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quarta-feira, 13 de abril de 2011

São os “justos” que alimentam a esperança dos homens


Por Giovanni Cominelli

Gabriele Nissim é presidente do Comitê para a Floresta dos Justos, além de ser autor de livros que descreveram os protagonistas de ações justas e às vezes heroicas contra os totalitarismos modernos.
O seu último livro – La bontà insensata: il segreto degli uomini giusti (A bondade insensata: o segredo dos homens justos – em tradução livre –; ainda não tem publicação prevista no Brasil. Na Itália, o livro foi publicado pela Editora Mondadori; ndt) – não é exatamente o que se poderia chamar de ensaio histórico. Não faltam nele histórias de personagens e de eventos, mas nas entrelinhas se lê a autobiografia de um itinerário intelectual e espiritual. Como muitos de sua geração, Nissim compartilhou esperanças ativamente, além de mitos, ilusões daquele universo que pareceu a eles (a nós!), na época, em expansão infinita: o 1968. E quando da cultura dos direitos civis e da liberdade sinônimo de permissividade, o movimento final do segundo “biênio vermelho” do século XX desviou-se, num caminho de retorno em direção aos arquivos da história do movimento operário dos anos 1920 e 1930 e roubou dele as análises, as categorias e visões, também Gabriele Nissim resolveu assumir esse caminho. Mas, o estudo mais aproximativo do subsolo das dissidências nos países do Leste Europeu o levou, em fins dos anos 1970 e durante todo a década de 1980, em direção a uma derrubada radical da mitologia “revolucionária”.
Esta ruptura epistemológica não aconteceu somente em linhas filosóficas internas, mesmo que a meditação sobre os livros de Hannah Arendt lhe tenha aberto novoso horizontes. Teve papel decisivo, na verdade, o confronto com experiências de antitotalitarismo militante na Tchecoslováquia , Polônia, Hungria, União Soviética... Nissim encontrou, naqueles anos, os grupos perseguidos ou não tolerados pela dissidência que, depois de 1989, ascenderam a postos de responsabilidade em quase todos os países do Leste Europeu. A ideia revolucionária prometia “novos céus e nova terra”, povoados, naturalmente, por uma nova espécie de homem, que ultrapassava o homo sapiens: o homo novus. O homem atual é um animal imperfeito: o comunismo lhes arrancará as imperfeições, por força de duro cinzel, assim como Michelangelo fez emergir a sublime Pietà Rondanini da pedra bruta.  Será necessário sacrificar algumas gerações, aniquilar alguns milhões de homens reais e destinar ao futuro a satisfação das necessidades elementares presentes, mas, no final, o Mal será eliminado da história e da alma do homem.
De resto, já Hegel havia dito: o Absoluto percorre a história com passo pesado, pisando as flores no caminho. A plena separação entre Bem e Mal, o triunfo do Bem e a eliminação do Mal é o sonho antigo do dualismo iraniano, do messianismo judaico, do milenarismo de Gioachino da Fiore, do utopismo dos séculos XVI-XVII, do hegelianismo, do marxismo e do positivismo e, mais recentemente, do neo-milenarismo biotecnológico. É a tensão inextirpável do coração do homem em direção ao Absoluto que, se não vigiada, acaba se curvando ante algum tipo de bezerro de ouro. Quanto a estas sugestivas e trágicas construções teóricas, este livro não oferece um edifício teórico alternativo. Muitos filósofos e pensadores políticos já o fizeram, Nissim cita Hannah Arendt como exemplo maior.
Mas, me vem à mente Albert Camus, que nos primeiros anos da década de 1960, antes de morrer, invocava a adoção de “um pensamento político modesto, ou seja, livre de toda forma de messianismo e vazio da nostalgia do paraíso terrestre”. O escrito de Nissim oferece histórias de personagens como Moshe Bejski, o idealizador do Jardim dos Justos de Jerusalém; Guelfo Zamboni, cônsul geral da Itália em Salônica durante a ocupação alemã; Khaled Abdul Wahab, freqüentador de bordéis tunisianos e salvador de mulheres judias; Zofia Kossak, polonesa católica e antissemita, mas protetora dos judeus; Vasili Grossman, grande escritor que, na época da idealização estalinista do “complô dos médicos judeus” contra a URSS, silenciou; Pavel Florenski, que resistiu a Stálin até morrer; o poeta Mandelstam; o escritor Soljenítsin; Václav Havel... Quais são os pensamentos que eles têm em comum? Bejski, numa conversa com Nissim, pouco antes de morrer num hospital em Jerusalém, diz: “... nunca conseguiremos debelar da História o mal que os homens cometem contra outros homens”. Depois de Auschwitz, houve outro. E ainda está acontecendo...
Então, onde pode estar o fundamento da esperança? Eis a resposta: “podemos sempre contar com a obra dos homens justos, que, em cada época, têm a coragem de enfrentar o mal e que, a cada vez, salvam o mundo”. Os homens justos quase nunca são heróis. São pessoas cotidianas, com o seu mal e os seus medos, às vezes são também um pouco canalhas, e podem até mesmo ser antissemitas, fascistas, nazistas, estalinistas. O bem nem sempre é luminoso. Frequentemente, ele habita terras cinzentas. No entanto, homens e mulheres, assim, decidem realizar atos de “bondade insensata” por um outro homem, segundo a esplêndida definição que Vasili Grossman utiliza. De onde vem esta capacidade de se opor, de dizer não? Vem de uma teoria, de uma filosofia do Bem, de uma fé, de uma teologia? Vem do “coração do homem”. E é este quid incompreensível que mantém a história dos homens sempre aberta; que dá a força para “não participar pessoalmente da mentira”, assim como Soljenítsin convidou a fazer no dia seguinte à sua prisão; que faz aparecer a solidão do justo como lugar criativo de uma renovada posição diante do mundo, como escreve Jan Patocka, o filósofo tchecoslovaco duramente perseguido pelo regime; que cria a “polis paralela”, como escreveu Václav Havel; que não tem pretensões de vanguarda revolucionária, mas que é revolucionária.
No fundo, está a fidelidade à verdade, ao viver a verdade: “é melhor estar em desacordo com o mundo do que com a própria consciência”. Não seria, talvez, verdadeiro que “a verdade vos libertará”? Certamente, mesmo aqui há uma antropologia subjacente, uma ideia do mundo, que é também aquela do Autor da frase: disponhamos, em nosso caminho humano, de um pequeno espaço, só nosso, o da nossa responsabilidade e liberdade. É uma antropologia do limite e da finitude. É o espaço dos nossos “dias contados”. Aqui, a nossa liberdade se encontra com o nosso destino. O belo deste livro é que estas verdades profundas e elementares não advêm de um tratado de filosofia política, mas de pessoas reais, de testemunhas do nosso tempo. Por isso, é um livro profundamente didático e educativo.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 13 de abril de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Václav Havel: somente o maravilhamento é capaz de nos salvar de uma globalização sem alma


Por Angelo Bonaguro

Havel já havia dito isso no seu primeiro discurso de início de ano como primeiro presidente tchecoslovaco eleito democraticamente (em janeiro de 1990): vivemos numa época em que os problemas do ambiente nos dizem respeito de perto, mas “o pior é que vivemos num ambiente moralmente deteriorado”. Então, ele se referia à herança devastadora do sistema totalitário, seja do ponto de vista ecológico que ética, um sistema que tinha sido assimilado e sustentado pelas suas vítimas mesmas.
A atenção de Havel aos temas do ambiente não nasceu ontem, mas não tem nada que ver com sóis sorridentes ou com batalhas demagógicas. Havel compreende o ambiente como o conjunto de relações entre seres humanos depositários de uma cultura e a objetividade na qual se movem e da qual são responsáveis. O dramaturgo exemplificou este pensamento dando-lhe forma dramática também na peça A reabilitação (1987), onde um grupo de arquitetos encarregado de reestruturar uma velha cidade se encontra com as várias almas dos projetistas e com a vontade da população local. 
Inaugurando o encontro anual do Forum2000 (a fundação e a conferência homônima que acontece em Praga; ndr), que aconteceu no mês passado, dedicado ao ao “Mundo no qual queremos viver”, Havel denunciou o orgulho da civilização moderna que acredita que pode eliminar o senso do mistério. “Quando vou para minha casinha no campo”, disse o ex-presidente, aquilo que, até há bem pouco tempo, era claramente reconhecível como cidade, agora está perdendo os seus limites e a sua identidade, para se transformar num enorme aglomerado indistinto, sem ruas e praças bem definidas, composto por “enormes shopping centers, postos de gasolina, gigantescos estacionamentos, edifícios enormes destinados a escritórios e depósitos de todo tipo, e fileiras de casinhas que, aparentemente, são contíguas mas, ao mesmo tempo, estão desesperadamente distantes umas das outras”.
E, no meio de tudo isso, de forma desigual, alternam-se zonas de território que não são nada – nem campos, nem bosques, nem assentamentos humanos. Cada vez que se concede à cidade o direito de destruir a paisagem circunstante para, nela, criar aglomerados que tornam a vida irreconhecível, prejudica-se, ao mesmo tempo, a rede das comunidades humanas naturais e, sob a égide da homologação internacional, anulam-se as individualidades e as identidades. Ao final desse processo, “a coletividade sem medidas dos consumidores gera um novo tipo de solidão”.
A causa de tudo isso – segundo Havel – está no fato de que vivemos na primeira civilização ateia globalizada, uma civilização que perdeu os seus nexos com o infinito e com o eterno e, por isso, prefere o proveito imediato ao de longo prazo. O aspecto mais perigoso desta civilização ateia é o seu orgulho, que a torna desrespeitosa quanto ao patrimônio transmitido pela natureza e pelos nossos antepassados, e que faz com que ela se sinta pretensiosamente onisciente.
Deste modo, com o culto do proveito imediato e do progresso, “desaparece o respeito pelo mistério e pelo incomensurável, perde-se o senso do infinito e do eterno, que, até há bem pouco tempo atrás, constituíam os principais horizontes das nossas ações. Esquecemos completamente aquilo que a civilização precedente sabia: que nada é certo”.
O dramaturgo desloca o foco de suas reflexões também para a recente crise financeira, definindo-a como um sinal instrutivo para o mundo contemporâneo, um aviso contra a presunção desproporcional e o orgulho da civilização moderna: a ação humana não é totalmente previsível como acreditam muitos inventores de teorias e concepções econômicas. E o drama é que estes mesmos sabichões, ao invés de aprenderem a pequena lição de humildade que lhes poderia ter ensinado que nem tudo é automaticamente concedido, pretendem descrever com o mesmo método as causas da crise!
“Por séculos, a humanidade viveu em civilizações capazes de formar uma cultura, onde os assentamentos tinham uma ordem natural e determinada por uma sensibilidade compartilhada comunitariamente”, graças à qual o último ferreiro medieval, quando lhe pediam para forjar uma ferramenta, a produzia segundo aquilo que, hoje, chamaríamos estilo gótico, sem ter necessidade de um mestre ou de um designer que lhe ensinassem como fazer. A nossa civilização aparece muito mais como uma das tantas consequências secundárias do orgulho moderno, que acredita ter entendido tudo e, por isso, acredita poder planejar o mundo inteiro.
Segundo Havel, somente o maravilhamento e a consciência de que as coisas não são tão óbvias quanto parece é que nos pode ajudar a superar este período obscuro. Esse maravilhamento diante do mistério da criação o provoca a uma série de perguntas: qual é o significado de tudo isso que existe? É possível o não-ser? “É possível que as coisas existam para que possamos nos maravilhar, e que nós existamos para que exista alguém que se maravilhe. Mas, por que é necessário que exista alguém que se maravilha? E que alternativa pode haver à vida?”.
Um nós de interrogações que agitam ainda o ânimo desse dramaturgo que entrou na casa dos 70 anos apaixonado pela vida, que não parou ainda de procurar, e de maravilhar o seu público, mesmo aquele das multi salas, porque, há alguns meses, colocou na cabeça que vai fazer cinema...

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 3 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.