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domingo, 8 de abril de 2012

Feliz Páscoa!



O imperador interrogou os cristãos: “Homens estranhos... Dizei-me vós mesmos, ó cristãos, abandonados pela maioria de vossos irmãos e de vossos chefes, o que vos é mais caro no cristianismo?”. Levantou-se, então, o starets João e respondeu com doçura: “Ó grande rei, o que nos é mais caro no cristianismo é o próprio Cristo. Ele próprio e tudo o que dEle vem, porque sabemos que nEle habita corporalmente toda a plenitude da Divindade”.
(SOLOVIEV, Vladimir. Breve conto sobre o Anticristo)

* MASACCIO. O tributo da moeda (detalhe). Florença: Capela Brancacci, 1427.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Uma chama...


"Ao nosso redor pode até estar tudo escuro, porém ainda assim vemos uma luz: uma pequena chama, que é mais forte do que a escuridão aparentemente tão poderosa e insuperável. Cristo" (Bento XVI).

A grande alternativa proposta por Bento XVI entre o Mistério e a falta de sentido



Entrevista realizada por Federico Ferraù com Nikolaus Lobkowicz

“Como reconhecer o que é justo?” É esta a pergunta fundamental que está no centro da extraordinária reflexão sobre os fundamentos do direito que Bento XVI desenvolveu no seu discurso no Bundestag, durante a última viagem apostólica à Alemanha. IlSussidiario.net conversou a respeito dele com o filósofo Nikolaus Lobkowicz, que foi reitor da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique e Presidente da Universidade Católica de Eichstätt, e atualmente é diretor do ZIMOS - Zentral Institut für Mittel- und Osteuropastudien, centro de estudos dedicado à Europa Central e Oriental.

Professor Lobkowicz, o discurso que o Papa Bento XVI dirigiu ao Parlamento Federal Alemão é, de verdade, tão importante assim?
Certamente. Não era a primeira vez que um Papa falava diante de um Parlamento: pensem nos discursos de Paulo VI e de João Paulo II diante da Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas, é a primeira vez que um Papa, a convite do Presidente do Parlamento Alemão, discursa diante dele. A Alemanha é o país de origem de Martinho Lutero, do homem de quem brotou a primeira grande divisão da cristandade na época moderna. A maior parte das divisões ocorridas depois foi apenas uma consequência direta ou indireta deste acontecimento. Em primeiro lugar, é certo que Bento XVI aceitou o convite do Parlamento da sua pátria, mas, segundo penso, o significado verdadeiro do seu discurso diante do Parlamento Federal está no fato de se inserir nos esforços do Pontífice no sentido de promover a “reunificação” dos cristãos.

Uma reunificação? Mas, será uma proposta realista?
Esta reunificação é, para um católico, invariavelmente uma “recondução”, não à força, para a Igreja romana católica assim como se encontra hoje, mais especificamente à comunidade dos cristãos tal como a queria o Senhor e da qual a Igreja católica sempre se concebeu e ainda se concebe como a representante. Bento XVI certamente foi convidado como um chefe de Estado, a Cidade do Vaticano. Todavia, todos entenderam este convite não como um convite de um Estado a outro Estado, mas como o convite àquele que é o chefe da comunidade cristã de longe a mais numerosa, uma comunidade que se considera como a comunidade dos cristãos da qual se dividiram todas as outras. Naturalmente, hoje, a Alemanha não é apenas um país de católicos ou protestantes. Muitos membros do Parlamento alemão são mais ou menos explicitamente ateus. Por isto, Bento XVI, entre as possíveis numerosas variantes para a sua alocução, escolheu um discurso que não sublinhasse aquilo que é especificamente católico e nem mesmo aquilo que é cristão, mas, por assim dizer, aquilo que é direito natural. Aquilo que a Igreja chama “direito natural” é, sim, provavelmente, compreensível particularmente a partir de um ponto de vista católico, mas é, em última instância, acessível a qualquer um, seja cristão ou não. A doutrina do direito natural está fundamentada na ordem da criação e não especificamente na obra de Redenção de Jesus Cristo.

Segundo o Papa, não podemos descobrir e explicar aquilo que é “justo” sem retornar ao conceito de “natureza”. Por quê?
Porque, para descobrir o que é justo, é preciso aprofundar a pergunta que diz respeito ao quê (ou quem) é o homem. “Natureza”, neste contexto, é compreendida não, ou somente incidentalmente, como a realidade fora do homem, mas como a essência do homem, assim como Deus o criou e quis. Este homem é danificado pelo pecado, pelo “pecado original”. Mas a sua essência não é destruída por ele – como, pelo contrário, afirmam os protestantes. Uma das diferenças mais importantes entre a compreensão do homem católica e a protestante consiste no fato que, para Lutero, nada daquilo que o homem realiza sem a graça de Deus pode ser ordenado e bom, enquanto que a Igreja católica sempre sustentou que a graça realiza a natureza, por isso a pressupõe e constrói sobre ela. Paradoxalmente, a compreensão protestante do homem fez como que não se pudesse quase mais falar daquilo que é o homem segundo a sua essência.

Explique isto melhor, professor.
Uma vez que tudo é destruído pelo pecado, até às suas últimas raízes, no fim o homem pode fazer tudo o que lhe vem em mente. Até mesmo a maior das perversões é, em última instância, legítima ou, pelo menos, compreensível, porque Deus, se o homem se arrepende do que fez, na medida em que é Deus misericordioso, o perdoa. Por assim dizer, deve perdoar: onde nada de humano é legítimo por si mesmo, tudo aquilo que o homem é e faz deve ser perdoado. Porém, a Igreja católica sempre sustentou que o homem, não obstante o dano causado pelo pecado original, é bom segundo a sua essência. Deve simplesmente agir e viver em conformidade com sua essência, e não contra ela. A graça constrói sobre esta essência e a realiza. Certamente falta algo se não há a graça, por exemplo, se um homem não encontrou a Cristo e não foi batizado. Mas, isto não significa que algo ou alguém a quem falta algo é inevitavelmente mau ou mesmo malvado.

Os pagãos confirmam isso, como dizia São Paulo.
Sim. Para o pagão, mesmo o do mundo moderno, falta algo, mas, por isto, não é também automaticamente um celerado que, ao final, deve ser condenado e danado. Neste sentido, a doutrina católica é um convite para conhecer Deus e se aproximar dEle, enquanto que a protestante é, em última instância, sempre a tentativa de uma salvação da danação. Por vezes, a radicalidade quase absurda desta concepção, a concepção protestante, levou a pensar que, no fundo, tudo aquilo que o homem faz para si e para os outros seja compreensível e, por isso mesmo, perdoável. Naturalmente, é preciso considerar que quase desde o seu início não existiu “a” doutrina protestante: desde sua origem ela se dividiu em um número de variantes constantemente em crescimento. Algumas delas até mesmo se aproximaram de novo da perspectiva católica.

Segundo o senhor, qual é a pedra angular de todo o discurso do Papa? Por quê?
Sendo que o Papa falou para pessoas de convicções muito diferentes, falou quase como um filósofo, naturalmente um filósofo cristão, e não em primeiro lugar como um teólogo. Isto foi simples para ele: de fato, Ratzinger, assim como Hans Urs von Balthasar ou Henri de Lubac, meio século atrás, é um dos homens mais cultos do nosso tempo e também um dos mais cultos da longa história de bispos de Roma. Eu consideraria como pensamento fundamental do seu discurso a intuição segundo a qual até certo ponto não é necessário ser um cristão crente para reconhecer o que é correto e justo, o que cabe ao homem e o que não cabe. Exatamente por isso o seu discurso tocou também os deputados que não queriam saber nada sobre a fé cristã. Teria tocado também aqueles que não queriam escutar o seu discurso e que, por isso, se mantiveram distantes. As maiorias não podem decidir o que é verdadeiro e o que é falso, justo ou injusto, o que faz bem ao homem e o que lhe traz algum dano. Por isto, é necessária a justa compreensão da essência da realidade e, sobretudo, do homem, uma compreensão que a Igreja católica sempre afirmou como possível e urgente. A fé cristã não nega esta compreensão, mas a realiza.

O Papa citou várias vezes o “coração dócil” (literalmente o “coração que escuta”; ndt) de Salomão. Este coração é razão, mas é também definido como consciência. Não tem um pouco de... confusão? Por quê?
Há duas maneiras para descrever aquilo que, em alemão, se chama “consciência”. De um lado a consciência é descrita como uma voz no fundo da nossa autoconsciência que adverte e condena; de outro lado, com este conceito se entende uma dedução graças à qual podemos saber quais das nossas ações seria ou era moral ou imoral, errada ou justa. Nesta última descrição, a razão desempenha um papel decisivo. Se se pensa sobre o que é ou seria razoável, busca-se o modo justo de agir. É preciso apenas prestar atenção no fato que “razoável” e “justo” significam, neste caso, algo de totalmente diferentes de “esperto”, “que promete sucesso” ou coisas parecidas. Razoáveis, neste sentido, são todas aquelas decisões e ações que, de verdade, consideram tudo aquilo de que se deve ser tido em conta, por exemplo que Deus nos deu, junto com nossa essência, também uma ordem moral, que devemos respeitar e que devemos considerar em todas as nossas decisões.

É este o “coração que escuta”?
Aquilo a que o Papa se refere quando fala do “coração que escuta” é exatamente isto: se escutamos a nossa consciência, escutamos a razão, neste sentido. Isto pressupõe, naturalmente, que não escutemos as premissas de uma ideologia que falsifica a realidade. No fundo, cada um de nós conhece esta situação: sabemos o que seria “a coisa justa”, porém nos persuadimos continuamente de que seria justo algo diferente, às vezes tão distante no tempo que a nossa consciência “emudece” e não é mais possível escutar a sua voz de advertência. Se eu torturo ou mato alguém, traio a minha mulher ou roubo algo, no fundo, sempre sei, independentemente da minha visão de mundo, que isto “não é justo”; só que me convenço que, levando em consideração as minhas circunstâncias, isto é justo ou até mesmo necessário. Naquele momento, sei perfeitamente que estou me iludindo, mas tendo me distrair, me convenço, minto para mim mesmo.

Na primeira parte, o Papa disse que “aquilo que é justo” não é mais evidente. Por onde passa o caminho (o método) para reencontrar esta evidência? Como nós, homens pós-modernos, podemos encontrar isto? 
Aquilo que eu acabei de descrever se tornou cada vez menos claramente reconhecível na nossa cultura, por causa do desaparecimento das tradições cristãs. Desde a Idade Média (Ratzinger escreveu sua tese de habilitação para a Universidade de Munique sobre Boaventura) nasceram sempre mais frequentemente filosofias ou modos de pensar comuns que apagaram e, por assim dizer, renegaram as tradições cristãs e, deste modo, também aquelas partes do pensamento da antiguidade pré-cristã retomadas pelo cristianismo. Isto causou uma atrofia ou mesmo um ressecamento das convicções tradicionais sobre o que é “justo”. Eu, no fundo, acredito que seja um absurdo esta frase feita sobre os “pós-modernos”. De fato, a ruptura é muito mais antiga, sobretudo na cultura alemã. Pensadores como Kant, Hegel ou Nietzsche, que tinham muita coisa justa para dizer, mas descuidaram da verdade sobre questões essenciais, marcaram a cultura alemã de modo determinante. Mesmo se Hegel, por exemplo, tivesse ficado horrorizado ao conhecer a ideologia dos nazistas ou dos comunistas, ainda assim algumas convicções atuais, particularmente nos países de língua alemã, são referidas a ele e aos seus herdeiros. Assim, a Igreja católica, a partir de muitos pontos de vista, se tornou quase a única instituição a manter vivo aquilo que a cultura ocidental entendeu. Eu acredito, por isso, que seja possível readquirir as justas convicções sobre aquilo que é verdadeiro, significativo, correto e justo, somente na medida em que o mundo, e sobretudo os países de língua alemã, se tornem “mais católicos” outra vez.

O que o senhor quer dizer com isso?
Com isto não entendo necessariamente que todos devem se tornar católicos. Mas se trata de um modo de pensar que somente os católicos conseguem levar adiante, e também uma parte essencial dos crentes ortodoxos e anglicanos. Com efeito, não gostaria de excluir que nos estamos aproximando de um tempo que, na tradição cristã, é descrito como o do anticristo. Exatamente nas últimas décadas, por exemplo, se tornou particularmente atual a visão do anticristo apresentada por Vladimir Soloviov no início do século XX. Talvez o fim da história da humanidade, o “fim do mundo”, esteja mais perto do que geralmente pensamos...

É necessário chamar em causa a razão criativa de Deus para tornar a unir razão e natureza?
Sim, porque em última instância apenas a ideia segundo a qual Deus é o criador, de um lado, de toda a realidade, e de outro, também da nossa razão, é que nos permite ver ambas como ordenadas uma à outra. Se não somos nada mais do que macacos por acaso altamente desenvolvidos, vivemos num mundo no qual tudo o que está em jogo é a sobrevivência; mas o homem não sobreviverá para sempre. Somente na medida em que se admite que Deus criou o mundo por amor ao homem, é que a nossa existência tem um sentido neste mundo. Para aqueles que veem em nós um macaco que, por acaso, é mais desenvolvido, de forma que tudo se deve ao acaso de uma cega evolução que poderia mesmo ter terminado de uma forma completamente diferente da forma como terminou, não é possível existir nenhum sentido “objetivo” para a existência do homem. Então, não somos nada mais do que produto do acaso, que, um dia, se apagará novamente e desaparecerá. Então, nada tem sentido; e o homem não é nada mais nada menos do que um Prometeu que, um dia, desaparecerá de novo. Às vezes me espanto ao ver como os homens conseguem apenas suportar uma tal ideia; provavelmente podem suportá-la somente porque nunca a levaram até às suas extremas conclusões. Houve homens, no século passado, que se suicidaram por causa desta visão, com a ideia, por assim dizer, que a única coisa na qual podemos ainda dar prova de nós e que nos demonstra nossa unicidade consiste no fato que somos o único ser vivo sobre a terra que pode “eliminar” a si mesmo intencional e conscientemente. Dostoievski descreveu de forma persuasiva esta visão das coisas no seu romance Os Demônios...

Por que o Papa falou do “movimento ecológico na política alemã a partir dos anos 1970”? Qual é o sentido desta referência específica?
João Paulo II já havia falado de um dever do cristão de preservar o ambiente da destruição, ao invés de simplesmente desfrutar dele até que não reste mais nada. Não devemos esquecer que o movimento e o partido dos “verdes”, na Alemanha, tem sua origem, sim, a partir dos marxistas, mas atraiu também muitos cristãos que estavam preocupados com a destruição do ambiente. Conheço pessoalmente alguns “verdes” que são cristãos convictos. O desejo de proteger a criação é mais do que um mero sentimentalismo; no fundo, todos queremos viver num mundo que não tenha perdido completamente a sua natureza original. Por trás disto há também a preocupação com o sustento da humanidade que continua crescendo...

Por que a doutrina do direito natural não é mais popular no pensamento católico?
Este, efetivamente, é um problema: eu o descreveria como uma preocupante “protestantização” de uma parte dos teólogos católicos e da teologia ensinada por eles. Ver o jusnaturalismo como uma premissa importante e como uma implicação da interpretação da fé pertence à grande tradição da teologia católica. Para mim, há dois motivos que justificam a cada vez menor disponibilidade a se ocupar deste tema: em primeiro lugar, o influxo dos protestantes agnósticos (“somente a Sagrada Escritura vale!”), em segundo lugar, alguns modernos desenvolvimentos do direito natural, que argumentam de modo completamente diverso daquele da tradição cristã. Para dizer a verdade, emerge também o fato que não é fácil continuar a desenvolver o direito natural clássico da Igreja católica: parece que já foi dito tudo o que era essencial. Parece-me que o significado da doutrina do direito natural consista sobretudo no fato que contradiz a ideia segundo a qual existam apenas duas alternativas: a ciência moderna, frequentemente positivista, e a fé cega, quase irracional. Já há bastante tempo, desde antes de se tornar papa, que Ratzinger tem realçado o significado da terceira alternativa: o jusnaturalismo como uma representação daquilo que emerge da essência corretamente entendida do homem. Trata-se de não esquecer uma determinada visão de homem: do homem como criatura, a que a fé cristã não se opõe, mas realiza.

O Papa disse durante a celebração ecumênica em Erfurt, na sexta-feira passada que “a fé não é algo que concebemos ou com o que concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos”. O que significa isto para o diálogo interreligioso na Europa cristã?
Antes que o Papa viesse à Alemanha, houve, na Alemanha e na Áustria, uma discussão acalorada e vivaz. De um lado, alguns protestantes esperavam que o Papa, por assim dizer, canonizasse, pelo menos em parte, Lutero (e também Calvino e Zwingli); de outro lado, houve um movimento entre os teólogos católicos que queria abolir o celibato e até mesmo ordenar mulheres. Diante disto, Bento XVI sublinhou que a unidade dos cristãos e o seu restabelecimento não pode ser, em última instância, obra do homem, ou seja, não se trata de algo que se alcançará (como é no caso de questões políticas) através de tratados e compromissos. Somente o Espírito Santo, e não a negociação entre nós, pobres homens, pode indicar o caminho. Ao mesmo tempo, as palavras do Papa foram um chamado de atenção “para o caminho que já trilhamos”. Há meio século atrás, uma oração ecumênica como aquela que houve em Erfurt seria impensável. As palavras do Papa que o senhor acabou de citar, recordam a “longa duração” que sempre foi característica da Igreja católica: a disponibilidade do coração aberto para esperar até que o Senhor nos indique o caminho.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Igreja deve se "desmundanizar"...



Encontro com os católicos comprometidos com a Igreja e a sociedade

Discurso do Papa Bento XVI 

Freiburg, Konzerthaus
Domingo, 25 de setembro de 2011.

Caros confrades no ministério episcopal e sacerdotal!
Senhoras e Senhores!
Estou feliz com este encontro convosco que sois comprometidos de múltiplas maneiras com a Igreja e a sociedade. Isto me oferece uma ocasião especial para vos agradecer, aqui, pessoalmente, de todo o meu coração, por vosso serviço e vosso testemunho como “valorosos arautos da fé naquelas realidades que esperamos” (Lumen gentium, n. 35). Dessa maneira, o Concílio Vaticano II designa as pessoas que, como vós, se preocupam com o presente e o futuro da fé. No vosso meio de trabalho vós defendeis a causa da vossa fé e da Igreja, como sabemos, o que não é nada fácil nesses tempos atuais.
Há décadas, assistimos a uma diminuição da prática religiosa, constatamos um crescente distanciamento da vida da Igreja por uma parte notável de batizados. Eis então a pergunta: será que, por acaso, a Igreja não deveria mudar? Será que, por acaso, em seus serviços e estruturas, ela não deveria se adaptar ao tempo presente, para alcançar as pessoas de hoje que estão a procura e em dúvida?
Um dia, perguntaram à Beata Madre Teresa de Calcutá qual deveria ser, segundo ela, a primeira coisa a ser modificada na Igreja. Sua resposta foi: você e eu!
Este pequeno episódio evidencia duas coisas. De um lado, a religiosa quer dizer a seu interlocutor que a Igreja não é unicamente os outros, a hierarquia, o Papa e os Bispos; a Igreja somos todos nós: nós, os batizados. Além do mais, ela parte efetivamente do pressuposto: sim, há motivo para uma mudança. Há a necessidade de uma mudança. Cada cristão e a comunidade dos crentes no seu conjunto são chamados a uma conversão contínua.
Como deve se configurar concretamente esta mudança? Será que se trata de uma renovação tal como, por exemplo, o proprietário de uma casa realiza através da reestruturação ou de uma nova pintura de seu imóvel? Ou será que se trata de uma correção, para retornar aos trilhos ou percorrer um caminho de maneira mais alegre e direta? Estes aspectos e outros mais certamente têm sua importância, e não é o caso de levar todos em consideração neste momento. Mas, quanto àquilo que diz respeito ao motivo fundamental da mudança, trata-se de uma missão apostólica dos discípulos e da própria Igreja.
Com efeito, a Igreja sempre deve verificar sua fidelidade a esta missão. Os três evangelhos sinóticos realçam diferentes aspectos do mandato desta missão: a missão se fundamenta, inicialmente, sobre a experiência pessoal – “Vós sois testemunhas” (Lc 24, 48); ela se exprime em relação – “Fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28, 19); ela transmite uma mensagem universal – “Proclamai o Evangelho a toda a criação” (Mc 16, 15). No entanto, por causa das pretensões e dos condicionamentos do mundo, este testemunho é cada vez mais obscurecido, as relações são alienadas e a mensagem é relativizada. Se, logo em seguida, a Igreja, como o diz o Papa Paulo VI, “procura modelar-se em conformidade com o tipo proposto por Cristo, não poderá deixar de distinguir-se profundamente do ambiente humano, em que afinal vive ou do qual se aproxima” (Encíclica Ecclesiam suam, n. 34). Para realizar sua missão, ela deverá continuamente se distanciar de seu meio, se “desmundanizar” por assim dizer.
A missão da Igreja, com efeito, brota do mistério do Deus uno e trino, do mistério de seu amor criador. E o amor não apenas está presente de qualquer forma em Deus: Ele é amor; por Sua natureza, Ele é amor. E o amor divino não quer ser apenas para si, quer se derramar em conformidade com sua natureza. Na encarnação e no sacrifício do Filho de Deus, o amor alcançou a humanidade de maneira particular. E foi da seguinte maneira: o Cristo, o Filho de Deus, saiu da esfera de seu ser Deus, Ele se fez carne e Se tornou homem; e isto não apenas para confirmar o mundo no seu ser terrestre, e partilhar Sua condição que – a deixando imutável – a transforma. Do evento crístico faz parte o fato incompreensível que existe – como dizem os Padres da Igreja – um sacrum commercium, uma troca entre Deus e os homens. Os Padres a explicam desta maneira: não temos nada para dar a Deus, só podemos Lhe apresentar nossos pecados. Ele os aceita e os faz Seus, e Ele nos dá a si mesmo e à Sua glória em troca. Este é, verdadeiramente, um comércio desigual que se desenrola na vida e nos sofrimentos de Cristo. Ele se torna pecador, se encarrega do pecado; Ele toma aquilo que é nosso e nos dá aquilo que é Seu. Mas, continuando a refletir e a viver na fé, torna-se evidente que nós não Lhe damos apenas o pecado, mas que Ele nos autoriza, Ele nos dá uma força interior para Lhe dar igualmente algo positivo: nosso amor Lhe dá, de maneira positiva, a humanidade. É claro, naturalmente, que é somente graças à bondade de Deus, que o homem, o mendigo, recebe a riqueza divina, que Deus pode dar qualquer coisa, que Deus torna nossa oferta aceitável nos tornando capazes de ser, para Ele, oferentes. 
A Igreja se conforma totalmente com este comércio desigual. Ela não possui nada por ela mesma diante dAquele que a fundou, de sorte que ela poderia dizer: Fizemos isto muito bem! Seu sentido consiste em ser um instrumento da redenção, deixar-se penetrar pela palavra de Deus e transformar o mundo introduzindo-o na união de amor com Deus. A Igreja imerge na atenção complacente do Redentor pelos homens. Ela está lá onde ela é ela mesma, sempre em movimento, colocando-se continuamente a serviço da missão, que ela recebeu do Senhor. É por isto que ela deve sempre se abrir às preocupações do mundo – ao qual ela pertence –, consagrar-se sem reservas a estas preocupações, para continuar e tornar presente o comércio sagrado que teve início com a Encarnação.
No entanto, no desenvolvimento histórico da Igreja se manifesta também uma tendência contrária: é a de uma Igreja que se satisfaz consigo mesma, que se instala neste mundo, que é autossuficiente e se adapta aos critérios do mundo. Muito frequentemente, ela dá à organização e à institucionalização uma importância maior do que a seu apelo à abertura para Deus, que tem a esperança do mundo para o outro.
Para corresponder à sua verdadeira tarefa, a Igreja deve sempre se esforçar por se destacar de sua “mundanidade” para se abrir a Deus. Desta forma, ela segue as palavras de Jesus: “Eles não são deste mundo, como eu não sou deste mundo” (Jo 17, 16), e é assim que ela se dá ao mundo. Num certo sentido, a história vem em socorro da Igreja, através dos diversos períodos de secularização, que contribuíram, de modo essencial, para a sua purificação e para a sua reforma interior.
Com efeito, a secularização – que foram a expropriação dos bens da Igreja ou a supressão dos privilégios ou de coisas parecidas – significaram, a cada vez, uma profunda libertação da Igreja das formas de “mundanidade”: ela se despoja, por assim dizer, de sua riqueza terrestre e volta para abraçar plenamente sua pobreza terrestre. Assim, a Igreja partilha o destino da tribo de Levi que, segundo a afirmação do Antigo Testamento, era a única tribo em Israel que não possuía patrimônio terrestre, mas que havia tomado exclusivamente a Deus, Sua palavra e Seus sinais como parte da herança. Como esta tribo, a Igreja partilhava nesses momentos históricos a exigência de uma pobreza que se abria para o mundo, para se desligar de seus vínculos materiais, e assim seu agir missionário voltava a ser igualmente credível. 
Os exemplos históricos mostram que o testemunho missionário de uma Igreja “desmundanizada” é mais claro. Libertada do fardo e dos privilégios materiais e políticos, a Igreja pode se consagrar melhor e de maneira verdadeiramente cristã ao mundo inteiro; ela pode ser verdadeiramente aberta ao mundo. Ela pode, de novo, viver com mais facilidade seu chamado ao ministério de adoração a Deus e de serviço ao próximo. A tarefa missionária que está ligada à adoração cristã, e que deveria determinar a estrutura da Igreja, se torna visível mais claramente. A Igreja se abre ao mundo não para obter a adesão dos homens a uma instituição com suas próprias pretensões de poder, mas para fazê-los entrar em si mesmos e, dessa maneira, conduzi-los Àquele de quem todas as pessoas podem dizer com Agostinho: Ele é mais íntimo de mim do que eu mesmo (cf. Conf. 3, 6, 11). Ele, que é infinitamente acima de mim, está de tal forma em mim até ao ponto de ser a minha verdadeira interioridade. Por este estilo de abertura da Igreja ao mundo, é traçada, ao mesmo tempo, a forma na qual a abertura para o mundo por parte de cada cristão pode se realizar de maneira eficaz e apropriada.
Não se trata, aqui, de encontrar uma nova estratégia para ressuscitar a Igreja. Trata-se muito mais de deixar de lado tudo aquilo que é unicamente tático, e buscar a plena sinceridade, que não negligencia nem reprime nada da verdade de nosso hoje, mas que a realiza plenamente no hoje, vivendo-a justamente, totalmente na sobriedade do hoje, levando-a à sua plena identidade, tirando dela aquilo que é somente aparência de fé, mas que, na verdade, é apenas convenção e hábito.
Digamos com outras palavras: a fé cristã é sempre, para o homem, um escândalo, e isto não é apenas no nosso tempo. Que o Deus eterno se preocupe conosco, seres humanos, que Ele nos conheça; que o Inapreensível tenha se tornado, num determinado momento, apreensível; que o Imortal tenha sofrido e morrido numa cruz; que para nós, seres mortais, sejam prometidas a ressurreição e a vida eterna – acreditar em tudo isto é, para os homens, uma verdadeira exigência. 
Este escândalo, que não pode ser abolido se não se quiser abolir o cristianismo, foi, infelizmente, colocado à sombra, recentemente, por outros escândalos dolorosos que envolveram os anunciadores da fé. Uma situação perigosa é criada quando esses escândalos tomam o lugar do skandalon primeiro da Cruz e, desta forma, o tornam inacessível, quer dizer, quando eles escondem a verdadeira exigência cristã por trás da inadequação de seus mensageiros.
Há uma razão a mais para acreditar novamente atual a retomada da verdadeira “desmundanização”, de arrancar corajosamente aquilo que há de “mundano” da Igreja. Naturalmente, isto não significa se retirar do mundo, muito pelo contrário. Uma Igreja aliviada dos elementos “mundanos” é capaz de comunicar aos homens – àqueles que sofrem e àqueles que os ajudam – justamente também na esfera sócio-caritativa, a força vital particular da fé cristã. “A caridade não é, para a Igreja, uma espécie de atividade de assistência social que se poderia também deixar para outras pessoas, mas ela pertence à sua natureza mesma, ela é uma expressão de sua essência, à qual ela não pode renunciar” (Deus caritas est, n. 25). Certamente, as obras caritativas da Igreja devem também continuamente prestar atenção às exigências de um distanciamento apropriado do mundo para evitar que, diante de um afastamento crescente da Igreja, suas raízes não sequem. Somente a relação profunda com Deus torna possível uma plena atenção ao homem, da mesma forma que sem a atenção ao próximo a relação com Deus empobrece.
Ser abertos aos acontecimentos do mundo significa, portanto, para a Igreja “desmundanizada”, testemunhar, segundo o Evangelho, o domínio do amor de Deus, em palavras e ações, aqui e agora. E além do mais, esta tarefa vai para além do mundo presente. Com efeito, a vida presente inclui o vínculo com a vida eterna. Como indivíduos, e como comunidade da Igreja, vivemos a simplicidade de um grande amor que, no mundo, é ao mesmo tempo a coisa mais fácil e a mais difícil, porque ela exige nada mais nada menos do que o dom de si mesmo.
Caros amigos, resta-me apenas implorar para nós todos a bênção de Deus e a força do Espírito Santo, para que possamos, cada um no seu próprio campo de ação, reconhecer sempre outra vez o amor de Deus e Sua misericórdia e testemunhar isso. Agradeço-vos a atenção.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 25 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

... a verdadeira crise da Igreja no mundo ocidental é uma crise de fé



Encontro com o Comitê Central dos Católicos Alemães (ZDK)

Discurso do Papa Bento XVI 

Seminário de Freiburg
Sábado, 24 de setembro de 2011


Ilustres Senhores e Senhoras,
Amados irmãos e irmãs,
Agradeço a possibilidade de me encontrar convosco, os membros do Conselho do Comitê Central dos Católicos Alemães, aqui em Freiburg. Quero manifestar-vos o meu apreço pelo empenho com que sustentais, em público, os interesses dos católicos e dais impulso à obra apostólica da Igreja e dos católicos na sociedade. Ao mesmo tempo, quero agradecer-lhe, caro senhor Presidente Glück, pelas suas amáveis palavras, nelas exprimindo muitas coisas importantes e dignas de reflexão.
Queridos amigos, há vários anos que existem os chamados programas exposure no âmbito da ajuda aos países em vias de desenvolvimento. Pessoas responsáveis pela política, pela economia, pela Igreja vão viver, durante um tempo, com os pobres na África, Ásia ou América Latina, compartilhando a sua existência concreta de todos os dias. Colocam-se na situação de vida destas pessoas para verem o mundo com os seus olhos e, desta experiência, tirarem lições para o próprio agir solidário.
Imaginemos que tal programa exposure tivesse lugar aqui na Alemanha. Peritos originários de um país distante viriam viver, durante uma semana, com uma família alemã média. Certamente admirariam aqui muitas coisas, como por exemplo o bem-estar, a ordem e a eficiência. Mas, com um olhar imparcial, constatariam também tanta pobreza: pobreza nas relações humanas e pobreza no âmbito religioso.
Vivemos num tempo caracterizado em grande parte por um relativismo subliminar que penetra todos os âmbitos da vida. Às vezes, este relativismo torna-se combativo, lançando-se contra pessoas que dizem saber onde se encontra a verdade ou o sentido da vida.
E notamos como este relativismo exerce uma influência cada vez maior sobre as relações humanas e a sociedade. Isto se exprime também na inconstância e na descontinuidade de vida de muitas pessoas e num individualismo excessivo. Há pessoas que não parecem capazes de renunciar de modo algum a determinada coisa ou de fazer um sacrifício pelos outros. Também o compromisso altruísta pelo bem comum nos campos sociais e culturais ou então pelos necessitados tem diminuído. Outros já não são capazes de se unir de forma incondicional a um cônjuge. Quase já não se encontra a coragem de prometer ser fiel a vida toda; a coragem de decidir-se e dizer: agora pertenço totalmente a ti, ou então, comprometer-se resolutamente com a fidelidade e a veracidade, e procurar sinceramente as soluções dos problemas.
Queridos amigos, no programa exposure, depois da análise vem a reflexão comum. Nesta elaboração, deve-se olhar a pessoa humana na sua totalidade; e desta faz parte explicitamente, e não só de modo implícito, a sua relação com o Criador.
Vemos que, no nosso rico mundo ocidental, há carências. Muitas pessoas carecem da experiência da bondade de Deus. Não encontram qualquer ponto de contato com as Igrejas institucionais e suas estruturas tradicionais. Mas por quê? Penso que esta seja uma pergunta sobre a qual devemos refletir muito seriamente. Ocupar-se desta questão é a tarefa principal do Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização. Mas, obviamente, a mesma diz respeito a todos nós. Permiti-me tratar aqui um ponto da situação específica alemã. Na Alemanha, a Igreja está muito bem organizada. Mas, por detrás das estruturas, porventura existe também a correlativa força espiritual, a força da fé no Deus vivo? Sinceramente devemos afirmar que se verifica um excedente das estruturas em relação ao Espírito. Digo mais: a verdadeira crise da Igreja no mundo ocidental é uma crise de fé. Se não chegarmos a uma verdadeira renovação da fé, qualquer reforma estrutural permanecerá ineficaz.
Mas, voltemos às pessoas a quem falta a experiência da bondade de Deus. Precisam de lugares, onde possam expor a sua nostalgia interior. E, aqui somos chamados a procurar novos caminhos da evangelização. Um destes caminhos poderiam ser as pequenas comunidades, onde sobrevivem as amizades, que são aprofundadas na frequente adoração comunitária de Deus. Aqui há pessoas que contam as suas pequenas experiências de fé no emprego e no âmbito da família e dos conhecidos, testemunhando assim uma nova proximidade da Igreja à sociedade. Depois, a seus olhos, aparece de modo cada vez mais claro que todos necessitam deste alimento do amor, da amizade concreta de um pelo outro e pelo Senhor. Permanece importante a ligação com a seiva vital da Eucaristia, porque sem Cristo nada podemos fazer (cf. Jo 15, 5).
Amados irmãos e irmãs, que o Senhor nos indique sempre o caminho para, juntos, sermos luzes no mundo e mostrarmos ao nosso próximo o caminho para a fonte, onde possam saciar o seu profundo anseio de vida. Obrigado!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 24 de setembro de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Uma “viagem” no tempo para viver o cristianismo hoje


Por Danilo Zardin

“A modernidade não consiste somente de negatividade. Se fosse assim, não poderia durar por muito tempo. Ela tem em si grandes valores morais que advêm exatamente do cristianismo, que somente graças ao cristianismo, como valor, entraram na consciência da humanidade”.
Extrapolado do seu contexto, o elogio da alma boa que se esconde nas dobras profundas da modernidade filha da tradição europeia poderia parecer a alguém um pouco romântico e excessivamente otimista: no entanto, é impregnado do são realismo que está na base do juízo histórico-cultural elaborado por Joseph Ratzinger/Bento XVI, na qualidade de homem capaz de sistematizar a posição cristã diante dos desafios do nosso contexto contemporâneo.
A frase citada é retirada exatamente do recente livro-entrevista organizado por Peter Seewald, Luz do mundo, e foi retomada por Francesco Ventorino num discurso seu de apresentação do volume. Agrade ou não, é uma perspectiva de avaliação cheia de razão e altamente compreensiva, aberta a todas as dimensões globais daquele mosaico intrincado que é o mundo no qual vivemos.
Vale a pena levá-la realmente a sério como hipótese de leitura e colocá-la à prova com a máxima cordialidade confiante, começando pelos fragmentos de realidade do passado com os quais nos embatemos quando nos havemos com as criações artísticas, as memórias literárias ou os relatos históricos que nos restituem, hoje, as vozes e o pensamento mais autêntico, para além dos esquemas e dos preconceitos superficiais dos quais, às vezes, corremos o risco de ficarmos prisioneiros.
Neste sentido, uma ajuda significativa é oferecida pela tradução para o italiano da síntese do jesuíta Robert Bireley sobre a renovação católica da primeira idade moderna: Ripensare il cattolicesimo (1450-1700): nuove interpretazioni della Controriforma [Repensar o catolicismo (1450-1700): novas interpretações da Contra-Reforma, em tradução livre, publicado pela Marietti; ndt]. Na versão italiana, por exigências de simplicidade na divulgação da mensagem, foi introduzida no título a palavra “ripensare”. Mas, na versão original americana, de 1999, no lugar de “ripensare” se encontra uma ainda mais forte “remodelar” (The Refashioning), que, a partir do espaço das nossas concepções intelectuais, nos leva à substância dos desenvolvimentos históricos reconstruídos; assim como, ao invés de estar diante das “novas interpretações”, somos colocados diante, mais ambiciosamente, da proposta de uma “revisão” ou “reformulação”, em sentido geral (A Reassessment), daquilo que antes se usava chamar Contra-Reforma, mas que Bireley tentar redesenhar de forma diferente, a ponto de solicitar o abandono das velhas etiquetas de fundo polêmico, para passar a outras categorias de juízo mais adequadas ao objeto a que se referem.
Com efeito, como sabe muito bem que tem um mínimo de familiaridade com a história religiosa do nosso Ocidente, a crítica da unilateralidade contida no estereótipo negativo da “Contra-Reforma” já havia sido levada adiante, até ao mais elevado nível pela historiografia europeia do século XX, por Hubert Jedin. Mas Bireley, referindo-se mais à nova sensibilidade amadurecida na esteira das pesquisas dos últimos cinquenta anos, retomando a terminologia lançada por outro estudioso de bastante autoridade e jesuíta ainda ativo hoje em dia (John O’Malley), ultrapassa também a recuperação tentada por Jedin a favor da corrente positiva de uma “Reforma Católica” anterior e paralela ao movimento da Contra-Reforma.
Como O’Malley, Bireley opta decididamente pelo uso do único conceito geral de “catolicismo da primeira idade moderna”: onde o fantasma da contraposição à outra grande Reforma (a protestante) cessa de ser a pedra angular sobre a qual gravita toda a construção de um catolicismo reorganizado sobre seus fundamentos e readaptado às exigências de um universo modificado, depois da saída de cena daquele que, por três séculos ou mais, usou-se chamar  “Idade Média”.
Recapitulando os frutos mais atualizados da pesquisa internacional sobre a história cristã do mundo moderno, o livro do estudioso norteamericano traça, em alguns capítulos convincentes, o aspecto dinâmico e poderosamente criativo de uma religião que não era apenas a cansada relíquia de uma gloriosa tradição do passado, mas uma força viva que contribuiu, com um papel de primeiro plano, exatamente para o desenvolvimento, num sentido novo, da civilização humana que – aquela tradição – havia hospedado e feito crescer no seu seio fecundo.
O elemento dinâmico está justamente, para Bireley, na capacidade de “responder” às mudanças que se estavam desdobrando, sem fechar-se na defesa das velhas posições já garantidas. O novo que avançava era uma pergunta ou um “desafio” que solicitava a consciência católica a reagir, atingindo, a partir do patrimônio da sua extraordinária riqueza, ideias, estímulos e projetos que, depois, iriam se amalgamar com o vigor irreprimível de descobertas e aquisições revestidas do fascínio de uma originalidade surpreendente e plasticamente móvel, carregada de uma força propositiva tenaz.
Esta parábola de inteligente aplicação em proveito dos recursos contidos no próprio código genético é delineada por Bireley em relação ao florescimento dos novos carismas e dos novos modelos de santidade ativa, que revolucionaram os quadros das instituições da Igreja de Roma e dilataram em sentido ainda mais impressionantemente pluralista a variedade das suas formas de vida religiosa comunitária, antes e depois do Concílio de Trento (enquanto que a Reforma, no norte, tendia a reduzir tudo a um esquema filoparoquial achatado em sentido nivelador).
Mas a dinâmica reemerge também na invenção de uma estratégia educativa intensificada para atingir o indivíduo, ancorada no cuidado da consciência pessoal do eu, no desfrute dos recursos da cultura escrita, do catecismo e da escola, na disciplina da conduta prática através da elaboração de sistemas de regras, de guias, de manuais, de “exercícios”, de modelos ideais nos quais se espelhar e pelos quais se deixar dirigir para imprimir uma “forma” à própria vida do mundo.
A mesma ânsia de propor uma rede global de significados para a vida de cada homem se derramou, já desde o início do mundo moderno, numa nova “evangelização” destinada a se projetar de forma decidida, pela primeira vez na história, para além dos confins da Europa. As missões eram dirigidas, porém, também para o interior, rumo à restauração da velha forma de ser da cristandade do continente e em vista do novo impulso da sua consciência ética coletiva, tendo como pano de fundo a grande obra conjunta que entrava em diálogo com as exigências da política e da consolidação dos aparatos de Estado, assim como se dobrava sobre as forças secretas da natureza e buscava dominar os seus mecanismos para manipulá-los a fim de manter a centralidade do bem-estar do homem, servindo-se da ciência e da técnica como prolongamentos necessários da gestão responsável da totalidade da criação.
O êxito talvez mais surpreendentemente moderno deste esforço de “repensamento” da inserção da fé católica na realidade do mundo foi a descoberta ainda mais lúcida e consciente da possibilidade de viver o cristianismo, “na sua plenitude”, não apenas num estado de perfeição separado das condições da massa do povo dos fiéis, mas também dentro do fluxo de uma “secularidade” plasmada pelos deveres do governo da família, dos compromissos cotidianos de trabalho, na imersão mais ampla e envolvente dentro da vida coletiva da sociedade: uma fé totalmente encarnada, mas capaz de reconverter a “carne” mesma da vida do mundo.

O livro de Robert Bireley foi publicado em 2010, em italiano, e pode ser adquirido na Itacalibri, pelo valor de € 29,00. A edição original, de 1999 - The Refashioning of Catholicism, 1450-1700: A Reassessment of the Counter Reformation - pode ser adquirida na Amazon, ao preço de $ 17,53.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 12 de agosto de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 31 de julho de 2011

Comentário ao evangelho do dia

18º Domingo Tempo Comum

1ª Leitura - Is 55,1-3
Assim diz o Senhor: "vós todos que estais com sede, vinde às águas; vós que não tendes dinheiro, apressai-vos, vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite, sem nenhuma paga. Por que gastar dinheiro com outra coisa que não o pão, desperdiçar o salário senão com satisfação completa? Ouvi-me com atenção, e alimentai-vos bem, para deleite e revigoramento do vosso corpo. Inclinai vosso ouvido e vinde a mim, ouvi e tereis vida; farei convosco um pacto eterno, manterei fielmente as graças concedidas a Davi".

2ª Leitura - Rm 8,35.37-39
Irmãos, quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação? Angústia? Perseguição? Fome? Nudez? Perigo? Espada? Em tudo isso, somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou! Tenho a certeza que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os poderes celestiais, nem o presente nem o futuro, nem as forças cósmicas, nem a altura, nem a profundeza, nem outra criatura qualquer, será capaz de nos separar do amor de Deus por nós, manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor.

Evangelho - Mt 14,13-21
Naquele tempo, quando soube da morte de João Batista, Jesus partiu e foi de barco para um lugar deserto e afastado. Mas quando as multidões souberam disso, saíram das cidades e o seguiram a pé. Ao sair do barco, Jesus viu uma grande multidão. Encheu-se de compaixão por eles e curou os que estavam doentes. Ao entardecer, os discípulos aproximaram-se de Jesus e disseram: "Este lugar é deserto e a hora já está adiantada. Despede as multidões, para que possam ir aos povoados comprar comida!". Jesus porém lhes disse: "Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer!". Os discípulos responderam: "Só temos aqui cinco pães e dois peixes". Jesus disse: "Trazei-os aqui". Jesus mandou que as multidões se sentassem na grama. Então pegou os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos para o céu e pronunciou a bênção. Em seguida partiu os pães, e os deu aos discípulos. Os discípulos os distribuiram às multidões. Todos comeram e ficaram satisfeitos, e dos pedaços que sobraram, recolheram ainda doze cestos cheios. E os que haviam comido eram mais ou menos cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças.

Comentário feito por Papa Bento XVI
Exortação apostólica "Sacramento da Caridade"

"O pão que Eu hei-de dar é a Minha carne que Eu darei pela vida do mundo" (Jo 6,51). Com estas palavras, o Senhor revela o verdadeiro significado do dom da Sua vida por todos os homens; as mesmas mostram-nos também a compaixão íntima que Ele sente por cada pessoa. Na realidade, os Evangelhos transmitem-nos muitas vezes os sentimentos de Jesus para com as pessoas, especialmente doentes e pecadores (Mt 20,34; Mc 6,34; Lc 19,41). Ele exprime, através de um sentimento profundamente humano, a intenção salvífica de Deus, que deseja que todo o homem alcance a verdadeira vida. Cada celebração eucarística atualiza sacramentalmente a doação que Jesus fez da Sua própria vida na cruz, por nós e pelo mundo inteiro. Ao mesmo tempo, na Eucaristia, Jesus faz de nós testemunhas da compaixão de Deus por cada irmão e irmã; nasce assim, em torno do mistério eucarístico, o serviço da caridade para com o próximo, que "consiste precisamente no fato de eu amar, em Deus e com Deus, a pessoa que não me agrada ou que nem conheço sequer. Isto só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro que se tornou comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento. Então aprendo a ver aquela pessoa já não somente com os meus olhos e sentimentos, mas segundo a perspectiva de Jesus Cristo" [Bento XVI, Encíclica Deus Caritas est, 18]. Desta forma, nas pessoas que encontro, reconheço irmãs e irmãos, pelos quais o Senhor deu a Sua vida amando-os "até ao fim" (Jo 13,1). Por conseguinte, as nossas comunidades, quando celebram a Eucaristia, devem consciencializar-se cada vez mais de que o sacrifício de Jesus é por todos; e, assim, a Eucaristia impele todo o que acredita nEle a fazer-se "pão repartido" para os outros e, consequentemente, a empenhar-se por um mundo mais justo e fraterno. Como sucedeu na multiplicação dos pães e dos peixes, temos de reconhecer que Cristo continua, ainda hoje, exortando os Seus discípulos a empenharem-se pessoalmente: "Dai-lhes vós de comer" (Mt 14,16). Na verdade, a vocação de cada um de nós consiste em ser, unido a Jesus, pão repartido para a vida do mundo.

terça-feira, 26 de julho de 2011

O homem é feito para voar... do contrário, enlouquece

Por Aldo Trento

Enquanto todos estão de férias, sonhando vencer o estresse de uma vida cada vez menos vida, até mesmo o desejo, como dizia alguns meses atrás uma estatística da CENSIS, parece ter se apagado do coração dos italianos, e nos chega, da Noruega, a terrível notícia de dois atentados com uma centena de mortos. Que tapa na cara! Da Noruega? Um dos países mais “perfeitos” do mundo, onde a honestidade e a organização social são apontadas como exemplo. Justo ali foi acontecer um fato que mexeu com todos. O desalento é grande, assim como a dor pelas vítimas e suas famílias, e no entanto não podemos ficar parados nisso, não podemos deixar de lado a necessidade de entender o que foi que ficou travado nesta máquina “perfeita”.
O que foi que travou? O homem. O coração do homem está cada vez mais cansado das contínuas trapaças a que é submetido por um poder dominante que, tendo eliminado Deus (ou tendo-O reduzido a uma ideologia), conseguiu anestesiar o homem fazendo-o acreditar que a sua vida depende do poder mesmo. Mas, esta operação, que Luigi Giussani definia como “efeito Chernobil”, não poderia durar e não durará por muito tempo, porque nunca existirá um poder no mundo capaz de fazer adormecer, até matá-lo, o coração do homem. Mesmo que na Noruega, assim como em todos os lugares do mundo, o poder seja capaz de fazer seus cidadãos acreditarem que, se vivem, é graças a ele, e ainda que estes mesmos cidadãos fiquem gratos a isso. Uma vez anestesiados, esta operação que pretende mudar a genética humana não conseguirá durar muito tempo, porque dentro de cada um de nós existe um Ícaro que não suporta ficar preso numa gaiola que o impeça de voar. 
O homem, o coração do homem, é feito para voar. Por isso, ou esta exigência encontra a sua liberdade ou se transformará numa loucura. Não é possível conter esta sede e fome de felicidade, de amor, de beleza, de verdade, de justiça que constituem o tecido do coração humano. Uma pessoa pode até maldizer estas batidas, mas não poderá deixar de prestar contas disto. E se o poder se esquece desta verdade, por mais perfeitos que sejam seus sistemas, e mesmo se o homem se esquecer, inevitavelmente chegará o momento da loucura e as consequências ficaram visíveis em Oslo. Uma loucura que pode ter como origem mesmo um cristianismo reduzido a ideologia. Quando uma pessoa não encontrou a presença de Cristo como um fato que responde plenamente às exigências da razão e do coração humano, mas uma ideia ou uma inspiração que se vale de Cristo, é inevitável que se censure a razão, o que dá origem a fanatismo e a violência. Quantos horrores se fizeram em nome de Cristo, com os quais Cristo não tem nada que ver! O cristianismo é um acontecimento verificável na sua profunda razoabilidade apenas a partir de dentro de uma realidade vivida inteiramente. Cristo precisa do homem na sua inteireza, e o homem precisa de Cristo.
Então, diante desta tragédia é preciso – para que estes irmãos não tenham morrido em vão – levar a sério o nosso coração com os seus desejos bem expressos pelo Salmo 63: “Ó Deus, Tu és o meu Deus, por Ti madrugo. A minha alma tem sede de Ti, a minha carne deseja-Te com ardor, como terra seca, esgotada e sem água” (Sl 63, 2). Ou, como nos recorda Giuseppe Ungaretti: “Trancado entre coisas mortais (mesmo o céu cheio de estrelas acabará), porque grito Deus?”. O homem é relação com o eterno, é relação com o Infinito, e se o meu coração não encontrar este Tu para o qual é feito, não haverá sistema social, por mais perfeito que seja, que será capaz de impedir que enlouqueça. Se Deus não existe, ou se for reduzido a um ídolo, a ideologia, tudo é possível. Mas, é o coração que diz que Deus existe! É o coração que grita: quero o Infinito. O poder moderno nasce prescindindo de Deus, nasce pretendendo ser Deus, ser ele aquilo de que o coração precisa, e então é inevitável que aconteçam estes tsunamis que nos fazem tremer. Os valores não são suficientes para viver, e ainda menos a pretensão de ser honestos, como há décadas, na Igreja, nos dizemos. É preciso um passo a mais, é preciso encontrar alguém cujo coração é feito, para pegar nas próprias mãos, outra vez, a própria vida. É preciso que reaconteça agora – no meio do verão, enquanto todos estão esparramados, feito frangos depenados, nas praias ou estão, feito corças, caminhando pelas montanhas – o que aconteceu a João e André, a Zaqueu, a Maria Madalena. É preciso o encontro com aquele olhar no qual o Mistério, aquilo de que é feito o coração, se fez carne. É preciso que o olhar de Cristo cruze com o nosso. Aquele olhar que nos torna conscientes de que, antes da loucura, existe o perdão, existe a misericórdia.
Foi isto que me aconteceu quando a ilusão do poder, na sua expressão ideológica, estava mastigando meu cérebro, convencido que eu era de que Cristo não fosse suficiente para livrar o homem da sua loucura, e que continua me acontecendo, enchendo-me de letícia todos os dias. A tragédia que aconteceu na Noruega interpela a responsabilidade que temos, como cristãos, dentro do mundo. A nossa experiência de Cristo é o reacontecer daquilo que aconteceu a João e André, ou é apenas um conjunto de valores, uma moral, incapaz de resistir aos desafios que o mundo moderno nos coloca? Que nos olha nestes dias, observando o nosso rosto, fica fascinado pela beleza de um olhar no qual é evidente a ternura de Cristo? É possível responder ao fanatismo religioso apenas se se mostrar, na vida cotidiana, a razoabilidade da nossa fé. Não existe nada de mais blasfemo do que definir o cristianismo como de esquerda ou de direita. O cristianismo é apenas Cristo, ou seja, o homem. Ser cristão não é acrescentar um adjetivo à palavra “homem”, mas é o nome próprio do homem, diria Giussani, daquele nível da natureza no qual a natureza toma consciência de si.
(do Il Foglio, de 26 de julho de 2011)

* Extraído da Tracce.it, do dia 26 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Os Salmos ensinam a rezar

Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro
Quarta-feira, 22 de junho de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Nas últimas catequeses, nos detivemos sobre algumas figuras do Antigo Testamento particularmente significativas para a nossa reflexão sobre a oração. Falei sobre Abraão que intercede pelas cidades estrangeiras, sobre Jacó que na luta noturna recebe a bênção, sobre Moisés que invoca o perdão para o seu povo, e sobre Elias que reza pela conversão de Isarel. Com a catequese de hoje, gostaria de começar um novo trecho do percurso: ao invés de comentar episódios particulares de personagens em oração, entraremos no “livro de oração” por excelência, o Livro dos Salmos. Nas próximas catequeses leremos e meditaremos alguns dos mais belos e caros Salmos da tradição orante da Igreja. Hoje, gostaria de introduzi-los falando do Livro dos Salmos na sua complexidade.
O Saltério se apresenta como um “formulário” de orações, uma coletânea de cento e cinquenta Salmos que a tradição bíblica dá ao povo dos crentes para que se tornem a sua, a nossa oração, o nosso modo de nos dirigir a Deus e de nos relacionar com Ele. Neste livro, encontra expressão toda a experiência humana com as suas múltiplas facetas, e toda a gama dos sentimentos que acompanham a existência do homem. Nos Salmos, se entrelaçam e se exprimem alegria e sofrimento, desejo de Deus e percepção da própria indignidade, felicidade e senso de abandono, confiança em Deus e dolorosa solidão, plenitude de vida e medo de morrer. Toda a realidade do crente conflui naquelas orações, que o povo de Israel antes e a Igreja depois assumiram como mediação privilegiada do relacionamento com o único Deus e resposta adequada para o seu revelar-se na história. Na medida em que são orações, os Salmos são manifestações do espírito e da fé, em que todos podem se reconhecer e nos quais se comunica aquela experiência de particular proximidade a Deus a que todo homem é chamado. E é toda a complexidade do existir humano que se concentra na complexidade das diversas formas literárias dos vários Salmos: hinos, lamentações, súplicas individuais e coletivas, cantos de agradecimento, salmos penitenciais, salmos sapienciais, e outros gêneros que podem ser encontrados nestas composições poéticas.
Não obstante esta multiplicidade expressiva, podem ser identificados dois grandes âmbitos que sintetizam a oração do Saltério: a súplica, ligada ao lamento, e o louvor, duas dimensões correlatas e quase incindíveis. Porque a súplica é animada pela certeza de que Deus responderá, e isto abre ao louvor e à ação de graças; e o louvor e o agradecimento brotam da experiência de uma salvação recebida, que supõe uma necessidade de ajuda que a súplica expressa.
Na súplica, o orante se lamenta e descreve a sua situação de angústia, de perigo, de desolação, ou então, como nos Salmos penitenciais, confessa a culpa, o pecado, pedindo para ser perdoado. Ele expõe ao Senhor o seu estado de necessidade na confiança de ser escutado, e isto implica um reconhecimento de Deus como bom, desejoso de bem e “amante da vida” (cf. Sab 11, 26), pronto a ajudar, salvar, perdoar. Assim, por exemplo, reza o Salmista no Salmo 31: “Junto de vós, Senhor, me refugio. Não seja eu confundido para sempre [...].Vós me livrareis das ciladas que me armaram, porque sois minha defesa” (Sal 30, 2.5). Já no lamento, portanto, pode emergir algo de louvor, que se prenuncia na esperança da intervenção divina e se faz, em seguida, explícita quando a salvação divina se torna realidade. De modo análogo, nos Salmos de agradecimento e de louvor, fazendo memória do dom recebido ou contemplando a grandeza da misericórdia de Deus, se reconhece também a própria pequenez e a necessidade de ser salvos, que está na base da súplica. Confessa-se, assim, a Deus a própria condição de criatura inevitavelmente marcada pela morte, ou então portadora de um desejo radical de vida. Por isso, o Salmista exclama, no Salmo 86: “De todo o coração eu vos louvarei, ó Senhor, meu Deus, e glorificarei o vosso nome eternamente. Porque vossa misericórdia foi grande para comigo, arrancastes minha alma das profundezas da região dos mortos” (Sal 85, 12-13). Desse modo, na oração dos Salmos, súplica e louvor se entrelaçam e se fundem num único canto que celebra a graça eterna do Senhor que se inclina sobre a nossa fragilidade.
Exatamente para permitir que o povo dos crentes se unam a este canto, o livro do Saltério foi dado a Israel e à Igreja. Os Salmos, de fato, ensinam a rezar. Neles, a Palavra de Deus se torna palavra de oração – e são as palavras do Salmista inspirado – que se torna também palavra do orante que reza os Salmos. É esta a beleza e a particularidade deste livro bíblico: as orações nele contidas, diferentemente de outras orações que encontramos na Sagrada Escritura, não são inseridas numa trama narrativa que especifica o seu sentido e função. Os Salmos são dados ao crente exatamente como texto de oração, que tem como único fim se tornar a oração de quem os assume e com eles se dirige a Deus. Visto que são a Palavra de Deus, quem reza os Salmos fala a Deus com as palavras mesmas que Deus nos deu, se dirige a Ele com as palavras que Ele mesmo nos dá. Assim, rezando os Salmos se aprende a rezar. São uma escola da oração.
Algo de análogo acontece quando a criança começa a falar, aprende a expressar as próprias sensações, emoções, necessidades com palavras que não lhe pertencem de modo inato, mas que ele aprende dos seus pais e daqueles que vivem ao seu redor. Aquilo que a criança quer expressar é o seu próprio vivido, mas o meio expressivo é de outros; e ele, aos poucos, se apropria disso, as palavras recebidas dos pais se tornam as suas palavras e através daquelas palavras aprende também um modo de pensar e de sentir, tem acesso a um mundo inteiro de conceitos, e nisso cresce, se relaciona com a realidade, com os homens e com Deus. A língua dos seus pais, finalmente, se torna a sua língua, ele fala com palavras recebidas de outros, que, a partir de então, se tornaram suas palavras. Assim, acontece com a oração dos Salmos. Eles nos foram dados para que nós aprendamos a nos dirigir a Deus, a nos comunicar com Ele, a falar-Lhe de nós com as Suas palavras, a encontrar uma linguagem para o encontro com Deus. E, através daquelas palavras, será possível também conhecer e acolher os critérios do seu agir, aproximarmo-nos do mistério dos seus pensamentos e das suas vidas (cf. Is 55, 8-9), de forma a crescer sempre mais na fé e no amor. Como as nossas palavras não são apenas palavras, mas nos ensinam um mundo real e conceitual, assim também estas orações nos ensinam o coração de Deus, de forma que não somente possamos falar com Deus, mas possamos aprender quem é Deus e, aprendendo como falar com Ele, aprendamos o ser homem, o ser nós mesmos.
A este propósito, mostra-se significativo o título que a tradição judaica deu ao Saltério. Ele se chama tehillîm, um termo hebraico que quer dizer “louvores”, daquela raiz verbal que encontramos na expressão “halleluyah”, ou seja, literalmente: “louvai o Senhor”. Este livro de orações, portanto, mesmo se assim multiforme e complexo, com os seus diversos gêneros literários e com a sua articulação entre louvor e súplica, é, em última instância, um livro de louvores, que ensina a agradecer, a celebrar a grandeza do dom de Deus, a reconhecer a beleza das suas obras e a glorificar o Seu Nome Santo. É esta a resposta mais adequada diante do manifestar-Se do Senhor e da experiência da Sua bondade. Ensinando-nos a rezar, os Salmos nos ensinam que também na desolação, mesmo na dor, a presença de Deus permanece, é fonte de maravilhamento e de consolação; é possível chorar, suplicar, interceder, lamentar-se, mas na consciência de que estamos caminhando em direção da luz, onde o louvor poderá ser definitivo. Como nos ensina o Salmo 36: “em vós está a fonte da vida, e é na vossa luz que vemos a luz” (Sal 35, 10).
Mas, além deste título geral do livro, a tradição judaica colocou em muitos Salmos títulos específicos, atribuindo-os, na sua grande maioria, ao Rei Davi. Figura de notável profundidade humana e teológica, Davi é um personagem complexo, que atravessou as mais variadas experiências fundamentais do viver. Jovem pastor do rebanho paterno, passando por alternados e às vezes dramáticos eventos, se torna rei de Israel, pastor do povo de Deus. Homem de paz, combateu muitas guerras; incansável e tenaz na busca de Deus, traiu o Seu amor, e isto é característico: permaneceu sempre em busca de Deus, mesmo se muitas vezes pecou gravemente; humilde penitente, acolheu o perdão divino, também a pena divina, e aceitou um destino marcado pela dor. Davi, assim, foi um rei, com todas a suas fraquezas, “segundo o coração de Deus” (cf. 1Sam 13, 14), ou seja, um orante apaixonado, um homem que sabia o que quer dizer suplicar e louvar. A vinculação dos Salmos com este insigne rei de Israel é, portanto, importante, porque ele é figura messiânica, Ungido do Senhor, em quem é, de algum modo, prenunciado o mistério de Cristo.
Também importantes e significativos são o modo e a frequência com a qual as palavras dos Salmos são retomadas pelo Novo Testamento, assumindo e sublinhando aquele valor profético sugerido pela vinculação do Saltério com a figura messiânica de Davi. No Senhor Jesus, que na sua vida terrena rezou com os Salmos, eles encontram o seu cumprimento definitivo e revelam o seu sentido mais pleno e profundo. As orações do Saltério, com as quais se fala a Deus, nos falam dEle, nos falam do Filho, imagem do Deus invisível (Col 1, 15), que nos revela totalmente o Rosto do Pai. O cristão, portanto, rezando os Salmos, reza ao Pai em Cristo e com Cristo, assumindo aqueles cantos numa perspectiva nova, que tem no mistério pascal a sua última chave de interpretação. O horizonte do orante se abre assim a realidades inesperadas, cada Salmo adquire uma luz nova em Cristo e o Saltério pode brilhar em toda a sua infinita riqueza. 
Irmãos e irmãs caríssimos, tomemos, portanto, nas mãos este livro santo, deixemo-nos ensinar por Deus a nos dirigirmos a Ele, façamos do Saltério um guia que nos ajude e nos acompanhe cotidianamente no caminho da oração. E peçamos, também nós, como os discípulos de Jesus, “Senhor, ensina-nos a rezar” (Lc 11, 1), abrindo o coração para acolher a oração do Mestre, em quem todas as orações chegam à realização. Assim, tornados filhos no Filho, poderemos falar a Deus chamando-O “Pai Nosso”. Obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 22 de junho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Dá-nos o dom da Tua presença, e teremos o mais belo dos dons: a Tua alegria

Capela Papal na Solenidade de Pentecostes

Homilia do Santo Padre Bento XVI

Basílica Vaticana
Domingo, 12 de junho de 2011.

Caros irmãos e irmãs,
Celebramos hoje a grande solenidade do Pentecostes. Se, em certo sentido, todas as solenidades litúrgicas da Igreja são grandes, esta do Pentecostes o é de maneira ainda mais especial, porque marca, chegado o quinquagésimo dia, a realização do evento da Páscoa, da morte e ressurreição do Senhor Jesus, através do dom do Espírito do Ressuscitado. Para o Pentecostes, a Igreja nos preparou nos dias passados com a sua oração, com a invocação repetida e intensa a Deus para obter uma renovada efusão do Espírito Santo sobre nós. A Igreja reviveu assim aquilo que aconteceu nas suas origens, quando os Apóstolos, reunidos no Cenáculo de Jerusalém, “perseveravam unanimemente na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele” (At 1, 14). Estavam unidos em humilde e confiante espera de que se realizasse a promessa do Pai comunicada a eles por Jesus: “vós sereis batizados no Espírito Santo daqui há poucos dias. [...], descerá sobre vós o Espírito Santo e vos dará força” (At 1, 5.8).
Na liturgia de Pentecostes, ao relato dos Atos dos Apóstolos sobre o nascimento da Igreja (cf. At 2, 1-11) corresponde o Salmo 103 que escutamos: um louvor de toda a criação, que exalta o Espírito Criador que tudo fez com sabedoria: “Ó Senhor, quão variadas são as vossas obras! Feitas, todas, com sabedoria, a terra está cheia das coisas que criastes. [...] Ao Senhor, glória eterna; alegre-se o Senhor em suas obras!” (Sl 103, 24.31). O que a Igreja nos quer dizer é isto: o Espírito criador de todas as coisas, e o Espírito Santo que Cristo fez descer do Pai sobre a comunidade dos discípulos, são um só e o mesmo. Criação e redenção se pertencem reciprocamente e constituem, em profundidade, um único mistério de amor e de salvação. O Espírito Santo é antes de tudo Espírito Criador e, portanto, o Pentecostes é também festa da criação. Para nós cristãos, o mundo é fruto de um ato de amor de Deus, que fez todas as coisas e do que Ele se alegra porque é “bom”, “muito bom” como diz o relagto da criação (cf. Gn 1, 1-31). Deus, por isso, não é o totalmente Outro, inominável e obscuro. Deus se revela, tem um rosto, Deus é razão, Deus é vontade, Deus é amor, Deus é beleza. A fé no Espírito Criador e a fé no Espírito que o Cristo Ressuscitado deu aos Apóstolos e dá a cada um de nós, são então inseparavelmente ligadas.
A Segunda Leitura e o Evangelho de hoje nos mostram esta conexão. O Espírito Santo é Aquele que nos faz reconhecer em Cristo o Senhor, e nos faz pronunciar a profissão de fé da Igreja: “Jesus é Senhor” (cf. 1Cor 12, 3b). Senhor é o título atribuído a Deus no Antigo Testamento, título que, na leitura da Bíblica, assumia o lugar do seu impronunciável nome. O Credo da Igreja é nada mais do que o desenvolvimento daquilo que se diz com esta simples afirmação: “Jesus é Senhor”. Desta profissão de fé São Paulo nos diz que se trata exatamente da palavra e da obra do Espírito. Se quisermos estar no Espírito Santo, devemos aderir a este Credo. Fazendo-o nosso, aceitando-o como nossa palavra, temos acesso à obra do Espírito Santo. A expressão “Jesus é Senhor” pode ser lida em dois sentidos. Significa: Jesus é Deus e, ao mesmo tempo, Deus é Jesus. O Espírito Santo ilumina esta reciprocidade: Jesus tem dignidade divina, e Deus tem o rosto humano de Jesus. Deus se mostra em Jesus e, com isso, nos dá a verdade sobre nós mesmos. Deixar-se iluminar profundamente por esta palavra é o evento do Pentecostes. Recitando o Credo, nós entramos no mistério do primeiro Pentecostes: da desordem de Babel, daquelas vozes que se chocam umas às outras, advém uma radical transformação: a multiplicidade se faz multiforme unidade, do poder unificador da Verdade cresce a compreensão. No Credo que nos une de todos os cantos da Terra, que, mediante o Espírito Santo, faz com que nos compreendamos mesmo na diversidade de línguas, através da fé, da esperança e do amor, se forma a nova comunidade da Igreja de Deus.
O trecho do Evangelho nos oferece, em seguida, uma maravilhosa imagem para esclarecer a conexão entre Jesus, o Espírito Santo e o Pai: o Espírito Santo é representado como o sopro de Jesus Cristo ressuscitado (cf. Jo 20, 22). O evangelista João retoma aqui uma imagem do relato da criação, onde se diz que Deus soprou nas narinas do homem um sopro de vida (cf. Gn 2, 7). O sopro de Deus é vida. Agora, o Senhor sopra na nossa alma o novo sopro de vida, o Espírito Santo, a sua mais íntima essência, e deste modo nos acolhe na família de Deus. Com o Batismo e a Crisma, nos é dado este dom de modo específico, e com os sacramentos da Eucaristia e da Penitência isso e repete continuamente: o Senhor sopra na nossa alma um sopro de vida. Todos os Sacramentos, cada um de maneira própria, comunicam ao homem a vida divina, graças ao Espírito Santo que opera neles.
Na liturgia de hoje percebemos também uma outra conexão. O Espírito Santo é Criador, é ao mesmo tempo Espírito de Jesus Cristo, de modo porém que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um só e único Deus. E à luz da primeira leitura podemos acrescentar: o Espírito Santo anima a Igreja. Ela não deriva da vontade humana, da reflexão, da habilidade do homem ou da sua capacidade organizativa, pois se fosse assim já teria se extinguido há muito tempo, assim como cada coisa humana passa. A Igreja, pelo contrário, é o Corpo de Cristo, animado pelo Espírito Santo. As imagens do vento e do fogo, usadas por São Lucas para representar a vinda do Espírito Santo (cf. At 2, 2-3) recordam o Sinai, onde Deus se revelou ao povo de Israel e lhe concedeu a sua aliança; “Todo o monte Sinai fumegava – lê-se no Livro do Êxodo –, porque o Senhor tinha descido sobre ele no meio de chamas” (Ex 19, 18). De fato, Israel festejou o quinquagésimo dia depois da Páscoa, depois da comemoração da fuga do Egito, como a festa do Sinai, a festa do Pacto. Quando São Lucas fala de línguas de fogo para representar o Espírito Santo, se remete àquele antigo Pacto, estabelecido sobre os fundamentos da Lei recebida por Israel no Sinai. Assim, o evento do Pentecostes é representado como um novo Sinai, como o dom de um novo Pacto no qual a aliança com Israel é estendida a todos os povos da Terra, em que caem todas as barreiras da velha Lei e fica evidente o seu coração mais santo e imutável, ou seja, o amor, que exatamente o Espírito Santo comunica e difunde, o amor que abraça cada coisa. Ao mesmo tempo, a Lei se dilata, se abre, se tornando até mesmo mais simples: é o Novo Pacto, que o Espírito “escreve” nos corações daqueles que creem em Cristo. A extensão do Pacto a todos os povos da Terra é representada por São Lucas através de uma lista dos povos consideráveis para aquela época (cf. At 2, 9-11). Com isto nos é dita uma coisa muito importante: que a Igreja é católica desde o primeiro momento, que a sua universalidade não é o fruto da inclusão sucessiva de diversas comunidades. Desde o primeiro instante, de fato, o Espírito Santo a criou como a Igreja de todos os povos; ela abraça o mundo inteiro, supera todas as fronteiras de raça, classe, nação; abate todas as barreiras e une os homens na profissão do Deus uno e trino. Desde o início, a Igreja é uma, católica e apostólica: esta é a sua verdadeira natureza e, como tal, deve ser reconhecida. Ela é santa, não graças à capacidade dos seus membros, mas porque Deus mesmo, com o seu Espírito, a cria, a purifica e a santifica sempre.
Finalmente, o Evangelho de hoje nos consigna esta belíssima expressão: “Os discípulos se alegraram ao ver o Senhor” (Jo 20, 20). Estas palavras são profundamente humanas. O Amigo perdido está presente de novo, e quem antes estava chateado se alegra. Mas, ela diz muito mais do que isso. Porque o Amigo perdido não vem de um lugar qualquer, mas da noite da morte; e Ele a atravessou! Ele não é um qualquer, mas é o Amigo e ao mesmo tempo Aquele que é a Verdade que faz os homens viverem; e aquilo que dá não é uma alegria qualquer, mas a alegria mesma, dom do Espírito Santo. Sim, é belo viver porque sou amado, e é a Verdade que me ama. Alegraram-se os discípulos, vendo o Senhor. Hoje, no Pentecostes, esta expressão é destinada também a nós, porque na fé podemos vê-Lo; na fé Ele vem entre nós e também a nós mostra as mãos e o lado, e nós nos alegramos. Por isso, queremos rezar: Senhor, mostra-Te! Dá-nos o dom da Tua presença, e teremos o mais belo dos dons: a Tua alegria. Amém!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 12 de junho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Resposta Católica

Acabo de descobrir um site espetacular: Resposta Católica. Nele, estão disponíveis centenas de livros, textos e vídeos de altíssimo nível, sobre os mais variados temas... sempre a partir de uma perspectiva católica... de verdade! Aproveitem!

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Família: pequeno Cenáculo de unidade, comunhão e oração

Viagem Apostólica à Croácia
(4 e 5 de junho de 2011)

Santa Missa por ocasião
da Jornada Nacional das Famílias Católicas Croatas

Homilia do Papa Bento XVI

Hipódromo de Zagreb
Domingo, 5 de junho de 2011

Amados irmãos e irmãs!
Nesta Santa Missa que tenho a alegria de presidir, concelebrando com numerosos irmãos no episcopado e com um grande número de sacerdotes, agradeço ao Senhor por todas as queridas famílias aqui reunidas e por muitas outras que estão unidas conosco através do rádio e da televisão. O meu agradecimento particular ao Cardeal Josip Bozanić, Arcebispo de Zagreb, pelas palavras que me dirigiu no início da Santa Missa. A todos dirijo a minha saudação e exprimo a minha grande estima com um abraço de paz.
Celebramos há pouco a Ascensão do Senhor e preparamo-nos para receber o grande dom do Espírito Santo. Vimos, na primeira leitura, como a comunidade apostólica se reunira em oração no Cenáculo com Maria, a Mãe de Jesus (cf. At 1, 12-14). Este é um retrato da Igreja cujas raízes assentam no evento pascal: de fato, o Cenáculo é o lugar onde Jesus instituiu a Eucaristia e o Sacerdócio na Última Ceia, e onde, ressuscitado dos mortos, derramou o seu Espírito sobre os Apóstolos ao entardecer do dia de Páscoa (cf. Jo 20, 19-23). O Senhor ordenara aos seus discípulos que “não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem a Promessa do Pai” (At 1, 4), isto é, pedira que permanecessem juntos preparando-se para receber o dom do Espírito Santo. E eles se reuniram em oração com Maria no Cenáculo à espera do acontecimento prometido (At 1, 14). Permanecer juntos foi a condição que Jesus pôs para acolherem a vinda do Paráclito, e a prolongada oração foi o pressuposto da sua concórdia. Aqui encontramos uma lição estupenda para cada comunidade cristã. Às vezes pensa-se que a eficácia missionária dependa principalmente de uma cuidadosa programação e da sua realização inteligente através de um compromisso concreto. O Senhor pede certamente a nossa colaboração, mas, antes de qualquer resposta da nossa parte, é necessária a sua iniciativa: o verdadeiro protagonista é o seu Espírito, que se deve invocar e acolher.
No Evangelho, ouvimos a primeira parte da chamada “oração sacerdotal” de Jesus (cf. Jo 17, 1-11a) – depois dos discursos de despedida – repleta de familiaridade, ternura e amor. Designa-se “oração sacerdotal”, porque nela Jesus aparece na atitude de sacerdote que intercede pelos seus, quando está para deixar este mundo. Predomina no texto um duplo tema: o da hora e o da glória. Trata-se da hora da morte (cf. Jo 2, 4; 7, 30; 8, 20), a hora em que o Filho deve passar deste mundo para o Pai (Jo 13, 1); mas ao mesmo tempo é também a hora da sua glorificação que se realiza através da cruz, designada pelo evangelista João como “exaltação”, isto é, levantamento, elevação à glória: a hora da morte de Jesus, a hora do amor supremo, é a hora da sua glória mais alta. Também para a Igreja, para cada cristão, a glória mais alta é aquela Cruz, é viver a caridade, dom total a Deus e aos outros.
Amados irmãos e irmãs! De bom grado acolhi o convite que me fizeram os Bispos da Croácia para visitar este país por ocasião do primeiro Encontro Nacional das Famílias Católicas Croatas. Desejo exprimir vivo apreço pela vossa solicitude e empenho a favor da família, não só porque esta realidade humana fundamental tem hoje no vosso país, como em outros lugares, de enfrentar dificuldades e ameaças e, por conseguinte, precisa particularmente de ser evangelizada e sustentada, mas também porque as famílias cristãs são um recurso decisivo para a educação na fé, para a edificação da Igreja como comunhão e para a sua presença missionária nas mais diversas situações da vida. Conheço a generosidade e dedicação com que vós, queridos Pastores, servis o Senhor e a Igreja. O vosso trabalho diário, tanto na formação da fé das novas gerações como na preparação para o matrimônio e no acompanhamento das famílias, é o caminho fundamental para regenerar incessantemente a Igreja e também para vivificar o tecido social do país. Possa este precioso serviço pastoral continuar a contar com a vossa disponibilidade!
Cada um bem sabe como a família cristã é um sinal especial da presença e do amor de Cristo e como está chamada a dar uma contribuição específica e insubstituível para a evangelização. O Beato João Paulo II, que visitou três vezes este nobre país, afirmava que “a família cristã é chamada a tomar parte viva e responsável na missão da Igreja de modo próprio e original, colocando-se ao serviço da Igreja e da sociedade no seu ser e agir, enquanto comunidade íntima de vida e de amor” (Familiaris consortio, 50). A família cristã foi sempre a primeira via de transmissão da fé e ainda hoje conserva grandes possibilidades para a evangelização em muitos âmbitos.
Queridos pais, empenhai-vos sempre em ensinar os vossos filhos a rezar, e rezai com eles; aproximai-os dos Sacramentos, especialmente da Eucaristia (este ano, celebrais seis séculos do “milagre eucarístico de Ludberg”); introduzi-os na vida da Igreja; na intimidade doméstica, não tenhais medo de ler a Sagrada Escritura, iluminando a vida familiar com a luz da fé e louvando a Deus como Pai. Sede uma espécie de Cenáculo em miniatura, como o de Maria e dos discípulos, onde se vive a unidade, a comunhão, a oração.
Hoje, graças a Deus, muitas famílias cristãs vão adquirindo cada vez maior consciência da sua vocação missionária, e comprometem-se seriamente dando testemunho de Cristo Senhor. O Beato João Paulo II fez questão de salientar: “Uma família autêntica, fundada no matrimônio, é em si mesma uma 'boa notícia' para o mundo”. E acrescentou: “No nosso tempo, são cada vez mais numerosas as famílias que colaboram ativamente na evangelização (…). Amadureceu na Igreja a hora da família, que é também a hora da família missionária” (Angelus, 21 de outubro de 2001).
Na sociedade atual, é muito necessária e urgente a presença de famílias cristãs exemplares. Infelizmente temos de constatar, sobretudo na Europa, o aumento de uma secularização que leva a deixar Deus à margem da vida e a uma crescente desagregação da família. Absolutiza-se uma liberdade sem compromisso com a verdade, e cultiva-se como ideal o bem-estar individual através do consumo de bens materiais e de experiências efêmeras, descuidando a qualidade das relações com as pessoas e os valores humanos mais profundos; reduz-se o amor a mera emoção sentimental e à satisfação de impulsos instintivos, sem empenhar-se por construir laços duradouros de mútua pertença e sem abertura à vida. Somos chamados a contrastar esta mentalidade. A par da palavra da Igreja, é muito importante o testemunho e o compromisso das famílias cristãs, o seu testemunho concreto, sobretudo para afirmar a intangibilidade da vida humana desde a concepção até ao seu fim natural, o valor único e insubstituível da família fundada no matrimônio e a necessidade de disposições legislativas que sustentem as famílias na sua tarefa de gerar e educar os filhos.
Queridas famílias, sede corajosas! Não cedais à mentalidade secularizada que propõe a convivência como preparação ou mesmo substituição do matrimônio. Mostrai com o vosso testemunho de vida que é possível amar, como Cristo, sem reservas, que não é preciso ter medo de assumir um compromisso com outra pessoa. Queridas famílias, alegrai-vos com a paternidade e a maternidade! A abertura à vida é sinal de abertura ao futuro, de confiança no futuro, tal como o respeito da moral natural, antes que mortificar a pessoa, liberta-a. O bem da família é igualmente o bem da Igreja. Quero repetir aqui o que disse um dia: “A edificação de cada uma das famílias cristãs situa-se no contexto daquela família mais ampla que é a Igreja, a qual a sustenta e leva consigo. (…) E, vice-versa, a Igreja é edificada pelas famílias, pequenas Igrejas domésticas” (Discurso de abertura do Congresso eclesial diocesano de Roma, 6 de junho de 2005: Insegnamenti di Benedetto XVI, vol. I, 2005, p. 205). Peçamos ao Senhor que cada vez mais as famílias se tornem pequenas Igrejas e as comunidades eclesiais sejam cada vez mais família.
Queridas famílias croatas, vivendo na comunhão de fé e caridade, sede testemunhas de maneira sempre mais transparente da promessa que o Senhor, ao subir ao Céu, fez a cada um de nós: “Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos” (Mt 28, 20). Amados cristãos croatas, senti-vos chamados a evangelizar com toda a vossa vida; senti intensamente a palavra do Senhor: “Ide, pois, fazer discípulos de todas as nações” (Mt 28, 19). A Virgem Maria, Rainha dos Croatas, vele incessantemente sobre este vosso caminho. Amém. Louvados sejam Jesus e Maria!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 5 de junho de 2011. Revisado por Paulo R. A. Pacheco.