segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Igreja deve se "desmundanizar"...



Encontro com os católicos comprometidos com a Igreja e a sociedade

Discurso do Papa Bento XVI 

Freiburg, Konzerthaus
Domingo, 25 de setembro de 2011.

Caros confrades no ministério episcopal e sacerdotal!
Senhoras e Senhores!
Estou feliz com este encontro convosco que sois comprometidos de múltiplas maneiras com a Igreja e a sociedade. Isto me oferece uma ocasião especial para vos agradecer, aqui, pessoalmente, de todo o meu coração, por vosso serviço e vosso testemunho como “valorosos arautos da fé naquelas realidades que esperamos” (Lumen gentium, n. 35). Dessa maneira, o Concílio Vaticano II designa as pessoas que, como vós, se preocupam com o presente e o futuro da fé. No vosso meio de trabalho vós defendeis a causa da vossa fé e da Igreja, como sabemos, o que não é nada fácil nesses tempos atuais.
Há décadas, assistimos a uma diminuição da prática religiosa, constatamos um crescente distanciamento da vida da Igreja por uma parte notável de batizados. Eis então a pergunta: será que, por acaso, a Igreja não deveria mudar? Será que, por acaso, em seus serviços e estruturas, ela não deveria se adaptar ao tempo presente, para alcançar as pessoas de hoje que estão a procura e em dúvida?
Um dia, perguntaram à Beata Madre Teresa de Calcutá qual deveria ser, segundo ela, a primeira coisa a ser modificada na Igreja. Sua resposta foi: você e eu!
Este pequeno episódio evidencia duas coisas. De um lado, a religiosa quer dizer a seu interlocutor que a Igreja não é unicamente os outros, a hierarquia, o Papa e os Bispos; a Igreja somos todos nós: nós, os batizados. Além do mais, ela parte efetivamente do pressuposto: sim, há motivo para uma mudança. Há a necessidade de uma mudança. Cada cristão e a comunidade dos crentes no seu conjunto são chamados a uma conversão contínua.
Como deve se configurar concretamente esta mudança? Será que se trata de uma renovação tal como, por exemplo, o proprietário de uma casa realiza através da reestruturação ou de uma nova pintura de seu imóvel? Ou será que se trata de uma correção, para retornar aos trilhos ou percorrer um caminho de maneira mais alegre e direta? Estes aspectos e outros mais certamente têm sua importância, e não é o caso de levar todos em consideração neste momento. Mas, quanto àquilo que diz respeito ao motivo fundamental da mudança, trata-se de uma missão apostólica dos discípulos e da própria Igreja.
Com efeito, a Igreja sempre deve verificar sua fidelidade a esta missão. Os três evangelhos sinóticos realçam diferentes aspectos do mandato desta missão: a missão se fundamenta, inicialmente, sobre a experiência pessoal – “Vós sois testemunhas” (Lc 24, 48); ela se exprime em relação – “Fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28, 19); ela transmite uma mensagem universal – “Proclamai o Evangelho a toda a criação” (Mc 16, 15). No entanto, por causa das pretensões e dos condicionamentos do mundo, este testemunho é cada vez mais obscurecido, as relações são alienadas e a mensagem é relativizada. Se, logo em seguida, a Igreja, como o diz o Papa Paulo VI, “procura modelar-se em conformidade com o tipo proposto por Cristo, não poderá deixar de distinguir-se profundamente do ambiente humano, em que afinal vive ou do qual se aproxima” (Encíclica Ecclesiam suam, n. 34). Para realizar sua missão, ela deverá continuamente se distanciar de seu meio, se “desmundanizar” por assim dizer.
A missão da Igreja, com efeito, brota do mistério do Deus uno e trino, do mistério de seu amor criador. E o amor não apenas está presente de qualquer forma em Deus: Ele é amor; por Sua natureza, Ele é amor. E o amor divino não quer ser apenas para si, quer se derramar em conformidade com sua natureza. Na encarnação e no sacrifício do Filho de Deus, o amor alcançou a humanidade de maneira particular. E foi da seguinte maneira: o Cristo, o Filho de Deus, saiu da esfera de seu ser Deus, Ele se fez carne e Se tornou homem; e isto não apenas para confirmar o mundo no seu ser terrestre, e partilhar Sua condição que – a deixando imutável – a transforma. Do evento crístico faz parte o fato incompreensível que existe – como dizem os Padres da Igreja – um sacrum commercium, uma troca entre Deus e os homens. Os Padres a explicam desta maneira: não temos nada para dar a Deus, só podemos Lhe apresentar nossos pecados. Ele os aceita e os faz Seus, e Ele nos dá a si mesmo e à Sua glória em troca. Este é, verdadeiramente, um comércio desigual que se desenrola na vida e nos sofrimentos de Cristo. Ele se torna pecador, se encarrega do pecado; Ele toma aquilo que é nosso e nos dá aquilo que é Seu. Mas, continuando a refletir e a viver na fé, torna-se evidente que nós não Lhe damos apenas o pecado, mas que Ele nos autoriza, Ele nos dá uma força interior para Lhe dar igualmente algo positivo: nosso amor Lhe dá, de maneira positiva, a humanidade. É claro, naturalmente, que é somente graças à bondade de Deus, que o homem, o mendigo, recebe a riqueza divina, que Deus pode dar qualquer coisa, que Deus torna nossa oferta aceitável nos tornando capazes de ser, para Ele, oferentes. 
A Igreja se conforma totalmente com este comércio desigual. Ela não possui nada por ela mesma diante dAquele que a fundou, de sorte que ela poderia dizer: Fizemos isto muito bem! Seu sentido consiste em ser um instrumento da redenção, deixar-se penetrar pela palavra de Deus e transformar o mundo introduzindo-o na união de amor com Deus. A Igreja imerge na atenção complacente do Redentor pelos homens. Ela está lá onde ela é ela mesma, sempre em movimento, colocando-se continuamente a serviço da missão, que ela recebeu do Senhor. É por isto que ela deve sempre se abrir às preocupações do mundo – ao qual ela pertence –, consagrar-se sem reservas a estas preocupações, para continuar e tornar presente o comércio sagrado que teve início com a Encarnação.
No entanto, no desenvolvimento histórico da Igreja se manifesta também uma tendência contrária: é a de uma Igreja que se satisfaz consigo mesma, que se instala neste mundo, que é autossuficiente e se adapta aos critérios do mundo. Muito frequentemente, ela dá à organização e à institucionalização uma importância maior do que a seu apelo à abertura para Deus, que tem a esperança do mundo para o outro.
Para corresponder à sua verdadeira tarefa, a Igreja deve sempre se esforçar por se destacar de sua “mundanidade” para se abrir a Deus. Desta forma, ela segue as palavras de Jesus: “Eles não são deste mundo, como eu não sou deste mundo” (Jo 17, 16), e é assim que ela se dá ao mundo. Num certo sentido, a história vem em socorro da Igreja, através dos diversos períodos de secularização, que contribuíram, de modo essencial, para a sua purificação e para a sua reforma interior.
Com efeito, a secularização – que foram a expropriação dos bens da Igreja ou a supressão dos privilégios ou de coisas parecidas – significaram, a cada vez, uma profunda libertação da Igreja das formas de “mundanidade”: ela se despoja, por assim dizer, de sua riqueza terrestre e volta para abraçar plenamente sua pobreza terrestre. Assim, a Igreja partilha o destino da tribo de Levi que, segundo a afirmação do Antigo Testamento, era a única tribo em Israel que não possuía patrimônio terrestre, mas que havia tomado exclusivamente a Deus, Sua palavra e Seus sinais como parte da herança. Como esta tribo, a Igreja partilhava nesses momentos históricos a exigência de uma pobreza que se abria para o mundo, para se desligar de seus vínculos materiais, e assim seu agir missionário voltava a ser igualmente credível. 
Os exemplos históricos mostram que o testemunho missionário de uma Igreja “desmundanizada” é mais claro. Libertada do fardo e dos privilégios materiais e políticos, a Igreja pode se consagrar melhor e de maneira verdadeiramente cristã ao mundo inteiro; ela pode ser verdadeiramente aberta ao mundo. Ela pode, de novo, viver com mais facilidade seu chamado ao ministério de adoração a Deus e de serviço ao próximo. A tarefa missionária que está ligada à adoração cristã, e que deveria determinar a estrutura da Igreja, se torna visível mais claramente. A Igreja se abre ao mundo não para obter a adesão dos homens a uma instituição com suas próprias pretensões de poder, mas para fazê-los entrar em si mesmos e, dessa maneira, conduzi-los Àquele de quem todas as pessoas podem dizer com Agostinho: Ele é mais íntimo de mim do que eu mesmo (cf. Conf. 3, 6, 11). Ele, que é infinitamente acima de mim, está de tal forma em mim até ao ponto de ser a minha verdadeira interioridade. Por este estilo de abertura da Igreja ao mundo, é traçada, ao mesmo tempo, a forma na qual a abertura para o mundo por parte de cada cristão pode se realizar de maneira eficaz e apropriada.
Não se trata, aqui, de encontrar uma nova estratégia para ressuscitar a Igreja. Trata-se muito mais de deixar de lado tudo aquilo que é unicamente tático, e buscar a plena sinceridade, que não negligencia nem reprime nada da verdade de nosso hoje, mas que a realiza plenamente no hoje, vivendo-a justamente, totalmente na sobriedade do hoje, levando-a à sua plena identidade, tirando dela aquilo que é somente aparência de fé, mas que, na verdade, é apenas convenção e hábito.
Digamos com outras palavras: a fé cristã é sempre, para o homem, um escândalo, e isto não é apenas no nosso tempo. Que o Deus eterno se preocupe conosco, seres humanos, que Ele nos conheça; que o Inapreensível tenha se tornado, num determinado momento, apreensível; que o Imortal tenha sofrido e morrido numa cruz; que para nós, seres mortais, sejam prometidas a ressurreição e a vida eterna – acreditar em tudo isto é, para os homens, uma verdadeira exigência. 
Este escândalo, que não pode ser abolido se não se quiser abolir o cristianismo, foi, infelizmente, colocado à sombra, recentemente, por outros escândalos dolorosos que envolveram os anunciadores da fé. Uma situação perigosa é criada quando esses escândalos tomam o lugar do skandalon primeiro da Cruz e, desta forma, o tornam inacessível, quer dizer, quando eles escondem a verdadeira exigência cristã por trás da inadequação de seus mensageiros.
Há uma razão a mais para acreditar novamente atual a retomada da verdadeira “desmundanização”, de arrancar corajosamente aquilo que há de “mundano” da Igreja. Naturalmente, isto não significa se retirar do mundo, muito pelo contrário. Uma Igreja aliviada dos elementos “mundanos” é capaz de comunicar aos homens – àqueles que sofrem e àqueles que os ajudam – justamente também na esfera sócio-caritativa, a força vital particular da fé cristã. “A caridade não é, para a Igreja, uma espécie de atividade de assistência social que se poderia também deixar para outras pessoas, mas ela pertence à sua natureza mesma, ela é uma expressão de sua essência, à qual ela não pode renunciar” (Deus caritas est, n. 25). Certamente, as obras caritativas da Igreja devem também continuamente prestar atenção às exigências de um distanciamento apropriado do mundo para evitar que, diante de um afastamento crescente da Igreja, suas raízes não sequem. Somente a relação profunda com Deus torna possível uma plena atenção ao homem, da mesma forma que sem a atenção ao próximo a relação com Deus empobrece.
Ser abertos aos acontecimentos do mundo significa, portanto, para a Igreja “desmundanizada”, testemunhar, segundo o Evangelho, o domínio do amor de Deus, em palavras e ações, aqui e agora. E além do mais, esta tarefa vai para além do mundo presente. Com efeito, a vida presente inclui o vínculo com a vida eterna. Como indivíduos, e como comunidade da Igreja, vivemos a simplicidade de um grande amor que, no mundo, é ao mesmo tempo a coisa mais fácil e a mais difícil, porque ela exige nada mais nada menos do que o dom de si mesmo.
Caros amigos, resta-me apenas implorar para nós todos a bênção de Deus e a força do Espírito Santo, para que possamos, cada um no seu próprio campo de ação, reconhecer sempre outra vez o amor de Deus e Sua misericórdia e testemunhar isso. Agradeço-vos a atenção.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 25 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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