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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Porta fidei


Carta Apostólica
sob forma de Motu Proprio
Porta fidei
Do Sumo Pontífice
Bento XVI
com a qual se proclama o Ano da Fé.

1. A PORTA DA FÉ (cf. At 14, 27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na Sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se em um caminho que dura a vida inteira. Este caminho tem início no Batismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual podemos nos dirigir a Deus com o nome de Pai, e se conclui com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da Sua própria glória aqueles que creem nEle (cf. Jo 17, 22). Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor (cf. 1Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da Sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor.
2. Desde o princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do pontificado, disse: “A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens para fora do deserto, para lugares de vida, de amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude” [1]. Acontece não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora, tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado [2]. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas.
3. Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16). O homem contemporâneo também pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer nEle e a beber na Sua fonte, de onde jorra água viva (cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentar da Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida, oferecidos como sustento daqueles que são Seus discípulos (cf. Jo 6, 51). De fato, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma força, este ensinamento de Jesus: “Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna” (Jo 6, 27). E a questão, então posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós também hoje: “Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?” (Jo 6, 28). Conhecemos a resposta de Jesus: “A obra de Deus é esta: crer nAquele que Ele enviou” (Jo 6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para se poder chegar definitivamente à salvação.
4. À luz de tudo isto, decidi proclamar um Ano da Fé. Este terá início a 11 de outubro de 2012, no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, a 24 de novembro de 2013. Na referida data de 11 de outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, texto promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II [3], com o objetivo de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 como instrumento ao serviço da catequese [4] e foi realizado com a colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o mês de outubro de 2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo de particular reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a celebrar um Ano da Fé. O meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um ano semelhante, em 1967, para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono centenário do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para que houvesse, em toda a Igreja, “uma autêntica e sincera profissão da mesma fé”; quis ainda que esta fosse confirmada de maneira “individual e coletiva, livre e consciente, interior e exterior, humilde e franca” [5]. Pensava que a Igreja poderia assim retomar “exata consciência da sua fé para a reavivar, purificar, confirmar, confessar” [6]. As grandes convulsões, que se verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a necessidade de uma celebração como tal. Esta terminou com a Profissão de Fé do Povo de Deus [7], para atestar como os conteúdos essenciais, que há séculos constituem o patrimônio de todos os crentes, necessitam de ser confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre nova para se dar testemunho coerente deles em condições históricas diversas das do passado.
5. Sob alguns aspectos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como uma “consequência e exigência pós-conciliar” [8], bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à profissão da verdadeira fé e da sua reta interpretação. Pareceu-me que fazer coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, “não perdem o seu valor nem a sua beleza. É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério, no âmbito da Tradição da Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa” [9]. Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a propósito do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: “Se o lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja” [10].
6. A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de fato, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição dogmática Lumen gentium, afirma: “Enquanto Cristo ‘santo, inocente, imaculado’ (Hb 7, 26), não conheceu o pecado (cf. 2Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Hb 2, 17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja ‘prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus’, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1Cor 11, 26). Mas é robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz” [11].
Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da Sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. At 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem em uma vida nova: “Pelo Batismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos em uma vida nova” (Rm 6, 4). Em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afetos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A “fé, que atua pelo amor” (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de ação, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2Cor 5, 17).
7. “Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele” (2Cor 5, 14): é o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo para proclamar o Seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o Seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor de uma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do Seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de fato, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à Sua Palavra a fim de se tornarem Seus discípulos. Os crentes – atesta Santo Agostinho – “fortificam-se acreditando” [12]. O Santo Bispo de Hipona tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus [13]. Os seus numerosos escritos, onde se explica a importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias como um patrimônio de riqueza incomparável e consentem ainda que tantas pessoas à procura de Deus encontrem o justo percurso para chegar à “porta da fé”.
Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a se tornarem mais conscientes e a revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo em um momento de profunda mudança como este que a humanidade está vivendo. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do Credo.
9. Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é “a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força” [14]. Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada [15] e refletir sobre o próprio ato com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a aprender de memória o Credo. É que este lhes servia de oração diária, para não esquecerem o compromisso assumido com o Batismo. Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo Agostinho quando afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a entrega do Credo): “O símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós o recebestes e proferistes, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por ele” [16].
10. Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o ato pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. Com efeito, existe uma unidade profunda entre o ato com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite entrar nesta realidade quando escreve: “Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé” (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro ato, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus e ação da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma.
A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas, estava Lídia. “O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia” (At 16, 14). O sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o conhecimento dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se depois o coração – autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela graça, que consente ter olhos para ver em profundidade e compreender que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um fato privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este “estar com Ele” introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um ato da liberdade, exige também assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a própria fé a toda as pessoas. É o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e corajoso.
A própria profissão da fé é um ato simultaneamente pessoal e comunitário. De fato, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Batismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da Igreja Católica, “‘Eu creio’: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião do Batismo. ‘Nós cremos’: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. ‘Eu creio’: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: ‘Eu creio’, ‘Nós cremos’” [17].
Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade ao que é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque a garantia da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o Seu mistério de amor [18].
Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um verdadeiro “preâmbulo” da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao mistério de Deus. Com efeito, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência “daquilo que vale e permanece sempre” [19]. Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao encontro dAquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo ao nosso encontro [20]. É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé.
11. Para chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio precioso e indispensável no Catecismo da Igreja Católica. Este constitui um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição apostólica Fidei depositum – não sem razão assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II – o Beato João Paulo II escrevia: “Este catecismo dará um contributo muito importante à obra de renovação de toda a vida eclesial (...). Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso, instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial” [21].
É precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol da redescoberta e do estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm no Catecismo da Igreja Católica a sua síntese sistemática e orgânica. Nele, de fato, sobressai a riqueza de doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história. Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os Mestres de teologia aos Santos que atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma memória permanente dos inúmeros modos em que a Igreja meditou sobre a fé e progrediu na doutrina para dar certeza aos crentes na sua vida de fé.
Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando as páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, em seguida à profissão de fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual Cristo está presente e operante, continuando a construir a Sua Igreja. Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos cristãos. Na mesma linha, a doutrina do Catecismo sobre a vida moral adquire todo o seu significado, se for colocada em relação com a fé, a liturgia e a oração.
12. Assim, no Ano em questão, o Catecismo da Igreja Católica poderá ser um verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para os que se comprometem com a formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto cultural. Com tal finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da Fé a redigir, de comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma Nota, através da qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos moldes mais eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.
De fato, em nossos dias mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogações, que provêm de uma mentalidade diversa que, hoje de uma forma particular, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica, porque ambas, embora por caminhos diferentes, tendem para a verdade [22].
13. Será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos.
Ao longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, “autor e consumador da fé” (Hb 12, 2): nEle encontra plena realização toda a ânsia e aspiração do coração humano. A alegria do amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra plena realização no mistério da Sua Encarnação, do Seu fazer-Se homem, do partilhar conosco a fragilidade humana para a transformar com a força da Sua ressurreição. NEle, morto e ressuscitado para a nossa salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da nossa história de salvação.
Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao Altíssimo pelas maravilhas que realizava naqueles que a Ele se confiavam (cf. Lc 1, 46-55). Com alegria e tremor, deu à luz o seu Filho unigênito, mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando em José, seu Esposo, levou Jesus para o Egito a fim de salvá-Lo da perseguição de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na Sua pregação e permaneceu ao Seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27). Com fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando no coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51), transmitiu-a aos Doze reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. At 1, 14; At 2, 1-4).
Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28). Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e realizado na Sua Pessoa (cf. Lc 11, 20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a Sua doutrina, deixando-lhes uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos como Seus discípulos depois da morte dEle (cf. Jo 13, 34-35). Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida em torno do ensinamento dos Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir às necessidades dos irmãos (cf. At 2, 42-47).
Pela fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando tudo para viver em simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a castidade, sinais concretos de quem aguarda o Senhor, que não tarda a vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma ação em prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).
Pela fé, no correr dos séculos, homens e mulheres de todas as idades, cujos nomes estão escritos no Livro da vida (cf. Ap 7, 9; Ap 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados.
Pela fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na história.
14. O Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São Paulo: “Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade” (1Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento cotidiano, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome’, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: ‘Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé’” (Tg 2, 14-18). 
A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra realizar o seu caminho. De fato, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. “Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que permite reconhecer Cristo, e é o Seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre que Se faz nosso próximo no caminho da vida. Sustentados pela fé, olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando “novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça” (2Pd 3, 13; cf. Ap 21, 1).
15. Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pediu ao discípulo Timóteo que “procure a fé” (cf. 2Tm 2, 22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2Tm 3, 15). Sintamos este convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente de muitos outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim.
Que “a Palavra do Senhor avance e seja glorificada” (2Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé tornar cada vez mais firme a relação com Cristo Senhor, dado que só nEle temos a certeza para olhar o futuro e a garantia de um amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do apóstolo Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: “É por isso que exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações; deste modo, a qualidade genuína da vossa fé – muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes nEle e vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das almas” (1Pd 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia, permanece nEle como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À Mãe de Deus, proclamada “feliz porque acreditou” (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de graça.
Dado em Roma, em São Pedro, no dia 11 de outubro do ano 2011, sétimo de Pontificado.

BENEDICTUS PP. XVI

Notas
[1] Homilia no início do ministério petrino do Bispo de Roma (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710.
[2] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no Terreiro do Paço (Lisboa – 11 de Maio de 2010): L’Osservatore Romano (ed. port. de 15/V/2010), 3.
[3] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 113-118.
[4] Cf. Relação final do Sínodo Extraordinário dos Bispos (7 de Dezembro de 1985), II, B, a, 4: L’Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 650.
[5] Paulo VI, Exort. ap. Petrum et Paulum Apostolos, no XIX centenário do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (22 de Fevereiro de 1967): AAS 59 (1967), 196.
[6] Ibid.: o.c., 198.
[8] Paulo VI, Audiência Geral (14 de Junho de 1967): Insegnamenti, V (1967), 801.
[9] João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 57: AAS 93 (2001), 308.
[10] Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 52.
[11] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 8.
[12] De utilitate credendi, 1, 2.
[13] Cf. Confissões, 1, 1.
[14] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 10.
[15] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 116.
[16] Santo Agostinho, Sermo 215, 1.
[18] Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, cap. III: DS 3008-3009; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 5.
[19] Bento XVI, Discurso no “Collège des Bernardins” (Paris, 12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 722.
[20] Cf. Santo Agostinho, Confissões, 13, 1.
[21] Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 115 e 117.
[22] Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 34.106: AAS 91 (1999), 31-32.86-87.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 11 de outubro de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O homem carrega em si o desejo de Deus

Bento XVI

Audiência Geral

Praça São Pedro
Quarta-feira, 11 de maio de 2011

O homem em oração

Caros irmãos e irmãs,
Hoje, gostaria de continuar a refletir sobre como a oração e o senso religioso fazem parte do homem ao longo de toda a sua história.
Vivemos numa época na qual são evidentes os sinais do secularismo. Deus parece ter desaparecido do horizonte de várias pessoas, ou parece ter se tornado uma realidade para a qual permanecemos indiferentes. Vemos, porém, ao mesmo tempo, muitos sinais que nos indicam um despertar do senso religioso, uma redescoberta da importância de Deus para a vida do homem, uma exigência de espiritualidade, de superação de uma visão puramente horizontal, material da vida humana. Olhando para a história recente, percebe-se que falhou a previsão de quem, desde o Iluminismo, prenunciava o desaparecimento das religiões e exaltava uma razão absoluta, separada da fé, uma razão que teria acabado com as trevas dos dogmatismos religiosos e teria dissolvido o “mundo do sagrado”, restituindo ao homem a sua liberdade, a sua dignidade e a sua autonomia. A experiência do século passado, com suas duas trágicas Guerras Mundiais colocou em crise aquele progresso que a razão autônoma, o homem sem Deus, parecia poder garantir.
O Catecismo da Igreja Católica afirma: “Mediante a criação, Deus chama todo ser do nada à existência... Mesmo depois de ter perdido a semelhança com Deus por causa do pecado, o homem permanece imagem do seu Criador. Ele conserva o desejo daquele que o chama à existência. Todas as religiões testemunham esta busca essencial por parte dos homens” (n. 2566). Poderíamos dizer – como mostrei na última catequese [traduzida para o português aqui] – que nunca houve civilização, desde os tempos mais distantes até aos nossos dias, que não tenha sido religiosa.
O homem é, por sua natureza, religioso, é homo religiosus, assim como é homo sapiens e homo faber: “o desejo de Deus – afirma ainda o Catecismo – está inscrito no coração do homem, porque o homem foi criado por Deus e para Deus” (n. 27). A imagem do Criador está impressa no seu ser e ele sente a necessidade de encontrar uma luz para dar resposta às perguntas que dizem respeito ao sentido profundo da realidade; resposta que ele não pode encontrar por si mesmo, no progresso, na ciência empírica. O homo religiosus não emerge apenas dos mundos antigos, ele atravessa toda a história da humanidade. A este propósito, o rico terreno da experiência humana viu surgir variadas formas de religiosidade, na tentativa de responder ao desejo de plenitude e de felicidade, à necessidade de salvação, à busca de sentido. O homem “digital” ou mesmo aquele das cavernas busca na experiência religiosa os caminhos para superar a sua finitude e para assegurar a sua precária aventura terrena. De resto, a vida sem um horizonte transcendental não faria sentido algum e a felicidade, à qual todos tendemos, seria projetada espontaneamente para o futuro, num amanhã ainda a se realizar. O Concílio Vaticano II, na Declaração Nostra aetate, chamou a atenção sinteticamente assim: “Os homens esperam das várias religiões a resposta aos recônditos enigmas da condição humana, que ontem como hoje turbam profundamente o coração do homem: a natureza do homem [quem sou eu?], o sentido e o fim da nossa vida, o bem e o pecado, a origem e o objetivo da dor, o caminho para chegar à felicidade, a morte, o juízo e a pena depois da morte, finalmente o último e inefável mistério que circunda a nossa existência, de onde tiramos a nossa origem e em direção ao qual tendemos” (n. 1). O homem sabe que não pode responder sozinho à própria necessidade fundamental de entender. Ainda que tenha se iludido e se iluda ainda agora de ser autossuficiente, ele faz a experiência de não bastar a si mesmo. Tem necessidade de se abrir a um outro, a algo ou a alguém, que possa dar-lhe aquilo que lhe falta, deve sair de si mesmo e caminhar em direção dAquele que seja capaz de preencher a amplitude e a profundidade do seu desejo.
O homem carrega em si uma sede de infinito, uma nostalgia de eternidade, uma busca de beleza, um desejo de amor, uma necessidade de luz e de verdade, que o impulsionam em direção ao Absoluto; o homem carrega em si o desejo de Deus. E o homem sabe, de algum modo, que pode se voltar a Deus, sabe que pode rezar a Ele. Santo Tomás de Aquino, um dos maiores teólogos da história, define a oração “expressão do desejo que o homem tem de Deus”. Esta atração por Deus, que Deus mesmo colocou no homem, é a alma da oração, que depois se reveste de tantas formas e modalidades segundo a história, o tempo, o momento, a graça e mesmo o pecado de cada homem em oração. A história do homem conheceu, com efeito, variadas formas de oração, porque ele desenvolveu diversas modalidades de abertura ao Outro e ao Além, tanto que podemos reconhecer a oração como uma experiência presente em toda religião e cultura.
De fato, caros irmãos e irmãs, como vimos na quarta-feira passada, a oração não está ligada a um contexto particular, mas se encontra inscrita no coração de toda pessoa e de toda civilização. Naturalmente, quando falamos da oração como experiência do homem como tal, do homo orans, é necessário ter presente que ela é uma postura interior, antes que uma série de práticas e fórmulas, um modo de ser diante de Deus antes que a realização de atos de culto ou da pronunciação de palavras. A oração tem o seu centro e afunda suas raízes no mais profundo da pessoa; por isso, não é facilmente decifrável e, pelo mesmo motivo, pode ser sujeita a mal-entendidos e mistificações. Mesmo nesse sentido podemos compreender a expressão: rezar é difícil. De fato, a oração é o lugar por excelência da gratuidade, da tensão em direção ao Invisível, ao Inesperado e ao Inefável. Assim, a experiência da oração é, para todos, um desafio, uma “graça” a ser invocada, um dom dAquele para quem nos voltamos.
Na oração, em todas as épocas da história, o homem considera a si mesmo e a sua situação diante de Deus, a partir de Deus e em relação a Deus, e experimenta ser criatura necessitada de ajuda, incapaz de conquistar para si mesmo o cumprimento da própria existência e da própria esperança. O filósofo Ludwig Wittgenstein recordava que “rezar significa sentir que o sentido do mundo está fora do mundo”. Na dinâmica deste relacionamento com quem dá sentido à existência, com Deus, a oração tem uma das suas típicas expressões no gesto de se colocar de joelhos. É um gesto que carrega consigo uma ambivalência radical: de fato, posso ser obrigado a colocar-me de joelhos – condição de indigência e de escravidão –, mas posso também me ajoelhar espontaneamente, declarando o meu limite e, portanto, o meu ter necessidade de um Outro. A Ele declaro ser frágil, necessitado, “pecador”. Na experiência da oração, a criatura humana expressa toda a consciência de si, tudo aquilo que consegue saber da própria existência e, ao mesmo tempo, volta-se toda para o Ser diante do qual está, orienta a própria alma para aquele Mistério de quem espera a realização dos desejos mais profundos e a ajuda para superar a indigência da própria vida. Neste olhar para um Outro, neste dirigir-se “além”, está a essência da oração, como experiência de uma realidade que supera o sensível e o contingente.
Todavia, somente no Deus que se revela a busca do homem encontra plena realização. A oração que é abertura e elevação do coração a Deus, assim, se torna relacionamento pessoal com Ele. E mesmo se o homem se esquece do seu Criador, o Deus vivo e verdadeiro não cessa de chamar, por primeiro, o homem ao misterioso encontro da oração. Como afirma o Catecismo: “Este passo de amor do Deus fiel sempre vem antes na oração; o passo do homem é sempre uma resposta. Na medida em que Deus se revela e revela o homem a si mesmo, a oração se vai tornando um apelo recíproco, um evento de aliança. Através de palavras e atos, este evento compromete o coração. Revela-se ao longo de toda a história da salvação” (n. 2567).
Caros irmãos e irmãs, aprendamos a ficar mais diante de Deus, do Deus que se revelou em Jesus Cristo; aprendamos a reconhecer no silêncio, no íntimo de nós mesmos, a Sua voz que nos chama e nos conduz à profundidade da nossa existência, à fonte da vida, à fonte da salvação, para fazer-nos ir para além do limite da nossa vida e nos abrirmos à medida de Deus, ao relacionamento com Ele, que é Infinito Amor. Obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 11 de maio de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Comentário ao evangelho do dia

4ª-feira da 5ª Semana Quaresma

1ª Leitura - Dn 3,14-20.24.49a.91-92.95
Naqueles dias, o rei Nabucodonosor tomou a palavra e disse: "É verdade, Sidrac, Misac e Abdênago, que não prestais culto a meus deuses e não adorais a estátua de ouro que mandei erguer? E agora, quando ouvirdes tocar trombeta, flauta, cítara, harpa, saltério e gaitas, e toda espécie de instrumentos, estais prontos a prostrar-vos e adorar a estátua que mandei fazer? Mas, se não fizerdes adoração, no mesmo instante sereis atirados na fornalha de fogo ardente; e qual é o deus que poderá libertar-vos de minhas mãos?". Sidrac, Misac e Abdênago responderam ao rei Nabucodonosor: "Não há necessidade de te respondermos sobre isto: se o nosso Deus, a quem rendemos culto, pode livrar-nos da fornalha de fogo ardente, ele também poderá libertar-nos de tuas mãos, ó rei. Mas, se ele não quiser libertar-nos, fica sabendo, ó rei, que nós não prestaremos culto a teus deuses e tampouco adoraremos a estátua de ouro que mandaste fazer". A estas palavras, Nabucodonosor encheu-se de cólera contra Sidrac, Misac e Abdênago, a ponto de se alterar a expressão do rosto; deu ordem para acender a fornalha com sete vezes mais fogo que de costume; e encarregou os soldados mais fortes do exército para amarrarem Sidrac, Misac e Adbênago e os lançarem na fornalha de fogo ardente. Os três jovens andavam de cá para lá no meio das chamas, entoando hinos a Deus e bendizendo ao Senhor. Mas o anjo do Senhor tinha descido simultaneamente na fornalha para junto de Azarias e seus companheiros. O rei Nabucodonosor, tomado de pasmo, levantou-se apressadamente, e perguntou a seus ministros: "Porventura, não lançamos três homens bem amarrados no meio do fogo?". Responderam ao rei: "É verdade, ó rei". Disse este: "Mas eu estou vendo quatro homens andando livremente no meio do fogo, sem sofrerem nenhum mal, e o aspecto do quarto homem é semelhante ao de um filho de Deus". Exclamou Nabucodonosor: "Bendito seja o Deus de Sidrac, Misac e Abdênago, que enviou seu anjo e libertou seus servos, que puseram nele sua confiança e transgrediram o decreto do rei, preferindo entregar suas vidas a servir e adorar qualquer outro Deus que não fosse o seu Deus". 

Evangelho - Jo 8,31-42
Naquele tempo, Jesus disse aos judeus que nele tinham acreditado: "Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará". Responderam eles: "Somos descendentes de Abraão, e nunca fomos escravos de ninguém. Como podes dizer: 'Vós vos tornareis livres'?". Jesus respondeu: "Em verdade, em verdade vos digo, todo aquele que comete pecado é escravo do pecado. O escravo não permanece para sempre numa família, mas o filho permanece nela para sempre. Se, pois, o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres. Bem sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque a minha palavra não é acolhida por vós. Eu falo o que vi junto do Pai; e vós fazeis o que ouvistes do vosso pai". Eles responderam então: "O nosso pai é Abraão". Disse-lhes Jesus: "Se sois filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão! Mas agora, vós procurais matar-me, a mim, que vos falei a verdade que ouvi de Deus. Isto, Abraão não o fez. Vós fazeis as obras do vosso pai". Disseram-lhe, então: "Nós não nascemos do adultério, temos um só pai: Deus". Respondeu-lhes Jesus: "Se Deus fosse vosso Pai, vós certamente me amaríeis,  porque de Deus é que eu saí, e vim. Não vim por mim mesmo, mas foi ele que me enviou".

Comentário extraído do Catecismo da Igreja Católica
§§ 214-219

Deus, "Aquele que É", revelou-Se a Israel como Aquele que é "cheio de misericórdia e fidelidade" (Ex 34, 6). Estas duas palavras exprimem, de modo sintético, as riquezas do nome divino. Em todas as Suas obras, Deus mostra a sua benevolência, a Sua bondade, a Sua graça, o Seu amor; mas também a Sua credibilidade, a Sua constância, a Sua fidelidade, a Sua verdade. [...]Deus é a verdade. "A verdade é princípio da Vossa palavra, é eterna toda a sentença da Vossa justiça" (Sl 119, 160). "Decerto, Senhor Deus, Vós é que sois Deus e dizeis palavras de verdade" (2Sm 7, 28); é por isso que as promessas de Deus se cumprem sempre. Deus é a própria verdade; as Suas palavras não podem enganar. É por isso que nos podemos entregar com toda a confiança e em todas as coisas à verdade e à fidelidade da Sua palavra. O princípio do pecado e da queda do homem foi uma mentira do tentador, que o levou a duvidar da palavra de Deus, da Sua benevolência e da Sua fidelidade (Gn 3, 1). A verdade de Deus é a Sua sabedoria, que comanda toda a ordem da criação e o governo do mundo. Só Deus – que, sozinho, criou o céu e a terra – pode dar o conhecimento verdadeiro de todas as coisas, criadas na sua relação com Ele. Deus é igualmente verdadeiro quando Se revela: todo o ensinamento que vem de Deus é "doutrina de verdade" (Ml 2, 6). Quando Ele enviar o Seu Filho ao mundo, será "para dar testemunho da verdade" (Jo 18, 37): "Sabemos [...] que veio o Filho de Deus e nos deu entendimento para conhecermos o Verdadeiro" (1Jo 5, 20).Deus é amor. [...] O amor de Deus para com Israel é comparado ao amor de um pai para com o seu filho (Os 11, 1). Este amor é mais forte que o de uma mãe para com os seus filhos (Is 49, 14-15). Deus ama o Seu povo, mais que um esposo a sua bem-amada (Is 62, 4-5); este amor vencerá mesmo as piores infidelidades; e chegará ao mais precioso de todos os dons: "Deus amou de tal maneira o mundo, que lhe entregou o Seu Filho Único" (Jo 3, 16).

sábado, 19 de junho de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mt 6,24-34
Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: "Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro. Por isso eu vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida, com o que havereis de comer ou beber; nem com o vosso corpo, com o que havereis de vestir. Afinal, a vida não vale mais do que o alimento, e o corpo, mais do que a roupa? Olhai os pássaros dos céus: eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam em armazéns. No entanto, vosso Pai que está nos céus os alimenta. Vós não valeis mais do que os pássaros? Quem de vós pode prolongar a duração da própria vida, só pelo fato de se preocupar com isso? E por que ficais preocupados com a roupa? Olhai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. Porém, eu vos digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é queimada no forno, não fará ele muito mais por vós, gente de pouca fé? Portanto, não vos preocupeis, dizendo: O que vamos comer? O que vamos beber? Como vamos nos vestir? Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos céus, sabe que precisais de tudo isso. Pelo contrário, buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo. Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá suas preocupações! Para cada dia, bastam seus próprios problemas."

Comentário extraído do Catecismo da Igreja Católica
§§ 302-305 

A criação tem a sua bondade e a sua perfeição próprias, mas não saiu totalmente acabada das mãos do Criador. Foi criada "em estado de caminho" (in statu viae) para uma perfeição última ainda a atingir e a que Deus a destinou. Chamamos divina Providência às disposições pelas quais Deus conduz a sua criação em ordem a essa perfeição. [...]:É unânime, a este respeito, o testemunho da Escritura: a solicitude da divina Providência é concreta e imediata, cuida de tudo, desde os mais insignificantes pormenores até aos grandes acontecimentos do mundo e da história. Os livros santos afirmam com veemência a soberania absoluta de Deus no decurso dos acontecimentos: "Tudo quanto Lhe aprouve, o nosso Deus o fez, no céu e na terra" (Sl 115, 3); e de Cristo se diz "que abre e ninguém fecha, e fecha e ninguém abre" (Ap 3, 7); e "há muitos projetos no coração do homem, mas é a vontade do Senhor que prevalece" (Pr 19, 21). [...] Jesus reclama um abandono filial à Providência do Pai celeste, que cuida das menores necessidades dos seus filhos: "Não vos preocupeis, dizendo: 'Que comeremos, que beberemos?' [...] O vosso Pai celeste bem sabe que tendes necessidade de tudo isso. Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo" (Mt 6, 31-33).

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Comentário ao evangelho do dia


Beato José de Anchieta

Evangelho - Mt 5,17-19
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: "Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento. Em verdade, eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra. Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar será considerado grande no Reino dos Céus.

Comentário extraído do Catecismo da Igreja Católica
§§ 577-581

Jesus fez uma solene advertência no início do sermão da montanha, ao apresentar a Lei dada por Deus no Sinai, quando da primeira Aliança, à luz da graça da Nova Aliança: "Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição" (Mt 5, 17-19). [...] Jesus, o Messias de Israel e, portanto, o maior no Reino dos céus, fazia questão de cumprir a Lei, executando-a integralmente até nos mais pequenos preceitos, segundo as Suas próprias palavras. Foi, mesmo, o único a poder fazê-lo perfeitamente. [...] O cumprimento perfeito da Lei só podia ser obra do divino Legislador, nascido sujeito à Lei na pessoa do Filho. Em Jesus, a Lei já não aparece gravada em tábuas de pedra, mas "no íntimo do coração" (Jr 31, 33) do Servo, o qual, proclamando "fielmente o direito" (Is 42, 3), se tornou "a aliança do povo" (Is 42, 6). Jesus cumpriu a Lei até ao ponto de tomar sobre Si "a maldição da Lei" (Gal 3, 13) em que incorrem "aqueles que não praticam todos os preceitos da Lei" (Gal 3, 10); porque "a morte de Cristo foi para remir as faltas cometidas durante a primeira Aliança" (Heb 9, 15). Jesus [...] "ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas" (Mt 7, 28-29). NEle, era a própria Palavra de Deus, que Se fizera ouvir no Sinai para dar a Moisés a Lei escrita, que de novo se fazia ouvir sobre a montanha das bem-aventuranças (Mt 5, 1). Esta Palavra de Deus não aboliu a Lei, mas cumpriu-a, ao fornecer, de modo divino, a sua interpretação última: "Ouvistes que foi dito aos antigos [...] Eu, porém, digo-vos" (Mt 5, 33-34). Com esta mesma autoridade divina, desaprova certas "tradições humanas" (Mc 7, 8) dos fariseus, que "anulam a Palavra de Deus" (Mc 7, 13).

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Cartas do P.e Aldo 10


Asunción, 05 de fevereiro de 2009.

Caros amigos,
olhar para a realidade, vivê-la, é sempre um estar em pé olhando para o Mistério, com aquela dramaticidade que lhe faz dizer continuamente “eu sou Tu que me fazes”. O Mistério de que a realidade é sinal e caminho me faz viver comovido e sempre como as “scolte di Asisi”. Por isso, vivo surpreso por tudo e cada coisa é um imprevisto, uma novidade.
Ontem de manhã, o Arcebispo de Asunción me telefonou: “Padre Aldo, preciso de um favor seu. O Arcebispo emérito Dom Santiago Benitez Avalo (nasceu no dia 1° de maio de 1926, na cidade de Piribebuy, no Paraguay, e faleceu no último dia 19 de março, na cidade de Asunción; ndt) está quase chegando na meta e gostaríamos de interná-lo na clínica São Riccardo Pampuri, pois acabou de se recupear de uma infecção hospitalar (estava internado no mais belo hospital de Asunción). Por favor, vocês têm um quarto?”. “Claro que sim, Eminência. Desde a construção da clínica o primeiro pensamento que tive foi que deveria ser para sacerdotes, religiosos, bispos, que nessa terra não têm nenhuma estrutura que os acolha. Além do mais, D. Benitez, além de ser um dos maiores bispos do Paraguai e da América Latina (padre conciliar; redator, com o Papa atual, do Catecismo da Igreja Católica; desempenhou papéis fundamentais no CELAM etc.), foi o padre que, há 20 anos, me acolheu e primeiro quis CL no Paraguai. Deus se serviu dele para acolher este filho pródigo mandado por Giussani e, agora, o filho pródigo acolhe o Pai que tanto se prodiga por ele. Bem, que venha D. Benitez”.
Imaginem a minha alegria: assistir àquele que me acolheu, aquele que foi, aqui, a dilatação do grande abraço de Giussani para mim! Que graça este hospital, onde todo tipo de pessoa é acolhida, amada, ajudada a morre em letícia. Vocês já se perguntaram por que São Francisco chamava “nossa santa morte corporal” ou “irmã morte”?
A realidade é o corpo de Cristo. Olhem esta foto: é um doente de AIDS que está se casando. Aconteceu no domingo passado, dia 1° de fevereiro. Logo depois que disse “sim” e colocou o anel no dedo de sua mulher, entrou em coma. Impressionante: SIM e, depois, perdeu os sentidos. Alguém poderia dizer: mas de que lhe serviu se casar naquelas condições? Amigos, o amor é eterno. O que acaba é o aspecto fenomênico da sexualidade, mas a sexualidade, dimensão constitutiva do eu e origem de cada relação, é para sempre. Não esqueçamos o dogma da Assunção...
O SIM deles não era ligado ao uso dos genitais, mas ao destino deles, depois de 35 anos de concubinato. De outra forma, não conseguirei entender porque todos os meus doentes, antes de morrer – aqueles que vivem em concubinato –, querem se casar, usando como motivo: “quero morrer em paz”. Deixo a vocês o desafio de entrar na profundidade dessa afirmação que, como nada mais, explica o que significa amar, o que significa o sacramento do Matrimônio. Para mim, a morte, o olhar para ela em cada instante, encará-la é, de fato, reviver a beleza, a majestade de cada detalhe da liturgia para os defuntos. Peço-lhes, experimentem pedir a um padre que lhes mostre como a Igreja educa para a morte. Para não falar dos cantos, da Missa de Requiem, no “Dies Irae” (hino composto, no século XIII, por Thomas de Celano; ndt) ou no “De Profundis” (trata-se do salmo 130 - 129 da Vulgata; ndt) etc. Como é bela a realidade, porque a liturgia é a realidade na sua máxima expressão. Sempre mais a clínica está se tornando um lugar de missão. Muitos dos internados são evangélicos que se afastaram da Igreja católica por diversos motivos, mas um motivo em particular se repete: não tem espaço para escutar o homem.
Obviamente que o simples pensamento de encontrar um padre ou um quadro de Nossa Senhora pendurado na parede ou a Eucaristia já cria neles um mal-estar... que, porém, dura poucos dias. O que acontece? Três vezes ao dia faço a procissão com o Santíssimo Sacramento, mas nos quartos onde estão evangélicos paro à porta e lhes dou uma bênção. Enquanto que, com os outros, não apenas os abençoo, mas me coloco de joelhos e beijo a cada um deles. Com os evangélicos, pelo contrário, coloco-me de joelhos e lhes dou um beijo, sem Jesus nas mãos. Ou seja, parto deles, da certeza de que a realidade é o corpo de Cristo. Parto deles, não de Cristo, para que consigamos nos entender... e, com o tempo, aquela realdiade que é o corpo de Cristo lhes conduz a pedir os Sacramentos, a beijar um santinho, a gritar pela Eucaristia. Como é verdade que a missão é a alegria de viver a realidade com a certeza de que ela é o corpo de Cristo.
Assim, vocês entendem o quanto me faz sofrer ler, nos jornais daqui, notícias a respeito de Eluana... sofro porque ela é o corpo de Cristo. E olho para Victor que está em condições muito piores: mas ele é o corpo de Cristo. Amigos, a batalha por Eluana é somente para que o capítulo décimo d’O Senso Religioso se torne nosso e de todos. De outra forma, cairemos na ideologia. Se vocês viverem aquele capítulo como comoção, poderão entender porque falo, olho a morte com certos olhos e desejo que todos a olhem assim, porque é a única maneira de olhar para a vida, para a realidade.
P.e Aldo