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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Cartas do P.e Aldo 208


Asunción, 22 de outubro de 2011.

Caríssimos amigos,
A educação nunca é um “andar para trás”, eu dizia, dia desses, à nossa advogada quando, pela enésima vez, movido por um instante de desconfiança quanto a Gabriel, eu lhe disse para rasgar a carta que eu havia preparado para enviar ao juiz que me havia dado a sua guarda, solicitando que fosse entregue a uma instituição do Estado. Gabriel, quando chegou, expulso de uma instituição estatal quando tinha 8 anos, era definido como um “menino problema”. Ele mesmo, quando ousavam perguntar-lhe, quando estava bem, quem era, respondia assim: “sou um menino problema”. Abandonado quando era pequeno, cresceu sem nenhum afeto, sempre encerrado nessas instituições do Estado onde se vigiam garotos e crianças, mas não se os ama, havia se tornado violento e selvagem. Não sabia o que queria dizer ser amado e, portanto, não sabia o que é amar. O seu dia transcorria sempre do mesmo jeito: divertia-se provocando. Era até mesmo difícil conseguir fazê-lo parar um pouco para conversar com ele, porque ou fugia para o mato ou pulava no telhado de alguma casa.
Muitas vezes perdi a paciência com ele e quando – poucas vezes – conseguia pegá-lo, não lhe poupava algumas palmadas no bumbum. E ele ficava ainda mais furioso e me desafiava com os punhos cerrados, rangendo os dentes. Porém, sempre lhe quis muito bem, olhando nele a presença terna, mesmo na sua raiva, do Mistério. E ele percebia isso, até ao ponto de que, um dia, começou a dizer que se chamava Gabriel Trento. Assim, ele que não tinha identidade, reconheceu, no relacionamento comigo, a figura do pai. Foi o início de um caminho como aquele no qual Giussani me abraçou e comecei a caminhar, porque me senti filho. Assim, com Gabriel, nasceu um relacionamento novo. Mas, não no sentido de que não tenha mais me feito sair do eixo, tornando-se um cordeirinho, mas porque começou a germinar nele algo como uma pequena semente da certeza de ser querido por um Outro. Começou também a participar da missa como coroinha. E isto com as mesmas expressões de violência impressionantes, que me obrigavam, por atenção aos outros sete garotos menores que ele e que ele dominava até mesmo com o olhar, a dizer muitas vezes à advogada do meu desejo de renunciar à adoção. E foi o que aconteceu há alguns dias atrás, quando, levantando-se pela manhã, não só decidiu não ir à escola, como também passar o dia inteiro na frente da televisão, tomando posse do controle remoto. Chamaram-me para tentar convencê-lo. Nada deu certo, ainda que eu não tenha lhe poupado também algumas palmadas. Ficou, então, furioso e me enfrentou com os punhos fechados, rangendo os dentes e com os olhos vermelhos de raiva. Eu olhava para ele com dor e cheio de impotência. Foi a enésima solicitação à advogada.
Mas, dentro de mim, uma dor grande, uma batalha. Como nunca, naquele momento, me vinham à mente as palavras de Giussani e que Carrón tem recordado ultimamente: “eu sou Tu que me fazes”. Eu, mas também ele, ele que existe, ele que é. Gabriel é! e não apenas é, mas, neste momento, é feito como eu sou feito. Assim, o meu saco cheio deu lugar ao maravilhamento pelo ser, pelo seu ser. “Amei-te de amor eterno, e tive piedade do teu nada”, do meu nada e do nada de Gabriel. E ainda: “antes de te formares no ventre de tua mãe, Eu pronunciei o teu nome”, o meu nome e o de Gabriel. A minha identidade, assim como a de Gabriel, é anterior à modalidade bonita com a qual eu fui concebido pela minha mãe, e violenta com a qual Gabriel foi concebido. Esta certeza mudou a minha vida e também em Gabriel existe esta pequena semente. 
Assim, pela enésima vez, me vi dizendo à advogada: “Sara, rasgue a carta para o juiz”. “Não é um andar para trás, é a consciência cada vez mais clara em mim do ser que vibra em Gabriel e de que o seu ser, assim como o meu, é feito neste momento por um Outro”.
No dia seguinte, Gabriel me procurou, me abraçou e pediu, uma vez mais, como um cordeirinho, o meu perdão. Fico comovido porque aquela certeza que nos define, não importa qual seja a consciência que Gabriel certamente não tenha daquilo que nos une – o fato de ser e de ser querido agora –, venceu uma vez mais. É isso: educar é apenas isto. Se não fosse assim, imaginem o que seria viver 24h por dia com crianças como estas que, na mais tenra infância, conheceram apenas a violência! Seria impossível e jogaríamos a toalha. E que bonito foi quando ele, depois do seu abraço, me pediu: “posso brincar, agora, com os patins?”. Sorrindo, lhe disse que sim. No fundo, educar é experimentar na própria carne o modo com o qual Deus nos trata. Por isto, viver com estas crianças é, para mim, uma graça grande, porque elas nunca me permitem dar por óbvio o estar diante do ser e, portanto, diante do Mistério.
Padre Aldo.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Uma defesa positiva da natureza humana

Por Dom Filippo Santoro
Bispo de Petrópolis - RJ

Toco um tema de grande relevância na sociedade e na Igreja nesses dias, que é a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a união de pessoas do mesmo sexo. A nossa fé dá um juízo também sobre este fato. Retomo a nota que saiu da última Assembleia Geral da CNBB que afirma:
“A diferença sexual é originária e não mero produto de uma opção cultural. O matrimônio natural entre o homem e a mulher bem como a família monogâmica constituem um princípio fundamental do Direito Natural. (...) A família é o âmbito adequado para a plena realização humana, o desenvolvimento das diversas gerações e constitui o maior bem das pessoas”. Esses são os pontos de referência para um juízo correto sobre a questão atualmente debatida. Continua a nota da CNBB: “As pessoas que sentem atração sexual exclusiva ou predominante pelo mesmo sexo são merecedoras de respeito e consideração. Repudiamos todo tipo de discriminação e de violência . (...) [Porém] equiparar as uniões entre pessoas do mesmo sexo à família descaracteriza a sua identidade e ameaça a estabilidade da mesma”.
Uma coisa é o respeito, a não discriminação, outra coisa é a riqueza da vida familiar, da identidade sexual que dá origem ao matrimônio, que dá origem à família. A família segundo o plano de Deus que tem o direito de ser protegida pelo Estado. “É atribuição do Congresso Nacional propor e votar leis, cabendo ao governo garanti-las. Preocupa-nos ver os poderes constituídos ultrapassarem os limites de sua competência, como aconteceu com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal. [Isso] compromete a ética na política”, que uma decisão do Supremo Tribunal se substitua àquele que é o trabalho do Legislativo, do Congresso legitimamente eleito pelo povo.
Mas aquilo que nos interessa neste momento é o juízo dado sobre essa decisão do Supremo. A motivação usada pelos juízes nesse caso – daqueles que sustentam a união estável e a reconheceram equiparando-a a uma entidade familiar – é que nós vivemos em uma sociedade fragmentada. Existem tantos fragmentos, e um desses fragmentos é a Igreja Católica. O Supremo Tribunal decide quando um fragmento quer prevalecer sobre o outro e intervém para colocar ordem. O Supremo Tribunal tem a presunção de representar o uso da razão quando os direitos de um fragmento são invadidos pelo outro ou não são respeitados. Onze pessoas representam a razão num clima de fragmentação total, de confusão do eu; e aí que domina o poder. Não pode ser um grupo de pessoas que decide o que é justo e o que não é justo quando se trata de definir o que é segundo a razão. E se não é um grupo de pessoas quem é? É somente algo que está na natureza humana, que a razão reconhece, e que se chama lei natural. Existe uma lei natural que junta todos os fragmentos, todas as pessoas.
A fé católica, escuta a voz da razão, e nós somos os primeiros a defender esse laço que une todos os fragmentos da sociedade que sem um fundamento comum seriam incomunicáveis. Diz São Tomás de Aquino: “A lei natural não é outra coisa que a luz da inteligência infundida por Deus em nós. Graças a ela conhecemos o que se deve cumprir e o que se deve evitar. Esta luz e esta lei Deus a concedeu na criação”, (Collationes in decem praeceptis, 1); cit. in: João Paulo II, Veritatis Splendor, 40. Que a sociedade seja fragmentada é um fato, mas que não haja um fundamento comum é toda uma outra questão. Se não tivesse comunicação entre um fragmento e outro não poderia existir encontro entre as pessoas, não poderia existir comunicação, não poderia existir diálogo. O fundamento comum, que é a lei natural, deve ser reconhecido e respeitado. Nesse caso em que 11 pessoas têm todo poder de decidir o que é justo e segundo a razão se manifesta uma prevaricação do poder. Nenhuma lei humana pode-se substituir às leis não escritas que se encontram na natureza humana, como já dizia Sófocles na Antígona. E São Paulo afirma: “A lei está escrita em seus corações” (Rom 2, 15). A nossa posição é a defesa da racionalidade, é a defesa da unidade, é a defesa da natureza.
A partir do encontro com o Senhor, nós temos uma experiência humana diferente. Ele transforma a nossa vida. E nós damos este juízo não como uma posição contra uma outra, não acanhados porque atacados ou reivindicando espaços para a Igreja. Não é isso. É por uma experiência positiva, que não tem medo dos necessários sacrifícios, iluminada pelo encontro com o Senhor que podemos afirmar e defender a natureza humana. E somos agradecidos porque Ele abre os nossos olhos. Por isso, a nossa batalha não é uma batalha de defesa, uma batalha de pessoas colocadas no escanteio. Podemos perder – Jesus morreu na Cruz –, mas o importante é afirmar a verdade da experiência humana, aquilo que torna o humano grande e vibrante, que torna o humano extraordinário, porque capaz de infinito.
Nós fazemos uma batalha positiva, que nos permite encontrar qualquer pessoa, ter contato com qualquer um, porque dialogamos com a humanidade das pessoas, não de uma forma reduzida, mas com uma atenção profunda. Como fizeram os apóstolos e os primeiros cristãos. Naquele tempo estas coisas, no mundo da Grécia, eram aceitas, mas não era a forma humana mais digna. São Paulo em Corinto não está diante de uma sociedade patriarcal, mas pretensamente liberal e manifesta um outro ponto de vista radicalmente diferente. Pensemos como eram tratadas as mulheres, sem falar dos escravos. O Cristianismo revolucionou tudo isso. E nós através do testemunho de uma beleza extraordinária encontrada, podemos comunicar como é positivo para todos defender o bem da família, defender o bem da vida, a partir não de uma teoria, mas da experiência. Por isso, agradeçamos ao Senhor porque nos fez encontrar Aquele que é a fonte da nossa humanidade verdadeira, Aquele do qual a nossa alma tem sede, que o nosso coração deseja, e que não ficou distante e que nos encontrou e nos iluminou sobre a verdadeira consistência da nossa humanidade. E este é um bem para todos; é um aspecto da boa nova que ilumina a vida de qualquer pessoa. O eunuco e o apóstolo são abraçados pela mesma misericórdia, que indica um novo rumo para a vida e para as relações entre as pessoas.

* Extraído do site da CNBB, do dia 27 de maio de 2011.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Liberdade religiosa, caminho para a paz - 03

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI
PARA A CELEBRAÇÃO DO XLIV DIA MUNDIAL DA PAZ

1 DE JANEIRO DE 2011

LIBERDADE RELIGIOSA, CAMINHO PARA A PAZ

A dimensão pública da religião 
6. Embora movendo-se a partir da esfera pessoal, a liberdade religiosa – como qualquer outra liberdade – realiza-se na relação com os outros. Uma liberdade sem relação não é liberdade perfeita. Também a liberdade religiosa não se esgota na dimensão individual, mas realiza-se na própria comunidade e na sociedade, coerentemente com o ser relacional da pessoa e com a natureza pública da religião.
O relacionamento é uma componente decisiva da liberdade religiosa, que impele as comunidades dos crentes a praticarem a solidariedade em prol do bem comum. Cada pessoa permanece única e irrepetível e, ao mesmo tempo, completa-se e realiza-se plenamente nesta dimensão comunitária.
Inegável é a contribuição que as religiões prestam à sociedade. São numerosas as instituições caritativas e culturais que atestam o papel construtivo dos crentes na vida social. Ainda mais importante é a contribuição ética da religião no âmbito político. Tal contribuição não deveria ser marginalizada ou proibida, mas vista como válida ajuda para a promoção do bem comum. Nesta perspectiva, é preciso mencionar a dimensão religiosa da cultura, tecida através dos séculos graças às contribuições sociais e sobretudo éticas da religião. Tal dimensão não constitui de modo algum uma discriminação daqueles que não partilham a sua crença, mas antes reforça a coesão social, a integração e a solidariedade.

Liberdade religiosa, força de liberdade e de civilização:
os perigos da sua instrumentalização
7. A instrumentalização da liberdade religiosa para mascarar interesses ocultos, como por exemplo a subversão da ordem constituída, a apropriação de recursos ou a manutenção do poder por parte de um grupo, pode provocar danos enormes às sociedades. O fanatismo, o fundamentalismo, as práticas contrárias à dignidade humana não se podem jamais justificar, e menos ainda o podem ser se realizadas em nome da religião. A profissão de uma religião não pode ser instrumentalizada, nem imposta pela força. Por isso, é necessário que os Estados e as várias comunidades humanas nunca se esqueçam de que a liberdade religiosa é condição para a busca da verdade e que a verdade não se impõe pela violência mas pela "força da própria verdade".[10] Neste sentido, a religião é uma força positiva e propulsora na construção da sociedade civil e política.
Como se pode negar a contribuição das grandes religiões do mundo para o desenvolvimento da civilização? A busca sincera de Deus levou a um respeito maior da dignidade do homem. As comunidades cristãs, com o seu patrimônio de valores e princípios, contribuíram imensamente para a tomada de consciência das pessoas e dos povos a respeito da sua própria identidade e dignidade, bem como para a conquista de instituições democráticas e para a afirmação dos direitos do homem e seus correlativos deveres.
Também hoje, numa sociedade cada vez mais globalizada, os cristãos são chamados – não só através de um responsável empenho civil, econômico e político, mas também com o testemunho da própria caridade e fé – a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do reto ordenamento das realidades humanas. A exclusão da religião da vida pública subtrai a esta um espaço vital que abre para a transcendência. Sem esta experiência primária, revela-se uma tarefa árdua orientar as sociedades para princípios éticos universais e torna-se difícil estabelecer ordenamentos nacionais e internacionais nos quais os direitos e as liberdades fundamentais possam ser plenamente reconhecidos e realizados, como se propõem os objetivos – infelizmente ainda menosprezados ou contestados – da Declaração Universal dos direitos do homem de 1948.

Uma questão de justiça e de civilização:
o fundamentalismo e a hostilidade contra os crentes prejudicam a laicidade positiva dos Estados
8. A mesma determinação, com que são condenadas todas as formas de fanatismo e de fundamentalismo religioso, deve animar também a oposição a todas as formas de hostilidade contra a religião, que limitam o papel público dos crentes na vida civil e política.
Não se pode esquecer que o fundamentalismo religioso e o laicismo são formas reverberadas e extremas de rejeição do legítimo pluralismo e do princípio de laicidade. De fato, ambas absolutizam uma visão redutiva e parcial da pessoa humana, favorecendo formas, no primeiro caso, de integralismo religioso e, no segundo, de racionalismo. A sociedade, que quer impor ou, ao contrário, negar a religião por meio da violência, é injusta para com a pessoa e para com Deus, mas também para consigo mesma. Deus chama a Si a humanidade através de um desígnio de amor, o qual, ao mesmo tempo que implica a pessoa inteira na sua dimensão natural e espiritual, exige que lhe corresponda em termos de liberdade e de responsabilidade, com todo o coração e com todo o próprio ser, individual e comunitário. Sendo assim, também a sociedade, enquanto expressão da pessoa e do conjunto das suas dimensões constitutivas, deve viver e organizar-se de modo a favorecer a sua abertura à transcendência. Por isso mesmo, as leis e as instituições de uma sociedade não podem ser configuradas ignorando a dimensão religiosa dos cidadãos ou de modo que prescindam completamente da mesma; mas devem ser comensuradas – através da obra democrática de cidadãos conscientes da sua alta vocação – ao ser da pessoa, para o poderem favorecer na sua dimensão religiosa. Não sendo esta uma criação do Estado, não pode ser manipulada, antes deve contar com o seu reconhecimento e respeito.
O ordenamento jurídico a todos os níveis, nacional e internacional, quando consente ou tolera o fanatismo religioso ou anti-religioso, falta à sua própria missão, que consiste em tutelar e promover a justiça e o direito de cada um. Tais realidades não podem ser deixadas à mercê do arbítrio do legislador ou da maioria, porque, como já ensinava Cícero, a justiça consiste em algo mais do que um mero ato produtivo da lei e da sua aplicação. A justiça implica reconhecer a cada um a sua dignidade,[11] a qual, sem liberdade religiosa garantida e vivida na sua essência, fica mutilada e ofendida, exposta ao risco de cair sob o predomínio dos ídolos, de bens relativos transformados em absolutos. Tudo isto expõe a sociedade ao risco de totalitarismos políticos e ideológicos, que enfatizam o poder público, ao mesmo tempo que são mortificadas e coarctadas, como se lhe fizessem concorrência, as liberdades de consciência, de pensamento e de religião.

Notas
[10] Cf. CONC. ECUM. VAT. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 1.
[11] Cf. CÍCERO, De inventione, II, 160.

* Retirado do site do Vaticano, do dia 1o de janeiro de 2011. Adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

A beleza nos curará do niilismo e do fundamentalismo


Por Costantino Esposito

Costantino Esposito enfrenta as raízes culturais do relacionamento entre identidade e diferença e a dificuldade hodierna de pensar um “eu” em relaçõ com o outro. Terceiro de três artigos, depois de De quem somos? Todos os dilemas de uma identidade em indecisa, e As aventuras de um “eu” disputado pela política e pelo nada.

Mas, em virtude do que podemos entender a diferenciação das culturas? Segundo a posição citada no artigo anterior, podemos fazer isso apenas se estivermos sustentados pelo seu caráter comum de “ficção”: set odas são enganos ou auto-enganos, então as diferenças serão variações sobre este único tema. É tão necessário encontrar uma base comum para poder reconhecer, compreender e também justificar as diferenças, que é possível encontrar uma – a única possível, a este ponto – na ilusão, nova “substância” de uma natureza humana dessubstanciada, resíduo de universalidade vista em forma negativa. Mas poderíamos perguntar: a ilusão da ficção é o ponto inicial da interpretação? Ou essa é, por sua vez, o êxito de uma interpretação pré-conceitual do fenômeno que se quer compreender? Se também renunciássemos – considerando-a pretensiosa ou violenta – à pretensão de julgar um identidade cultural como mais ou menos “verdadeira” ou “justa” em relação a outra (“ocidente” versus “oriente”, “cristianismo” versus “islã”, laicidade versus religiosidade, modernização globalizada versus tradição de valores etc.), não podemos, porém, renunciar ao reconhecimento de que é verdadeira e é justa a pergunta mesma ou a exigência estrutural que, em cada uma dessas, age a produção antropológica, mesmo se esta última, ao final, devesse resultar de uma ficção consciente. Para assumir, conscientemente, uma ficção como resposta para a própria necessidade de significado, é preciso que tal necessidade seja percebido como um dado imprescindível da nossa condição de homens. A “natureza” humana é tal que, sobre sua base, o homem pode ser chamado o animal que faz perguntas: e aqui está enraizada aquela simpatia entre as culturas e as diversas identidades que está no fundo de todas as suas possíveis diferenças.
Note-se, entre outras coisas, que a insistência sobre o fato de que o ser humano não tem a identidade de uma substância natural entre as outras, mas é muito mais um processo de autorrealização dinâmica e historicocultural, por si só não anula, de fato, nem teórica nem praticamente, a hipótese de que tal dinâmica seja movida por uma interrogação fundamental – aquela sobre o significado de si, da própria comunidade de pertença e sobre o mundo inteiro. E vice-versa, a verdade da natureza ou da condição humana constitui um nível que, longe de ser predeterminado de uma vez por todas, acontece e se produz historicamente. O perguntar dos homens concretos, de carne e osso, sempre determinado por precisas condições espaço-temporais, é o modo com o qual cada identidade faz experiência de um fenômeno comum, por mais diversas ou opostas que possam ser as tentativas de resposta. Por isso, o confronto entre as identidades e as culturas é possível apenas se estiver continuamente aberto ao confronto, a partir de cada identidade e cultura de pertença, entre as perguntas de fundo e as respostas históricas, levando em consideração, particularmente, a pertinência e a taxa de satisfação que as segundas possuem em relação às primeiras. O jogo deve sempre ser aberto, nunca definido absolutamente ou para sempre, mas sempre reafirmando o acontecer do nexo entre a pergunto de sentido e a sua produção.
Deste ponto de vista, deve ser, talvez, responsabilidade peculiar da escola, sempre mais marcadamente, permitir que se localize na própria experiência os sinais evidentes da exigência de sentido – ou seja, da pergunta pelo ser e pelo ser-feliz ou realizado – que permitam, em primeiro lugar, colocar em questão, outra vez, e verificar criticamente a congruência ou pertinência das respostas fornecidas pela própria tradição (colocar à prova a própria identidade, que por mais que seja recebida exige ser escolhida ou recusada pelo eu individual); em segundo lugar, escolher, exatamente neste nível de verificação, presente como exigência metodológica a partir de dentro de cada identidade, o princípio da compreensibilidade de todas as culturas e, portanto, de todas as diferenças. Certamente, não para reduzir forçosamente as diversidades a uma estrutura imposta artificialmente a partir do alto, mas para verificar as condições segundo as quais os homens podem se compreender (e, de fato, se compreendem) entre si e podem traduzir (e, de fato, traduzem) uma cultura em outra. Na nossa experiência aprendemos, todos os dias, que é possível que homens de culturas e identidades diferentes se entendam. Por quê? O que torna isso possível? Evidentemente deve haver, já presente, ou agindo, um fator ou fatores que o permitam. Esses, segundo a minha hipótese, consistem na pergunta pelo sentido e na exigência de verdade, justiça e bem, não compreendidos como perspectivas vagas ou como indicações de uma ulterioridade utópica, mas como funções operativas do nosso modo de estar no mundo.
3) A terceira questão diz respeito, finalmente, à ideia, hoje bastante difundida, segundo a qual, para salvar as diferenças, é preciso renunciar a toda pretensão de verdade, e que, contra toda afirmação de verdade, está implicada inevitavelmente um “monismo” cultural. Também nesse caso, age de maneira determinante o vocabulário que usamos: se a verdade coincide com algo de absoluto, de intemporal e de fixado de uma vez por todas, aquilo que, pelo contrário, é temporal, histórico, contingente inevitavelmente será a única coisa a escapar da pretensão da verdade de ser imutável. Também aqui chega, por assim dizer, às suas extremas consequências toda uma história do pensamento moderno, segundo a qual o relacionamento entre o eu e a verdade chega à sua máxima problematização. No sentido de que ou a verdade objetiva do real é vista como um valor absoluto que excede e transcende a experiência individual do eu, ou então é reduzida às certezas construídas dentro do eu mesmo. E na cultura contemporânea, esta dificuldade de relacionamento entre o eu e o verdadeiro parece ter chegado a um estado de crise não mais patológica mas fisiológica. O eu parece poder afirmar a si mesmo apenas se for às custas da renúncia do seu relacionamento constitutivo com a verdade; e, pelo contrário, afirmar a verdade parece ser possível apenas às custas de se separar da experiência subjetiva do eu. Consideradas nos seus êxitos extremos, a primeira chance é a que leva tendencialmente ao relativismo niilista, a segunda é a que anima a perspectiva do absolutismo fundamentalista: um eu sem verdade e uma verdade sem eu.
Mas, a verdade é o que se apresenta sempre na experiência como necessidade. Certamente, não quero sustentar que a verdade seja um produto cultural ou artificial das nossas expectativas, mas que a nossa pergunta pelo verdadeiro e pelo real constituem o sinal mais evidente de que estamos já em relação com ela. De onde, de fato, nasceria o nosso desejo de entender qual a relação das coisas todas conosco, com os outros, com o mundo inteiro? E note-se que, mesmo nos casos em que não quiséssemos saber e preferíssemos permanecer suspensos na incerteza ou encerrados na imaginação, nós o faríamos para nos defender de uma verdade que tememos, mas, paradoxalmente, exatamente isso atestaria que não podemos viver sem esta relação. Como escreveu, uma vez, Agostinho de Hipona, todos os homens, sem nenhuma exceção, experimentam prazer no verdadeiro, uma espécie de gosto no conhecer a verdade (gaudium de veritate), e não vale a objeção de que isto não pode ser reconhecido nos mentirosos, visto que também os que enganam os outros pelo menos não gostariam de ser enganados (cf. Confissões, X, 23.33). 
Mas, como podemos descobrir esta relação estrutural com o verdadeiro? Em que medida ele é operativo no nosso eu? Somente em uma comparação densa com os dados da realidade, seja a realidade natural ou a cultural. Somente num confronto assim, o verdadeiro – ou seja, o sentido objetivo, a ratio – pode ser descoberto e colocado à prova: não inventado, construído ou imposto por nós (que é o risco permanente da ideologia), mas acolhido e repensado como um significado trazido pela realidade mesma. Também a este propósito nos pode ajudar Agostinho, que afirma, sempre nas Confissões (X, 6.10) que a realidade nos fala sobretudo através da sua “beleza” (species), que, para o filósofo de Hipona, não é mero valor estético, mas a descoberta de uma ordem, de uma harmonia ou de um logos, ou seja, da razão profunda pela qual as coisas existem. Só que esta beleza “não fala a todos da mesma maneira”, ou melhor: todos a veem, mas nem todos a colhem. Podem colhê-la apenas aqueles que sabem fazer pergunta (homines autem possunt interrogare), ou seja que sabem perguntar com juízo. Esta iudex ratio, como Agostinho a chama, age como uma contínua comparação naqueles que “acolhem a voz recebida de fora e a confrontam com a verdade que está presente neles mesmos”.
E se uma das tarefas mais urgentes, mas também mais fascinantes, da escola fosse educar a buscar o verdadeiro, reconhecendo-o através da beleza da realidade? A experiência da beleza (do que, naturalmente, falo aqui não como objeto de uma disciplina estética específica, mas como a percepção da presença de um significado de mim e das coisas) envolve, de maneira impressionante e totalizante, o nosso eu, mas ao mesmo tempo não pode nunca ser simplesmente produzida ou planejada por nós. Acontece, surpreendendo-nos. Mas, no seu acontecer, acende a nossa verdadeira necessidade. O belo é, por assim dizer, a confirmação mais impressionante de que apenas quando se encontra uma resposta para a nossa pergunta pelo significado que tal pergunta começa, efetivamente, a ser. Talvez, seja exatamente nessa exigência de verdade e de realidade, assim como ela é despertada na experiência da beleza, que podemos encontrar um traço talvez inédito, mas certamente provocante, para enfrentar o problema da relação entre identidade e diferenças numa perspectiva intercultural. Nesta linguagem, de fato, realiza-se o incrível: que se possa não apenas tolerar o outro de nós, ou inclui-lo nos nossos esquemas, mas reconhecê-lo como aquilo do que temos necessidade para sermos verdadeiramente nós mesmos.

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 25 de outubro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.