomeado pelo partido tem compromisso com o partido e com os companheiros em geral. Note-se que o presidente Lula consagrou como correta a tese de que é preciso colocar os companheiros e aliados, por critérios políticos, nos postos de governo, nas agências reguladoras e nas companhias públicas.
O compromisso com o partido ou com o presidente pode ser cumprido de maneira legal, mas mesmo assim causando danos. O governo pode impor programas e obras, sem roubalheira, mas que só se justificam política e eleitoralmente. Por exemplo, a Petrobrás, tempos atrás, apresentou ao presidente Lula um plano de investimentos mais modesto. O presidente mandou ampliar para os gigantescos programas atuais. É grande o risco de a empresa estar se metendo em projetos caros demais, de baixa rentabilidade.
Lula também está forçando os bancos públicos a aumentarem seus empréstimos, desde para grandes empresas escolhidas pelo governo até para famílias comprarem a casa própria. Os empréstimos podem ser ruins e o dinheiro pode não voltar.
Por que dizemos "pode"? Porque isso só se saberá mais à frente. Mas o precedente é este: estatais e bancos (incluindo o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal) quebraram exatamente com esse tipo de política econômica. Já vimos esse filme. E notem. Os dirigentes, nomeados politicamente, nem pensam em contestar as ordens vindas do governo.
Neste caso, temos erros de política. Mas esse sistema inevitavelmente acrescenta a corrupção. Para dizer francamente, quanto mais Estado na economia, mais corrupção. Exemplo? Os países socialistas, de economia inteiramente estatal, bateram todos os recordes de corrupção e ineficiência.
O governo FHC havia saneado estatais e bancos e introduzido regras técnicas e de mercado para seu funcionamento. O governo Lula repolitizou tudo. Com as consequências que já vemos por aí. Se conseguiram estragar os Correios - com ineficiência e corrupção -, por que não conseguiriam estragar a Petrobrás ou a Caixa Econômica Federal?
É isso aí: nessas atividades econômicas, quanto menos Estado, melhor. Deixem nas mãos dos empreendedores privados. São mais eficientes do que os amigos do rei. E não roubam.

* Carlos Alberto Sardenberg é jornalista. O texto foi extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, o dia 22 de setembro de 2010.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Paixão pela liberdade e pelo bem comum

Eleições 2010

"O difundir-se de um relativismo cultural confuso e de um individualismo utilitarista e hedonista enfraquece a democracia e favorece o domínio dos poderes fortes. É preciso recuperar e revigorar uma sabedoria política autêntica; ser exigente no que se refere à própria competência; servir-se criticamente das pesquisas das ciências humanas; enfrentar a realidade em todos os seus aspectos, indo além de qualquer reducionismo ideológico ou pretensão utópica; mostrar-se aberto a todo o diálogo e colaboração autênticos, tendo presente que a política é também uma complexa arte de equilíbrio entre ideais e interesses, mas sem jamais esquecer que a contribuição dos cristãos só é decisiva se a inteligência da fé se torna inteligência da realidade, chave de juízo e de transformação." (BENTO XVI. Pontifício Conselho para os Leigos, 21/05/2010)
"As circunstâncias pelas quais Deus nos faz passar são fator essencial e não secundário da nossa vocação, da missão a que Ele nos chama. Se o cristianismo é anúncio do fato de que o Mistério se encarnou num homem, a circunstância pela qual alguém toma posição a esse respeito, frente a todo o mundo, é importante para a própria definição do testemunho." (GIUSSANI, L. L’uomo e il suo destino. Gênova: Marietti, 2002, p. 63)

Cada circunstância é uma provocação que nos solicita a considerar o que temos de mais caro na nossa vida. 
Por causa disso, tudo nos interessa! Também a política, que é o instrumento que os homens têm para juntos alcançarem o bem comum, o bem para todos.
Busquemos nestas eleições reacender esse desejo de bem primeiro em nós, cada vez mais tomados pelo individualismo. E depois trabalhemos para construir relacionamentos com pessoas (políticos e não) que procurem esse mesmo horizonte, que sejam pessoas desejosas de servir a um povo e não aos próprios interesses.
A primeira vitória nestas eleições é que comece em nós uma inquietação – um não ficar tranquilos - não causada pela raiva ou pelo mal-estar decorrente da falta de uma classe política adequada, mas pelo desejo de que os homens possam encontrar uma experiência de bem. Que esse desejo nos coloque ao trabalho pessoalmente, não delegando-o a outros, mas construindo onde quer que estejamos um pedaço de mundo novo.
1) Não pedimos a salvação à política, não é aí que buscamos a esperança para nós e para os outros. A tradição da Igreja sempre indicou dois critérios ideais para julgar qualquer autoridade civil e qualquer proposta política:
      a. A libertas Ecclesiae. Um poder que respeita a liberdade de um fenômeno tão sui generis como a Igreja é também tolerante com qualquer outra autêntica agregação humana. O reconhecimento do papel público da fé e da contribuição que ela pode dar no caminho dos homens é, portanto, garantia de liberdade para todos, não só para os cristãos.
      b. O “bem comum”. O poder, como serviço ao povo, defende as experiências nas quais o desejo do homem e a sua responsabilidade podem crescer em função do bem comum, através da construção de obras sociais e econômicas, segundo o princípio da subsidiariedade, sabendo que nenhum programa poderá garantir a realização do bem comum em termos definitivos, por causa do limite intrínseco a toda tentativa humana.
2) Por essa razão, damos nossa preferência a quem promove uma política e modo de ser do Estado que favorece a “liberdade” e o “bem comum”, e que por isso pode sustentar a esperança do futuro, defendendo a vida, a família, a liberdade de educar e de realizar obras que encarnem o desejo do homem. Fazemos isso num momento histórico que exige não desperdiçar o voto, para não acrescentar mais confusão ao que já está confuso.
De maneira especial, convidamos a olhar para alguns amigos que, a partir do empenho pessoal com a experiência cristã que temos em comum, já demonstraram lutar por uma política a serviço do bem comum, da subsidiariedade e da libertas Ecclesiae. Esperamos que eles possam continuar documentando a novidade que entrou em suas vidas, como nas nossas, a fim de que sua ação possa tornar cada vez mais explícito o fruto da educação que recebemos: uma paixão pela liberdade e pelo bem vivida como caridade.

domingo, 4 de julho de 2010

Eleição sem maquiagem

Por Fernando Henrique Cardoso

O mundo continua se contorcendo sem encontrar caminhos seguros para superar as consequências da crise desencadeada no sistema financeiro. Até a ideia (que eu defendi nos anos 1990 e parecia uma heresia) de impor taxas à movimentação financeira reapareceu na voz dos mais ortodoxos defensores do rigor dos bancos centrais e da intocabilidade das leis de mercado. No afã de estancar a sangria produzida pelas exacerbações irracionais dos mercados, outros tantos ortodoxos passaram a usar e até a abusar de incentivos fiscais e benesses de todo tipo para salvar os bancos e o consumo.
Paul Krugman, mais recentemente, lamentou a resistência europeia à frouxidão fiscal. Ele pensa que o corte aos estímulos pode levar a economia mundial a algo semelhante ao que ocorreu em 1929. Quando a crise parecia acalmada, em 1933, suspenderam-se estímulos e medidas facilitadoras do crédito, devolvendo a recessão ao mundo. Será isso mesmo? É cedo para saber. Mas, barbas de molho, as notícias que vêm do exterior, e não só da Europa, mas também da zigue-zagueante economia americana e da letárgica economia japonesa, afora as dúvidas sobre a economia chinesa, não são sinais de uma retomada alentadora.
Enquanto isso, vive-se no Brasil oficial como se nos tivéssemos transformado numa Noruega tropical, na feliz ironia deste jornal em editorial recente. E em tão curto intervalo que estamos todos atônitos com tanto dinheiro e tantas realizações. Basta ler o último artigo presidencial no Financial Times. A pobreza existia na época da "estagnação". Agora assistimos ao espetáculo do crescimento, sem travas, dispensando reformas e desautorizando preocupações. Se no governo Geisel se dizia que éramos uma ilha de prosperidade num mundo em crise, hoje a retórica oficial nos dá a impressão de que somos um mundo de prosperidade e o mundo, uma distante ilha em crise. Baixo investimento em infraestrutura? Ora, o PAC resolve. Receio com o aumento do endividamento público e o crescente déficit previdenciário? Ora, preocupação com isso é lá na Europa. Aqui, não. Afinal, Deus é brasileiro.
Só que a realidade existe. A prosperidade de uns depende da de outros no mundo globalizado. Por mais que estejamos relativamente bem em comparação com os países de economia mais madura, se estes estagnarem ou crescerem a taxas baixas, haverá problemas. A queda nos preços das matérias-primas prejudicará as nossas exportações, grande parte delas composta de commodities. A ausência de crescimento complicará a solução dos desequilíbrios monetários e fiscais dos países ricos e isso significará menos recursos disponíveis para o Brasil no mercado financeiro global. Não devemos ser pessimistas, mas não nos podemos deixar embalar em devaneios quase infantis, que nos distraem de discutir os verdadeiros desafios do País.
Infelizmente, estamos às voltas com distrações. Um cântico de louvor às nossas grandezas, de uma falta de realismo assustador. Embarcamos na antiga tese do Brasil potência e, sem olhar em volta, propomo-nos a dar saltos sem saber com que recursos: trem-bala de custos desconhecidos, pré-sal sem atenção ao impacto do desastre no Golfo do México sobre os custos futuros da extração do petróleo, capitalização da Petrobrás de proporções gigantescas, uma Petro-Sal de propósitos incertos e tamanho imprevisível. Tudo grandioso. Fala-se mais do que se faz. E o que se faz é graças a transferências maciças do bolso dos contribuintes para o caixa das grandes empresas amigas do Estado, por meio de empréstimos subsidiados do BNDES, que de quebra engordam a dívida bruta do Tesouro.
A encenação para a eleição de outubro já está pronta. Como numa fábula, a candidata do governo, bem penteada e rosada, quase uma princesinha nórdica, dirá tudo o que se espera que diga, especialmente o que o "mercado" e os parceiros internacionais querem ouvir. Mas a própria candidata já alertou: não é um poste. E não é mesmo, espero. Tem uma história, que não bate com o que se quer que ela diga. Cumprirá o que disse?
No México do PRI, cujo domínio durou décadas, o presidente apontava sozinho o candidato a suceder-lhe, num processo vedado ao olhar e às influências da opinião pública. No entanto, quando a escolha era revelada ao público - "el destape del tapado" -, o escolhido via-se obrigado a dizer o que pensava. Aqui, o "dedazo" de Lula apontou a candidata. Só que ela não pode dizer o que pensa para não pôr em risco a eleição. Estamos diante de uma personagem a ser moldada pelos marqueteiros. Antigamente, no linguajar que já foi da candidata, se chamava isso de "alienação".
Esconde-se, assim, o que realmente está em jogo. Queremos aperfeiçoar nossa democracia ou aceitaremos como normais os grandes delitos de aloprados e as pequenas infrações sistemáticas, como as de um presidente que dá de ombros diante de seis multas a ele aplicadas por desrespeito à legislação eleitoral? Queremos um Estado partidariamente neutro ou capturado por interesses partidários? Que dialogue com a sociedade ou se feche para tomar decisões baseadas em pretensa superioridade estratégica para escolher o que é melhor para o País? Que confunda a Nação com o Estado e o Estado com empresas e corporações estatais, em aliança com poucos grandes grupos privados, ou saiba distinguir uma coisa da outra em nome do interesse público? Que aposte no desenvolvimento das capacidades de cada indivíduo, para a cidadania e para o trabalho, ou veja o povo como massa e a si próprio como benfeitor? Que enxergue no meio ambiente uma dimensão essencial ou um obstáculo ao desenvolvimento?
Está na hora de cada candidato, com a alma aberta e a cara lavada, dizer ao País o que pensa.

* Extraído do jornal O Estado de São Paulo, versão online, do dia 04 de julho de 2010.

sábado, 26 de junho de 2010

Privado em nome da utilidade pública

Por Giorgio Vittadini*

Por que concepções tais como "mais sociedade, menos Estado" ou bem-estar subsidiário se tornaram atuais, como mostra o interessante debate que encontrou espaço nas páginas do Corriere? Um primeiro ponto sobre o qual devemos fixar nossa atenção é a necessidade de defender aquela tradição europeia que, a partir da centralidade da pessoa, "única e irrepetível", construiu um sistema de bem-estar universal voltado para a oferta de uma ampla gama de serviços públicos disponíveis para todos os cidadãos.
Mantendo a meta de não retroceder a partir desta importante conquista civil, e tendo presentes as novas exigências de um mundo em rápida mudança, torna-se necessário enfrentar as duas concepções de bem estar que, hoje, se contrapõem. Na Itália, há mais de dois séculos, prevaleceu a ideia de que um sistema de bem-estar universal só pudesse ser gerido por administrações e empresas públicas, através de uma forte programação do Estado central. Todavia, nas últimas décadas, por causa da crescente quantidade e qualidade das necessidades da população e por causa da explosão da dívida pública, tal concepção entrou em crise, levando muitos a acreditarem que, mesmo no bem-estar, devam valer as regras de um mercado "selvagem" guiado apenas pela lógica do proveito máximo. É evidente que se este sistema se afirmasse, as sociedades europeias assumiriam, em poucos anos, os aspectos mais deteriorados do mundo americano, com uma inaceitável e crescente contraposição entre ricos e pobres.
Contra esta contraposição estéril entre lógica pública e privada, chegou o momento de sublinhar o valor do chamado "bem-estar subsidiário", aquele no qual se encontra espaço para os serviços das realidades sem fim lucrativo, cujo melhor negócio consiste exatamente na busca de objetivos sociais. Os cidadãos, nestes casos, são titulares da liberdade de escolha a partir de dentro de uma pluralidade de oferta governada pelo Estado (através de mecanismos de credenciamento e avaliação que superem as assimetrias informativas) e financiada de forma a redistribuir as taxas (através de abonos, dotações, deduções e isenções fiscais, convenções etc.). Deste modo, se obteria a grande vantagem da liberdade de escolha dos usuários, típica dos mercados, e também a vantagem da garantia de serviços que respondam às necessidades elementares da população.
Um posterior valor agregado desta concepção é a recuperação de uma concepção de pessoa não isolada, mas em relação com outras pessoas e, enquanto tal, não apenas sujeito, mas sujeito do bem-estar. Desde a alta idade média, e depois por mérito do movimento católico, operário, e de uma concepção liberal e empresarial atenta às necessidades sociais, nasceram escolas, universidades, hospitais, obras assistenciais, intervenções de apoio ao trabalho, habitações populares, intervenções de proteção ambiental e artística, até mesmo institutos bancários. Ainda que não ajudadas por uma legislação que, pelo contrário, as discriminou, estas realidades de direito privado, mas públicas por objetivo, se encarregaram, de modo frequentemente mais eficaz e eficiente do que as estatais, das mais diversas necessidades sociais.
Este protagonismo social é o grande recurso a ser valorizado na atual fase de transição, como já entenderam, há bastante tempo, pensadores como Lester Salamon da Johns Hopkins (que fala da necessidade de parcerias público-privadas) ou Julian Le Grand da London School of Economics (que defende a livre escolha do usuário no bem-estar). Também a Corte constitucional italiana entendeu isso, há alguns anos atrás, quando definiu o escopo de utilidade pública das instituições e fundações bancárias. Mesmo a grande parte da população entendeu isso. E, finalmente, também entenderam algumas Regiões [no Brasil, essas "Regiões" equivaleriam, do ponto de vista administrativo, aos estados da federação; ndt] que reformaram suas legislações para permitir aos cidadãos a escolha, entre os prestadores de serviços de bem-estar, daqueles que mais respondiam às próprias necessidades. É chegado o momento de, também em nível nacional, colocar em ação uma reforma que recoloque no centro do sistema social a pessoa, não apenas como objeto mas também como sujeito do bem-estar. É chegado o momento de repensar as categorias de mérito e de paridade que, concebidas de maneira burocrática como são agora, arriscam obter o máximo da injustiça.

* Giorgio Vittadini é presidente da Fundação pela Subsidiariedade. Extraído do Corriere della Sera, do dia 26 de junho de 2010 (p. 56). Traduzido por Paulo R. A. Pacheco. 

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O brasileiro sabe cuidar de sua vida?

por Carlos Alberto Sardenberg

Que tal a seguinte questão: as pessoas sabem cuidar de suas vidas ou precisam sempre da proteção e do controle do Estado?
Antes que façam a objeção, observo: é claro que não haverá resposta absoluta do tipo "eliminem o Estado" ou "suprimam as liberdades". Mas no balanço a coisa se inclina, no Brasil, mais para uma suposta proteção do Estado, que mais parece autoritarismo.
Tanto é assim que certas questões nem aparecem no debate político. Por exemplo: o que é melhor, a gente pagar mais impostos para o governo fornecer a escola pública ou pagar menos imposto e, com mais dinheiro no bolso, escolher uma escola particular? Pagar imposto para o serviço público de saúde ou ficar com mais dinheiro para pagar o plano de saúde privado?
Reparem agora como a coisa aparece no cotidiano das pessoas. Os medicamentos se dividem em dois grandes grupos, os que precisam de prescrição médica e os que não precisam, sendo estes de venda livre nas farmácias. Livre até certo ponto, pois a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, tenta impor a regra pela qual os medicamentos isentos não podem ficar expostos nas gôndolas, ao alcance do consumidor. Em vez disso, deveriam ficar guardados atrás dos balcões, de tal modo que o cidadão tenha que solicitá-los ao balconista.
A Anvisa baixou resolução com essa norma, mas associações e redes de farmácia a contestam na Justiça.
Além disso, algumas assembleias legislativas estaduais aprovaram leis regulamentando o varejo nas farmácias e determinando que os medicamentos isentos podem, sim, ficar nas gôndolas, sendo adquiridos diretamente pelo consumidor. Pega e paga no caixa.
A situação, portanto, está indefinida nos tribunais e no Legislativo. Mas o Conselho Federal de Farmácia, entidade dos farmacêuticos, que apoia a resolução da Anvisa, pretende resolver a história com outra manobra. Prepara uma resolução determinando que todos os medicamentos isentos de prescrição médica só poderão ser vendidos com uma prescrição farmacêutica.
Funcionaria assim: a pessoa entra na farmácia em busca de um comprimido para dor de cabeça; é, então, atendida por um farmacêutico que fará uma ficha de atendimento e, então, prescreverá o comprimido que o cliente solicitou. Ou um outro, se julgar mais adequado. Nesse caso, se a pessoa não quiser, que procure outra farmácia e outro farmacêutico.
Haverá, portanto, uma espécie de consulta obrigatória, com o farmacêutico, para a compra de qualquer medicamento, por mais simples que seja. E isso tudo seria determinado por uma resolução do Conselho Federal de Farmácia.
A Anvisa apoia essa proposta do conselho, pois é uma maneira de contrabandear e ampliar aquela outra resolução. Pela norma da Anvisa, o consumidor precisa pedir o medicamento ao balconista. Pelo conselho, o consumidor vai precisar fazer uma ficha e obter a receita do farmacêutico, mesmo para um medicamento que ele mesmo, consumidor, escolheu e que normalmente usa.
Difícil imaginar outro meio de torrar a paciência dos consumidores. Difícil também imaginar outro meio de tumultuar e encarecer um comércio que funciona relativamente bem. O argumento da Anvisa e do conselho sustenta que as regras se destinam a evitar o uso indevido de medicamentos isentos de prescrição e, assim, prevenir reações adversas e/ou interações medicamentosas.
Mas esse tipo de problema não é, propriamente, uma calamidade nacional, nem sequer uma preocupação grave. Não há notícia de que a coisa no Brasil esteja fora do controle.
O que ocorre mais é problema com o uso indevido de medicamentos, digamos, mais perigosos, justamente aqueles que precisam de prescrição - e que são vendidos sem a receita. Tem a venda no contrabando que vem do Paraguai, por exemplo, que é um assunto da polícia. Mas muitas farmácias legalmente estabelecidas também vendem sem prescrição e depois compram receitas de médicos.
Ora, em vez de tratar desse assunto, a Anvisa e o Conselho de Farmácia querem introduzir outra prescrição e outra ficha.
O argumento de que o brasileiro não sabe comprar remédio não se justifica. Os números não indicam uso excessivo dos medicamentos livres, mesmo porque as pessoas não estão com dinheiro sobrando para comprar um remédio novo só para experimentar a novidade.
Na verdade, o pessoal da Anvisa tem uma visão autoritária e um viés contrário ao comércio farmacêutico privado. Entende que as autoridades sabem melhor o que é bom para as pessoas. Estas precisariam ser protegidas para não caírem vítimas de capitalistas inescrupulosos. (Mas quem as protegerá, por exemplo, de um farmacêutico que se recuse a vender um medicamento?)
Já o conselho está obviamente preocupado em garantir mais postos de trabalho para os farmacêuticos. Resultado: se isso tudo vingar, o custo de operação das farmácias subirá.
Ou seja, a pretexto de proteger as pessoas, vão conseguir duas coisas: aumentar o preço dos remédios e tirar a liberdade de o cidadão comprar um simples comprimido para dor de cabeça.

* Extraído d'O Estado de São Paulo (versão online), do dia 07 de junho de 2010.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O trabalho é para ressuscitar

Por Pigi Colognesi

Em uma rápida reunião de redação do IlSussidiario.net decidimos que o editorial de hoje tenha como tema o trabalho, visto que amanhã é primeiro de maio. Comecei a pensar a respeito enquanto ia para a biblioteca - uma importante biblioteca pública de Milão - para procurar um livro que me seja útil para o meu trabalho.
Enquanto preenchia os formulários necessários para o ingresso, a empregada que estava diante de mim diz, entre deprimida e rancorosa, para a sua colega: "Não é o trabalho que me cansa. São as pessoas que me irritam". Pareceu-me falso e redutivo e quis, então, entender por quê. Decidi, assim, que o editorial iria começar daqui.
Antes de mais, volta-me à mente o fato que quando, esperando um volume qualquer, aconteceu de eu escutar as conversas dos empregados daquela biblioteca, o argumento era, frequentemente, a lamentação quanto a um colega qualquer, ausente obviamente, ou quanto ao chefe: alguém que deixou o lugar em desordem, ou aquela que chegou atrasada, o chefe que definiu as férias injustamente, e por aí vão as lamentações. Mas, somando tudo, isso me parece suficientemente normal. Cada convivência, sobretudo quando não é escolhida, tem seus espinhos e asperezas.
Depois, pensei que também eu, como usuário, no fundo, sou alguém que irrita, porque coloco problemas, tenho uma exigência, interrompo uma leitura ou um discurso, sou um fator de distúrbio quando se pensa no programa estabelecido. Mas isso se pode dizer de cada relacionamento de trabalho.
E se uma pessoa cansa e a tratamos mal, imaginemos o que possa acontecer com as coisas que, diferentemente dos homens, sequer se lamentam. Entendo bem, então, de onde vem o descuido de tantos ambientes de trabalho, aquela desordem feia que denota falta de respeito pelas coisas e pela beleza dos seus relacionamentos equilibrados.
Volta à minha mente a grande conferência que François Michelin proferiu no Meeting [de Rímini; ndt] de alguns anos atrás. O dono da fábrica de pneus surpreendeu a todos ao expor o princípio sobre o qual ele fazia todas as suas escolhas econômicas e organizativas: o respeito pelo dado. Cada trabalho, ele dizia, é um relacionamento que se assume com algo de diferente de você, algo de preexistente às nossas próprias imaginações, cálculos, previsões.
Trabalhar - e ter sucesso no trabalho - significa dobrar-se a esta irredutível e fecunda alteridade: o colega, o operário, o fornecedor, o cliente. Até mesmo a matéria-prima; sim, porque o homem não é criador, como Deus, e pode modelar a matéria segundo os seus objetivos tão somente se lhes respeitar as características.
É evidente, então, que a verdadeira dificuldade que frequentemente encontramos no trabalho, aquela insatisfação que se torna o fundo do cotidiano que somos obrigados a carregar, provêm diretamente da não aceitação do dado - pessoas e coisas -, da pretensão de assumir apenas uma realidade selecionada pelos nossos gostos, prazeres e desejos.
E assim nos condenamos à esterilidade de quem não encontra nunca algo de novo. Condenamos-nos a não fazer nunca a experiência descrita pelo poeta polonês Kiprian Norwid: "A beleza existe para suscitar admiração que, depois, leva ao trabalho: o trabalho é para ressuscitar".

* Publicado no IlSussidiario.net, do dia 30 de abril de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Solidariedade e confiança para enfrentar a crise


A importância da subsidiariedade na Encíclica. Caritas in veritate, o mercado deveria levar em conta os interesses de todos, não apenas dos patrões

Por Alberto Quadrio Curzio

Caritas in veritate, a encíclica social de Bento XVI, é um documento complexo que exigirá muita reflexão para avaliar a sua inserção na continuidade da doutrina social católica à qual João Paulo II deu, sobretudo com a Centesimus annus (1991), um notável empurrão, assim como já havia feito Paulo VI com a Populorum progressio (1967). Dois verdadeiros e justos desenvolvimentos da doutrina social da Rerum Novarum (1891). O economista deve estar a par de que o fundamento e a perspectiva da Encíclica é teológico-antropológica e que uma reflexão apenas de tipo institucional-social-econômica sobre ela é muito parcial. Porém, não é inútil, na medida em que a doutrina social católica oferece uma orientação ideal, atemporal e a-espacial, a todos aqueles que, nas diversas responsabilidades, devem enfrentar e resolver problemas sócio-econômicos num momento histórico e geográfico específico. A doutrina social não propõe modelos econômicos e políticos, porém. A entonação da Caritas in veritate é que a crise e as dificuldades enfrentadas, presentemente, pelos Estados, pela sociedade e pela economia são devidas sobretudo à falta ou à carência de uma adequada inspiração solidária, orientada para o bem comum, o que significa “cuidar, de um lado, e servir-se, de outro, daquele complexo de instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente o viver social, que de tal maneira toma a forma de polis, de cidade”. Isto traz à tona o problema do significado do desenvolvimento e de como consegui-lo. Uma resposta unificada e unificante ao problema do desenvolvimento orientado para o bem comum e para a promoção da pessoa pode ser encontrado na Caritas in veritate, em consonância com a Centesimus annus, na combinação de subsidiariedade e solidariedade, dois princípios presentes na doutrina social católica. “O princípio de subsidiariedade”, afirma a última encíclica de Bento XVI, “está estreitamente ligado ao princípio da solidariedade e vice-versa, porque se a subsidiariedade sem a solidariedade decai no particularismo social, é também verdade que a solidariedade sem a subsidiariedade decai em assistencialismo que humilha o portador de necessidade”. Afirmação que é completada pela seguinte: “Manifestações particulares de caridade e critério para a colaboração fraterna de crentes e não crentes é, sem dúvida, o princípio de subsidiariedade, expressão da inalienável liberdade humana”. A Caritas in veritate enfatiza estes grandes ideais, que são também critérios operativos, colocando-os lado a lado com outros critérios como a complementariedade entre justiça comutativa, que preside os contratos, justiça distribuitiva e justiça social, que se fundam e geram equidade e confiança. Assim, a Encíclica afirma que “sem formas internas de solidariedae e de confiança recíproca, o mercado não pode cumprir plentamente sua função econômica. E hoje é esta confiança que começou a faltar, e a perda da confiança é uma perda grave”. Reelaborando e sintetizando, a Caritas in veritate, tomando por base a Centesimus annus, esclarece que tudo isso passa através das instituições (que fixam regras e as fazem respeitar), da sociedade (que age a partir de um princípio de coesão e de convicção), do mercado (que age segundo critérios econômicos de conveniência e não contra o em comum fixado pelas regras de concorrência e de correção). O equilíbrio entre essas forças deveria ser inspirado por uma convicta e não forçada solidariedade operante que combine liberdade e responsabilidade. Os princípios gerais, enunciados antes, encontram muitas aplicações na Caritas in veritate, que como entonação prefere a que recria e reforça os ideais, à de uma lógica econômica que, fora da história e dos ideais, se torna mecanicismo. Colocando-nos entre ideais e lógica, devemos avaliar as proposições da Encíclica sobre instituições, sobre sociedade, sobre mercado, sobre economia, sobre proveito, sobre terceiro setor, sobre globalização e sobre a crise. Definitivamente, todos grandes temas do século XXI e, não podemos deixar de dizer, também heranças do século XX. É impossível tratar de todos eles. Concentremo-nos então, neste momento, sobre o modo de compreender a empresa (assim como nos diz a Caritas in veritate). Afirma-se que a empresa não deve levar em consideração apenas os interesses dos proprietários, mesmo que legítimos e merecedores de cuidado, mas também de todos os outros sujeitos envolvidos na sua atividade: trabalhadores, clientes, fornecedores, comunidade e território de referência. Sabemos que esta convicção, muito diversa daquela nascida das doutrinárias libertárias (que, com o seu absoluto do “criar valor a qualquer custo para os acionistas”, sustentam que, para tal fim, basta o liberalismo), responde frequentemente às exigências dos melhores empreendedores, os quais, na sua atividade, desenvolvem uma criatividade pessoal e comunitária que encontra no proveito um complemento irrenunciável, mas não suficiente, para que a empresa prospere. A Caritas in veritate exprime, sempre em consonância com a Centesimus annus, o apreço pelas obras destes empreendedores, encorajando os outros a seguir o seu exemplo. E eis como no caso específico da empresa econômica os ideais se traduzem em fatos, vivendo na liberdade responsável empregada.

* Extraído do jornal ItaliaOggi, do dia 22 de julho de 2009 (p. 4). Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Outro modelo de desenvolvimento


Ilaria Schnyder von Wartensee estudou o modelo de desenvolvimento dos Sem Terra, no Brasil, um modelo liderado por Cleuza Ramos e Marcos Zerbini, hoje deputado de São Paulo. Publica em Páginas Digital as principais conclusões de seu trabalho, coincidindo com a publicação da encíclica Caritas in veritate, que Bento XVI dedicou à questão do desenvolvimento.


Atualmente, existe um forte debate no seio da comunidade científica e das instituições financeiras internacionais acerca da eficácia da ajuda internacional aos países em vias de desenvolvimento, das políticas que favorecem o crescimento e a redução da pobreza, além dos instrumentos mais adequados para desenhar e colocar em prática este tipo de medidas. De fato, as políticas (e as ajudas) de capital físico e humano (educação) não obtiveram os resultados esperados, o que evidencia que o problema é complexo e compreende dimensões diferentes e complementares (econômica, social, institucional etc.). Podem haver vários motivos que expliquem a escassez de resultados: desde razões de tipo técnico-metodológico (qualidade dos dados, indicadores utilizados, problemas endógenos…) até a relação entre diversos fatores que influem no crescimento de um país a longo prazo, como a qualidade do contexto macroeconômico, institucional e social dos países beneficiados.
A complexidade do problema e sua multidimensionalidade requerem estratégias de ação mais atentas à especificidade das situações, dos contextos e dos atores implicados. Ainda que todos estejam de acordo com o fato de que é necessário um enfoque country specific e country ownership, as opiniões se chocam no momento de colocar em prática este novo enfoque. Para alguns, complexidade e especificidade podem ser enfrentadas apenas a partir de planos globais e compreensivos que sigam simultaneamente as diferentes dimensões necessárias para alcançar a eficácia na atividade e que partam da ideia de que quem administra sabe e conhece as necessidades das pessoas. Porém, a ineficiência e a corrupção dos aparatos burocrátios fez emergir com força a idéia de “dar voz” e “favorecer a participação” dos pobres na definição e na atuação, segundo seu próprio sentido de crescimento e desenvolvimento. A ideia de que as pessoas – individualmente ou como grupo social – são os melhores conhecedoras de suas próprias necessidades é a base da proposta liberal que sustenta a necessidade de proporcionar algumas regras básicas, assegurar certos direitos fundamentais e dar as ajudas justas para que os indivíduos se movam para melhorar suas condições de vida.
Ainda assim, em ambas as posições, o problema de como os indivíduos e os grupos sociais de determinados contextos econômicos e culturais respondem às ajudas e aproveitam as oportunidades fica desvalorizado. Concebe-se o “sujeito” como predefinido, autosuficiente, capaz de responder eficaz e mecanicamente ao dado da realidade, de reconhecer e valorizar as ajudas que se lhe oferecem (como a possibilidade de ir para a escola, por exemplo) e desfrutar delas ao máximo. Nas políticas baseadas em grandes planos, mas nas quais a presução de “saber” é o que move os sujeitos e que os faz responsável, é enorme a tentação de substitui-los e convertê-los em um dado “passivo” de atividades que respondam a suas necessidades.

Recentemente, pude estudar dois casos de experiências de desenvolvimento em ato, nas quais se pode reconhecer as dinâmicas de mudança nas posições de alguns sujeitos com relação aos objetivos que perseguem na vida e sua capacidade de atuar (pessoas que passam de uma posição passiva/reivindicativa/resignada a um protagonismo construtivo). Ambos os casos estão relacionados a tentativas de solucionar um problema de moradia no Brasil, ainda que em dois contextos extremamente diferentes. Em Salvador, trata-se de um problema de subúrbios, onde se tenta melhorar as condições de vida de quase 135 mil pessoas em situação de pobreza extrema, que vivem em condições muito precárias e perigosas, através do Projeto de Asistência Técnica e Social (PATS) do Programa Ribeira Azul (PARA) do Estado da Bahia. Do projeto PATS, iniciado em setembro de 2001 e terminado em março de 2006, participaram a Fundação AVSI e outros atores nacionais e internacionais, como o Banco Mundial. Em São Paulo, conheci a experiência da Associação dos Trabalhadores Sem Terra (ATST), uma associação local nascida em meados dos anos 1980, com o objetivo de ajudar pessoas e famílias com poucos recursos, que vivem em condições precárias ou têm que gastar uma grande parte de sua renda familiar com aluguel de um lugar para viver. A Associação não se limita apenas a oferecer apoio técnico, mas ajuda as pessoas a tomarem consciência de seu potencial e facilita a formação de relações sociais e humanas baseadas na confiança. O objetivo desta análise foi verificar até que ponto a participação no projeto PATS ou nas atividades da Associação modificou a atitude das pessoas, aumentando sua capacidade de assumir riscos e de empreender novas iniciativas.
Apesar das profundas diferenças entre os dois casos, coincidem os fatores que permitiram às pessoas perceberem uma possibilidade de mudança de sua própria condição e persegui-la. Esses fatores foram: o encontro com pessoas que deixavam ver uma possibilidade positiva para a própria vida ou um olhar diferente, e que mudaram a percepção do próprio valor e das próprias possibilidades; a disponibilidade para se esforçar pessoalmente para conseguir os objetivos; a experiência de uma relação com essas pessoas que não se limita a uma necessidade específica, mas que implica todos os aspectos da vida cotidiana no caminho de confiança recíproca (acompanhamento, em outros termos, um caminho educativo); a progressiva realização de algo que parecia impossível.
Em resumo, as experiências examinadas indicam que, sendo necessário o esforço dos sócios e beneficiários para perceber o valor de qualquer forma de ajuda, esse esforço está intimamente vinculado à trama de relações de confiança que rodeia a pessoa, como indica a presidente da ATST: “(o desenvolvimento) é ensinar à pessoa a olhar para si mesma, a querer-se bem, a olhar sua beleza… só uma companhia – não o dinheiro, mas apenas a companhia – pode ajudar o outro a mudar... enquanto não mudar, a pessoa não alcança um desenvolvimento econômico. Antes de mais nada, o desenvolvimento é para a pessoa. Se você quer ajudar alguém, primeiro tem que ajudar a você mesmo a se olhar como pessoa. Depois, posso ajudar a encontrar uma casa” (Cleuza Ramos, extraído de uma entrevista realizada em São Paulo, em abril de 2009).

Ilaria Schnyder von Wartensee é pesquisadora do Departamento de Desenvolvimento e Cooperação Internacional, na Fundação para a Subsidiariedade.

* Texto extraído de PáginasDigital.es, 15 de julho de 2009. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

A lição de Adam Smith

por Giorgio Vittadini

Se, como diz Adam Smith, não é benevolência do mestre cervejeiro que produz a riqueza, é preciso lembrar que o mesmo autor afirma que o valor de troca de um bem equivale ao seu valor de uso, à sua real utilidade. Para intuir a necessidade de um produto para alguém, mesmo hoje em dia, não basta um empresário que repita de modo esquemático determinados procedimentos. É preciso um empresário que intua as necessidades de uso de um determinado público e coloque em ação a sua capacidade criativa, de transformação da realidade, o seu desejo de construir, de melhorar a própria condição e a de sua família, do seu território.
Isto, contrariamente a uma certa literatura sócio-econômica, é proporcional à forma como ele vive a sua natureza profunda, feita do desejo de justiça, verdade, beleza – como recordava muito frequentemente Luigi Giussani –, e à forma como tal desejo é educado nas realidades sociais, territoriais, ideais, às quais pertence. Isto não significa negar o papel determinante do proveito, indicador indispensável de toda atividades econômica. Significa mostrar a importância da razão, que está na base da criação de riqueza, sem a qual toda descrição do sistema econômico é uma interpretação do funcionamento daquilo que existe, mas não explica porque se gerou.
Relendo a história de empresas que se tornaram colossos multinacionais, analisando as dificuldades de tantas pequenas e médias empresas de sucesso, se vê como o homem é o recurso da empresa. Se um proveito desvinculado do desejo de trabalhar e construir dominasse a ação, por que, na atual crise, as pequenas e médias empresas italianas, que produzem 70% da fatura e dão trabalho para 80% dos ocupados italianos, deveriam resistir à tentação de vender a empresa, ficar com o dinheiro na família sem reinvesti-lo e viver de renda? Como ensinam os grandes autores da economia empresarial italiana, uma empresa, sobretudo as pequenas e médias, que queira se manter no longo prazo deve ser movida por um conjunto de princípios e ideais ligados à valorização dos seus trabalhadores considerados como pessoas. Do relatório Subsidiariedade e... pequenas e médias empresas (Mondadori Università, 2009) emergiu como os pequenos e médios empreendedores são, na sua grande maioria, movidos, mais do que pela busca de proveito, pelo desejo de criar postos de trabalho e de tornar a empresa, mesmo que a custas pessoais, um lugar onde os trabalhadores estejam bem.
No que diz respeito à concorrência, prevalece sobre a competição darwinista de tipo neoclássico uma tendência ao compartilhamento com os concorrentes da atividade de pesquisas e de desenvolvimento, de internacionalização, de estratégia para melhorar a competitividade. Quem pensa que estas são divagações poéticas, reflita sobre como a sorte inesperada dos distritos italianos nasceu desta estranha concepção de concorrência criativa e colaboradora entre empresas.
Definitivamente, aquilo que importa é o capital humano, quase esquecido na embriaguez pelas teorias financeiras, como instrumento para promover, no mundo da empresa, aquela atenção à pessoa na sua globalidade e, em nível macro-econômico, aquele desenvolvimento que vem de baixo, “subsidiário”, como sublinha a Doutrina Social da Igreja.
Augura-se que se chegue a compreender como a educação a viver profundamente as próprias perguntas humanas, através de critérios ideais, é muito mais determinante e compreensivo do que a simples instrução, do que a ética aplicada à economia ou do que um proveito por si mesmo, para a geração de capacidades empreendedoras, de trabalho e de riqueza dos povos e dos Estados.

* Extraído do jornal Il Sole – 24 ore, do dia 10 de julho de 2009 (p. 18). Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Dos artesãos às cooperativas: a Itália perto da Encíclica

Entrevista realizada por Gian Guido Vecchi com Giorgio Vittadini, presidente da Fundação para a Subsidiariedade, quinta-feira, 9 de julho de 2009, publicada Corriere della Sera.

Giorgio Vittadini é fundarod da Companhia das Obras, é presidente da Fundação para Subsidiariedade, tema central da Encíclica Caritas in veritate. Para ele, a idéia de mercado do Papa é mais rica e real. Parte da nossa economia já tem um objetivo ideal.


Na Encíclica de Bento XVI existe uma idéia de que o desenvolvimento deve dar espaço para o “princípio da gratuidade”. Utopia?
Mesmo uma máquina de polir ou uma máquina para fresar madeira podem ser um aspecto da gratuidade.

Não entendi, professor.
Pense nas pequena e média empresas, em tantos que querem sim o proveito, mas como instrumento: para viver e fazer viver melhor, mas também para o bem comum. São aqueles a quem agrada a ideia de criar empresas e coisas para o bem, que cuidam do produto final porque se interessam por ele e desejam criar um ambiente confortável, aliar-se com o trabalhador, tornar rico o território. Penso na tradição do mercado italiano, nos movimentos católico e operário...

E o que isso tem que ver?
Tem que ver... tem que ver. Para dar um exemplo da Itália: são movimentos que tornaram o capitalismo permeado pelos ideais de justiça e de busca do bem comum, para além do injuriado liberalismo finaceiro. De resto, no início do século passado, as poupanças rurais e ou os bancos populares faziam finanças criando o bem comum.

Não é uma utopia, portanto?
Não. Há uma leitura profética, fundada na realidade. A subsidiariedade e o mercado são enfrentados a partir de uma concepção de homem. Anos atrás, falava-se muito de “recursos humanos”, aqui, porém, se coloca o homem no centro da economia: caridade na verdade. É revolucionário: a caridade – o “dom de si comovido”, dizia dom Giussani – é a verdade do homem feito a imagem de Deus, que é caridade. Portanto, o homem é responsável pelos outros homens.

E então?
E então, a subsidiariedade é a valorização deste homem que não está sozinho e é capaz de fazer o bem. Nasce de uma pergunta: como posso levar o bem comum? Com o Estado? A partir de cima? Ou, melhor ainda, dando valro a todas aquelas pessoas, movimentos e grupos intermédios da sociedade que, de baixo, sendo expressão do homem, só podem agir para o bem?

O Papa se refere à globalização...
O governo do alto, como união de Estados, arrisca-se a não ter efeito porque não valoriza sujeitos capazes de fazer o bem. No mundo existem comunidades locais, associações, movimentos, realidades que operam para a liberdade e a justiça, para o ambiente ou contra o trabalho infantil, existem pessoas como o economista Muhammad Yunus que se envolvem. Existe uma interconexão de realidades virtuosas que diz muito mais do que os modelos teóricos.

E a realidade italiana pode ser um modelo?
Na Itália, existe já um mercado muito mais próximo daquele de que fala a Encíclica. Das pequenas e médias empresas às associações de artesãos, à Liga das Cooperativas, à Companhia das Obras... temos uma economia que aceita o mercado, tendo, porém, um objetivo ideal.

A ética na economia?
O mercado pode ser entendido como lugar de puro egoísmo ou como lugar de compartilhamento, ou como oferta de bens que melhorem a vida das pessoas. Um dos maiores méritos da Encíclica é o de não dizer “não” ao mercado e à empresa, e “sim” apenas ao non profit e voluntariado. Redefine empresa e finança de um modo menos histérico, ofere uma ideia de mercado mais multifacetada. Representa o fim da ideologia segundo a qual a economia, para definir-se, não tem necessidade do homem.

Tudo bem... mas e a máquina de polir?
Adam Smith distinguia valor de uso de valor de troca. E o valor de troca existe porque esta é uma coisa útil, feita de modo adequado e bela, portanto vivo melhor. Se o proveito é um instrumento, qual é o objetivo? O “dom de si comovido”: o empresário olha para o proveito mas, junto disso, busca tornar o seu produto melhor. A idéia de economia do Papa é mais rica, colorida e real.

* Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Bento XVI apresenta a Encíclica Caritas in veritate

Queridos irmãos e irmãs:
Minha nova encíclica, Caritas in veritate, que foi apresentada oficialmente ontem, inspira-se, em sua visão fundamental, em uma passagem da carta de São Paulo aos Efésios, na qual o apóstolo fala sobre agir segundo a verdade na caridade: “Vivendo – acabamos de escutar – segundo a verdade, no amor, cresceremos sob todos os aspectos em relação a Cristo, que é a cabeça” (4, 15). A caridade na verdade é, portanto, a principal força propulsora para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e de toda a humanidade. Por isso, toda a doutrina social da Igreja gira em torno do princípio caritas in veritate.
Somente com a caridade, iluminada pela razão e pela fé, é possível alcançar objetivos de desenvolvimento com um valor humano e humanizador. A caridade na verdade “é um princípio em torno do qual gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da ação moral” (n. 6). A encíclica alude imediatamente, na introdução, a dois critérios fundamentais: a justiça e o bem comum. A justiça é parte integrante desse amor “com ações e de verdade” (1Jo 3, 18), à qual exorta o apóstolo João (cf. n.6). E “amar alguém é querer o seu bem e trabalhar eficazmente pelo mesmo. Ao lado do bem individual, existe um bem ligado à vida social das pessoas (...). Ama-se tanto mais eficazmente o próximo, quanto mais se trabalha em prol de um bem comum”. Portanto, dois são os critérios operativos: a justiça e o bem comum; graças a este último, a caridade adquire uma dimensão social. A encíclica diz que todo cristão está chamado a esta caridade e acrescenta: “este é o caminho institucional (...) da caridade” (cf. n. 7).
Como outros documentos do Magistério, também esta encíclica retoma, continua e aprofunda a análise e a reflexão da Igreja sobre questões de vital interesse para a humanidade do nosso tempo. De modo especial, enlaça-se com aquilo que Paulo VI escreveu, há mais de 40 anos, na Populorum progressio, pedra angular do ensinamento social da Igreja, na qual o grande pontífice traça algumas linhas decisivas – e sempre atuais – para o desenvolvimento integral do homem e do mundo moderno. A situação mundial, como amplamente demonstra a crônica dos últimos meses, continua apresentando muitos problemas e o “escândalo” de desigualdades clamorosas, que permanecem apesar dos compromissos adotados no passado.
Por um lado, registram-se sinais de graves desequilíbrios sociais e econômicos; por outro, invocam-se, de muitos lugares, reformas que não podem demorar mais tempo para superar a brecha no desenvolvimento dos povos. O fenômeno da globalização pode, neste sentido, constituir uma oportunidade real, mas por isso é importante que se chegue a uma profunda renovação moral e cultural e a um discernimento responsável sobre as escolhas que precisam ser feitas para o bem comum. Um futuro melhor para todos é possível quando se funda na descoberta dos valores éticos fundamentais. É necessária, portanto, uma nova projeção econômica que volte a desenhar o desenvolvimento de forma global, baseando-se no fundamento ético da responsabilidade diante de Deus e diante do ser humano como criatura de Deus.
A encíclica certamente não visa a oferecer soluções técnicas para as grandes problemáticas sociais do mundo atual – não é da competência do magistério da Igreja (cf. n. 9). Esta recorda, no entanto, os grandes princípios que se revelam indispensáveis para construir o desenvolvimento humano nos próximos anos. Entre estes, em primeiro lugar, a atenção à vida do homem, considerada como centro de todo verdadeiro progresso; o respeito do direito à liberdade religiosa, sempre unido intimamente ao desenvolvimento do homem; a rejeição de uma visão prometeica do ser humano, que o considera artífice absoluto do seu próprio destino. Uma ilimitada confiança nas potencialidades da tecnologia seria finalmente ilusória. É preciso contar com homens retos, tanto na política quanto na economia, que estejam sinceramente atentos ao bem comum.
Em particular, vendo as emergências mundiais, é urgente chamar a atenção da opinião pública diante do drama da fome e da segurança alimentar, que afeta uma parte considerável da humanidade. Um drama de tais dimensões interpela nossa consciência: é necessário enfrentá-lo com decisão, eliminando as causas estruturais que o provocam e promovendo o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres. Tenho certeza de que esta via solidária ao desenvolvimento dos países mais pobres ajudará a elaborar um projeto de solução da crise global atual.
Sem dúvida, é preciso revalorizar atentamente o papel e o poder político dos Estados, em uma época em que existem, de fato, limitações à sua soberania por causa do novo contexto econômico-comercial e financeiro internacional. E por outro lado, não deve faltar a participação dos cidadãos na política nacional e internacional, graças também a um compromisso renovado das associações dos trabalhadores chamados a instaurar novas sinergias no âmbito local e internacional. Um papel de primeiro nível desempenha, também neste campo, a mídia, para a potencialização do diálogo entre culturas e tradições diversas.
Querendo, portanto, programar um desenvolvimento não viciado pelas disfunções e distorções hoje amplamente presentes, impõe-se, por parte de todos, uma séria reflexão sobre o sentido da economia e sobre suas finalidades. Exige-o o estado de saúde ecológica do planeta; pede-o a crise cultural e moral do homem, que aparece com evidência em cada lugar do globo. A economia tem necessidade da ética para seu funcionamento correto; precisa recuperar a importante contribuição do princípio de gratidão e da “lógica do dom” na economia do mercado, em que a regra não pode ser o próprio proveito. Mas isso só é possível graças ao compromisso de todos, economistas e políticos, produtores e consumidores, e pressupõe uma formação das consciências que dê força aos critérios morais na elaboração dos projetos políticos e econômicos.
Justamente, de muitas partes se apela ao fato de que os direitos pressupõem deveres correspondentes, sem os quais os direitos correm o risco de transformar-se em livre arbítrio. É necessário – repete-se cada vez mais – um estilo diferente de vida por parte de toda a humanidade, no qual os deveres de cada um com relação ao ambiente se unam aos da pessoa considerada em si mesma e em relação com os demais. A humanidade é uma só família e o diálogo fecundo entre fé e razão não pode senão enriquecê-la, tornando mais eficaz a obra da caridade no social, constituindo, além disso, o marco apropriado para incentivar a colaboração entre crentes e não-crentes, na perspectiva compartilhada de trabalhar pela justiça e pela paz no mundo.
Como critérios-guia para esta interação fraterna, na encíclica indico os princípios de subsidiariedade e de solidariedade, em íntima conexão entre si. Sublinhei, finalmente, frente a problemáticas tão vastas e profundas do mundo de hoje, a necessidade de uma autoridade política mundial regulada pelo direito, que se atenha aos mencionados princípios de subsidiariedade e solidariedade e que esteja firmemente orientada pela realização do bem comum, no respeito às grandes tradições morais e religiosas da humanidade.
O Evangelho nos recorda que não só de pão vive o homem: não só com bens materiais se pode satisfazer a profunda sede do seu coração. O horizonte do homem é, sem dúvida, mais alto e mais vasto; por isso, todo programa de desenvolvimento deve ter presente, junto ao material, o crescimento espiritual da pessoa humana, que está dotada de alma e corpo. Este é o desenvolvimento integral, ao que constantemente se refere a doutrina social da Igreja, desenvolvimento que tem seu critério orientador na força propulsora da “caridade na verdade”.
Queridos irmãos e irmãs, oremos para que também esta encíclica possa ajudar a humanidade a sentir-se uma única família comprometida em realizar um mundo de justiça e paz. Oremos para que os crentes, que trabalham nos setores da economia e da política, advirtam quão importante é a coerência do seu testemunho evangélico no serviço que oferecem à sociedade. Particularmente, convido-vos a rezar pelos chefes de Estado e do governo do G8, que se reúnem nestes dias em L’Aquila. Que desta importante cúpula mundial brotem decisões e orientações úteis para o verdadeiro progresso de todos os povos, especialmente dos mais pobres. Confiamos estas intenções à maternal intercessão de Maria, Mãe da Igreja e da humanidade.
* Extraído da Agência Zenit.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

A força da caridade


Entrevista realizada por Davide Perillo com Giorgio Vittadini, quarta-feira, 8 de julho de 2009, publicada em Tracce.it.

O vínculo incindível com a verdade. O anúncio de Cristo como “primeiro fator de desenvolvimento”. E ainda a subsidiariedade, o mercado, a liberdade... Assim, Giorgio Vittadini lê para Tracce a nova Encíclica de Bento XVI

A espera foi longa: dois abundantes anos, desde aquele 2007 quando se começou a falar da “próxima encíclica social de Bento XVI” (deveria ter saído para comemorar os 40 anos da Populorum progressio, de Paulo VI). Aí, no vai-e-vem dos esboços, estourou a crise global. E, então, a necessidade de corrigir, aprofundar, rever. Resultado: o texto foi assinado no dia 29 de junho, festa dos Santos Pedro e Paulo, e saiu uma semana depois.
Espera concluída, portanto. Inicia-se a leitura. Densa, visto que se trata de 79 parágrafos nos quais se move livremente do trabalho à finança, das organizações internacionais para o desenvolvimento, passando pela técnica, pelo consumo, o ambiente... “Mas, o primeiro dado que impressiona é um outro”, disse Giorgio Vittadini, presidente da Fundação para a Subsidiariedade: “o vínculo com a primeira encíclica deste Pontífice, a
Deus caritas est. Também ali, se olharmos bem, se falava da caridade ligando-a com a verdade. Aqui, o Papa faz a mesma coisa desde o princípio do texto”.

Podemos dizer que a Encíclica afirma que o problema social e dos relacionamentos entre os homens é, antes de mais nada, uma questão ontológica, não ética... um problema de conhecimento. O que você pensa disso?
Definindo a caridade como verdade, o Papa elimina da caridade toda possível redução de tipo moralista. Neste sentido, é verdade, a liga exatamente ao conhecimento. Vem-me à mente um velho cartaz dos anos 80 que retomava uma intervenção de João Paulo II: “A verdade é a força da paz”. É isso! Fundar a caridade sobre a verdade quer dizer reportá-la ao aspecto próprio das virtudes teologais: fé, esperança e caridade. Enquanto que, muitas vezes, a palavra “caridade” pode ser percebida de modo redutivo.

“Sem verdade, a caridade escorrega em sentimentalismo”, disse o Papa...
Pois é. Aqui, pelo contrário, se fala de amor, mas como amor ao destino do homem. E ele está ligado ao aspecto ontológico e de conhecimento. O conhecimento como ponto de partida do amor, do desenvolvimento. Segundo penso, é muito importante: deste modo, no clima de confusão em que vivemos – e no qual estes valores foram, muitas vezes, desligados de uma experiência humana e histórica – tudo é reportado a uma objetividade.

E a uma afirmação potente: “O anúncio de Cristo é o primeiro e principal fator de desenvolvimento”.
Porque é Cristo que realiza o destino do homem. Este é um tema que emerge praticamente em toda a Encíclica. O Papa fala disso já no início, quando retoma a Populorum progressio e a revê de um modo não redutivo. Bento XVI sublinha que Paulo VI apresentava de modo claro a relação entre o anúncio de Cristo, a pessoa e a sociedade. Mas fala disso também na sequência do texto, quando várias vezes afirma que a Igreja é o verdadeiro ponto de referência para o progresso do homem. De fato, ao colocar o tema da caridade na verdade ele afirma que “em Cristo a caridade na verdade se torna o Rosto da Sua Pessoa” e que a Igreja custodia esta concepção da realidade. O Papa fala da doutrina social, mas lembra que mesmo ela nasce do acontecimento cristão.

Fala também do desenvolvimento como “vocação” e não apenas como “incremento do ter”. Por quê?
Ele explica assim: “No desígnio de Deus, cada homem é chamado a um desenvolvimento, porque cada vida é vocação”. Nas páginas da Encíclica existe um contraponto contínuo sobre o fato de que o desenvolvimento do homem tem que ver com o “sentido do seu caminhar na história”. Pense, por exemplo, em como ele fala de pobreza, no início do quinto capítulo: ele a coloca em relação com a falta de sentido, porque nasce da “solidão” e da “renúncia ao amor de Deus”. É como se o Papa enfrentasse continuamente o fato de que qualquer problema social não é tratado de modo completo e equilibrado se se prescinde do relacionamento com Deus. Fator importantíssimo, sobretudo se pensamos em como o tema “evangelização e promoção humana” foi tratado ao longo dos anos, mesmo nos ambientes eclesiásticos, como se fosse dois aspectos distintos. “Não basta a caridade, é preciso a justiça”. Quantas vezes escutamos essas coisas? Como se a caridade pudesse ser injusta e a justiça fosse algo que o homem pudesse fazer por si mesmo!

Não lhe parece notável a atualidade de Paulo VI?
Sim. Mas impressiona também que Bento XVI leia exatamente a Populorum progressio, que foi uma das encíclicas mais forçadas na interpretação. Se a Humanae vitae, outra famosa encíclica de Montini, foi lida como fechamento, a Populorum progressio foi interpretada como concessão ao mundo. Mas, pelo contrário, o Papa a relê na sua acepção verdadeira: a tentativa de mostrar como a fé em Deus e a experiência cristã são os fatores mais determinantes para o desenvolvimento integral do homem.

Mas, é impressionante também a atualidade daquela intuição de dom Giussani, de 1976. “Evangelização e promoção humana” era o título do simpósio da Igreja italiana daquele ano, todo baseado na distinção. Dom Giussani àquele “e” quis colocar um acento: anunciar Cristo é promover o humano...
Olha, lendo a Encíclica não pude deixar de pensar, em várias momentos, no tríptico O eu, o poder e as obras, o livro de dom Giussani. É o radicar-se do eu dotado de um desejo de verdade, justiça e beleza que funda uma ação social. E, de fato, mais à frente, a Encíclica fala literalmente de “obra”. Não confinando-a a um aspecto marginal da vida econômica e social, o Terceiro Setor visto como algo ao lado do liberalismo e do comunismo. É o mercado que, para Bento XVI, deve ser marcado pela gratuidade, por empresas nas quais o proveito é um instrumento, mas o objetivo é maior.

A expressão exata é “obras que tragam impresso o espírito do dom”...
Exatamente. Portanto, se fala de obras que nascem da experiência cristã, de associações empreendedoras que nascem com este objetivo. Aqui, se lê o mercado, e mesmo a vida econômica, como algo que não se deixa levar pelas ideologias opostas, mas como um instrumento de algo maior. “Não se trata apenas do terceiro setor”, diz no parágrafo 46, “mas de uma nova, ampla realidade composta que envolva o privado e o público e não exclui o proveito, mas o considera como instrumento para realizar finalidades humanas e sociais”. E, em seguida: “parece que a distinção até agora usada entre empresas com objetivo de proveito (profit) e organizações não objetivadas ao proveito (non profit) não seja mais adequada para entender a realidade, nem para orientar eficazmente o futuro”. É como se relesse a história econômica, não apenas a italiana mas a européia, desde 1850 até hoje: o movimento católico, o movimento operário, o desenvolvimento de uma empresa operativa, movida pelo desejo de melhorar as condições de vida do homem.

E o que emerge dessa releitura?
Nós, católicos, tivemos por anos um complexo de inferioridade. Existia a ideia de que a sociedade é aquilo que é, com as suas leis, e nós devemos dar-lhe os valores éticos e nos ocuparmos dos pobres. Ponto final! Bem, o Papa rebate esta posição. E mostra que o mercado é algo de muito mais complexo e variado do que aquele monte de coisas abstratas descrito por certos jornalistas. Assim, ele lê também a crise financeira, não apenas como o êxito de mecanismos errados, mas como o êxito da ação de homens que se moveram com uma humanidade reduzida. Um dos exemplos mais graves disso é a crise de confiança recíproca que foi ampliada com crise financeira. A crise de confiança não é uma crise que nasce de mecanismos econômicos, mas nasce da crise do homem em relação com outros homens. Neste sentido, o verdadeiro tema da Encíclica é o sujeito humano que está por trás da atividade econômica e a determina.

É por isso que o outro fio condutor do texto é a liberdade? É uma palavra que aparece 38 vezes...
Porque o Papa convida a superar uma concepção de economia ligada a mecanismos nos quais o homem não diz respeito. Se olharmos para o debate posterior à crise, em alguns jornais, se verá como a vias de escape não previam uma autocrítica a respeito da concepção de homem que guia a atividade econômica. Parece que é necessário apenas consertar as máquinas que se desgastaram... e, porém, tudo estraga de novo. Quem, como o Papa, se pergunta quem seja e o que deseja o homem que guia a economia, mostra, por isso mesmo, uma visão absolutamente inovadora da economia e da sociedade, que coloca no centro a responsabilidade do indivíduo e das agregações, dos grupos intermédios, nos quais se colocam juntos a outros homens, em nome de ideais comuns. De fato, não é por acaso, a outra palavra da Encíclica é “subsidiariedade”. Bento XVI fala dela sempre como de um método ligado à responsabilidade: “a subsidiariedade é uma ajuda à pessoa através da autonomia dos grupos intermédios”. Quer dizer que é o instrumento que permite que o eu, nos grupos intermédios, possa desenvolver as suas potencialidades. A subsidiariedade “favorece a liberdade e a participação enquanto assumir de responsabilidade”.

Como você lê essa definição?
De maneira dinâmica. Digamos que a subsidiariedade põe as condições pelas quais a pessoa se torna capaz de desenvolver toda a sua capacidade criativa, e através dos grupos intermédios aos quais pertence, se torna capaz de dar respostas às necessidades da sociedade. Do eu à obra. O desejo se torna obra, construção de uma resposta orgânica às necessidades. É uma concepção de homem e uma experiência em ato que sustenta a definição de subsidiariedade.

E, aqui, voltamos ao conceito inicial de desenvolvimento como “vocação”...
Mas, a coisa bonita é que o Papa o diz tanto no nível do eu, como das obras e da globalização mesma. E esta é uma tese muito audaz, sobretudo se a pensarmos em nível internacional. Os vários G8 e similiares nos fizeram ficar habituados com o fato de que o mundo vai para frente graças aos vértices de chefes de Estado. Estamos, nesse sentido, nas antípodas da subsidiariedade. O Papa, pelo contrário, diz que mesmo uma autoridade mundial deverá “ater-se coerentemente aos princípios de subsidiariedade e de solidariedade”. Pense no que quer dizer, por exemplo, para uma União Européia, sufocada pelo estatalismo, pelos interesses nacionais, pelas burocracias...

O Papa liga a subsidiariedade à solidariedade. Por que ele insiste tanto em sublinhar isso?
Antes de mais nada devemos pensar que, no mundo, não existe a universalidade do welfare como na Europa. O mundo americano, por exemplo, não o concebe mais assim. E também a Europa, na medida em que perdeu o escopo dos sistemas de welfare que é o serviço à pessoa, acaba frequentemente defendendo um Estado entendido como única garantia do bem da pessoa e uma iniciativa privada sem ideais, como única expressão da liberdade. Sublinhar o nexo entre solidariedade e subsidiariedade quer dizer que o primeiro modo para defender e ajudar a desenvolver o eu e o povo significa favorecer o nascimento e o crescimento de realidade que, exatamente por serem movidas por critérios ideais, lutam pelo bem comum e para responder às necessidades dos mais pobres e mais necessitados. Deste ponto de vista, a solidariedade que se conjuga com a subsidiariedade encontra sua raiz naquela caridade entendida como “dom de si comovido”, segundo a definição de dom Giussani.

Paradoxalmente, neste sentido, não existe nada de mais subsidiário do que a própria Igreja: nasce e vive intencionalmente para permitir ao eu encontrar a resposta à sua necessidade.
De fato, em um certo momento, “estranhamente” para uma encíclica social, existe um parágrafo inteiro sobre a libertas Ecclesiae e sobre a liberdade religiosa. Porque, se não existe um sujeito que sublinha a ideia do eu único e irrepetível, do valor da pessoa (mais do que nas suas expressões operativas, na sua concepção), eu não posso construir uma realidade que seja subsidiária. Diferentemente daquilo que dizem os seus opositores, a Igreja tem como objetivo a educação para o senso religioso da pessoa, para o seu relacionamento com o Mistério e, portanto, para o crescimento da sua liberdade. Neste sentido, é interessante como, na Encíclica, se afirma que somente um homem que viva integralmente este relacionamento com o Mistério pode, de verdade, defender a vida, o ambiente, usar de modo equilibrado as técnicas. Deste ponto de vista, se repropõe, de modo original, uma velha doutrina católica da qual falamos muito nesses anos: onde não há liberdade para a Igreja não pode haver liberdade pessoal e social.

É por isso que aparece também muito frequentemente a palavra “educação”?
Certo. Não é por acaso que a educação é pensada em seu nexo estreito com a subsidiariedade. Se é verdade que o problema é permitir o desenvolvimento do eu, o desejo deve ser educado. E não é educado apenas do ponto de vista funcional, não é educado também só porque digo “dou-lhes a possibilidade de gerir as escolas e fazer hospitais”. É educado ao belo, é educado ao verdadeiro, é educado à caridade na verdade. É educado a abrir-se, porque, como dizia Romano Guardini (e dom Giussani repetia o mesmo), “tudo se torna acontecimento no âmbito da experiência de um grande amor”. Então, ele se torna capaz de construir, de colocar-se junto aos outros, de se empenhar e se sacrificar pelo bem comum.

Enquanto que, sem esta dimensão, tudo se torna confuso: “Sem Deus, o homem não sabe para onde ir”, conclui o Papa.
E se poderia ainda acrescentar, parafraseando um famoso filme, que “Deus tem necessidade dos homens”. É um desafio aberto a cada um de nós, no concreto de todos os dias.

* Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.