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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Uma autoridade da ONU declara que o aborto é um direito humano, e o Secretário Geral apoia o relatório


Por Douglas Sylva, PhD

Nova York, 23 de setembro (C-FAM) – No momento em que a atenção do mundo poderia estar dirigida à Assembleia Geral da ONU, que está debatendo a questão do Estado da Palestina, o método usado por algumas das autoridades das Nações Unidas que militam em favor da legalização do aborto passa despercebido.

Durante os meses do verão, quando a atenção da imprensa sobre as Nações Unidas é, comumente, mais fraca, a Secretaria Geral das Nações Unidas publicou um relatório do Comitê dos Direitos Humanos que afirma que todas as nações deveriam aceitar que as mulheres e as meninas tenham direito de acesso ao aborto para que possam gozar de seus direitos humanos.
O relatório, redigido pelo relator especial da ONU Anand Grover, faz uma ligação entre o aborto e o direito fundamental ao padrão mais elevado de saúde física e mental. Segundo ele, “as leis que penalizam e reduzem o aborto são excelentes exemplos de entraves inaceitáveis à realização dos direitos das mulheres à saúde, e devem ser eliminadas”. Grover, em seu relatório, prossegue dizendo que só a legalização do aborto já é certamente necessária, mas não é suficiente para que se considere que os Estados não são mais culpados de violação dos direitos das mulheres à saúde. Os Estados devem, além do mais, promover ativamente este procedimento. “Os Estados devem tomar as medidas [necessárias] para permitir que os serviços legais e [medicamente] seguros estejam disponíveis e acessíveis, e que sejam de boa qualidade. Os abortos sem risco, no entanto, não estarão verdadeiramente disponíveis enquanto não houver uma descriminação da prática, e a não ser que os Estados criem as condições nas quais possam ser realizados. Tais condições incluem o estabelecimento de clínicas disponíveis e acessíveis a todas as mulheres, o oferecimento de formação de qualidade para médicos e pessoal médico em geral, a facilitação das condições para a obtenção de licenças de funcionamento, e a garantia da acessibilidade a equipamentos e técnicas as mais recentes e as mais seguras do ponto de vista médico”.
Grover acredita igualmente que as mulheres devem ter o acesso ao aborto garantido a fim de poderem proteger sua saúde mental. Segundo ele, “agora que o impacto psicológico do acesso ao aborto clandestino ou da continuidade de uma gravidez não desejada foi muito bem documentado pelas pesquisas, não parece mais existir nexo causal que prove a existência de algum nível de atentados à saúde mental resultante da escolha consciente pelo aborto”.
Grover se mostra preocupado com as mulheres que, tendo abusado de drogas durante a gravidez, podem ser processadas por maus-tratos aos filhos: “Em certos casos, a legislação civil em matéria de bem-estar infantil foi de tal forma estendida que chega a incluir sanções punitivas em casos de exposição pré-natal da criança às drogas consumidas pela mãe, e este risco tem sido utilizado como argumento para privar os pais de seus direitos parentais, privando-os da guarda de seus filhos. Ao se aplicarem estas leis, um simples relatório que mostre a relação entre a tóxico-dependência de uma mulher grávida e os sinais da exposição do recém-nascido às drogas pode ser considerado como prova de maus-tratos ou de negligência para com a criança”. É por isso que Grover tem pedido aos Estados que “suspendam/anulem a aplicação das legislações penais existentes que concernem aos diferentes tipos de comportamento durante a gravidez, tais como os comportamentos ligados ao tratamento do feto, em particular os abortos naturais, o consumo de álcool e de drogas, e a transmissão do HIV”.
O relatório começa com uma nota do Secretário Geral da ONU, Ban Ki-Moon, que afirma ter “a honra” de apresentar o relatório à Assembleia Geral. Ainda que tal nota seja conforme ao protocolo da ONU, ao lermos o conteúdo deste relatório, podemos nos perguntar como o sistema da ONU pode ainda querer sustentar uma imagem de neutralidade oficial naquilo que diz respeito ao aborto.
Os Estados que reconhecem o direito à vida do feto poderiam também tentar o argumento segundo o qual tais legislações não significam um atentado aos direitos à saúde de seus cidadãos.

* Extraído do Friday Fax (C-FAM), do dia 23 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Cartas do P.e Aldo 197

Asuncíon, 17 de junho de 2011.

Caros amigos,
Cedo ou tarde, teremos que morrer, mesmo se, frequentemente, nos esquecemos disto. Então, como vocês gostariam de morrer? Aldo, um homem de 36 anos, paciente terminal da clínica, me disse: "vim para cá porque quero me preparar bem para o encontro definitivo com Jesus. Quero morrer com dignidade, ou seja, com o Santo Rosário na mão e Jesus Eucarístico. O Rosário é a minha arma para vencer esta batalha final. Padre, me acompanhe nesta luta, porque eu quero ver Jesus".
Deus conceda a todos nós esta liberdade.
Padre Aldo

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Evangelho é a maior força de transformação do mundo


Encontro com o mundo da cultura,
da arte e da economia

Discurso do Santo Padre Bento XVI

Pólo da Saúde – Veneza
Domingo, 8 de maio de 2011.

Caros amigos,
Estou feliz por poder saudar-vos cordialmente, a vós representantes do mundo da cultura, da arte e da economia de Veneza e de seu território. Agradeço-vos a presença e vossa simpatia. Expresso meu reconhecimento ao Patriarca e ao Reitor que, em nome do Studium Generale Marcianum, se fez intérprete dos sentimentos de todos vós e introduziu este nosso encontro, o último de minha intensa visita começada ontem, em Aquileia. Gostaria de deixar-vos algumas ideias muito sintéticas, que espero sejam úteis para a reflexão e para o compromisso comum. Estas ideias me vieram de três palavras que são metáforas sugestivas: três palavras ligadas a Veneza e, particularmente, ao lugar no qual nos encontramos. A primeira é água; a segunda é Saúde, a terceira é Sereníssima.
Comecemos pela água – como parece lógico, sob muitos aspectos. A água é símbolo ambivalente: de vida, mas também de morte; as populações atingidas por enchentes e maremotos o sabem muito bem. Mas a água, antes de mais, é elemento essencial para a vida. Veneza é chamada a “Cidade d’água”. Mesmos para vós, habitantes de Veneza, esta condição tem um duplo sentido, negativo e positivo: traz muitos problemas e, ao mesmo tempo, é fruto de um fascínio extraordinário. Que Veneza seja “Cidade d’água” faz pensar num célebre sociólogo contemporâneo que definiu a nossa sociedade e a cultura europeia como “líquida”: uma cultura “líquida”, para exprimir a “fluidez”, a sua pouca estabilidade ou, talvez, a sua ausência de estabilidade, a inconstância, a inconsistência que, às vezes, parece caracterizá-la. E aqui gostaria de inserir a primeira proposta: Veneza não como cidade “líquida” – no sentido que acabo de acenar –, mas como cidade “da vida e da beleza”. Certamente que se trata de uma escolha, mas na história é preciso escolher: o homem é livre para interpretar, para dar um sentido à realidade, e exatamente nesta liberdade é que consiste a sua grande dignidade. No âmbito de uma cidade, qualquer que seja, também as escolhas de caráter administrativo, cultural e econômico dependem, no fundo, desta orientação fundamental, que podemos chamar “política” na sua acepção mais nobre e mais alta. Trata-se de escolher entre uma cidade “líquida”, pátria de uma cultural que parece sempre mais aquela do relativo e do efêmero, e uma cidade que renova constantemente a sua beleza, a partir de fontes benéficas para a arte, para o saber, para as relações entre os homens e os povos. 
Passemos à segunda palavra: “Saúde”. Encontramos no “Pólo da Saúde”: uma realidade nova, que, porém, tem raízes antigas. Aqui, na Punta della Dogana, surgiu uma das igrejas mais célebres de Veneza, obra de Longhena, edificada como voto a Nossa Senhora pela libertação da peste de 1630: Santa Maria da Saúde. Ao lado dela, o célebre arquiteto construiu o Convento dos Somaschi, que se tornou Seminário Patriarcal. “Unde origo, inde salus”, diz o mote gravado no centro da cúpula maior da Basílica, expressão que indica como a origem da Cidade de Veneza – fundada, segundo a tradição, no dia 25 de março de 421, dia da Anunciação – é estreitamente ligada à Mãe de Deus. E exatamente por intercessão de Maria veio a saúde, a salvação contra a peste. Mas, refletindo sobre este mote, podemos extrair dele também um significado ainda mais profundo e mais amplo. Da Virgem de Nazaré teve origem Aquele que nos dá a “saúde”. A “saúde” é uma realidade abrangente, integral: vai desde o “estar bem”, que nos permite viver serenamente um dia de estudo e de trabalho, ou de férias, até à salus animae, de que depende o nosso destino eterno. Deus cuida de tudo isso, sem excluir nada. Cuida da nossa saúde em sentido pleno. Jesus, no Evangelho, nos fala disso: Ele curou doentes de todos os tipos, mas também libertou endemoninhados, perdoou pecados, ressuscitou mortos. Jesus revelou que Deus ama a vida e quer libertá-la de toda negação, até àquela radical, que é o mal espiritual, o pecado, raiz venenosa que contamina tudo. Por isto, Jesus pode mesmo ser chamado “Saúde” do homem: Salus nostra Dominus Iesus. Jesus salva o homem, colocando-o novamente numa relação salutar com o Pai, na graça do Espírito Santo; imerge-o nesta corrente pura e vivificante que arranca o homem das suas “paralisias” físicas, psíquicas e espirituais; cura-o da dureza de coração, do fechamento egocêntrico e o faz saborear a possibilidade de encontrar verdadeiramente a si mesmo, perdendo-se por amor a Deus e ao próximo. Unde origo, inde salus. Este mote lembra múltiplas referências; limito-me a recordar uma, a célebre expressão de Santo Irineu: “Gloria Dei vivens homo, vita autem hominis visio Dei [est]” (Adv. haer. IV, 20, 7). Que poderia ser parafraseada assim: a glória de Deus é a plena saúde do homem, e ela consiste no estar em profunda relação com Deus. Podemos dizê-lo também com os termos caros ao neo-Beato João Paulo II: o homem é o caminho da Igreja, e o Redentor do homem é Cristo.
Finalmente, a terceira palavra: “Sereníssima”, o nome da República de Veneza. Um título, de fato, estupendo, poder-se-ia dizer utópico, se pensássemos na realidade terrena, todavia capaz de suscitar não apenas memórias de glórias passadas, mas também ideais que impulsionam projetos de hoje e de amanhã, nesta grande região. “Sereníssima”, em sentido pleno, é somente a Cidade Celeste, a Nova Jerusalém, que aparece no final da Bíblia, no Apocalipse, como uma visão maravilhosa (Cf. Ap 21, 1 e 22, 5). No entanto, o cristianismo concebe esta Cidade Santa, completamente transfigurada pela glória de Deus, como uma meta que move os corações dos homens e impulsiona seus passos, anima o compromisso cheio de fadiga e paciência no sentido de melhorar a cidade terrena. É preciso sempre lembrar, a este propósito, as palavras do Concílio Vaticano II: “Nenhum proveito tem o homem se ganha o mundo inteiro, mas perde a si mesmo. Todavia, a espera por uma terra nova não deve enfraquecer, mas muito mais estimular a solicitude no trabalho relativo à terra presente, onde cresce aquele corpo da humanidade que já consegue oferecer algum prenúncio do mundo novo” (Cost. Gaudium et spes, 39). Escutamos estas expressões num tempo no qual havia exaurido a força das utopias ideológicas e não apenas o otimismo havia obscurecido, mas também a esperança entrou em crise. Não devemos, então, esquecer que os Padres conciliares, que nos deixaram este ensinamento, viveram a época das duas guerras mundiais e dos totalitarismos. A perspectiva deles não era, certamente, ditada por um otimismo fácil, mas pela fé cristã, que anima a esperança ao mesmo tempo grande e paciente, aberta para o futuro e atenta às situações históricas. Nesta mesma perspectiva, o nome “Sereníssima” nos fala de uma civilização da paz, fundada sobre o respeito mútuo, sobre o conhecimento recíproco, sobre as relações de amizade. Veneza tem uma longa história e um rico patrimônio humano, espiritual e artístico para ser capaz, também hoje, de oferecer uma preciosa contribuição na ajuda aos homens no sentido de crerem num futuro melhor e se empenharem em sua construção. Mas, para isto, não se pode ter medo de outro elemento emblemático, contido no brasão de São Marcos: o Evangelho. O Evangelho é a maior força de transformação do mundo, mas não é uma utopia, nem uma ideologia. As primeiras gerações cristãs chamavam-no o “caminho”, ou seja, o modo de viver que Cristo praticou, por primeiro, e que nos convida a seguir. Chega-se à cidade “sereníssima” através desse caminho, que é o caminho da caridade na verdade, sabendo bem, como nos recorda ainda o Concílio, que não se deve “caminhar na estrada da caridade somente nas grandes coisas, mas também e sobretudo nas circunstâncias ordinárias da vida” e que, a exemplo de Cristo, “é preciso também carregar a cruz; aquela que, pela carne e pelo mundo, é colocada nas costas dos que buscam a paz e a justiça” (Cost. Gaudium et spes, 38).
Eis, caros amigos, as ideias para uma reflexão que gostaria de compartilhar convosco. Para mim, foi uma alegria poder concluir a minha visita na vossa companhia. Agradeço mais uma vez o Cardeal Patriarca, o Auxiliar e todos os colaboradores, por esta magnífica acolhida. Saúdo a Comunidade Judaica de Veneza – que tem antigas raízes e é uma presença importante no tecido social – com o seu Presidente, Prof. Amos Luzzatto. Também dirijo meu pensamento aos muçulmanos que vivem nesta cidade. Deste lugar tão significativo, dirijo minha cordial saudação a Veneza, à igreja que aqui peregrina e a todas as Dioceses do Triveneto, deixando, como sinal de minha perene recordação, a Bênção Apostólica. Obrigado pela vossa atenção.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 8 de maio de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Uma lição para Marilena

Por Paulo R. A. Pacheco

Há pouco menos de 10 anos atrás, eu acordava num hotel em Curitiba... enquanto me trocava para ir a um colóquio de filosofia no qual inscrevera um trabalho meu, liguei a televisão e me deparei com imagens que me chocaram: o WTC em chamas. Alguns minutos para me inteirar dos fatos e chegavam aos meus ouvidos as primeiras "informações" de que parecia se tratar de um atentado... pouco antes de desligar a televisão, a confirmação. Era o dia 11 de setembro de 2001.
Corri para a PUC do Paraná, onde acontecia o "IV Colóquio Internacional de Estudos Filosóficos do Século XVII - Liberdade, Necessidade e Contingência"... Estava absolutamente aturdido com tudo o que vira e ouvira. Sentei-me enquanto via a mesa da manhã se compondo. Não me lembro dos nomes de todos os membros, mas me lembro claramente de que a Prof.a Marilena Chauí coordenava a mesa e dava abertura aos trabalhos daquela manhã. Para minha surpresa, seu comentário inicial foi de uma infelicidade sem tamanho - mais tarde, entendi que comentários infelizes não são lapsos quando se trata dessa senhora, mas são traços do seu mau gosto intelectual: "Os que sempre se vangloriaram de ser a nação poderosa da liberdade aprenderam, hoje, finalmente, qual é o seu lugar no mundo". Um intertexto decorado com um sorriso cínico e o balouçar aprovador de cabeças "pensantes" deu um ar de sabedoria às palavras da ínclita personagem. Senti-me mal por participar daquilo. Ouvi duas ou três palavras do conferencista daquela manhã - um professor francês que se esforçava por mostrar a inteligência de Descartes na vitória sobre a hegemonia de pensamento da Igreja -, levantei-me e voltei para o hotel. Liguei a televisão. E telefonei para minha orientadora. Enquanto assistia à cobertura dos acontecimentos, conversava com ela, contando tudo o que ouvira pela manhã, e lhe dizia de minha vontade de não mais apresentar meu trabalho - a Prof.a Chauí, a propósito, coordenaria a mesa de comunicações da qual eu participaria na parte da tarde. Evidentemente, minha orientadora não permitiu que eu fizesse isso.
Almocei e, antes de voltar para a PUC, resolvi ir à missa... No caminho para a catedral, pensava no como podemos ser maus. Na liturgia daquele dia, se lia a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios: "E, quando tudo lhe estiver sujeito, então também o próprio Filho renderá homenagem àquele que lhe sujeitou todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos" (1Cor 15, 28)... Voltei para a PUC com aquelas palavras ressoando por dentro: "a fim de que Deus seja tudo em todos". E, aos poucos, o juízo anterior sobre a maldade, mudava em pergunta, em pedido: "como, Senhor, numa situação dessas, é possível haver Tua presença? Mostra-Te!".
De volta a Ribeirão Preto, no dia seguinte, soubera que, naquele 11 de setembro, a FFLCH/USP promovera, em São Paulo, a "Osama Bin Reagge"... Estranho? Não! Que algo do gênero tivesse sido proposto pela intelligentzia uspiana, tão bem formada por "cabeças" (?) como a de Marilena Chauí - alcunhada muito a propósito por Bruno Tolentino de Marxilena Xuxauí -, é esperado... e, o que mais assusta, é louvado naquele antro de lixo do pensamento.

Nesses dias, após o assassinato de Osama Bin Laden - o patrono do festim diabólico da Fefelech -, certamente deve estar pairando, nos ares da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o cheiro da dor e do luto, misturado àquela maresia descolada que faz olhar para a morte de um líder do naipe do Osama como o nascimento de um novo mártir, que, muito seguramente, ocupará um lugar de destaque ao lado de ícones como o de Che Guevara. Nesses dias, após o assassinato de Osama Bin Laden - o professor que "ensinou aos EUA o seu lugar" -, me pergunto o que deve estar passando na cabeça da nossa mais aclamada pensadora: a preclara Prof.a Marilena Chauí. O que será que aprendemos disso, professora? Qual a extensão do sorriso cínico que se desenhará, agora, no seu rosto? Será feita festa sobre o cadáver do Osama com a mesma desenvoltura com a qual se fez festa sobre o cadáver de 3000 inocentes?
Não, a sua morte não é motivo de louvor, nem  de alegria... a morte de um não sacia a sede de justiça pela morte de três mil. Assim como a morte de três mil continuaria a ser insuficiente para saciar esta mesma sede infinita. Não, professora! Acredito que sua morte sirva apenas para que desperte nos corações aquela sede de justiça que, há dez anos atrás, me levou a perguntar e pedir: "como, Senhor, numa situação dessas, é possível haver Tua presença? Mostra-Te!". 
No seu Jesus de Nazaré, Bento XVI nos lembra que "somente se Jesus ressuscitou é que aconteceu algo de verdadeiramente novo, que muda o mundo e a situação do homem. Então Ele, Jesus, torna-Se o critério em que nos podemos fiar; porque, então, Deus manifestou-Se verdadeiramente". Somente Tua Presença, Senhor, muda o mundo e a situação do homem. Muda-nos, Senhor!

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O sentido da Páscoa para quem não crê

Por Dom Carlo Maria Cardeal Martini

Enquanto o Natal suscita instintivamente a imagem de quem se joga com alegria (e também cheio de saúde) na vida, a Páscoa é ligada a representações mais complexas. É o acontecimento de uma vida passada através do sofrimento e da morte, de uma existência dada de volta a quem a havia perdido. Por isso, se o Natal suscita um pouco em todas as latitudes (mesmo junto aos não cristãos e aos não crentes) uma atmosfera de letícia e quase de alegria despreocupada, a Páscoa permanece sendo um mistério mais escondido e difícil. Mas, toda a nossa existência, para além de uma retórica fácil, se joga preferentemente sobre o terreno do obscuro e do difícil. Penso sobretudo, neste momento, nos doentes, naqueles que sofrem sob o peso de doenças graves, naqueles que não sabem para quem comunicar sua angústia, e também em todos aqueles para quem vale o antigo ditado, icástico e quase intraduzível, senectus ipsa morbus, “a velhice é, por sua natureza, uma doença”. Penso, finalmente, em todos aqueles que sentem na carne, na psique ou no espírito o estigma da fraqueza e da fragilidade humana: esses são provavelmente a maioria dos homens e das mulheres deste mundo.
Por isto, gostaria que a Páscoa fosse vivida sobretudo como um convite à esperança, também para os sofredores, para as pessoas idosas, para todos aqueles que estão curvados sob os pesos da vida, para todos os excluídos dos circuitos da cultura predominante, que é (enganosamente) a do “estar bem” como princípio absoluto. Gostaria que a saudação e o grito que os nossos irmãos do Oriente têm trocado entre si nestes dias, “Cristo ressuscitou, Cristo verdadeiramente ressuscitou”, percorresse os corredores dos hospitais, entrasse nos quartos dos doentes, nas celas das prisões; gostaria que suscitasse um sorriso de esperança também naqueles que se encontram nas salas de espera para complicadas análises solicitadas pela medicina de hoje, onde, frequentemente, se encontram rostos tensos, pessoas que tentam esconder o nervosismo que as agita.
A pergunto que me faço é: o que a Páscoa diz a mim, hoje, idoso, um pouco debilitado nas forças, já na lista de chamada para uma passagem inevitável? E o que poderia dizer também para quem não compartilha a minha fé e a minha esperança? Antes de mais, a Páscoa me diz que “os sofrimentos do momento presente não são comparáveis à glória futura que deverá ser revelada a nós” (Rom 8, 18). Estes sofrimentos são, em primeiro lugar, o de Cristo na sua Paixão, para os quais seria difícil encontrar uma causa ou uma razão se não se olhasse para além do muro da morte. Mas, existem também todos os sofrimentos pessoais ou coletivos que afetam a humanidade, causados ou pela cegueira da natureza ou pela maldade ou negligência dos homens.
É preciso repetir para si mesmo, com audácia, vencendo a resistência interior, que não há proporção entre aquilo que devemos sofrer e aquilo que esperamos com confiança. Por ocasião da Páscoa, gostaria de poder dizer a mim mesmo, com fé, as palavras de Paulo na Segunda Carta aos Coríntios: “É por isso que não desfalecemos. Ainda que exteriormente se desconjunte nosso homem exterior, nosso interior renova-se de dia para dia. A nossa presente tribulação, momentânea e ligeira, nos proporciona um peso eterno de glória incomensurável. Porque não miramos as coisas que se vêem, mas sim as que não se veem . Pois as coisas que se vêem são temporais e as que não se vêem são eternas” (4, 16-17).
Tudo isto pede uma grande tensão de esperança. Porque, como disse também São Paulo, “não esperança, somos salvos. Ora, aquilo que se espera, se é visto, não é mais esperança” (Rom 8, 24). Esperar assim pode ser difícil, mas não vejo outra saída para os males deste mundo, a não ser que se queira esconder o rosto na areia e ver ou pensar nada. Porém, é mais difícil para mim exprimir o que pode dizer a Páscoa para quem não participa da minha fé e está curvado sob os pesos da vida. Nisto, me ajudam pessoas que encontrei e nas quais senti como que uma fonte misteriosa, que as ajuda a olhar de frente para o sofrimento e para a morte, mesmo sem poderem encontrar uma razão para aquilo que poderá acontecer. Vejo, assim, que há dentro de todos nós algo daquilo que São Paulo chama “esperança contra toda esperança” (Rom 4, 18), ou seja, uma vontade e uma coragem de ir adiante apesar de tudo, mesmo quando não se compreende o sentido daquilo que acontece.
É assim que muitos homens deram prova de uma capacidade de retomada que tem algo de milagroso. Pensem em tudo o que se fez, com indômita energia, depois do tsunami de 26 de dezembro de 2004, ou depois da inundação de New Orleans provocada pelo furacão Katrina em agosto do ano seguinte. Pensem nas energias de reconstrução que surgem como que do nada depois da tempestade das guerras. Pensem nas palavras que a jovem Etty Hillesum, de vinte e oito anos, escreveu no dia 3 de julho de 1942, antes de ser levada para morrer em Auschwitz: “Eu olhava de frente a nossa destruição iminente, o nosso previsível fim miserável, que se manifestava em muitos momentos ordinários da nossa vida cotidiana. É esta possibilidade que eu incorporei na percepção da minha vida, sem experimentar, como consequência, uma diminuição da minha vitalidade. A possibilidade da morte é uma presença absoluta na minha vida, e por causa disso a minha vida adquiriu uma nova dimensão”. 
Por estas coisas, não podemos confiar apenas na ciência, senão para lhe pedir alguns instrumentos técnicos: no máximo, ela permite um frágil prolongamento dos nossos dias. A interrogação, pelo contrário, é sobre o sentido do que está acontecendo e, mais ainda, sobre o amor que nos é dado recolher mesmo em impasses como esses. Há alguém que me ama de tal forma a ponto de me fazer sentir cheio de vida, mesmo em meio à fraqueza, que me diz “eu sou a vida, a vida para sempre”.
Ou, pelo menos, há alguém a quem posso dedicar os meus dias, mesmo quando me parece que tudo esteja perdido. É assim que a ressurreição entra na experiência cotidiana de todos os sofredores, particularmente dos doentes e dos idosos, dando a eles a possibilidade de produzir ainda frutos abundantes a despeito das forças que se lhe esvaem e da fraqueza que os assalta. A vida na Páscoa se mostra mais forte do que a morte, e é assim que todos nos esperamos percebê-la.

* Extraído do Avvenire.it, do dia 15 de abril de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 10 de abril de 2011

Nosso coração se estende para além do muro da morte...

Bento XVI

Angelus

Praça São Pedro
Domingo, 10 de abril de 2011.

Caros irmãos e irmãs!
Faltam somente duas semanas para a Páscoa, e as Leituras bíblicas deste domingo falam da ressurreição. Não ainda da de Jesus, que irromperá como uma novidade absoluta, mas da nossa ressurreição, aquela a que aspiramos e que Cristo mesmo nos deu, ressurgindo dos mortos. Com efeito, a morte representa, para nós, como que um muro que nos impede de ver além; e no entanto o nosso coração se estende para além deste muro, e mesmo se não podemos conhecer aquilo que ele esconde, todavia o pensamos, o imaginamos, exprimindo com símbolos o nosso desejo de eternidade.
Ao povo hebreu, no exílio distante da terra de Israel, o profeta Ezequiel anuncia que Deus abrirá os sepulcros dos deportados e os fará retornar para a sua terra, para repousarem em paz (cf. Ez 37, 12-14). Esta aspiração ancestral do homem de ser sepultado junto com os seus pais é saudade de uma “pátria” que o acolha no término das fadigas terrenas. Esta concepção não contém ainda a ideia de uma ressurreição pessoal da morte, que aparece somente por volta do final do Antigo Testamento, e que, no tempo de Jesus, ainda não era muito bem recebida por todos os judeus. De resto, mesmo entre os cristãos, a fé na ressurreição e na vida eterna, não raramente, é acompanhada de muitas dúvidas, de muita confusão, porque se trata sempre de uma realidade que ultrapassa os limites da nossa razão, e requer um ato de fé. No Evangelho de hoje – a ressurreição de Lázaro – escutamos a voz da fé da boca de Marta, a irmã de Lázaro. A Jesus que lhe diz: “Teu irmão ressuscitará”, ela responde: “Sei que ressurgirá na ressurreição do último dia” (Jo 11, 23-24). Mas, Jesus replica: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, mesmo se morrer, viverá” (Jo 11, 25-26). Eis a verdadeira novidade, que irrompe e supera toda barreira! Cristo abate o muro da morte, nEle habita toda a plenitude de Deus, que é vida, vida eterna. Por isto, a morte não teve poder sobre Ele; e a ressurreição de Lázaro é sinal do seu pleno domínio sobre a morte física, que diante de Deus é como um sono (cf. Jo 11, 11).
Mas, há outra morte, que custou a Cristo a luta mais dura, até ao preço da cruz: é a morte espiritual, o pecado, que ameaça arruinar a existência de todo homem. Para vencer esta morte, Cristo morreu, e a sua Ressurreição não é o retorno à vida anterior, mas é a abertura de uma realidade nova, uma “nova terra”, finalmente reunificada com o Céu de Deus. Por isto, São Paulo escreve: “Se o Espírito de Deus, que ressuscitou Jesus dos mortos, habita em vós, aquele que ressuscitou Cristo dos mortos dará a vida também aos vossos corpos mortais por meio do seu Espírito que habita em vós” (Rm 8, 11). Caros irmãos, voltemo-nos para a Virgem Maria, que já participa desta Ressurreição, para que nos ajude a dizer com fé: “Sim, Senhor, eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus” (Jo 11, 27), a descobrir verdadeiramente que Ele é a nossa salvação.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 10 de abril de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Comentário ao evangelho do dia

5º Domingo Quaresma

1ª Leitura - Ez 37,12-14
Assim fala o Senhor Deus: "Ó meu povo, vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor. Porei em vós o meu espírito, para que vivais e vos colocarei em vossa terra. Então sabereis que eu, o Senhor, digo e faço - oráculo do Senhor".

2ª Leitura - Rm 8,8-11
Irmãos, os que vivem segundo a carne não podem agradar a Deus. Vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o Espírito de Deus mora em vós. Se alguém não tem o Espírito de Cristo,  não pertence a Cristo. Se, porém, Cristo está em vós, embora vosso corpo esteja ferido de morte por causa do pecado, vosso espírito está cheio de vida, graças à justiça. E, se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos mora em vós, então aquele que ressuscitou Jesus Cristo dentre os mortos vivificará também vossos corpos mortais por meio do seu Espírito que mora em vós.

Evangelho - Jo 11,1-45
Naquele tempo, havia um doente, Lázaro, que era de Betânia, o povoado de Maria e de Marta, sua irmã. Maria era aquela que ungira o Senhor com perfume e enxugara os pés dele com seus cabelos. O irmão dela, Lázaro, é que estava doente. As irmãs mandaram então dizer a Jesus: "Senhor, aquele que amas está doente". Ouvindo isto, Jesus disse: "Esta doença não leva à morte; ela serve para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela". Jesus era muito amigo de Marta, de sua irmã Maria e de Lázaro. Quando ouviu que este estava doente, Jesus ficou ainda dois dias no lugar onde se encontrava. Então, disse aos discípulos: "Vamos de novo à Judeia". Os discípulos disseram-lhe: "Mestre, ainda há pouco os judeus queriam apedrejar-te, e agora vais outra vez para lá?". Jesus respondeu: "O dia não tem doze horas? Se alguém caminha de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas se alguém caminha de noite, tropeça, porque lhe falta a luz". Depois acrescentou: "O nosso amigo Lázaro dorme. Mas eu vou acordá-lo". Os discípulos disseram: "Senhor, se ele dorme, vai ficar bom". Jesus falava da morte de Lázaro, mas os discípulos pensaram que falasse do sono mesmo. Então Jesus disse abertamente: "Lázaro está morto. Mas por causa de vós, alegro-me por não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos para junto dele". Então Tomé, cujo nome significa Gêmeo, disse aos companheiros: "Vamos nós também para morrermos com ele". Quando Jesus chegou, encontrou Lázaro sepultado havia quatro dias. Betânia ficava a uns três quilômetros de Jerusalém. Muitos judeus tinham vindo à casa de Marta e Maria para as consolar por causa do irmão. Quando Marta soube que Jesus tinha chegado, foi ao encontro dele. Maria ficou sentada em casa. Então Marta disse a Jesus: "Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido. Mas mesmo assim, eu sei que o que pedires a Deus, ele to concederá". Respondeu-lhe Jesus: "Teu irmão ressuscitará". Disse Marta: "Eu sei que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia". Então Jesus disse: "Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que morra, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, não morrerá jamais. Crês isto?". Respondeu ela: "Sim, Senhor, eu creio firmemente que tu és o Messias, o Filho de Deus, que devia vir ao mundo". Depois de ter dito isto, ela foi chamar a sua irmã, Maria, dizendo baixinho: "O Mestre está aí e te chama". Quando Maria ouviu isso, levantou-se depressa e foi ao encontro de Jesus. Jesus estava ainda fora do povoado, no mesmo lugar onde Marta se tinha encontrado com ele. Os judeus que estavam em casa consolando-a, quando a viram levantar-se depressa e sair, foram atrás dela, pensando que fosse ao túmulo para ali chorar. Indo para o lugar onde estava Jesus, quando o viu, caiu de joelhos diante dele e disse-lhe: "Senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido". Quando Jesus a viu chorar, e também os que estavam com ela, estremeceu interiormente, ficou profundamente comovido, e perguntou: "Onde o colocastes?". Responderam: "Vem ver, Senhor". E Jesus chorou. Então os judeus disseram: "Vede como ele o amava!". Alguns deles, porém, diziam: "Este, que abriu os olhos ao cego, não podia também ter feito com que Lázaro não morresse?". De novo, Jesus ficou interiormente comovido. Chegou ao túmulo. Era uma caverna, fechada com uma pedra. Disse Jesus: "Tirai a pedra!". Marta, a irmã do morto, interveio: "Senhor, já cheira mal. Está morto há quatro dias". Jesus lhe respondeu: "Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?". Tiraram então a pedra. Jesus levantou os olhos para o alto e disse: "Pai, eu te dou graças porque me ouviste. Eu sei que sempre me escutas. Mas digo isto por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste". Tendo dito isso, exclamou com voz forte: "Lázaro, vem para fora!". O morto saiu, atado de mãos e pés com os lençóis mortuários e o rosto coberto com um pano. Então Jesus lhes disse: "Desatai-o e deixai-o caminhar!". Então, muitos dos judeus que tinham ido à casa de Maria e viram o que Jesus fizera, creram nele.

Comentário feito por São Pedro Crisólogo (406 ?-450)
bispo de Ravena, Doutor da Igreja 

"Ao ver Maria chorar, e os judeus que a acompanhavam a chorar também, Jesus suspirou profundamente e comoveu-Se". Maria chora, choram os judeus, o próprio Cristo chora. Crês tu que sentem todos a mesma tristeza? Maria, irmã do morto, chora porque não pôde conservar o seu irmão nem afastar a morte; por mais que estivesse convencida da ressurreição, a perda do seu único amparo e a ideia da sua cruel ausência, mais a tristeza da separação inevitável, fazem-na desfazer-se em lágrimas que ela não consegue suster. Por muito grande que seja a nossa fé, a implacável ideia da morte não pode deixar de tocar-nos e transtornar-nos; por isso, choravam também os judeus, porque se lembravam da sua condição mortal e desesperavam da eternidade. Nenhum mortal pode deixar de chorar perante a morte. Mas qual destas tristezas foi a de Cristo? Nenhuma? Então por que chora Aquele que dissera "Lázaro morreu, [...] e Eu estou contente"? E eis que derrama lágrimas como os mortais Aquele que, ao mesmo tempo, derrama sobre eles uma vez mais o Espírito que dá a vida! Assim é o homem, irmãos, que tanto sob o efeito da alegria, como da tristeza, desata em lágrimas. Cristo não chorou por causa da desolação da morte, mas por causa da lembrança da alegria, Ele a cuja palavra, à Sua palavra, ressuscitarão os mortos para a vida eterna (Jo 12, 48). Como podia Cristo chorar por fraqueza humana, quando o Pai que está nos céus chora o filho pródigo, não quando ele sai de casa, mas quando regressa (Lc 15, 20)? É por isso que Ele permite que Lázaro morra, para que, ao ressuscitá-lo, se manifeste a Sua glória; permitiu que o Seu amigo descesse à mansão dos mortos para que Deus aparecesse e o resgatasse dos infernos.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Cartas do P.e Aldo 177

Asunción, 15 de janeiro de 2011.

Caros amigos,
Nestas semanas, estou com o pensamento fixo sobre dois fatos que encontramos no Evangelho: o nascimento e a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo na cruz e o olhar de Jesus a Zaqueu.
1. O nascimento e a morte de Nosso Senhor: os primeiros que foram encontrá-Lo em Belém eram pastores. Normalmente, quando pensamos nos pastores, temos deles uma imagem bucólica ou romântica. Mas, não acredito que esta imagem corresponda à realidade. Eram beduínos, deslocavam-se continuamente, vivem dias cheios, roubavam, assaltavam... uma vida certamente desordenada, vida de pecadores. Penso neles assim, porque me recordo dos pastores da minha terra, que eram “bandidos”, não tinham moradia fixa e tantas vezes nem tinham uma família. Deslocavam-se da montanha ao mar segundo as estações. Causavam danos em todos os lugares por onde passavam, roubando... concretamente, era uma vida desordenada, e a blasfêmia era a sua linguagem normal. Viviam com suas ovelhas, cavalos, jumentos e cães, se tornando, às vezes, como eles. Não quero pensar no filme dos irmãos Taviani – “Padre padrone” (Pai chefe; ndt) –, mas acredito que eles faziam parte, de alguma maneira, daquela categoria... em suma... eram pecadores. Como aqueles dois que estavam ao lado de Jesus, na cruz. Amigos! Tudo isso é desconcertante! No início, como no fim, Jesus se encontra entre pecadores, assim como durante a sua vida. E isto me enche de comoção, porque ressalta o fato que Jesus veio para nós, pobres filhos de Eva, veio graças à nossa pobre e frágil humanidade. Por isso, é espontâneo para mim me perguntar: aquilo que Carrón nos diz sobre a nossa humanidade como caminho para Cristo é o ponto sobre o qual trabalhamos seriamente? Penso nisso porque, sem uma grande simpatia pela nossa humanidade assim como ela é, o que quererá dizer que Cristo é contemporâneo? Para mim, o encontro com Cristo coincidiu e coincide com uma afeição grande pela minha humanidade: a alegria de ser homem, a liberdade de olhar com ironia os meus pecados, os meus limites. Não é mais o pecado, o limite, a me definirem, mas aquele olhar, assim como, para os pastores, uma vez que O viram, assim como para aquele ladrão, uma vez que, sobre a cruz, virou a cabeça e fixou Aquele Homem. Graças àquele Olhar, roubou dEle o paraíso. Um verdadeiro “ladrão” até ao fim! A simpatia pela nossa humanidade, semelhante àquela dos pastores ou dos dois ladrões na cruz com Jesus, cresceu ou permaneceu escondida num canto do nosso eu? Fico comovido por sentir-me abraçado por aquele menino, da mesma maneira que os pastores, ou aqueles dois bandidos, um dos quais entrou no paraíso no último instante da sua vida, quando reconheceu em Jesus o Filho de Deus. Amigos, será que nos damos conta de que Cristo precisa do nosso limite, do nosso temperamento?
Nestes dias, recebi na clínica, pela terceira vez, um rapaz doente de câncer. Um rapaz que vive na rua, com uma experiência terrível de amizades, tentativas de homicídio, de furtos, droga etc. Tem um câncer que parece uma pedra aguda na cabeça e outro na parte direita do pescoço que parece uma bola. Tantas vezes o recebemos e cuidamos dele, tantas vezes escapou, deixando-me o coração partido. Foi muitas vezes para a cadeia. Agora, voltou porque não dá mais conta, está acabado. Tem 18 anos. Ontem, me pediu a confissão. Foi, de fato, um reacontecer daquilo que aconteceu aos pastores ou aos dois na cruz, ou melhor, àquele que pediu perdão. Eu o olhava nos olhos pretos e lúcidos, enquanto pedia perdão. “Eu te absolvo...” e toda a sua história de miséria se tornou, de uma só vez, uma história de graça.
Amigos, pudéssemos nos deixar abraçar por aquele menino ou por aquele Homem que veio, vive e se faz presente todos os dias para nos dizer “amei-te de amor eterno, tendo piedade do teu nada”! Nestes dias, o calor chegou a 42º e, no entanto, mesmo isso é graça e me permite dizer, mesmo se todo molhado de suor e com a respiração ofegante, “Tu, oh meu Cristo”. E assim, tudo se torna uma graça, uma vibração apaixonada pela ternura de Jesus, que me faz olhar para os meus filhos tão belos com uma ternura única, um pouco como aquela de Jesus. Olhando-os, acho-os de uma beleza indescritível, sorridentes, vivos, certos daquele “eu sou Tu que me fazes”, ainda que tendo vivido violências terríveis, como as crianças que Herodes assassinou tentando eliminar também a Jesus.
2. O olhar de Zaqueu: impressiona-me e me conforta ver como Carrón nos provoca continuamente com este fato... e quanto mais assimilo aquele olhar, tanto mais sinto vibrar dentro de mim aquilo que Zaqueu experimentou no momento em que Jesus o chamou pelo nome. Aquele instante ficou pregado na minha mente, aquele átimo no qual se encontraram o olhar de Zaqueu e do Mestre. Tentem pensar, em meio aos problemas de todos os dias, no significado do sentir-se olhados, fixados daquele modo! Tudo se desfaz, se ilumina. Não desaparecem os problemas, os estados de ânimo, as doenças, a depressão, mas tudo se torna outra coisa, porque aquele olhar muda tudo, abraça tudo, domina tudo.
Florêncio é um rapaz de 20 anos, sozinho no mundo, foi recolhido por uma mulher com problemas psiquiátricos. Um drama dentro de outro drama. Miséria, fome, abandono. E, finalmente, um câncer “comeu” o rosto do rapaz, que, hoje, está terrivelmente desfigurado. A “mãe”, internada diversas vezes no manicômio. Conseguimos tirá-la deste lager e levá-la para junto do filho. Dia e noite, ela o assiste com uma amabilidade tão grande que nós, “sãos”, se não vibrássemos como Zaqueu por Jesus, não conseguiríamos entender, ou melhor, não seríamos nem mesmo capazes de nos dar conta. Olhando para aquele rapaz moribundo que, de vez em quando, retoma a consciência por um pouco, lhe pergunto “como está, Florêncio?”, e ele, levantando levemente o polegar da mão, me faz entender: “bem”. Outro dia, pensávamos que estivesse para morrer e a mãe me disse: “Padre, prefiro levá-lo para casa comigo vivo, porque se ele morrer aqui, eu não terei dinheiro para levá-lo até à casa, porque o traslado é muito caro (são 300 km daqui)”. Olho-a com ternura e lhe digo: “Estela, não se preocupe... a Providência cuidará de tudo”. E se tranquilizou. Algumas horas depois, passei perto dela e vi, com surpresa, que Florêncio estava sentado na cama e com uma canetinha estava desenhando uma figura feminina. Olho para o desenho e olho para ele comovido... da sua boca saía uma líquido podre... mas que ternura! Ele é literalmente consumido pelo câncer, todo inchado, com a carne já em decomposição, e no entanto com o olhar que me diz que a vida é bela! Eu o entendo, o invejo, porque ele é assim porque encontrou, alguns meses atrás, quando chegou aqui em condições desesperadas, o mesmo olhar que Zaqueu experimentou diante do olhar do Senhor. Não se pode explicar de outra forma como um rapaz naquelas condições, nos poucos momentos de lucidez e de consciência, diante da minha pergunta sobre como está, me responda OK levantando o polegar e me fixando com o seu olhar. O que posso fazer, além de beijá-lo e, ajoelhando-me diante dele, deixar-me olhar como Zaqueu por Jesus, presente em Florêncio, consciente de estar diante da morte. Porque ele sente o cheiro da sua pobre carne que só espera a ressurreição para se recompor, gloriosa e bela!
Amigos, quando Carrón nos lembra, em seu artigo de Natal, que Cristo está presente hoje, para mim, para vocês, instnate depois de instante, não posso não pensar no hino “Iesus dulcis memoria”. De verdade, é mesmo bonito viver com quem nos chama a atenção e nos remente em cada momento à doçura de Jesus.
Padre Aldo
P.S.: aos tão numerosos emails que vocês me enviam, responderei nos próximos dias, quando estarei, por alguns dias, no Brasil com meus amigos. Estar com eles é, para mim, repousar, na doce memória de Jesus.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 173



Asunción, 23 de dezembro de 2010.

Caros amigos,
Jesus levou consigo, para o céu, a minha pequena Liz de 5 anos de idade. Estava conosco na clínica há três meses, por causa de um câncer na cabeça. Morreu ontem, deixando-nos a todos com o coração em pedaços e cheio de perguntas: “Padre, nesta manhã tive medo de não dar mais conta de ver tanta dor”, me disse a secretária da Clínica. E teria razão se Cristo não estivesse aqui, agora. Sem aquela criança que o Natal nos repropõe como um Fato vivo, contemporâneo, será que valeria a pena viver?
Pessoalmente, não conseguiria viver um minuto a mais rodeado por tanto dor como o sou, pelos mil “por ques” da mãe de Liz, uma mulher que me fez lembrar a mãe da pequena Cecília, que morreu de cólera, no romance de Manzoni. Quanto anos se passaram desde a leitura daquele capítulo, e no entanto ainda hoje me comove, como um sinal profético daquilo para o que eu seria chamado a viver todos os dias. Vocês entendem agora por que não posso ficar um segundo sequer sem gritar “Tu, ó meu Cristo”? Ou sem fazer de vocês partícipes daquilo que me acontece, para que, juntos, aprendamos aquilo que Carrón nos testemunha? Ontem, quando Liz morreu, pensei imediatamente nele, nas últimas Escolas de Comunidade sobre o sacrifício, sobre o valor que tem e no que consiste. Só assim me torno sempre mais consciente do fato de que é desumano, insuportável viver, respirar um segundo que seja sem que ele seja tudo para nós, sem que também para nós seja vibrante aquilo que São Paulo diz – “para mim, viver é Cristo e morrer é um ganho”. Quando, ontem, eu estava ao lado do leito de Liz, agonizante, os olhos semicerrados, as respiração difícil, a mãe de pé com uma lágrima nos olhos, quase paralisada pela dor, eu não conseguia, beijando Liz, não sentir presente o Mistério que estava para levar para si, no Paraíso, a pequena. Ela morreu como Jesus: por mim, por meus pecados e os de todos nós. O meu sacrifício é a estima de Jesus que, por mim, por vocês, desceu do céu  e se fez uma criança e, depois, morreu e ressuscitou por mim e por vocês.
É desconcertante, comovente, dar-se conta de que Jesus, antes da minha pequena Liz, fez o mesmo percurso humano. Nós a vestimos como um anjo, com uma coroa na cabecinha, como se fosse um pequena rainha. Sim, porque ela é uma rainha, como todos nós que fomos batizados. E, depois, a colocamos num caixão branco – a caixinha onde os seus ossos esperarão a ressurreição final.
Hoje, enquanto Liz era sepultada, fizemos um presépio vivo: o Menino Jesus foi um dos bebês da Casinha de Belém, de apenas três meses de vida. Depois, as outras crianças representando as ovelhinhas; os doentes, os ancião representando os pastores e os reis magos; e também alguns de nós que vivemos com eles. Cada um fez a sua parte. Foi, neste mar de dor, uma explosão de vida e de alegria. De fato, aqui, reina a vida, porque aquele “Tu, ó meu Cristo” é a única razão daquilo que existe e vive aqui. Amigos, que os nossos olhos, nestes dias e sempre, dentro de toda situação, mesmo a mais negra, estejam exclusivamente fixos em Jesus, para que possamos viver comovidos em cada instante da vida.
Amigos, mas o que pode haver de mais belo do que dizer “Tu, ó meu Cristo”?
Padre Aldo

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 171





Asunción, 19 de dezembro de 2010.

Caros amigos,
Bom Natal! Particularmente aos muitíssimos amigos que, com seus emails, me confiaram suas dores, dificuldades, seus sofrimentos e, frequentemente, sua falta de vontade de viver. Para mim, foi uma graça, porque seja quem for que estiver sofrendo eu o sinto comigo e com o mar de dor que me circunda, da dor de Cristo, daquilo que falta à paixão de Cristo pelo seu corpo que é a Igreja. Agradeço a vocês de coração, porque as feridas que carregam não apenas me impedem de ser um burguês, ou seja, um homem sem pergunta, sem dramaticidade, como também me ajudam a viver dentro das circunstâncias da vida com os olhos fixos no Mistério. É como se o dor de vocês, a nossa dor, me tornasse sempre mais consciente do significado de estar suspenso sobre um cheio, sobre uma certeza.
Confesso a vocês que todas as noites, quando já tarde, vou dormir, depois de ter visitado as várias obras da paróquia onde vejo e sinto somente a dor dos meus filhos, dos recém-nascidos abandonados, das meninas vítimas da violência, dos doentes terminais e dos velhos recolhidos das ruas, reconheço como o Mistério domina a minha vida, enchendo-a de paz. Que bonito é ser tomado, dominado por aquele “Tu” a cujos olhos sou precioso e digno de estima, porque sou Seu, como nos recorda o profeta Isaías. Como eu gostaria que as muitas pessoas deprimidas, cansadas de viver, vítimas das mil fantasias, que conheço muito bem, reconhecessem, mesmo quando a angústia parece sufocá-los, que, seja como for, o Mistério é um Fato presente, é um abraço que nunca permite que nos percamos. O problema não é a dor, a depressão, a doença, mas é a liberdade de reconhecer naquele “Tu que me fazes” a própria consistência. Há momentos em que não vejo nada, mas o juízo é claro e eu repito para mim mesmo continuamente: “Tu, ó meu Cristo!”, e sempre reencontro a energia para caminhar.
Peço a vocês, enquanto peço por mim mesmo, de não colocar os “se”, os “mas”, os “porém” entre Cristo e nós, porque isto seria a única grande fraude e perderíamos a festa da vida. O Mistério ama quem se arrisca, que não tem medo da realidade, e em geral se diverte permitindo-nos chegar até à borda do abismo, mas depois, de repente, quando tudo parece perdido, nos salva, pegando-nos pelos cabelos. Há vinte anos experimento este fato mesmo em nível econômico. Pensem nas centenas de milhares de euros de que precisam estas obras! E, no entanto, chega o último dia do mês e a Providência chega. No início, quem trabalhava comigo se assustava, a administração entrava em crise, enquanto que, para mim, era tudo simples e ainda o é: “Senhora (disse à administradora), estão faltando dois dias para pagar o salário dos 180 dependentes do Mistério, único chefe destas obras; por isso, por que você se preocupa?”. E no dia seguinte, a Providência chegava com o dinheiro necessário – e nada a mais ou a menos. Mesmo com respeito a isso o Mistério me mantém sempre suspenso e, portanto, sempre mendicando. Não sei como pagarei o salário de janeiro às 180 pessoas, ou melhor, famílias, mas, por isto, não perco o sono, porque tenho a certeza absoluta de que o Senhor, aquele “Tu que me fazes”, no momento certo, estará ali para pagar. Que liberdade eu sinto quando estou diante, diante daquele Tu que me domina, me abraçando.
Ontem, Ele me deu dois novos filhinhos. Olhem para eles nas fotos. São gêmeos, foram abandonados por sua mãe e, por causa dos maltratos que sofreram da “mãe”, ambos possuem uma paralisia cerebral, de forma que isso era motivo suficiente para recebê-los. Têm 1 ano e oito meses e pesam, cada um, 6 quilos. A história deles é de um sofrimento terrível. No entanto, o Mistério ocupou-se deles e os deu a mim. Na primeira noite, choraram durante toda a noite, mas nesta última noite, já estavam mais tranquilos entre os meus braços.
No fundo, se o nosso abraço é o fruto da experiência do “Tu que me fazes”, ele se transmite como que por osmose mesmo a eles, cuja inocência foi lacerada pelas violências de todos nós, quando nos esquecemos de ser relação com o Mistério.
Olhando-os, penso naquela pobre mulher que, certamente, mesmo ela, terá sido vítima de outra violência. Confio-os às orações de vocês, assim como confio a terceira Casinha de Belém e a nova casa para as meninas violentadas e grávidas, que iremos inaugurar na vigília de Natal.
Como vocês podem ver, Jesus me enche de presentes, presentes que também são para vocês. É mesmo bonito ser queimados pelo amor por Cristo, porque, assim, o coração queima de amor pelo homem.
Bom Natal.
Padre Aldo

P.S.: Amigos, desculpem o italiano, mas, não sabendo usar o computador, confio-me ao excelente secretário que faz o impossível para me traduzir. Olhem para a essência, para o coração.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O drama de Calogero: a poesia resolve o mistério da morte?


Por Laura Cioni

A vida de Lorenzo Calogero conclui-se em 1961, com o suicídio. O peso muito grande da luta, a forte desilusão por ter visto sua voz não ser escutada, permanecer desconhecida e quase sem ressonância, contribuíram para o desgaste psíquico e a queda de um poeta possuidor de profundo conhecimento literário e consciente do valor da própria arte, mas dotado de um equilíbrio interior frágil.
Ele nasceu em 1910, na província de Reggio Calábria, numa família abastada, terceiro de seis filhos. Em 1922, transfere-se para a capital, onde frequenta as escolas de nível médio. Em seguida, em 1929, vai para Nápoles, onde começa os estudos universitários, inscrevendo-se primeiro em Engenharia, depois em Medicina. Naqueles anos, começou a escrever versos e a entrar em contato com Piero Bargellini (1897-1980) e Carlo Betocchi (1899-1986), para quem enviou algumas poesias na esperança de que fossem publicadas. Revelam-se, nesse mesmo período, os primeiros sintomas das fobias que tornaram sua saúde sempre muito precária. graduou-se em 1937 e, dois anos depois, começou a exercer a profissão em diversos centros da Calábria. Eis uma lírica que remonta a esses anos de atividade poética:
Molti fiori, molte cose odorose
furono concesse a me
da montagne non mie,
pur quando era passato il tempo per riceverle.
Ora mi siedo in una valle ombrosa
presso una fonte
dell’amorosa campagna
e guardo con quale passo
intrattenibile, oscurando i rami
degli alberi, passa il tempo.
(Muitas flores, muitas coisas perfumadas /  foram concedidas a mim / por montanhas que não são minhas, / mesmo quando já havia passado o tempo de recebê-las. / Agora, sento-me num vale sombreado / perto de uma fonte / do amoroso campo / e olho com que ritmo / incontinente, obscurecendo os ramos / das árvores, o tempo passa; ndt).
Em 1949, concluiu-se amargamente a sua primeira história de amor. Mas ele continuou a mandar os seus manuscritos a homens de cultura, sempre obtendo êxito negativo. Em 1954, recebeu o cargo de médico, na província de Siena, onde permaneceu por apenas um ano, porque uma deliberação do conselho municipal o demitiu do cargo. Voltou, então, definitivamente para a sua cidade, permanecendo em completa solidão, até mesmo por causa da vileza das pessoas que o tratavam com aberta desconfiança.
Os últimos anos de vida foram marcados por diversas internações em clínicas psiquiátricas, por um novo amor infeliz, por um irreprimível trabalho de escrita. Publicou, por conta própria, algumas coletâneas de versos e gozou da amizade de Leonardo Sinisgalli (1908-1981), com quem manteve um denso relacionamento epistolar. Em 1957, venceu um prêmio literário. Mas, a sua saúde declinou; não se nutria, mantinha-se com soníferos, cigarros e café; consagrava-se somente à poesia, cortejando a morte. O seu corpo sem vida foi encontrado no dia 25 de março de 1961. Ao seu lado havia um bilhete: “Peço-lhes não ser enterrado vivo”.
Só então a crítica parece tê-lo descoberto; falava-se dele como do “novo Rimbaud italiano”. Após a aclamação que durou quase ininterrupta até o ano de 1966, o silêncio de novo caiu sobre Calogero e a maior parte da sua produção, ainda hoje, permanece inédita.
Muitas líricas não parecem deixar pressagiar o trágico fim do poeta, abertas como são à esperança, dispersa em paisagens evanescentes.  Ele aparece nessas poesias como um mendicante do amor, absorto num silêncio que é fome de vida, pedido por uma revelação:
Angelo della mattina
risvegliami ancora
per la nuova fulgente aurora
che s'arrossa sull'orizzonte o s'incrina.
Io sono uno strano mendicante
che chiede amore e parole,
sono un solitario emigrante
verso le terre della luce e del sole.
Vienimi coi tuoi fulgori,
angelo che non ristai,
coi tuoi infiniti fulgori
colle movenze che tu sai,
e crescimi delle meraviglie,
di quanto raccogli negli occhi neri,
degli infiniti misteri
che tu celi dentro l'arco dei cigli.
(Anjo da manhã / desperta-me de novo / para a nova aurora fulgente / que se avermelha no horizonte ou chora. / Eu sou um estranho mendicante / que pede amor e palavras, / sou um solitário emigrante / que segue em direção às terras da luz e do sol. / Vem a mim com teus fulgores, / anjo que não paras, / com teus infinitos fulgores / com os movimentos que tu conheces, / e faz-me crescer em maravilhas, / naquilo que colhes nos olhos negros, / dos infinitos mistérios / que tu escondes dentro do arco dos cílios; ndt)
De forma mais breve, ele retorna ao tema do desvelar-se das coisas:
Di tanto rovinoso mare
poco suono giunge
al mio orecchio assorto
in ascoltazione dell’Eterno
che come un angelo passa.
(De tão ruidoso mar / pouco som chega / ao meu ouvido absorto / na escuta do Eterno / que como um anjo passa; ndt).
Uma última lírica parece conter toda a tentativa do poeta, destinado à falência, mas não por isso dominado pelo rancor. O repouso no vento é ainda, mesmo que paradoxal, desejo de viver:
Mandai lettere d’amore
ai cieli, ai venti, ai mari,
a tutte le dilagate
forme dell’universo.
Essi mi risposero
in una rugiadosa
lentezza d’amore
per cui riposai
su le arse cime frastagliate loro
come su una selva di vento.
(Enviei cartas de amor / aos céus, aos ventos, aos mares, / a todas as fluentes / formas do universo. / Que me responderam / numa orvalhosa / lentidão de amor / e eu repousei / em seus cimos incendiados / como que sobre uma selva de vento; ndt)

* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 17 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sábado, 6 de novembro de 2010

Miguel Reale, 100 anos: fé e razão...


Por Miguel Reale Júnior *

Hoje meu pai completaria 100 anos. Morreu faz pouco mais de quatro anos, com quase 96. Escapou da velhice, tornou-se sábio. Após a morte de minha mãe, em 1999, passou a não mais desconversar a respeito da morte, consciente de que o tempo vivido, festejado ou sofrido impunha encarar com tranquilidade o mistério da finitude.
Acaba de ser lançado livro intitulado Variações 3, que reúne os artigos publicados nesta página de 2004 a 2006. É da leitura desses trabalhos que defluem as principais preocupações do seu final de vida. A morte de Norberto Bobbio atingiu-o não apenas pela amizade e pela admiração intelectual, mas em face da carta-testamento que este deixara para ser lida em sua câmara ardente. Nessa carta, Bobbio diz crer que após a morte sobrevém a escuridão, mas reconhece "como homem de razão e não de fé estar mergulhado no mistério que a razão não consegue penetrar em profundidade e as várias religiões interpretam de vários modos".
Meu pai reflete esse convite de Bobbio a se envolver no mistério da morte que a razão não explica e suscita a necessidade de harmonizar a busca das verdades eternas com a perquirição racional. A seu ver, apenas a fé supera os ditames da razão como substância das coisas esperadas e argumento das não aparentes. Indaga, então: como se tem ou não fé?
Responde que a fé é, para uns, o que resta uma vez superada a expectativa de soluções a partir da experiência, enquanto, para outros, seria um dom, uma dádiva divina, uma revelação. Para ele, a fé pertence ao domínio não do racional e sim do razoável, do que é plausível, sendo, portanto, uma conjetura necessária e inevitável.
Com o olhar da sabedoria construída pelo tempo vivido na análise das contingências humanas, conclui que a fé é um ato existencial a depender da pessoa que se é e da idade que se tem. Em seguida pondera com experiência: "Quando se é jovem prevalece o sentido da vida em sua imanência, mas à medida que o tempo passa atenua-se a preferência pelo agnosticismo e volta-se a atenção pelo que se oculta nas sombras do mistério." Conclui meu pai: "Quem tem fé não tem temor da morte e a vida é uma passagem para uma misteriosa forma de viver, sem corporeidade", não explicada pela razão, mas com esta compatível. No âmbito do mistério, e não do saber, alargam-se os horizontes da razão, não mais presa a limites intransponíveis, para prevalecer o campo do plausível, onde se crê por ser absurdo não crer. Ademais, a crença numa vida sem corporeidade ajuda a viver e traz paz de espírito.
Repercute, no entanto, no plano das relações intersubjetivas a compreensão da vida espiritual como resposta à insaciável agonia de procura de uma verdade sobre a existência além do demonstrado pela razão científica. Meu pai, sempre voltado para o real, o concreto e o experienciável, tira desta compreensão mística da vida consequências acerca de duas questões fundamentais das relações em sociedade: o exercício da caridade e da justiça sob uma perspectiva humanística.
A caridade não é, então, uma prática que se desvincule desta visão mística, pois, a seu ver, os atos de solidariedade realizam-se, na verdade, "em consonância com valor supremo, ao qual devemos nos sujeitar para regular nosso comportamento a um plano transcendente ao qual não se tem acesso somente com os poderes da razão".
Neste mundo, caracterizado pela fratura entre uma minoria que tem tudo, para a qual não há diferença entre o supérfluo e o necessário, e uma gigantesca massa excluída de qualquer bem, é preciso olhar os pobres carecedores de alimento e de moradia.
Assim, apenas se alcançará a justiça social graças ao exercício da virtude da alteridade, que vê o outro para prestar auxílio como um imperativo intersubjetivo a obrigar a todos a colaborar com os necessitados. A caridade não deve consistir, tão só, num ato de solidariedade que satisfaça as consciências individuais. A caridade, ao comprometer todos os detentores de autossuficiência, alcança dimensão social e consolida a democracia, que deixa de ser uma forma postiça de igualdade.
Conclui, então, que a queda do Muro de Berlim não pode significar a perda do horizonte de uma real justiça social, a ser construída a partir do exercício da virtude da alteridade, pois, a seu ver, a crise do capitalismo não é econômica, mas ética. Quando se estabelecer uma harmonia com base na solidariedade, poder-se-á encontrar uma solução social e política que atenda às aspirações de cada um e de todos.
Imbricada no exercício da caridade está a justiça, pois esta só se alcança se reinar a caridade existencial. O anseio de justiça sempre revela um sentimento de carência, ou seja, daquilo que falta ao indivíduo e à coletividade para que ambos se realizem na plenitude de seus valores éticos e existenciais.
Assim, a visão humanística e espiritual termina por levar à busca da realização de um ideal ético, ou seja, a construção de harmônica paz social. Este, segundo ele, o objetivo a ser perseguido pela política, cabendo ao Estado promover a realização do justo, bem como traçar um sistema de liberdade e de igualdade para a comunidade.
Dominado por esta profunda compreensão humanística, meu pai considera como valor maior a pessoa humana. Ao eleger a pessoa humana como fonte de todos os valores, dela defluindo os valores da liberdade espiritual e da justiça, não poderia deixar de crer num significado depois da morte, mesmo porque o reconhecimento da dignidade da pessoa humana não se compadece com a morte sendo o nada ou a escuridão.
Destarte, este é o maior legado por ele deixado: a crença na grandeza da pessoa humana e a revelação da crença na existência sem corporeidade, que nos faz com alegria lembrar, no seu centenário, não a sua morte, mas a sua vida repleta de ensinamentos.

* Miguel Reale Jr. é advogado, Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 6 de novembro de 2010.