Mostrando postagens com marcador Pedro S. Malan. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Pedro S. Malan. Mostrar todas as postagens

domingo, 10 de outubro de 2010

Diálogo de surdos?

Por Pedro S. Malan *

O presidente Lula, com uma arrogância por vezes excessiva, tentou transformar em plebiscito o primeiro turno desta eleição. Como se o que estivesse em jogo fosse seu próprio terceiro mandato (ainda que por interposta pessoa), um referendo sobre seu nome, uma apoteose que consagraria seu personalismo, seu governo e sua capacidade de transferir votos. Mas cerca de 52% dos eleitores votaram em José Serra e Marina Silva, negando a Lula a tão esperada vitória plebiscitária no domingo passado.
Não é de hoje o desejo presidencial: "Lula quer uma campanha de comparação entre governos, um duelo com o tucano da vez. Se o PSDB quiser o mesmo... ganharão os eleitores e a cultura política do País." Assim escreveu Tereza Cruvinel, sempre muito bem informada sobre assuntos da seara petista, em sua coluna de janeiro de 2006. Não acredito que a "cultura política" do País e seus eleitores tenham muito a ganhar - ao contrário - com essa obsessão por concentrar o debate eleitoral de 2010 numa batalha de marqueteiros e militantes.
Afinal, na vida de qualquer país há processos que se desdobram no tempo, complexas interações de continuidade, mudança e consolidação de avanços alcançados. O Brasil não é exceção a essa regra. Como escreveu Marcos Lisboa, um dos mais brilhantes economistas de sua geração: "Não se deve medir um governo ou uma gestão pelos resultados obtidos durante sua ocorrência e, sim, por seus impactos no longo prazo, pelos resultados que são verificados nos anos que se seguem ao seu término. Instituições importam e os impactos decorrentes da forma como são geridas ou alteradas se manifestam progressivamente..."
Ao que parece, Lula e o núcleo duro à sua volta discordam e estão resolvidos a insistir numa plebiscitária e maniqueísta "comparação com o governo anterior". Feita por vezes, a meu ver, com desfaçatez e hipocrisia. Um discurso primário que, no fundo, procura transmitir uma ideia básica (e equivocada) ao eleitor menos informado: o que de bom está acontecendo no País - e há muita coisa - se deve a Lula e ao seu governo; o que há de mau ou por fazer - e há muita, muita coisa por fazer - representa uma herança do período pré-2003, que ainda não pôde ser resolvida porque, afinal de contas, apenas em oito anos de lulo-petismo não seria mesmo possível consertar todos os erros acumulados por "outros" governantes ao longo do período pré-2003.
Mas talvez seja possível, por meio do debate público informado, ter alguns limites para a desfaçatez e a mentira. Exemplo desta última: a sórdida, leviana e irresponsável acusação de que "o governo anterior" pretendia privatizar a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, entre outros. Algo que nunca, jamais, esteve em séria consideração. Mas a mentira, milhares de vezes repetida, teve efeito eleitoral na disputa pelo segundo turno em 2006 - por falta de resposta política à altura: antes, durante e depois.
Exemplos de desfaçatez: o governo Lula não "recebeu o País com a inflação e o câmbio fugindo do controle", como já li, responsabilizando-se o governo anterior. A inflação estava sob controle desde que o Real foi lançado no governo Itamar Franco, com Fernando Henrique Cardoso na Fazenda, e se aumentou para 12,5% em 2002 foi porque o câmbio disparou, expressando receios quanto ao futuro. Receios não sem fundamento, à luz da herança que o PT havia construído para si próprio, até o começo de sua gradual desconstrução, apenas a partir de meados de 2002. O PT tinha e tem suas heranças.
O governo Lula não teve de resolver problemas graves de liquidez e solvência de parte do setor bancário brasileiro, público e privado. Resolvidos na segunda metade dos anos 90 pelo governo FHC. Ao contrário, o PT opôs-se, e veementemente, ao Proer e ao Proes e perseguiu seus responsáveis por anos no Congresso e na Justiça. Mas o governo Lula herdou um sistema financeiro sólido que não teve problemas na crise recente, como ajudou o País a rapidamente superá-la. Suprema ironia ver, na televisão, Lula oferecer a "nossa tecnologia do Proer" ao companheiro Bush em 2008.
O governo Lula não teve de reestruturar as dívidas de 25 de nossos 27 Estados e de cerca de 180 municípios que estavam, muitos, pré-insolventes, incapazes de arcar com seus compromissos com a União. Todos estão solventes há mais de 13 anos, uma herança que, juntamente com a Lei de Responsabilidade Fiscal, de maio de 2000 - antes, sim, do lulo-petismo, que a ela se opôs -, nada tem de maldita, muito pelo contrário, como sabem as pessoas de boa-fé.
As pessoas que têm memória e honestidade intelectual também sabem que as transferências diretas de renda à população mais pobre não começaram com Lula - que se manifestou contra elas em discurso feito já como presidente em abril de 2003. O governo Lula abandonou sua ideia original de distribuir cupons de alimentação e adotou, consolidou e ampliou - mérito seu - os projetos já existentes. O que Lula reconheceu no parágrafo de abertura (caput) da medida provisória que editou em setembro de 2003, consolidando os programas herdados do governo anterior.
Outros exemplos. Sobre salário mínimo: não é verdade que tenha começado a ter aumento real no governo Lula, como quer a propaganda. Sobre privatização: o discurso ideológico simplesmente ignora os resultados para o conjunto da população - e, indiretamente, para o atual governo.
O monólogo do "nunca antes" não ajuda o diálogo do País consigo mesmo. O ilustre ex-ministro Delfim Netto bem que tentou: "A eleição de 2010 não pode se fazer em torno das pobres alternativas de ou voltar ao passado ou dar continuidade a Lula. A discussão precisa incorporar os horizontes do século 21 e a superação dos problemas que certamente restarão de seu governo."

* Pedro Malan é economista e foi ministro da Fazenda no governo FHC. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 10 de outubro de 2010.

domingo, 12 de setembro de 2010

A sexta campanha de Lula

Por Pedro S. Malan *

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disputou cinco eleições presidenciais. Na primeira (1989), disputou palmo a palmo com Leonel Brizola o direito de ir para o segundo turno com Fernando Collor. Cerca de uma década e meia depois, já presidente, Lula agradeceu publicamente a Deus por não ter ganho aquela eleição. Porque, reconheceu, não estava preparado para isso.
Na segunda e na terceira tentativas (1994 e 1998), Lula perdeu no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso. Quem sabe um dia, talvez, Lula reconheça que, em ambas as ocasiões, também não estava preparado para governar o País - nem seu partido tinha quadros para tal. Afinal, em 1994 os principais economistas de seu partido lhe asseguraram que o Plano Real era apenas uma tentativa de estelionato eleitoral, que não duraria mais que alguns meses. Em 1998, Lula e o PT não conseguiram convencer o eleitorado de que tinham alguma ideia coerente sobre o que fazer para enfrentar a crise internacional de 1997-1998 e seus efeitos sobre o País.
Na quarta disputa (2002), Lula apareceu totalmente repaginado por uma competente marquetagem política: o irritado líder sindical foi substituído por um novo personagem, com visual, gestos e postura mais tranquilizadores para a classe média e um discurso na linha do "paz e amor". Mas a herança que o PT havia construído para si mesmo na área econômica - a oposição ao Real, ao Proer, à Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como seu irresponsável empenho pelo plebiscito (de 2000!) propondo a suspensão dos pagamentos das dívidas externa e interna - levou à necessidade de uma gradual desconstrução dessa herança, iniciada ainda em 2002. Mas houve segundo turno.
A quinta disputa, em 2006, já se deu num contexto internacional e doméstico que, do ponto de vista econômico e social, favorecia enormemente o governo, apesar dos escândalos políticos que marcaram o período e que contribuíram para que Lula, que esperava ganhar no primeiro turno, tivesse, outra vez, de disputar um segundo turno.
O ano de 2010 representa, em mais de um sentido, e na visão de legiões de eleitores, uma espécie de sexta campanha presidencial com Lula na disputa, ainda que agora por meio de interposta pessoa. Foi exclusivamente de Lula a escolha da candidatura oficial. Foi de Lula a decisão de transformar esta eleição num tipo de plebiscito a favor ou contra o seu nome. É de Lula a clara definição da estratégia geral de seu governo, expressa na litania oficial sobre as heranças malditas pré-2003 e no "nunca antes jamais" pós-2003 - que viraram parte do nosso folclore político.
Não adianta vozes sensatas do PT escreverem que "os ganhos obtidos pelo Brasil a partir de 2003 se assentaram sobre avanços e resultados realizados em governos anteriores (...). Fazer tabula rasa destas contribuições seria atentar contra a própria história do País" (Antônio Palocci). Ou: "Não tenho dúvidas de que o Brasil evoluiu positivamente ao longo dos últimos 15 anos" (Paulo Bernardo).
O fato é que essa não é a visão do presidente Lula. Tampouco a de sua candidata, que em entrevista recente nas páginas amarelas da revista Veja respondeu com um categórico "discordo" a uma pergunta exatamente sobre esse tema. E vai em frente, com a ladainha da "herança maldita" e do "nunca antes" - de 2003, este suposto marco zero de uma idealizada nova era.
É forçoso reconhecer que essa esperteza retórica (para a qual faltou oposição política à altura), a persistência de Lula (em média, um discurso por dia útil) e, particularmente, seu gradual aprendizado no governo - e seus recursos - lhe renderam muitos frutos e elevada popularidade. Mas o "imbatível carisma", o "inigualável tirocínio" e a "genialidade política sem par", aos quais legiões hoje tecem loas, não permitiram a Lula ganhar as eleições de 1989, 1994 e 1998 e evitar um segundo turno em 2002 e 2006. O que mudou mais: o homem ou as circunstâncias? A resposta é: ambos.
É claro que as circunstâncias mudaram: além de uma herança não maldita e de uma política macroeconômica não petista (até 2006), nunca será demais repetir - já que este governo decidiu simplesmente ignorar fatos que não lhe convêm (e se apropriar indevidamente de outros quando lhe convêm) - que a economia internacional teve desempenho excepcional no quinquênio 2003-2007. O que contribuiu para a crise que se lhe seguiu, e para a qual estávamos mais bem preparados, porque nos beneficiamos das realizações até ali alcançadas, inclusive por este governo.
É claro que Lula mudou, e está mudando de novo nesta reta final da campanha, que vê como tão sua quanto de sua candidata, não hesitando em assumir agressivamente a linha de frente da campanha, como no recente "pronunciamento à Nação", em meio a um programa no horário eleitoral de seu partido.
O grave não é apenas o achincalhe à Justiça Eleitoral, a perda do "senso de medida" e a noção de que a popularidade lhe permite dizer qualquer barbaridade, como, por exemplo, "a elite brasileira não sabia o que era capitalismo: foi necessário um metalúrgico entrar na Presidência para ensinar como se faz capitalismo" ou "a elite tenta dar golpe a cada 24 horas neste país", referindo-se aos grandes jornais de circulação diária.
Tão grave quanto é o fato de que a crise internacional de 2007-2009, e a necessária resposta dos governos dos países desenvolvidos, foi vista entre nós como configurando não algo temporário e "contracíclico", mas como uma permanente mudança de paradigma, no sentido de demonstrar a necessidade de um papel de muito maior liderança do governo - e de suas empresas, financeiras e não financeiras (existentes e por criar), no processo de desenvolvimento econômico do País. Ainda é forte entre nós a ideia de que dois mais dois podem ser cinco - desde que haja vontade política.

* Pedro S. Malan é economista e foi Ministro da Fazenda no governo FHC. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 12 de setembro de 2010.