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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

A memória se torna força da esperança


Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro

Quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Hoje, gostaria de meditar convosco um Salmo que resume toda a história da salvação de que o Antigo Testamento nos dá testemunho. Trata-se de um grande hino de louvor que celebra o Senhor nas múltiplas, repetidas manifestações da Sua bondade ao longo da história dos homens; é o Salmo 136 – ou 135 segundo a tradição greco-latina.
Oração solene de ação de graças, conhecido como o “Grande Hallel”, este Salmo é tradicionalmente cantado ao final da ceia pascal hebraica e, provavelmente, foi rezado também por Jesus na última Páscoa celebrada com os discípulos; a ele, de fato, parece se referir a anotação dos Evangelistas: “Depois de ter cantado o hino, saíram para o monte das Oliveiras” (cf. Mt 26, 30; Mc 14, 26). O horizonte do louvor ilumina assim a difícil estrada do Gólgota. Todo o Salmo 136 se desenrola em forma de uma litania, marcada pela repetição antifonal “porque eterno é Seu amor”. Ao longo da composição, são enumerados os muitos prodígios de Deus na história dos homens e Suas contínuas intervenções em favor de Seu povo; e a cada proclamação da ação salvífica do Senhor a antífona responde com a motivação fundamental do louvor: o amor eterno de Deus, um amor que, segundo o termo hebraico utilizado, implica fidelidade, misericórdia, bondade, graça, ternura. É este o motivo unificante de todo o Salmo, repetido de forma sempre igual, enquanto mudam as suas manifestações pontuais e paradigmáticas: a criação, a libertação do êxodo, o dom da terra, a ajuda providente e constante do Senhor para com Seu povo e cada criatura.
Depois de um tríplice convite à ação de graças ao Deus soberano (vv. 1-3), celebra-se o Senhor como Aquele que realiza “maravilhosos prodígios” (v. 4), o primeiro dos quais é a criação: o céu, a terra, os astros (vv. 5-9). O mundo criado não é um simples cenário sobre o qual se insere a ação salvífica de Deus, mas é o início mesmo daquela ação maravilhosa. Com a criação, o Senhor se manifesta em toda a Sua bondade e beleza, compromete-se com a vida, revelando uma vontade de bem da qual brota cada um dos atos de salvação. E no nosso Salmo, ecoando o primeiro capítulo do Gênesis, o mundo criado é sintetizado no seus elementos principais, insistindo particularmente nos astros, no sol, na lua, nas estrelas, criaturas magníficas que governam o dia e a noite. Não se fala aqui da criação do ser humano, mas ele está sempre presente; o sol e a lua são para ele – para o homem – para marcar o tempo do homem, colocando-o em relação com o Criador, sobretudo através das indicações dos tempos litúrgicos.
E é exatamente a festa da Páscoa que é evocada logo depois, quando, passando para a manifestação de Deus na história, começa-se evocando o grande evento da libertação da escravidão egípcia, do êxodo, traçado a partir de seus elementos mais significativos: a libertação do Egito com a chaga dos primogênitos egípcios, a saída do Egito, a passagem pelo Mar Vermelho, o caminho no deserto até a entrada na terra prometida (vv. 10-20). Estamos no momento originário da história de Israel. Deus interveio com poder para levar o Seu povo para a liberdade; através de Moisés, Seu enviado, impôs-Se ao faraó revelando-Se em toda a Sua grandeza e, finalmente, dobrou a resistência dos egípcios com o terrível flagelo da morte dos primogênitos. Assim, Israel pôde deixar o país da escravidão, com o ouro de seus opressores (cf. Ex 12, 35-36), “com as mãos levantadas” (Ex 14, 8), no sinal exultante da vitória. Também no Mar Vermelho o Senhor agiu com potência misericordiosa. Diante de um Israel assustado com a vista dos egípcios que o perseguiam, a ponto de lamentar haver deixado o Egito (cf. Ex 14, 10-12), Deus, como diz o nosso Salmo, “dividiu em dois o mar Vermelho [...], fez passar Israel pelo meio dele [...], precipitou no mar Vermelho o faraó e seu exército” (vv. 13-15). A imagem do Mar Vermelho “dividido” em dois parece evocar a ideia do mar como um grande monstro que é cortado em dois pedaços e, assim, tornado inofensivo. O poder do Senhor vence o perigo das forças das natureza e daqueles militares: o mar, que parece impedir o caminho do povo de Deus, deixa Israel passar de pés enxutos e, em seguida, se derrama sobre os egípcios derrubando-os. “A mão poderosa e o braço forte” (cf. Dt 5, 15; Dt 7, 19; Dt 26, 8) se mostram, dessa maneira, em toda a sua força salvífica: o opressor injusto foi vencido, engolido pelas águas, enquanto que o povo de Deus “passa pelo meio” para continuar o seu caminho em direção à liberdade. 
Neste ponto, o nosso Salmo faz referência a este caminho, com uma frase brevíssima, recordando a longa peregrinação de Israel para a terra prometida: “conduziu Seu povo através do deserto, porque eterno é Seu amor” (v. 16). Estas poucas palavras encerram uma experiência de quarenta anos, um tempo decisivo para Israel que, deixando-se guiar pelo Senhor, aprende a viver de fé, na obediência e na docilidade à lei de Deus. São anos difíceis, marcados pela dureza da vida no deserto, mas também anos felizes, de confiança no Senhor, de confiança filial; é o tempo da “juventude”, como é definido pelo profeta Jeremias, falando a Israel, em nome do Senhor, com expressões cheias de ternura e de nostalgia: “Lembro-me de tua afeição quando eras jovem, de teu amor de noivado, no tempo em que me seguias ao deserto, à terra sem sementeiras” (Jr 2, 2). O Senhor, como o pastor do Salmo 23 que contemplamos numa de nossas catequeses, por quarenta anos guiou o Seu povo, o educou e amou, conduzindo-o até a terra prometida, vencendo mesmo as resistências e a hostilidade de povos inimigos que querias impedir o seu caminho de salvação (cf. vv. 17-20).
No desenrolar-se das “grandes maravilhas” que o nosso Salmo enumera, chega-se assim ao momento do dom final, a realização da promessa divina feita aos Pais: “e deu a terra deles em herança, porque eterno é Seu amor; como patrimônio de Israel, Seu servo, porque eterno é Seu amor” (vv. 21-22). Na celebração do amor eterno do Senhor, nesse momento se faz memória do dom da terra, um dom que o povo deve receber sem nunca se apossar dela, vivendo continuamente numa postura de acolhida reconhecida e grata. Israel recebe o território no qual poderá habitar como “herança”, um termo que designa de modo genérico a posse de um bem recebido de outro, um direito de propriedade que, de modo específico, faz referência ao patrimônio paterno. Uma das prerrogativas de Deus é de “doar”; e agora, no fim do caminho do êxodo, Israel, destinatário do dom, como um filho, entra no país da promessa realizada. É terminado o tempo do nomadismo, sob tendas, numa vida marcada pela precariedade. Agora tem início o tempo feliz da estabilidade, da alegria de construir as casas, de plantar as vinhas, de viver na segurança (cf. Dt 8, 7-13). Mas é também o tempo da tentação da idolatria, da contaminação com os pagãos, da autosuficiência que faz esquecer a Origem do dom. Por isso, o Salmista menciona a humilhação e os inimigos, uma realidade de morte na qual o Senhor, uma vez mais, Se revela como Salvador: “Em nossa humilhação Ele se lembrou de nós, porque eterno é Seu amor; e nos livrou de nossos inimigos, porque eterno é Seu amor” (vv. 23-24).
Neste ponto nasce a pergunta: como podemos fazer deste Salmo uma oração nossa? Como podemos nos apropriar, para a nossa oração, deste Salmo? O importante é o contexto do Salmo, apresentado no início e no fim: a criação. Retornaremos sobre este ponto: a criação, como o grande dom de Deus do qual vivemos, no qual Ele se revela na Sua bondade e grandeza. Portanto, ter presente a criação como dom de Deus é um ponto comum para todos nós. Depois, segue a história da salvação. Naturalmente, podemos dizer: esta libertação do Egito, o tempo no deserto, a entrada na Terra Santa e depois todos os outros problemas, estão muito distantes de nós, não são a nossa história. Mas temos que ficar atentos à estrutura fundamental desta oração. A estrutura fundamental é que Israel se recorda da bondade do Senhor. Nesta história há tantos vales tenebrosos, há tantas passagens de dificuldade e de morte, mas Israel se recorda que Deus era bom e que pode sobreviver neste vale tenebroso, neste vale de morte, porque se recorda. Há a memória da bondade do Senhor, do Seu poder; a Sua misericórdia vale para sempre. E isto é importante também para nós: ter uma memória da bondade do Senhor. A memória se torna força da esperança. A memória nos diz: Deus existe, Deus é bom, eterna é a Sua misericórdia. E assim a memória abre, mesmo na obscuridade de um dia, de um tempo, o caminho para o futuro: é luz e estrela que nos guia. Também nós temos uma memória do bem, do amor misericordioso, eterno de Deus. A história de Israel é uma memória também para nós, como Deus se mostrou, criou um povo para Si. Depois, Deus se fez homem, um de nós: viveu conosco, sofreu conosco, morreu por nós. Permanece conosco no Sacramento e na Palavra. É uma história, uma memória da bondade de Deus que nos assegura a Sua bondade: o Seu amor é eterno. E também, mesmo nestes dois mil anos da história da Igreja, sempre há, uma vez mais, a bondade do Senhor. Depois do período obscuro da perseguição nazista e comunista, Deus nos libertou, mostrou que é bom, que tem força, que a Sua misericórdia vale para sempre. E, como na história comum, coletiva, está presente esta memória da bondade de Deus, que nos ajuda, se torna estrela da esperança para nós, assim também cada um de nós tem a sua história pessoal de salvação, e temos realmente que estimar esta história, ter sempre presente a memória das grandes coisas que fez também na minha vida, para ter confiança: a Sua misericórdia é eterna. E se hoje eu estou na noite escura, amanhã Ele me liberta porque eterno é Seu amor.
Voltemos ao Salmo, porque, no fim, ele retorna à criação. O Senho – é assim que diz – “dá alimento a todos os seres vivos, porque eterno é Seu amor” (v. 25). A oração do Salmo se conclui com um convite ao louvor: “Louvai o Deus do céu, porque eterno é Seu amor”. O Senhor é Pai bom e providente, que dá a herança aos Seus filhos e concede a todos o alimento para viver. O Deus que criou os céus e a terra e as grandes luzes celestes, que entra na história dos homens para levar à salvação todos os Seus filhos é o Deus que enche o universo com a Sua presença de bem, cuidando da vida e dando o pão. A invisível potência do Criador e Senhor cantada no Salmo se revela na pequena visibilidade do pão que nos dá, com o qual nos faz viver. E assim este pão cotidiano simboliza e sintetiza o amor de Deus como Pai, e nos abre para a realização neotestamentária, para aquele “pão da vida”, a Eucaristia, que nos acompanha na nossa existência de crentes, antecipando a alegria definitiva do banquete messiânico no Céu.
Irmãos e irmãs, o louvor bendito do Salmo 136 nos fez repercorrer as etapas mais importantes da história da salvação, até chegar ao mistério pascal, no qual a ação salvífica de Deus chega ao seu ponto alto. Com alegria cheia de reconhecimento celebremos portanto o Criador, Salvador e Pai fiel, que “de tal modo amou o mundo, que lhe deu Seu Filho unigênito, para que todo o que nEle crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16). Na plenitude dos tempos, o Filho de Deus se faz homem para dar a vida, para a salvação de cada um de nós, e Se dá como pão no mistério eucarístico para fazer-nos entrar na Sua aliança que nos torna filhos. Para isso, alcança-nos a bondade misericordiosa de Deus e a sublimidade do Seu “amor eterno”.
Quero, por isso, concluir esta catequese fazendo minhas as palavras que São João escreve na sua Primeira Carta e que devemos sempre ter presentes na nossa oração: “Considerai com que amor nos amou o Pai, para que sejamos chamados filhos de Deus. E nós o somos de fato” (1Jo 3, 1). Obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 19 de outubro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Na oração, permanecer abertos à esperança e firmes na fé em Deus


Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro
Quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Nas catequeses anteriores meditamos sobre alguns Salmos de lamento e de confiança. Hoje gostaria de refletir convosco sobre um Salmo das noites de festa, uma oração que, na alegria, canta as maravilhas de Deus. É o Salmo 126 – segundo a numeração greco-latina é o 125 –, que celebra as grandes coisas que o Senhor operou com o seu povo e que continuamente opera com cada crente.
O Salmista, em nome de toda Israel, começa a sua oração recordando a experiência da salvação:
“Quando o Senhor reconduzia os cativos de Sião, estávamos como sonhando. Em nossa boca só havia expressões de alegria, e em nossos lábios canto de triunfo.” (vv. 1-2a).
O Salmo fala de uma “recondução”, ou seja de uma sorte restituída ao estado original, em toda a sua positividade anterior. Parte-se, portanto, de uma situação de sofrimento e de necessidade à qual Deus responde operando salvação e levando o orante de volto à condição inicial, enriquecida e mudada para melhor. É o que acontece com Jó, quando o Senhor lhe dá de volta tudo o que havia perdido, duplicando e derramando uma bênção ainda maior (cf. 42, 10-13), e é o que experimenta o povo de Israel voltando para a pátria vindo do exílio na Babilônia. É exatamente em referência ao fim da deportação em terra estrangeira que este Salmo é interpretado: a expressão “reconduzir os cativos de Sião” é lida e compreendida pela tradição como um “fazer retornar os prisioneiros de Sião”. Com efeito, o retorno do exílio é paradigma de toda intervenção divina de salvação, porque a queda de Jerusalém e a deportação para a Babilônia foram uma experiência devastante para o povo eleito, não apenas no plano político e social, mas também e sobretudo no plano religioso e espiritual. A perda da terra, o fim da monarquia davídica e a destruição do Templo são vistos como uma negação das promessas divinas, e o povo da aliança, disperso entre os pagãos, se interroga dolorosamente sobre um Deus que parece tê-lo abandonado. Por isso, o fim da deportação e o retorno para a pátria são experimentados como um maravilhoso retorno à fé, à confiança, à comunhão com o Senhor; é uma “restauração da sorte” que implica também conversão do coração, perdão, reencontro da amizade com Deus, consciência da sua misericórdia e renovada possibilidade de louvá-Lo (cf. Jr 29, 12-14; Jr 30, 18-20; Jr 33, 6-11; Ez 39, 25-29). Trata-se de uma experiência de alegria transbordante, de sorrisos e de gritos de júbilo, de tal forma bela que “parece que estávamos sonhando”. As intervenções divinas, frequentemente, têm formas inesperadas, que vão além do que homem possa imaginar; eis então a maravilha e a letícia que se exprimem no louvor: “O Senhor fez grandes coisas”. É o que dizem as nações, e é o que Israel proclama:
“Entre os pagãos se dizia: O Senhor fez por eles grandes coisas. Sim, o Senhor fez por nós grandes coisas; ficamos exultantes de alegria!” (vv. 2b-3).
Deus faz maravilhas na história dos homens. Operando a salvação, se revela a todos como Senhor poderoso e misericordioso, refúgio do oprimido, que não esquece o grito do pobre (cf. Sl 9, 10.13), que ama a justiça e o direito e cujo amor enche a terra (cf. Sl 32, 5). Por isso, diante da libertação do povo de Israel, todas as gentes reconhecem as coisas grandes e estupendas que Deus realiza pelo seu povo e celebram o Senhor na sua realidade de Salvador. E Israel ecoa a proclamação das nações, e a retoma repetindo-a, mas como protagonista, como destinatário direto da ação divina: “o Senhor fez por nós grandes coisas”; “por nós”, ou ainda mais precisamente, “conosco”, em hebraico ‘immanû, afirmando assim aquele relacionamento privilegiado que o Senhor mantém com seus eleitos e que encontrará no nome Emanuel, “Deus conosco”, com o qual Jesus é chamado, o seu ponto alto e a sua plena manifestação (cf. Mt 1, 23).
Caros irmãos e irmãs, na nossa oração devemos olhar mais frequentemente para como, nos acontecimentos da nossa vida, o Senhor no protegeu, guiou, ajudou e louvá-Lo pelo que fez e faz por nós. Devemos ser mais atentos às coisas boas que o Senhor nos dá. Estamos sempre atentos aos problemas, às dificuldades e quase não queremos perceber que existem coisas belas que vêm do Senhor. Esta atenção, que se torna gratidão, é muito importante para nós e cria em nós uma memória do bem que nos ajuda mesmo nas horas difíceis. Deus realiza coisas grandes, e quem faz experiência disso – atento à bondade do Senhor com a atenção do coração – fica cheio de alegria. É com essa nota de festa que se conclui a primeira parte do Salmo. Ser salvos e voltar para a pátria, saindo do exílio, é como voltar à vida: a libertação abre ao sorriso, mas também à espera de uma realização ainda desejada e pedida. É esta a segunda parte do nosso Salmo que soa assim:
“Mudai, Senhor, a nossa sorte, como as torrentes nos desertos do sul. Os que semeiam entre lágrimas, recolherão com alegria. Na ida, caminham chorando, os que levam a semente a espargir. Na volta, virão com alegria, quando trouxerem os seus feixes.” (vv. 4-6).
Se no início da oração, o Salmista celebrava a alegria de uma sorte restaurada pelo Senhor, agora, pelo contrário, ele a pede como algo que ainda precisa se realizar. Se este Salmo se aplica à volta do exílio, esta aparente contradição se explicaria com a experiência histórica, feita por Israel, de um retorno difícil para a pátria, somente parcial, que induz o orante a solicitar ainda outra intervenção divina, para levar à plenitude a restauração do povo.
Mas, o Salmo vai além do dado puramente histórico para se abrir a dimensões mais amplas, de tipo teológico. A experiência consoladora da libertação da Babilônia é, de toda forma, ainda incompleta, “já” ocorrida, mas “ainda não” marcada pela plenitude definitiva. Assim, enquanto que na alegria celebra a salvação recebida, a oração se abre para a espera da plena realização. Por isto, o Salmo utiliza imagens particulares, que, com a sua complexidade, remetem à realidade misteriosa da redenção, em que se entrelaçam o dom recebido e o que ainda se espera, vida e morte, alegria sonhadora e lágrimas dolorosas. A primeira imagem faz referência às torrentes secas do deserto do Negev, que com as chuvas se enchem de água impetuosa que dá vida outra vez para o terreno seco e o faz reflorescer. A solicitação do Salmista é, portanto, que a restauração da sorte do povo e o retorno do exílio sejam como aquela água, irresistível e irrefreável, e capaz de transformar o deserto numa imensa extensão de ervas verdes e flores.
A segunda imagem se desloca das colinas áridas e rochosas do Negev para os campos que os camponeses cultivam para tirar deles o alimento. Para falar da salvação, se remete neste ponto à experiência que a cada ano se renova no mundo agrícola: o momento difícil e cansativo da semeadura e depois a alegria irresistível da colheita. Uma semeadura que é acompanhada por lágrimas, porque se joga aquilo que ainda poderia servir para fazer pão, expondo-se a uma espera cheia de incertezas: o camponês trabalha, prepara o terreno, lança a semente, mas, como ilustra bem a parábola do semeador, não sabe onde esta semente vai cair, se os pássaros a comerão, se vai se firmar, se conseguirá lançar raízes, se se tornará espiga (cf. Mt 13, 3-9; Mc 4, 2-9; Lc 8, 4-8). Jogar a semente é um gesto de confiança e de esperança é necessária a operosidade do homem, mas também é preciso se colocar numa espera impotente, sabendo bem que muitos fatores serão determinantes para o bom êxito da colheita e que o risco de uma falha está sempre à espreita. E no entanto, ano após ano, o camponês repete o seu gesto e lança a sua semente. E quando ela se torna espiga, e os campos se enchem com a lavoura, eis a alegria de quem está diante de um prodígio extraordinário. Jesus conhecia bem esta experiência e falava sobre ela com os seus: “Dizia também: O Reino de Deus é como um homem que lança a semente à terra. Dorme, levanta-se, de noite e de dia, e a semente brota e cresce, sem ele o perceber.” (Mc 4, 26-27). É o mistério escondido da vida, são as maravilhosas “grandes coisas” da salvação que o Senhor opera na história dos homens e de que os homens ignoram o segredo. A intervenção divina, quando se manifesta em plenitude, mostra uma dimensão impetuosa, como as torrentes do Negev e como o grão nos campos, este último evoca inclusive uma desproporção típica das coisas de Deus: desproporção entre a fadiga da semeadura e a imensa alegria da colheita, entre a ânsia da espera e a serena visão dos celeiros cheios, entre as pequenas sementes lançadas na terra e os grandes feixes dourados pelo sol. Na colheita, tudo se transforma, o pranto acaba, dando lugar ao grito de alegria exultante.
O Salmista se refere a tudo isto para falar da salvação, da libertação, da restauração da sorte, do retorno do exílio. A deportação para a Babilônia, assim como toda situação de sofrimento ou de crise, com sua escuridão feita de dúvidas e de aparente distância de Deus, na realidade, é como uma semeadura, diz o nosso Salmo. No Mistério de Cristo, à luz do Novo Testamento, a mensagem se faz ainda mais explícita e clara: o crente que atravessa aquela escuridão é como o grão de trigo caído na terra que morre, mas para dar muitos frutos (cf. Jo 12, 24); ou então, retomando uma outra imagem cara a Jesus, é como a mulher que sofre as dores do parto para poder chegar à alegria de ter dado à luz uma nova vida (cf. Jo 16, 21).
Caros irmãos e irmãs, este Salmo nos ensina que, na nossa oração, devemos permanecer sempre abertos à esperança e firmes na fé em Deus. A nossa história, ainda que marcada frequentemente pela dor, pelas incertezas, por momentos de crise, é uma história de salvação e de “restauração das sortes”. Em Jesus, todo exílio porque passamos acaba, e toda lágrima é enxugada, no mistério da Sua Cruz, da morte transformada em vida, como o grão de trigo que se rompe na terra e se transforma em espiga. Também para nós esta descoberta de Jesus Cristo é a grande alegria do “sim” de Deus, do restabeleciento da nossa sorte. Mas como aqueles que – voltando da Babilônia cheios de alegria – encontraram uma terra empobrecida, devastada, assim como a dificuldade da semeadura e sofreram chorando sem saber se realmente, no fim, haveria alguma colheita, assim também nós, depois da grande descoberta de Jesus Cristo – a nossa vida, a verdade, o caminho –, entrando no terreno da fé, na “terra da fé”, encontramos também frequentemente uma vida escura, dura, difícil, uma semeadura com lágrimas, mas seguros de que a luz de Cristo nos dá, no fim, realmente, a grande colheita. E devemos aprender isto mesmo nas noites escuras; não esquecer que a luz existe, que Deus já está em nossa vida e que podemos semear com grande confiança de que o “sim” de Deus é mais forte do que todos nós. É importante não perder esta recordação da presença de Deus na nossa vida, esta alegria profunda porque Deus entrou na nossa vida, libertando-nos: é a gratidão pela descoberta de Jesus Cristo, que veio até nós. E esta gratidão se transforma em esperança, é estrela da esperança que nos dá a confiança, é a luz, porque exatamente as dores da semeadura são o início da nova vida, da grande e definitiva alegria de Deus.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 12 de outubro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

O que memória e beleza têm que ver com a lógica?


Por Giovanni Maddalena

O que memória e beleza têm que ver com a lógica? É verdade que a lógica expressa apenas verdades necessárias de forma que de certas premissas advêm inevitavelmente certas conclusões? “Inevitavelmente” significa “mecanicamente”?
Comecemos da segunda pergunta, esperando que ela, depois, ilumine as outras duas. Certamente, há tipo de raciocínio que são necessários, o que significa que é impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. Os silogismos clássicos estudados noa escola são deste tipo. Se todos os homens são mortais e Sócrates é um homem, inevitavelmente Sócrates será mortal.
Apóiam-se sobre a necessidade também as audaciosas formalizações da lógica do século XIX que se estuda ainda nas universidades. De Frege a Gödel, esta lógica garantiu uma compreensão muito mais precisa da lógica das proposições (“se chove, pego o guarda-chuava”), da predicativa (“alguns professores são sábios”) e da modal (“é necessário que os torcedores do Torino sofram”). Como se sabe, o projeto de uma compreensão de toda a lógica através deste caráter necessarista encontrou nos teoremas da incompletude de Gödel um limite, no sentido que o grande lógico mostrou que a formalização, se coerente, nunca pode ser completa.
Por mais útil qe seja esta lógica necessária (e o é, não obstante os seus detratores), dela escapam alguns processos racionais, que foram classificados normalmente como “ampliativos”, no sentido que alargam o nosso conhecimento mesmo se perdem em termos de necessidade. A indução clássica é o mais notável destes tipos de raciocínio: um certo número de amostras exemplificativas me conduz a identificar uma lei geral. Se as amostras foram escolhidas adequadamente (por acaso etc.) e a hipótese é limitada, a indução tem boas probabilidades de ser útil para a pesquisa.
Todavia, permanecem fora também deste tipo de raciocínio processos lógicos como: certas descobertas científicas particularmente significativas (a anedota da maçã de Newton é uma boa metáfora disso), o diagnóstico médico, o raciocínio indiciário (o caso de Cogne), as certezas morais em situações novas (confio ou não confio?). Aqui, a necessidade parece totalmente perdida. Mas, se perde também o uso da razão?
C. S. Peirce, célebre lógico norte-americano do fim do século XIX, havia elaborado um procsso para todos estes casos. Chama-se abdução ou retrodução e é a passagem do consequente ao antecedente: no caso anterior seria “pego o guarda-chuva, portanto chove”. Na lógica clássica, trata-se de um erro (falácia), mas se sairmos de uma lógica necessária, isso pode ser justificado. Como?
Se nos encontramos diante de um fenômeno surpreendente, que não tivesse sido catalogado pela nossa experiência passada (do contrário, se trataria de uma indução), podemos formular uma condicional (se a explicação fosse X, então o fenômeno surpreendente se explicaria) que o introduza numa explicação nova e convincente, que podemos, depois, verificar dedutivamente (se fosse assim, as consequências seriam...) e indutivamente (com uma verificação a partir das amostras). Mas, como fazemos para encontrar a explicação na qual o caso surpreendente possa ser lido? Aqui, Peirce tinha as ideias pouco claras, mas deixou indicações que podem ser sistematizadas da seguinte forma.
Encontramos uma explicação lendo os sinais que se encontram por trás do limiar simbólico, ou seja, lendo sinais que não são palavras ou símbolos – que recordam o objeto através de uma interpretação –, mas lendo sinais mais elementares, ícones e índices, que recordam o seu objeto por similaridades e conexões (a maçã que cai como sinal de uma ordem – que deveria ser uma força – e a sua conexão com o resto dos fenômenos de “queda”). Desde modo, lemos os sinais segundo a sua beleza e a sua plausibilidade no contexto. Dois modos diversos para compreender estética e ética em sentido gnosiológico: o ideal aspirado pelo raciocínio e a concordância entre o ideal e o raciocínio em curso. Os melhores romances policiais adotam esta estratégia (por exemplo, Os assassinos da Rua Morgue, de Edgar Allan Poe), bem como as grandes descobertas científicas e as certezas morais decisivas.
Mas, como fazemos para conhecer esta beleza? Com qual critério a julgamos? Como fazemos para saber que existe e o que é? Existe em nós um critério, frequentemente vago (que quer dizer “não determinado”), mas muito eficaz: Peirce o chamava “instinto racional”, a Bíblia o chama “coração”. Parece-me que seja o mesmo “instrumento” que Agostinho indicava com o termo “memória” no livro X das Confissões. Uma pessoa quer ser soldado para ser feliz e outra não quer ser soldado para ser feliz. Onde conheceu a felicidade para usá-la como critério? Ela se encontra inscrita no fundo da nossa razão e permanece como critério insuperável, mesmo que frequentemente só indeterminado, mais propenso a não ser satisfeito do que a se contentar, a dizer não mais do que sim (como dizia Sócrates do seu daimon), mas sinal inequívoco de que, no fundo dos nossos raciocínios, a nossa razão é feita para uma beleza sem fim.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de junho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Entre o esquecimento e a memória, a espera

Por Paulo R. A. Pacheco

Antes de nascer o mundo conta uma estória: cinco homens, três mulheres, um homem perdido e buscado e uma jumenta; personagens de um drama que se desenrola entre Jerusalém e o Lado-de-lá, num Moçambique que emerge, realista e poético, das mãos escrevinhadoras de Mia Couto.

Para ler mais, clique aqui.

domingo, 10 de outubro de 2010

Diálogo de surdos?

Por Pedro S. Malan *

O presidente Lula, com uma arrogância por vezes excessiva, tentou transformar em plebiscito o primeiro turno desta eleição. Como se o que estivesse em jogo fosse seu próprio terceiro mandato (ainda que por interposta pessoa), um referendo sobre seu nome, uma apoteose que consagraria seu personalismo, seu governo e sua capacidade de transferir votos. Mas cerca de 52% dos eleitores votaram em José Serra e Marina Silva, negando a Lula a tão esperada vitória plebiscitária no domingo passado.
Não é de hoje o desejo presidencial: "Lula quer uma campanha de comparação entre governos, um duelo com o tucano da vez. Se o PSDB quiser o mesmo... ganharão os eleitores e a cultura política do País." Assim escreveu Tereza Cruvinel, sempre muito bem informada sobre assuntos da seara petista, em sua coluna de janeiro de 2006. Não acredito que a "cultura política" do País e seus eleitores tenham muito a ganhar - ao contrário - com essa obsessão por concentrar o debate eleitoral de 2010 numa batalha de marqueteiros e militantes.
Afinal, na vida de qualquer país há processos que se desdobram no tempo, complexas interações de continuidade, mudança e consolidação de avanços alcançados. O Brasil não é exceção a essa regra. Como escreveu Marcos Lisboa, um dos mais brilhantes economistas de sua geração: "Não se deve medir um governo ou uma gestão pelos resultados obtidos durante sua ocorrência e, sim, por seus impactos no longo prazo, pelos resultados que são verificados nos anos que se seguem ao seu término. Instituições importam e os impactos decorrentes da forma como são geridas ou alteradas se manifestam progressivamente..."
Ao que parece, Lula e o núcleo duro à sua volta discordam e estão resolvidos a insistir numa plebiscitária e maniqueísta "comparação com o governo anterior". Feita por vezes, a meu ver, com desfaçatez e hipocrisia. Um discurso primário que, no fundo, procura transmitir uma ideia básica (e equivocada) ao eleitor menos informado: o que de bom está acontecendo no País - e há muita coisa - se deve a Lula e ao seu governo; o que há de mau ou por fazer - e há muita, muita coisa por fazer - representa uma herança do período pré-2003, que ainda não pôde ser resolvida porque, afinal de contas, apenas em oito anos de lulo-petismo não seria mesmo possível consertar todos os erros acumulados por "outros" governantes ao longo do período pré-2003.
Mas talvez seja possível, por meio do debate público informado, ter alguns limites para a desfaçatez e a mentira. Exemplo desta última: a sórdida, leviana e irresponsável acusação de que "o governo anterior" pretendia privatizar a Petrobrás, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, entre outros. Algo que nunca, jamais, esteve em séria consideração. Mas a mentira, milhares de vezes repetida, teve efeito eleitoral na disputa pelo segundo turno em 2006 - por falta de resposta política à altura: antes, durante e depois.
Exemplos de desfaçatez: o governo Lula não "recebeu o País com a inflação e o câmbio fugindo do controle", como já li, responsabilizando-se o governo anterior. A inflação estava sob controle desde que o Real foi lançado no governo Itamar Franco, com Fernando Henrique Cardoso na Fazenda, e se aumentou para 12,5% em 2002 foi porque o câmbio disparou, expressando receios quanto ao futuro. Receios não sem fundamento, à luz da herança que o PT havia construído para si próprio, até o começo de sua gradual desconstrução, apenas a partir de meados de 2002. O PT tinha e tem suas heranças.
O governo Lula não teve de resolver problemas graves de liquidez e solvência de parte do setor bancário brasileiro, público e privado. Resolvidos na segunda metade dos anos 90 pelo governo FHC. Ao contrário, o PT opôs-se, e veementemente, ao Proer e ao Proes e perseguiu seus responsáveis por anos no Congresso e na Justiça. Mas o governo Lula herdou um sistema financeiro sólido que não teve problemas na crise recente, como ajudou o País a rapidamente superá-la. Suprema ironia ver, na televisão, Lula oferecer a "nossa tecnologia do Proer" ao companheiro Bush em 2008.
O governo Lula não teve de reestruturar as dívidas de 25 de nossos 27 Estados e de cerca de 180 municípios que estavam, muitos, pré-insolventes, incapazes de arcar com seus compromissos com a União. Todos estão solventes há mais de 13 anos, uma herança que, juntamente com a Lei de Responsabilidade Fiscal, de maio de 2000 - antes, sim, do lulo-petismo, que a ela se opôs -, nada tem de maldita, muito pelo contrário, como sabem as pessoas de boa-fé.
As pessoas que têm memória e honestidade intelectual também sabem que as transferências diretas de renda à população mais pobre não começaram com Lula - que se manifestou contra elas em discurso feito já como presidente em abril de 2003. O governo Lula abandonou sua ideia original de distribuir cupons de alimentação e adotou, consolidou e ampliou - mérito seu - os projetos já existentes. O que Lula reconheceu no parágrafo de abertura (caput) da medida provisória que editou em setembro de 2003, consolidando os programas herdados do governo anterior.
Outros exemplos. Sobre salário mínimo: não é verdade que tenha começado a ter aumento real no governo Lula, como quer a propaganda. Sobre privatização: o discurso ideológico simplesmente ignora os resultados para o conjunto da população - e, indiretamente, para o atual governo.
O monólogo do "nunca antes" não ajuda o diálogo do País consigo mesmo. O ilustre ex-ministro Delfim Netto bem que tentou: "A eleição de 2010 não pode se fazer em torno das pobres alternativas de ou voltar ao passado ou dar continuidade a Lula. A discussão precisa incorporar os horizontes do século 21 e a superação dos problemas que certamente restarão de seu governo."

* Pedro Malan é economista e foi ministro da Fazenda no governo FHC. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 10 de outubro de 2010.