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sexta-feira, 4 de março de 2011

A tradição é mais moderna do que a modernidade


Não é preciso conservar tudo aquilo que se fazia ontem, mas transmitir o essencial
No âmbito do ciclo de encontros organizados pelo Centro Cultural de Milão sobre o tema “O desejo e o homem contemporâneo. Confrontos”, na noite de quinta-feira, 3 de março, em Milão, na Aula Magna da Universidade Católica do Sacro Cuore, foi proferida uma conferência da qual antecipamos alguns trechos 

Por Fabrice Hadjadj
A modernidade da época de Péguy tinha ainda ambições humanistas. Agora, tudo isso acabou. O século passado entre a época de Péguy e os nossos tempos colocou as condições para um desaparecimento completo do humanismo. O fato novo está no conhecimento da finitude não mais individual mas coletiva da espécie humana. O século XX, com Kolyma, Auschwitz e Hiroshima (uso especificamente esses nomes próprios, porque sei que os nomes comuns não seriam suficientes para definir estes eventos), o século XX foi, ao mesmo tempo, a era da apoteoso e da morte das ideologias do progresso. Por quê? Porque o progressismo foi para o poder e, ao invés de dar vida a uma sociedade mais justa, produziu o totalitarismo. Portanto, como disse Rimbaud em Uma temporada no inferno: “De que serve um mundo moderno, se for para inventar venenos semelhantes!”. Se depois se coloca por cima de todas estas catástrofes o darwinismo que nos explica como a humanidade não pode ser outra coisa a não ser uma bricolage devida à casualidade e à competição, se torna difícil acreditar no futuro, na história e na posteridade.
É este o motivo pelo qual assistimos a uma crise da modernidade e estamos indo em direção ao pós-humano. Um pós-humano que pode assumir três formas: uma tecnocrática, uma teocrática e uma ecológica.
No primeiro caso, trata-se de criar um super-homem. No segundo caso, promove-se um fundamentalismo que esmaga a cultura humana, enquanto que no terceiro assistimos a um retorno à chamada Mãe Natureza. Em cada um destes casos, perdemos toda esperança para o homem histórico, aquele que promovia a modernidade. Não acreditamos mais na continuidade, na cultura de longa duração. A tecnocracia, desde que exige a eficiência, nos esmaga imediatamente. A teocracia nos projeta no além. O ambientalismo nos faz retornar aos ciclos naturais.
Estes três erros se contrapõem uns aos outros, mas somente para nos fazer cair mais facilmente numa armadilha. Denunciando um, arrisca-se sempre em cair num outro. É assim que o demônio joga em todos os lados da mesa de pôquer.
Esta situação nova de crise da modernidade, todavia, tem algumas vantagens notáveis: desloca as barreiras de antes. O filho da Igreja e o partidário das Luzes podem se tornar aliados diante desta destruição maciça da cultura humana. O moderno pode admitir que a tradição cristã tinha algo de bom. Além disso – e vou apenas mencionar isso –, a primeira ocorrência conhecida do adjetivo modernos se encontra no século V e servia para designar os cristãos. Eis por que assistimos na França a uma certa defesa da história e da tradição por parte dos intelectuais exatamente da esquerda (Max Gallo, Régis Debray, Alain Finkielkraut, e assim por diante).
Como é possível esta nova aliança? Poderíamos explicá-la através de um artifício lógico e psicológico simples: diante do pós-moderno, que representa o inimigo comum, os modernos e os apoiadores da tradição formam uma frente comum.
Mas, existe uma razão mais profunda, ligada à língua. O amor pela palavra, o gosto pela linguagem, a certeza de que não é um meio de comunicação mas um lugar de verdade e comunhão, um espaço no qual o mundo se recolhe e que, portanto, devemos nos esforçar por cuidar e falar bem, é isto que une antigos e modernos contra a com dos tecnocratas, as bombas dos teocratas e os nitritos dos fanáticos ambientalistas. A linguagem tem isto de singular: na sua essência é, ao mesmo tempo, tradicional e moderna. É tradicional porque a linguagem é sempre recebida: falo porque alguém falou para mim e falo uma língua cujo nome remete a uma nacionalidade e, portanto, a uma comunidade que existe através dos tempos. A linguagem, porém, é também moderna, porque é através dela que é possível dizer “Eu”, que é possível afirmar-se aqui e agora, que é possível protestar, que é possível inventar novas formas.
Não falamos apenas para repetir, mas para cantar e, portanto, para variar, renovar, fazer ressoar a linguagem de um modo novo. “Cantai ao Senhor um canto novo”, disse o rei Davi. Esta é a essência da palavra: permite-nos ouvir um mandamento antigo e cantar um canto novo, e é recebida para, depois, ser novamente dada de maneira única e pessoal.
O que é precípuo de uma verdadeira novidade é que não precisa romper com aquilo que a precede para se afirmar. Se fosse nova apenas pelo espírito de vanguarda ou de ruptura, pertenceria àquela forma mutilada de modernidade que chamamos “moda”. A moda propõe novidades de ruptura com aquilo que a precede.
Eis por que estas novidades se torna muito rapidamente velharias: outras novidades aparecem no horizonte e a moda sai de moda. A novidade mantém o seu frescor e a sua juventude não se afastando daquilo que a precede, mas se aproximando da fonte. Não é excêntrica: é original. Isto quer dizer que não se afasta do centro, que não buscar um lugar apenas em relação àquilo que a precedeu (ainda que seja para tomar distância ou para se aproximar). A novidade se volta para a origem.
Falar de uma maneira verdadeiramente nova, como fez Dante por exemplo, não quer dizer romper mas colocar-se em comunicação com a origem da palavra, e esta origem reside num duplo silêncio: o silêncio da morte e o silêncio do Eterno. Todos aqueles que falaram com uma força nova, todos aqueles que cantaram um canto novo, foram capazes de se colocar entre a angústia diante do silencia da morte e a esperança diante do silêncio do Eterno: atravessaram o inferno e foram cegados pelo paraíso. Permanece o fato de que a modernidade da língua é secundária em relação a sua tradição. É preciso, antes de tudo, aprender as regras antes de começar a jogar. Aquele que ataca os próprios pais só pode fazê-lo se, primeiro, os escutou e se ainda se dirige a eles.
No entanto, também a tradição da língua existe em função da sua modernidade: a aprendizagem das regras não é fim em si mesma, mas existe em função de uma nova partida a ser jogada. Não vimos ao mundo para repetir aquilo que nos disseram os nossos pais, muito menos para insultá-los, mas para dialogar com eles, para responder, para enriquecer com a nossa melodia o grande coro da vida.
Esta estrutura da palavra, ao mesmo tempo moderna e tradicional, permite compreender a tese de Romano Guardini em O fim da idade moderna. Segundo Guardini, a modernidade retomou essencialmente algumas realidades cultas do cristianismo para jogá-las contra o cristianismo mesmo. Sobre a base da revelação da dignidade da pessoa construiu-se o individualismo. Sobre a base da verdade do livre arbítrio construiu-se o liberalismo. Sobre a base da exigência de justiça social construiu-se o socialismo, e assim por diante.
A modernidade reconhece uma flor evangélica, colhe-a e a coloca num vaso. A flor, então, é valorizada, a ponto de parecer até mais maravilhosa do que é. O isolamento lhe dá uma luminosidade especial, um perfume extasiante, a ponto de fazer pensar que a flor não tenha mais nada que ver com as suas raízes. A verdade é, pelo contrário, que ela é condenada a murchar.
O esquecimento pode funcionar apenas por um certo período de tempo, o suficiente para que o progressismo chegue a fingir ser apenas um substituto da esperança teologal. 
Mas, o que vemos hoje? Eu já o disse: o desmoronamento dos progressismos e, pelo contrário, a moda de um catastrofismo generalizado, e portanto a crise radical da modernidade. Ela teria chegado cedo ou tarde a esta crise, visto que todas estas noções vindas de suas raízes e do seu sol serviram apenas para colocar a perder, pouco a pouco, a linfa vital. Paradoxalmente, hoje, a modernidade pode ser salva somente na medida em que se recorra à tradição, e mais especificamente à tradição judaico-cristã.
As esperanças mundanas morreram. E impossível partir delas e conseguir ainda crer numa saída para o humano. Mas a esperança teologal não pode morrer. Não depende do futuro: depende do eterno. Sempre me lembro disso: quando me advertirem que, para o fim do ano, só falta um ano, não renunciarei a amar minha mulher, a ter com ela outro filho, a ajudar que meus outros cinco filhos descubram a poesia de Dante... Porque sei que esta vida não serve para ter um futuro, mas para que cada um tenha a vida eterna.
O modernismo, ou seja, a modernidade que pretende abaixar-se sobre si mesma, pode portanto apenas destruir a modernidade. É sempre varrida pelo pós-humano. Porque não é possível jogar sem antes ter aprendido as regras. Num instante, o protesto se apaga e deixa o lugar ao programa em código ou ao verso do animal, porque saímos da tradição e da tradição da palavra. Deste momento em diante a modernidade deve voltar-se contra o modernismo e a modernização sistemática se quer permanecer viva e humana. Deve reencontrar a sua tradição, aquela tradição que ecoa no mandamento da Bíblia: “Cantai ao Senhor um canto novo”.
A tradição não é, dessa forma, tão contraposta à modernidade quanto se poderia imaginar, já que a tradição não é nem conservadorismo nem fascínio pelo passado histórico.
O que levou à destruição de toda tradição foi exatamente o conhecimento histórico como fim em si mesmo: multiplica as informações sobre o passado, mas apenas para colocá-las numa vitrine. Nada é mais distante da tradição do que um museu do folclore. A verdade é que a tradição não consiste numa simples transmissão do saber: é a transmissão de um saber vivo.
Eu posso conhecer com grande precisão tudo aquilo que Jesus fez e posso até mesmo saber a Bíblia de cor; posso também ser o curador de um grande museu do cristianismo. Mas esta relação com o museu não é uma relação com a tradição: a cultura não tem nada que ver com o culto. O erudito conhece a tradição perfeitamente, mas não vive na tradição.
A velhinha que fala de Jesus vive na tradição, mesmo se não conhece da tradição nada do que o erudito conhece. Na tentação de Jesus no deserto, Satanás cita de cor o Deuteronômio, demonstrando ser um especialista de exegese histórico-crítica: vive na erudição para evitar entrar na tradição viva. De outro lado, a tradição não é um conservadorismo. Um bom exemplo nos é dado pelo motu proprio de João Paulo II, Ecclesia Dei afflict. Este texto fala do cisma provocado por D. Marcel Lefebvre e dos que chamamos “integralistas” ou “tradicionalistas”.
Qual é o princípio deste cisma? Não é o amor pela tradição, diz João Paulo II, mas o amor pelo conservadorismo, ou seja, por uma forma de conservação que quer manter tudo absolutamente intacto, e que, portanto, petrifica ao invés de conservar em vida. Vocês sabem bem: se quiserem conservar tudo de um ser vivo, vocês não podem mantê-lo em vida e são obrigados a congelá-lo. “A raiz desse cisma é identificado numa noção de tradição incompleta e contraditória. Incompleta porque não leva em conta suficientemente o caráter vivo da tradição que – como o Concílio Vaticano II ensinou claramente – progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo”. O tradicionalismo se contrapõe à tradição porque mata o organismo vivo para se tornar um adepto do fóssil. A verdadeira tradição não consiste em conservar tudo daquilo que se fazia ontem, mas no transmitir o essencial disso. E para poder transmitir o essencial é preciso saber reconhecer os sinais do tempo e, portanto, adaptar-se a certas novas condições de transmissão. Josef Pieper escreve: “Uma consciência autêntica da tradição nos torna livres e independentes diante daqueles que pretendem ser os ‘guardiães’. Pode acontecer que estes famosos ‘defensores da tradição’, exatamente pelo fato de que se limitem a formas históricas, obstaculizem aquela que, pelo contrário, é a verdadeira e necessária transmissão (que não pode acontecer senão como formas históricas mutáveis)”.
A verdadeira tradição é uma relação viva com o mistério, na medida em que esta relação é recebida e transmitida como a palavra e a vida, através da palavra e da vida, desde a origem. A tradição é, portanto, ainda mais crítica, porque é confronto com aquilo que escapa à crítica, com aquilo que nos supera, com aquilo que nos traz mais interrogações do que normalmente nos fazemos, com aquilo que nos chama mais do que saibamos responder.
Mesmo nisso a tradição é mais moderna do que a modernidade : está sempre à frente, na medida em que é fundada sobre a esperança; não se rege sobre o futuro próximo, mas sobre o eterno e, portanto, sobre aquilo que ressurge mesmo depois do fim dos tempos. Nisto, a tradição é ainda mais jovem do que a modernidade, porque a tradição pressupõe que os pais seja também e antes de tudo filhos e, portanto, crianças: não tiveram a iniciativa da palavra, não inventaram a vida, sobretudo a receberam.
O complexo de Édipo existe apenas fora da tradição. A revolta dos Titãs existe apenas fora da tradição. No seio da tradição o filho não tem nenhuma razão para matar o pai porque descobre que seu pai é também um filho, que toda originalidade pura, todo verdadeiro gênio, é sempre filial. Porque ser filho do Eterno é infinitamente maior do que ser pai por um breve momento.
Josef Pieper escreve também, a respeito da esperança: “A juventude do homem que aspira ao eterno é, por sua natureza, indestrutível. Não é exposta nem ao envelhecimento nem à desilusão”.

* Extraído de L'Osservatore Romano, do dia 4 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Postagens de hoje

Quanto mais abafada for a voz do nosso coração, mais vigorosamente ela deve insistir até se sobrepor ao tumulto dos pensamentos invasores e tocar o ouvido fiel do Senhor. 

... um inesperado percurso dentro de si, que todavia não se encerra numa introspecção sem saída, mas se abre sobre a história pessoal do protagonista, relendo-a sob uma nova luz.

Um entrevista com Fabrice Hadjadj sobre o ateísmo e o senso religioso.

Sair-se bem na escola seria, então, visto como expressão de e não oposição ao próprio desejo de satisfação. Para dizer em duas palavras: não se é obrigado a ir para a universidade para se ser feliz. Mas, se o deseja, isto é o que a realidade lhe pede para fazer.

Caro ateu, não ceda aos novos ídolos...


Entrevista realizada por Lorenzo Fazzini

Um “desafio” saudável lançado aos ateus para que sejam, de verdade, sem ídolos. E continuem capazes de se abrir a “uma espera do inesperado” que pode ter o rosto de Cristo, o Deus recusado pelos crentes de seu tempo. Fabrice Hadjadj, filósofo francês, convertido ao cristianismo, vai falar esta noite na Universidade Católica de Milão (na Aula Magna, às 21h), sobre “Modernidade e modernismo. A propósito do senso religioso”

Deus. Podemos falar disso com os não crentes?
É preciso reconhecer que a primeira dificuldade consiste no discutir a esse respeito com os crentes. É o Evangelho que nos ensina: Jesus não se dirige aos ateus, mas aos especialistas da fé, escribas e fariseus. Ele quer revelar a eles o mistério do Pai. Mas, eles não o compreendem, e acabam por crucificá-lo. É difícil para nós admitir que foram alguns crentes que levaram o Filho de Deus à morte. Quando se acredita, seria necessário lutar para não reduzir Deus a um pequeno ídolo doméstico. Este nome deveria nos abrir a garganta como um abismo. E, no entanto, nós o pronunciamos como uma banalidade conceitual. Se o pronunciássemos com a vertigem do apaixonado! Antes da minha conversão, não suportava que se pronunciasse a palavra “Deus”: eu a considerava como um coringa jogado sobre a mesa, traiçoeiramente, durante uma partida de cartas. Soava-me como um modo de evitar os problemas e entender mal a tragédia da vida.

Como “verificar” a ideia, frequentemente confusa, de Deus?
Ele não abole o drama da existência, mas o realiza. É o que revela o mistério da Cruz. Os crentes o crucificam acima de Deus, e no entanto Deus clama a Deus: Por que me abandonaste? Não é algo de abissal? Não é, talvez, verdade que isto destrói todos os nossos ídolos e nos leva ao drama do “amor forte como a morte”? É preciso que os crentes reconheçam tal drama e vivam o segundo mandamento, que nos pede para não pronunciar em vão o nome de Deus. Os não crentes poderiam entendê-lo melhor.

O senhor fala por experiência?
Sim. A minha conversão foi também “linguística”. Descobri que o significante “Deus” correspondia à verdade do “Sim” de Friedrich Nietzsche e do “Aberto” de Rainer M. Rilke. E que não era uma postura poética ou um conceito filosófico, mas a realidade de uma Pessoa que me havia precedido no fundo da obscuridade. “Deus” não significava mais uma solução, mas uma aventura. Não uma resposta, mas um apelo. Não se trata de uma estratégia de marketing. Quando encontrarmos o melhor modo de falar de Deus, não será mais seguro que o outro, nos escutando, se converta. Se falarmos de Deus imitando a força de Jesus, alguns se converterão, outros acabarão nos crucificando. É o sinal de que, finalmente, falamos bem.

O senhor definiu a espiritualidade como “um truque do diabo”. Sobre o que discutir com os ateus?
Sobre a sexualidade. No meu Mística da Carne mostro que o sexo nos remete à profundidade autêntica, até às vísceras de Deus. No princípio, Deus cria o homem à sua imagem, homem e mulher, de modo que a sua relação sexual, com a sua fecundidade natural, se torne a imagem da Trindade. Qualquer que seja o ponto de partida – uma margarida ou um caramujo –, se falarmos corretamente, chegaremos inevitavelmente a Deus: ele não é relegado às alturas, mas comparece no mais “baixo”. O cristianismo é o contrário do espiritualismo, é espiritualidade da encarnação: o Verbo se fez carne e se dá a nós através de um ato espiritual e carnal, a eucaristia. Os sacramentos são os toques de Cristo. Para ir em direção a Deus temos que nos aproximar daquele padre que nos é antipático, daquele cristão que nos enche a paciência na cadeira ao lado, daquele pobre para convidá-lo à mesa.

Recentemente, a apologética se recuperou. Mas o senhor não escreveu palavras ternas a esse respeito...
Não tenho nada contra a apologética. Pois é o que eu mesmo tento fazer agora. Mas tem o perigo de permanecer no nível do debate de ideias. O cristianismo não diz respeito a uma ideologia: é uma vida. E a sua alma se encontra no amor. Quando separamos o amor da verdade caímos no sentimentalismo. E se afastamos a verdade do amor, terminamos no dogmatismo. A Verdade própria do cristianismo é uma Pessoa, não uma teoria. E Deus mesmo não é uma natureza anônima, mas uma comunhão de Pessoas. Muitas sabedorias filosóficas pretendem que a realização do homem consista num conhecimento teórico ou num estado de serenidade. O cristianismo propõe outra coisa: um encontro. Para fazer boa apologética é preciso isto: antes do confronto ideal, maravilhemo-nos com o rosto do nosso interlocutor; e mesmo se ele não entender nada e, no fim, nos encher a paciência, continuemos a admirar nele a maravilha que Deus contempla e que ele mesmo, o ateu, ignora.

No seu livro-entrevista, Bento XVI sublinha a relação, positiva e fecunda, entre cristianismo e modernidade. Quais são os aspectos dessa relação que enriquecem a fé?
A modernidade traz duas exigências. A primeira é de natureza crítica: o homem moderno recusa receber algo tão somente porque seja transmitido por seus pais. Reclama razões e quer compreender. Mas pode ser ambígua: ou conduz a um dobrar-se mortal sobre si mesma ou conduz a uma maior inteligência da fé. Segundo: o homem moderno deseja uma plenitude “aqui e agora”. Por isso, rompe com o além. Ora, o nó é que nunca estamos “aqui e agora” para nós mesmos. O tempo foge e, quando estamos em algum lugar, projetamos ir para outro. Faltamos à presença. Nunca estamos uns com os outros. Para estarmos completamente presentes, temos que coincidir com o ser e poder dizer: “Eu sou aquele que sou”. Este é o privilégio do Eterno. Por isso, voltar-se para Ele não é fugir do “aqui e agora”, mas nos aproximarmos dele e buscar ser mais presentes a tudo e a todos.

No seu A fé dos demônios o senhor critica os “novos ateus” como Michel Onfray, exemplo do ateu “enganado” que “não busca mais”. Os não crentes são todos assim?
Chamo a atenção daqueles ateus que não são aquilo que pretendem ser. Um ateu é alguém “sem deus”, alguém que de se desfazer de todos os ídolos, esforçando-se para não tornar o próprio ateísmo um ídolo. Seria triste libertar-se da religião de Cristo para fabricar para si mesmo uma religião do ateísmo. É o que acontece na maior parte dos casos. Ser verdadeiramente ateus representa algo de verdadeiramente difícil. Quando se abandona o Deus transcendente, confecciona-se para si mesmo outros ídolos: razão, raça, revolução, mercado... Visto que não somos Deus, mas seres de desejo, temos necessidade de um princípio para polarizar as nossas vidas. Tentei ser o mais ateu possível. Ao fim, desembaraçando-me de todos os ídolos, restou em mim a disponibilidade para acolher aquilo que não vinha de mim, aquilo que, para alguns, é a transcendência e que o catecismo chama Revelação. Tal disponibilidade consiste numa abertura para o encontro. Heráclito a definia como “a espera do inesperado”, uma abertura que se oferecer num acontecimento que nos alcança através de uma multidão de testemunhas: a “tradição apostólica”. Uma série de encontros que partiram de Jesus e me alcançaram.

* Extraído do jornal Avvenire, do dia 3 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O eu renasce em um encontro



Rímini, 28 de agosto de 2010.

Fabrice Hadjadj nasceu em 1971, em Nanterre. É filósofo e intelectual francês, de cultura judaica, converteu-se ao cristianismo em 1988. Colabora com Figaro Littéraire e Art Press, ensina filosofia e literatura na escola católica Sainte-Jeanne-D'Arc de Brignoles. Autor de diversos livros, venceu, em 2006, o Grand Prix Catholique de literatura. O texto abaixo é a transcrição da conferência proferida pelo filósofo no âmbito do Meeting pela Amizade entre os Povos, edição de 2010, no dia 28 de agosto de 2010. A conferência pode ser assistida aqui.

Por Fabrice Hadjadj
Obrigado. Fico muito feliz de estar aqui com vocês. Retorno este ano, depois de minha participação no ano passado, tendo tido, por isso mesmo, a oportunidade de reencontrar amigos. Gostaria de agradecer especialmente ao Padre Carrón que me convidou, e também ao meu amigo Ugo Moschella que tinha traduzido para o italiano essa minha conferência, porque eu havia pensado em proferi-la em italiano, mas me dei conta de que era um exercício de ventríloquo muito difícil e que, fazendo esse exercício, não conseguiria entender quem seria o ventríloquo e quem seria a marionete. Por isso, escolhi lê-la em francês.
Seja como for, meu embaraço é grande: tenho que falar com vocês sobre um livro cujo título é L’io rinasce in un incontro [O eu renasce em um encontro, ainda não traduzido para o português; ndt], que me coloca numa situação extremamente difícil porque, se este título diz a verdade, se esta conferência neste meeting é um momento do Meeting, e portanto se esta conferência é um encontro, então devo falar de modo tal que possamos renascer, devo experimentar, de alguma maneira, fazer um exercício de ressurreição e é exatamente isso que, no fundo, todos nós estamos esperando. Por que estamos aqui? Por que tantos e de tantos lugares distantes? Será que para receber informações suplementares e encher nossa cabeça como se enche uma enciclopédia? Mas, por maior que seja a nossa cabeça, um dia, deverá cair; e não fará outra coisa melhor do que cair com o peso de todo este saber morto, que já era mortal em si mesmo desde o momento em que não nos fez nos darmos conta da esperança de uma ressurreição. Mas, uma vez dito isto, eis que um peso insustentável pesa sobre mim, ou melhor, uma insustentável leveza pesa sobre nós, porque, como fazer para ressuscitar, como fazer para que o nosso encontro seja um renascimento? Mas, pode acontecer que a pergunta tenha sido mal colocada, porque talvez não se trate tanto de fazer, pois se se tratasse de fazer a partir do meu projeto, a partir do meu discurso, um discurso brilhante, um discurso que seduz a plateia, não haveria nenhum encontro, nenhum acontecimento, porque tudo seria o efeito de um programa e perderia, portanto, o frescor exuberante de um nascimento. Então, como fazer para que não seja apenas um fazer? Como se dispor ao encontro, como permitir que o encontro aconteça de tal forma que fiquemos prontos a nos deixarmos transformar por aquilo que acontece? E como ser transformado pelo outro de tal modo que a mudança não seja uma alienação, mas uma realização, uma ressurreição? A dificuldade não é apenas a de se dispor a um renascimento, mas também é a de reconhecer aquilo que pressupõe este renascimento. Com efeito, alguém poderia objetar: “Por que renascer? Já não nasci? Já não sou eu mesmo? Por que teria necessidade de um encontro para que o meu eu possa renascer?”. De fato, para desejar renascer, é preciso, em primeiro lugar, reconhecer que se está morto. Isso, frequentemente, é esquecido, mas apenas com um bom morto é que se pode fazer um bom ressuscitado. A boa notícia, a boa nova da misericórdia infinita pressupõe a má notícia da nossa miséria infinita, e o meu embaraço – embaraço especial, vocês vão entender – é o de ter que fazer esta constatação diante de vocês: “cada um de nós está morto”. Eu estou morto, talvez não biologicamente, mas espiritualmente, lá onde não entro no encontro, não me abro ao outro, ignoro a existência do meu coração.
Usei a palavra coração. Esta mesma palavra que se encontra no centro deste Meeting. Mas, o que é o coração? Um músculo, mas um músculo estranho porque é um músculo oco, que acolhe em si outro diferente de suas próprias fibras. E também porque, diferentemente dos outros músculos, não depende diretamente da minha decisão. Os 17 músculos da minha língua se ativam em seguida à minha vontade de falar, e se escolho mover a mão é graças a músculos que obedecem ao meu querer; mas o meu coração bate sem que eu lhe ordene. Começou a bater antes mesmo que eu tivesse começado a exercitar a minha vontade, e bate numa velocidade que não fui eu que decidi. É assustador: o centro de mim mesmo não está em meu poder. Aquilo que eu tenho de mais fisicamente íntimo me escapa e, pior, o meu coração bate o seu tum-tum sem me consultar e, portanto, pode parecer para mim como uma espécie de hóspede selvagem, um membro de uma tribo primitiva que bate o ritmo de uma dança canibal. Porque eu sei que, da mesma forma que começou a bater sem que eu o quisesse, pode muito bem parar de bater daqui a pouco sem que, ao menos, nesse caso, eu o queira, e será o fim da dança, será o momento no qual a vítima deverá ser consumida. Assim, o coração é o sinal do ser recebido, mas também do ser oferecido. O sinal de que não me dei a vida, mas também de que devo oferecer a minha vida se não quero apenas perdê-la, porque, seja como for, todo o sangue que escorre deverá ser derramado, mas para quê? Para qual ressurreição? Dom Giussani escreve: “a verdade da vida é o seu relacionamento com o mistério de onde nasce, de que nasceu”. Nasce porque ninguém se dá o instante que vive. Trata-se de uma verdade muito concreta – que as batidas do nosso coração se repetem continuamente, no nosso pescoço, nas nossas têmporas, nas nossas orelhas – uma verdade que não paramos de cobrir com uma manta de ruídos para acreditar que somos os artífices da nossa existência.
O sinal de que a vida é, em cada momento, recebida para ser oferecida pode ser observado também em outro lugar, por exemplo, no nosso umbigo. Costuma-se dizer “olhar para o próprio umbigo”, para falar do egoísta, do vaidoso, também para falar daquele que se toma como o centro do universo; mas se você olha de verdade para o próprio umbigo o que descobre? Uma cicatriz, a sua primeira cicatriz que é o testemunho inefável do seu relacionamento com um outro, da sua relação com sua mãe que foi, para você, a primeira morada, e se você não a tivesse encontrado, nunca teria nascido. Assim, o nosso umbigo nos recorda a nossa dependência original de um outro, nos recorda que não somos feitos por nós mesmos e que, no meio de nós mesmos, tem esta ferida que é o sinal de um dom, esta ferida que nos chama a dar, a não temer as feridas se forem para dar a vida.
Outro sinal semelhante ao coração e ao umbigo, mas que nos remete do corporal ao espiritual e que, portanto, nos é apenas um sinal, mas é a prova de que toda a nossa pessoa, corpo e alma, vive apenas por causa do encontro e de dentro do encontro, este outro sinal é a nossa palavra. Assim como se fala em “olhar para o próprio umbigo”, em francês se diz também “escutar-se falar”; mas, ainda uma vez, se você se escutasse de verdade, o que ouviria? Entonações que você herdou do seu pai ou da sua mãe, do seu irmão, ou de um professor admirado, mas sobretudo escutaria as palavras e uma gramática, toda uma língua que você não criou, que você recebeu das vozes dos seus pais como um dom encantado das fadas que sobrevoavam o seu berço; e se você começa a dizer “não quero a comunhão com vocês”, se você diz algo assim, você se contradiz duas vezes. Contradiz-se uma primeira vez porque você se volta ainda aos outros e tem necessidade de voltar-se aos outros para afirmar a sua posição e, portanto, você demonstra, dessa forma, uma necessidade, ainda que negativa, de comunhão. E você se contradiz  uma segunda vez porque as suas palavras provêm já de uma comunhão, de uma comunidade linguística, e mesmo que você fale sozinho sempre será escuta e direção, resposta e pergunta essencialmente ao outro. Assim, a sua língua é como o seu coração: está em você, na sua boca e testemunha que você não se deu a sua vida sozinho e que a vida não é uma propriedade sua. Ela testemunha, apesar de você, um encontro; testemunha, apesar de você, uma esperança. Por exemplo, antes você disse “bom dia” e, por trás disso, havia, apesar de você, o chamado de atenção para um dia verdadeira, inteira e absolutamente bom, a invocação da glória. Ou ainda: você disse “até logo”, e isso significa que, com a sua boca, você anunciou o desejo de rever o outro e, ainda e sempre, mesmo que com o seu tu superficial você tenha achado esse outro antipático ou tenha exclamado “que vida de merda”, ainda assim, como poderia dizer isso se não tivesse em você, apesar de você, o pressentimento de uma vida melhor, mais viva, eterna e alegre? Sem este pressentimento, sem esta esperança, tal exclamação não estaria na sua boca e você encontraria a merda de que mais gostasse. É possível entender, portanto, a verdade profunda desse versículo do Deuteronômio: “Este mandamento, que hoje te ordeno, não te é encoberto, e tampouco está longe de ti (...). Esta palavra está mui perto de ti, na tua boca, e no teu coração, para a cumprires”.
Sei que muitos dos que estão aqui conheceram um renascimento através do encontro com Dom Giussani. Talvez porque Dom Giussani era um orador mais brilhante do que os outros? Não, mas porque era mais pobre, mais pobre de espírito do que muitos outros e, por isso, não conduzia simplesmente os homens a si, mas através de si os conduzia à fonte, à origem, à luz, chamando a atenção dos homens assim para eles mesmos, para a sua própria originalidade. Era suficientemente pobre para ser transparente, suficientemente pobre para não ser brilhante, mas luminoso, não capturando a luz para si mesmo mas deixando-a passar através de si. Também o fruto desse encontro – como de todo encontro verdadeiro – não é o fornecimento de novas informações, como uma reportagem sobre um país estrangeiro, mas muito mais a renovação daquilo que existe já desde sempre, o reviver de uma Presença. Isso é incomparavelmente mais importante, porque está em jogo não o saber algo a mais, sempre a mais, sem fim, para divertir-se melhor, para se distrair melhor, mas para retornar, retornar para o fato de nossa existência e descobri-lo como um fato mais fadado que fatal. Algo existe, eu sou, eu existo, eu dou testemunho. É este o primeiro fato, é este fato que é a verdadeira atualidade, o verdadeiro acontecimento, princípio de todos os outros com a sua pergunta própria: “Por que estou aqui?”. O desafio é, portanto, não o de se fabricar uma resposta imaginária e artificial, mas tomar consciência daquilo que somos, daquilo que se joga na nossa língua e no nosso coração, escutar esta palavra que está muito próxima de você, na sua boca e no seu coração para que você a viva finalmente.
Como Giussani escreve no livro L’io rinasce in un incontro, vivemos numa fragilidade de consciência maior, uma fragilidade que não é ética, mas de energia da consciência. A fragilidade não é nem ética nem científica. As soluções científicas não nos faltam, pelo contrário temos tantas que podemos vendê-la, temos até mesmo soluções finais; porém nos faltam terrivelmente não soluções, mas perguntas, chamados de atenção, um drama que nos envolva e nos dê não uma solução mas um sentido e, ainda mais, não um meio de nos protegermos mas um objetivo pelo qual nos doarmos. Também não estamos aquém dos padrões moralizantes, pelo contrário, somos incessantemente atacados por ordens e regulamentos, a publicidade, por exemplo, não para um só instante de nos dar ordens: compre isto, pegue aquilo, com a nova BMW você conhecerá a alegria, com o salame Neuroni você vai encontrar o gosto do verdadeiro, com Tiscali o caminho é aberto. A publicidade nos fala como os pregadores da Idade Média, nos propõe o céu, mas graças a um salame, a uma lava-louças ou a uma conexão com a internet. No fundo, o mundo, para seduzir, não pode fazer outra coisa senão parodiar a Igreja – Satanás é o macaco de Deus, dizia São Jerônimo – e é por isso que o mundo deve se fazer mais moralizador do que a Igreja. Mesmo quando o mundo declara que você deve gozar, é ainda um “você deve”. Porque o objetivo fundamental por trás dessa ordem de gozar imediata e cegamente – e digamos ainda mais tristemente –, a intenção que se esconde atrás dessa ordem de gozar e de fazer gozar, que antes de mais nada é uma ordem de dominação e de performance, e não uma ordem de encontro e de comunhão, a ordem de tristeza profunda que se dissimula atrás desta ordem de gozo superficial, como que um porco engorde, é o esforço para sufocar o desejo. Dom Giussani o diz muito claramente: o poder, de fato, ou a exaltação da mentira como instrumento, o que faz? Tende a reduzir o desejo, o poder tende a reduzir o desejo. A redução dos desejos ou a censura de alguma das exigências, a redução dos desejos e das exigências é a arma do poder. Eis a arma do poder; e esta redução do desejo, afirma Giussani, não é outra coisa senão a tentativa de abolir a humanidade.
Há, hoje em dia, todo um movimento extremista, bastante característico do nosso tempo, que se chama trans-humanismo. Ele admite claramente as próprias intenções, trata-se de realizar, através da chamada Paradise engineering, um super-homem: graças à biogenética, à neuroquímica, às nanotecnologias deve-se sair do humano para seguir em direção do pós-humano ou, como dizem, do trans-humano, para fabricar um super-homem livre de todo sofrimento, absolutamente competitivo, adaptado às necessidades do mercado e sempre seguro de si e do próprio bem-estar. Mas, se pensarmos sobre isso por um instante que seja, nos daremos conta de que estes super-homens são superados desde o princípio, cada progresso tecnológico sempre dará um jeito para que cada nova geração de super-homens torne obsoleta a precedente, boa apenas para ser jogada no lixo como aqueles velhos computadores que parecem tão distantes de nós como se fossem uma descoberta arqueológica. Como o homem terá sido reduzido no seu desejo e terá sido reconduzido a algo de funcional, será tão deteriorável quanto um bem de consumo, a sua perenidade será pensada em função do progresso técnico e será, portanto, frágil e fugaz como um telefone celular de última geração. Eis porque os super-homens são os dinossauros do futuro.
Vocês que são italianos na maior parte devem estar impressionados com esta palavra – trans-humanismo. De fato, o primeiro a empregar este termo como verbo, o primeiro a formar este neologismo foi Dante. Vocês conhecem aqueles versos do primeiro canto do Paraíso: “Transumanar significar per verba non sia poria”, não se pode dizer trans-humanar através das palavras, “però l’esempio basti”, mas o exemplo deve bastar, “a cui esperenzia grazie serva”, a quem, àquele ao qual a Graça conservou a experiência. Aqui, Dante é profeta, nos fala que trans-humanar é a maior coisa que o coração deseja, mas esta grande coisa se torna pequena tão logo pensamos em poder chegar até ela através de nossas próprias palavras, através de nosso poder. Para chegar até lá é preciso a onipotência de uma Graça, é preciso o encontro com um Outro. Este é o exemplo que nos dá o poeta, mas o exemplo não foi suficiente porque perdemos o senso da experiência, a graça da experiência, em benefício do orgulho e do planejamento.
Nesse ponto, podemos entender que o poder não teria nenhum poder se não existisse em nós o desejo de coisas grandes, se só existisse aquele desejo em que tão logo nos baseamos nele nos desvia, como acontece com o Calígula de Camus – ele petrifica a sua magnanimidade, pulveriza a sua grandeza em distração e, finalmente, retorce aquele desejo contra si mesmo para sufocá-lo, porque tão logo o homem pretende divinizar-se de si mesmo para além de todo encontro, para além de toda graça, se torna pesado e se asfixia como aquele que gostaria de um coração que fizesse circular o sangue num circuito fechado sem oxigená-lo, sem precisar respirar o ar que vem de fora e, portanto, recusando aquele poema da respiração como disse Rilke – “Visto que o murmúrio da nossa respiração nos canta, em cada instante, que, para viver, é preciso, em cada instante, receber e oferecer a própria respiração”. A vontade de potência não pode impedir o encontro, porque o encontro é um acontecimento, uma fratura que frustra os nossos planos. O Senhor anula os desígnios das nações, diz o Salmo. Mas a vontade de potência pode abortar o encontro, pode nos fazer acreditar que ele foi apenas uma ilusão, destruindo assim, imediatamente, a incrível aventura, a incrível fecundidade que queria nascer.
Dom Giussani escreve: o poder não pode impedir o despertar do encontro, mas busca impedir que se torne história. O poder busca impedir que o encontro se torne uma história. De qual encontro estamos falando? Daquele com Cristo certamente, mas também daquele com uma paisagem, com um concerto de Mozart, ou com uma garota. Eis, por exemplo: você se encontra com Beatriz ou com Aspásia. O que acontece no instante desse encontro? Você fica tocado com a sua beleza. Certo. A sua beleza é experimentada por você através do seu rosto, do seu corpo, mas o que lhe é oferecido através do seu rosto e do seu corpo é uma música, uma harmonia, uma dança do ser. Porque aquela beleza é como se, no fundo do ser, remontasse até à superfície e mostrasse a sua dança e a sua alegria essencial. E é, nesse momento, que a vontade de potência, o poder, nos sussurra ao ouvido: esta música é apenas uma ilusão, produzida pela sua testosterona. Pegue um preservativo, leve Aspásia para a cama, escolha um quarto e transe com Beatriz. Você verá que a miragem se dissipará. Mas, fazendo assim, você estupra Beatriz, mesmo se ela tenha aceitado, sobretudo se ela aceitou. Você a estupra porque você comete uma violência contra aquilo que entreviu, porque você cospe na música, porque você pisa na dança do ser que lhe foi manifestada no encontro. Enfim, porque você não quis reconhecer a ferida da beleza, aquela ferida que não é diminuição do seu ser, mas oferta de um ser que é maior do que o seu poder, e que levanta você humilhando-o, diviniza você destruindo o seu orgulho. Giussani chama atenção para isso. Isso é importante para o mundo: impedir ao homem alcançar a própria ferida, impedir ao homem alcançar a si mesmo. É uma frase espantosa. Como pode ser que alcançar a si mesmo coincida com o alcançar a própria ferida? É porque isso sempre acontece em um encontro, no impacto e na felicidade de uma hemorragia contínua de sangue recebido e dado. O encontro é ferida, porque é o aparecer de algo que desperta o meu desejo e, ao mesmo tempo, escapa do meu poder. Algo que, ao mesmo tempo, me exalta e me humilha. E pergunta se torna: como abraçar, de verdade, Beatriz? Como entrar em contato com a fonte inacessível da sua beleza? Atenção, não se trata de se servir de Beatriz para ir até a Deus. Isto é o que acreditaram alguns falsos cristãos. Disseram “sigam em direção a Deus e, para fazer isso, desprezem as suas criaturas”. Mas, é como dizer “vá até Dante e diga-lhe que sua Comédia não vale nada”. Não vale nada. O Criador ama a sua criatura. Por isso, ir em direção a Ele é ir em direção dela mais profundamente. Vocês conhecem aquele versículo da carta aos Colossenses que Giussani repetia muito frequentemente, e que exprime sem dúvida a intuição fundamental de todo o seu percurso. Ele, antes de todas as coisas, e todas as coisas subsistem nEle. Tudo subsiste em Cristo, e portanto ir em direção a Cristo não exclui nada. Pelo contrário, deve-se ir em direção a Cristo para ir em direção de Beatriz, porque é nEle que ela subsiste, é através dEle que ela é salva, é com Ele que a música da sua beleza pode se desdobrar numa inefável sinfonia.
Então, eis a ressurreição que se aproxima. Mas, é preciso que lutemos contra a mentira de uma autenticidade fabricada pelo nosso próprio poder, que arrisquemos a nossa vida pela beleza, a verdade do encontro e do desejo. Dom Giussani disse isso de modo claro. A luta contra essa mentira pode justamente nos levar a dizer que, talvez, fosse melhor para o homem ser assassinado que perder a própria humanidade. Este é o exercício da nossa ressurreição: preferir mais ser assassinados do que perder o próprio coração. Tal é o testemunho em favor da beleza: preferir mais ser esmagado, desfigurado, cortado em pedaços do que renegar a glória à qual todos somos chamados, mesmo os mais pequenos, mesmo os mais inimigos, mesmo aquele que me faz em pedaços. Como Giussani disse, Cristo não é apenas para os cristãos, não é para os cristãos, é para todos os homens. É o salvador do marxista, do berlusconiano e mesmo do aderente à democracia-cristã. Assim, o cristianismo não é apenas para a paróquia, mas para tudo aquilo que nos circunda, porque tudo subsiste nEle. E é também esta a ressurreição. Não apenas preferir ser morto do que renegar o nosso desejo mais profundo, mas também não acreditar que a ressurreição seja para amanhã e apenas para os fiéis da nossa paróquia, mas que ela começa já hoje e para todos. O nosso trabalho não tem sentido, a não ser que seja voltado para o trabalho de ressuscitar, como diz a poesia de Norwich citada por João Paulo II e por Dom Giussani. Este trabalho de ressurreição não consiste em uma nova aquisição. A ressurreição se encontra numa energia de consciência maior. Ela não é o mesmo que ter algo de outro, mas, finalmente, ser si mesmos, o que não quer dizer fechar-se em si mesmo, mas aceitar as próprias feridas e entrar numa comunhão. Uma maior energia de consciência quer dizer viver amorosamente aquilo que nos é dado. Que você não atravesse a vida como se fosse um vídeo-game, uma cena de fantasmas sem profundidade, mas que você tome consciência daquilo que é agora, e que você esteja presente à presença que funda tudo aquilo que é. Para que você possa dizer, como Nietzsche dizia, melhor do que como Nietzsche dizia, eu sou um destino. Porque você respondeu ao chamado que lhe foi feito de viver até ao fundo a única aventura da sua vida, escutando aquilo que já está na sua boca e no seu coração. Está aqui o coração do mistério cristão. Devemos fazer memória disso. Deus é Trindade, eternamente o Pai gera o Filho na unidade do Espírito. De tal forma que Deus é, em si mesmo, sempre nascimento e encontro, é, em si mesmo, comunhão de pessoas. E cada uma das pessoas divinas tem o seu eu que nasce de um encontro infinito. Portanto, oferecer-se a Deus não é ser absorvido como uma gota d’água no oceano imenso. É encontrar a própria origem e, portanto, a própria originalidade. E, portanto, o próprio nome e o próprio rosto, porque Deus quer que nós O conheçamos face a face, quer que a face de cada um de nós não se perca, mas que seja radiante singularmente, de modo divino e, então, começaremos a ressuscitar, começaremos a ressuscitar quando começarmos a crer que Beatriz ou Aspásia, mas também o Fulano de Tal, ou seja, vocês, eu, o seu vizinho de cadeira, quando começarmos a acreditar que cada um é tal que, como disse Dante, “Dio parea nel suo volto gioire”, que “Deus pareça, no seu rosto, se alegrar”.


* Conferência proferida por Fabrice Hadjadj, no âmbito do Meeting 2010. A tradução - realizada por Paulo R. A. Pacheco - foi feita a partir da transcrição, não revisada pelo autor, da tradução simultânea para o italiano. A conferência foi proferida originalmente em francês.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Eis porque o nosso “terrível” desejo de felicidade não é vão


Entrevista com Fabrice Hadjadj, feita por Federico Ferraù

“Basta encostar a mão contra a própria garganta para sentir a pulsação do sangue nas nossas artérias. É o sinal de que a nossa vida deve se tornar como que um rio: entrar em relação com a fonte através de todos os córregos da nossa história e fluir sem parar numa oferta”. Nesta longa entrevista, o filósofo francês Fabrice Hadjadj, hoje no Meeting de Rímini para apresentar o livro de Dom Giussani L’io rinasce in un incontro, fala com o Il Sussidiario sobre o coração humano, continuamente em equilíbrio entre o absurdo e a graça.

“Aquela natureza que nos impulsiona a desejar coisas grandes é o coração”. Segundo o senhor, em que sentido o título do Meeting deste ano é um desafio para os nossos dias?
O desafio é reconhecer em si um desejo que não vem de si. O coração é muito surpreendente, sobretudo para um individualista. Não falo em nível espiritual ou sentimental. Falo exatamente do miocárdio. Temos, em nós, este órgão que bate por um tempo que não decidimos, uma espécie de maestro a quem está ligada toda a nossa vida fisiológica. Trata-se de oxigenar o nosso sangue certamente, o que associa o coração à respiração, o “poema da respiração” diz Rilke, visto que a inspiração e a expiração nos outorgam este ensinamento admirável: a vida não está na independência, no isolamento, na autonomia, está num movimento (um teólogo diria que está em uma “pericoresi”) onde nunca se para de receber e de dar. Eis que se reduzem a nada, imediatamente, todas as pretensões de independência!

Dom Giussani diz que o simples fato de que o nosso coração existe é já uma provocação.
Ele tem razão. Basta encostar a mão contra a própria garganta para sentir a pulsação do sangue nas nossas artérias. É o sinal de que a nossa vida deve se tornar como que um rio: entrar em relação com a fonte através de todos os córregos da nossa história e fluir sem parar numa oferta. A promessa se encontra em Isaías: Eis que vou fazer a paz correr para ela como um rio (Is 66, 12). E também o Evangelho: Quem crê em mim, do seu interior manarão rios de água viva (Jo 7, 38). Certamente esta promessa pode dar medo. Alguns prefeririam reduzir-se aos seus pequenos barris de água parada. Em todo caso, o que é certo é que o cristianismo não é uma série de normas sufocantes, é ao contrário o “desejo de coisas grandes”, de tal forma grandes que superam a capacidade humana. Para acolher é preciso aceitar ser dilatados, ser até mesmo rasgados.

É mesmo necessario chamar a atenção da “natureza” para definir o coração do homem?
O termo “natureza” vem de “nascer”. Nascer é ter recebido a existência e, portanto, não ser a origem do próprio ser. Ter uma natureza é ter recebido, no nascimento, uma certa estrutura de existência, um dinamismo, uma tendência que está em mim e da qual eu não sou o artífice. É aquilo que dissemos sobre o coração: o centro do meu ser não está sob o meu controle, aquilo que tenho de mais íntimo me remete a um outro que não sou eu. Eu me desperto com os meus desejos: beber um café, folhear o jornal, ganhar mais dinheiro, beijar Caterina Murino, mas há em mim também outra coisa: este terrível desejo de felicidade.

Por que o senhor o chama “terrível”?
O dinheiro pode dar-me a felicidade? Caterina pode fazer isso? Se este desejo de felicidade não encontra vias de escape, acaba por me fazer destruir aquilo que eu, no início, havia desejado: como esse algo não é a “coisa grande”, acabo por jogar fora ou dizer isso na sua cara. Ou então me destruo a mim mesmo: como me contento com coisas pequenas, acordo a elas um valor que não têm e sufoco o meu coração. Atenção, não quero dizer que Caterina Murino, criada a imagem de Deus (e que imagem!), seja algo de pequeno. Mas, para poder estar de acordo com o meu coração, seria preciso que Caterina fosse cheia de graça, de verdade, de eternidade até (como a sua frágil beleza me deixa entrever). Seria necessário que Caterina fosse divina. Não posso fazer nada a este respeito. Está na minha natureza (na natureza de todo homem por pouco que escute o próprio coração). Dante entendeu isso muito bem. Há em nós o desejo da Coisa Grande que é Deus mesmo. Mas este desejo de Deus não deve nos levar a desprezar as criaturas (desprezar as criaturas seria necessariamente desprezar o seu Criador). Pelo contrário: o desejo de Deus nos faz desejar a divinização das criaturas. Portanto, desejar “coisas grandes” não significa rejeitar uma Beatriz anã, nem fantasiar uma Beatriz de dois metros e quarenta, mas desejar uma Beatriz tal “che Dio parea nel suo volto gioire” [“que Deus pareça, no seu rosto, se alegrar” (Paraíso XXVII, 105)].

Hoje em dia, estamos convencidos de que as ideias “fortes” não têm nenhum direito ou poder sobre nós. No melhor dos casos, se elas têm algum, é reservado ao âmbito privado, não ao público. É o mesmo também para o cristianismo? Deve ele limitar a sua “pretensão” sobre o homem?
Afirmar que as ideias fortes não têm nenhum poder sobre nós, eis aqui uma ideia, e uma ideia fraca. O homem não é um animal governado pelos instintos. Aquilo que, para o homem, cumpre o papel do instinto é a sua razão. Ele é sempre orientado por ideias, boas ou más, ideias de todas as formas (e de todas as falsificações). O homem inicia, portanto, sempre com o ser um ideólogo (pelo menos depois do pecado original). Utiliza termos abstratos. Por exemplo, diz “tudo bem”. Assim, numa conversa qualquer. Mas, “tudo bem” é algo de abstrato e enorme, é uma questão imensa na sua boca e ele não se dá conta porque é um ideólogo. De fato, deveria sair da ideologia e ir em direção à realidade, ou seja, perguntar-se: o que é verdadeiramente, realmente, “bem”? Trata-se simplesmente de tomar consciência das palavras que já estão ali, na nossa língua, entre as nossas palavras mais cotidianas e descobrir o seu peso concreto.

Qual é este peso?
Dom Giussani amava repetir estas palavras do salmista: Tu, Senhor, és meu único bem (Sl 16, 2). Esta é a concretude! Isso traça um caminho, afirma concretamente no que consiste o meu bem, e me conduz a atos que empenham a minha vida. Mas esta palavra possui algo de exorbitante. É a razão pela qual Dom Giussani acrescentava: “Uma frase assim carregada e assim peremptória, assim definitiva e totalizante, que a pode repetir?” (L’io rinasce in un incontro, p. 59).

E quanto ao que diz respeito à esfera privada, que goza de um direito absoluto?
Quanto ao que concerne à “convicções privadas”, trata-se de uma invenção burguesa: o pequeno possuidor quer afirmar que possui uma propriedade que é mesmo sua e que não pertence a nenhum outro. Mas, ao mesmo tempo, acaba por se dar conta: esta propriedade é morta se ele não acolher ninguém nela. Cada espaço privado se realiza somente na hospitalidade. E assim se torna público. Pelo contrário, peguem um jardim publico: ele assume todo o seu valor quando, por exemplo, vocês estão com uma garota, sentados num banco, ou com um velho amigo, numa conversa íntima. Cada espaço público se realiza somente no encontro entre pessoas. E assim se torna privado. Trago esses exemplos para mostrar que a separação público/privado é uma ficção muito artificial. É literalmente uma mutilação, visto que tal ficção declara: aquilo que vocês têm em no coração não deve ser gritado nas praças. Mas, se não há mais comunicação entre seus corações e suas palavras, quer dizer que não são mais homens. São uma carpa. E acabam por abocanhar todos os anzóis.

O senhor escreveu que a pretensão cristão é “tomar o poder sobre o teu coração, ou seja conquistar-te sem danificar nem a tua inteligência, nem a tua vontade, mas, pelo contrário, reforçando-o”. Como podemos viver a “pretensão” total da verdade encontrada sem renunciar a nós mesmos?
A resposta se encontra na sua pergunta: só existe encontro se existirem dois seres bem distintos. Então, encontrar a verdade não é uma alienação mas uma realização. Se lhe digo “Deus quer tudo de você”,o senhor se assustará porque comparará o desejo de Deus com o seu, e o seu é estreito, possessivo, redutivo. Mas, repito-lhe o que eu disse: “Deus quer tudo de você”, sublinho, “tudo de você”, ou seja você mesmo completamente, sem mutilações, sem diminuições, sem alienação, e portanto você mesmo com a sua alma e o seu corpo, com a sua inteligência e a sua vontade, com toda a sua liberdade, e até mesmo com uma liberdade infinitamente maior, porque desembaraçada de tudo o que pode haver de impedimento. Isso nos reconduz às palavras do salmo que se canta nas vésperas do domingo: O Senhor estenderá desde Sião teu cetro poderoso: Dominarás, disse ele, até no meio de teus inimigos (Sl 109, 2). Se forço o inimigo, se o dobro mesmo que seja com uma pequena sedução psicológica, dominarei talvez o seu corpo, mas não o seu coração. Dominar até o coração é a pretensão mais terrível e, ao mesmo tempo, a intenção mais doce. Porque não existem outros meios para dominar até o coração senão fazer-se amar livre e inteligentemente, ou seja, respondendo às “exigências do coração”. O catecismo da Igreja católica o diz claramente: “Viver no céu é estar com Cristo. Os eleitos vivem nEle, mas conservando, mais, encontrando a sua verdadeira identidade, o seu próprio nome” (Catecismo, §1025). Por que isso? Porque “o eu renasce e renasce em um encontro”. Porque eu sou eu mesmo apenas na minha relação com o meu Criador e, através dEle, com as outras criaturas. Ser originais não é ser excêntrico. É voltar-se para a origem e viver sempre no jorro da fonte.

A maravilha parece ser a dimensão mais adequada à forma original da nossa razão. Como podemos reencontrar esta dimensão para salvar a razão?
A grandeza da inteligência é efetivamente a de saber sentir-se estupefata. Atenção: sentir-se estupefata não significa ser estúpida. De fato, aquele que é verdadeiramente estúpido é, pelo contrário, aquele que crê saber tudo, que tem resposta para tudo. Quem se sente estupefeito coloca-se em posição de escuta e aprende. Um provérbio hebraico diz: “Quem é sábio? Quem sabe aprender de cada coisa”. Há, portanto, um vínculo entre estupor e estupefação. É aqui – estupefazendo-se, sentindo-se estupefeita – que a razão se abre a tudo o que a supera, àquilo que é encontro vivo, que está para além do cálculo (mas não desprezemos o cálculo, esta capacidade de pesar o real que é também um mistério – devemos apenas submeter o cálculo ao louvor, como na música). O problema não é, portanto, como fazer para redescobrir esta dimensão.

Por que o senhor diz isso?
Porque não se trata de fazer. Se nos limitamos ao “fazer” permanecemos no âmbito do nosso poder, das nossas capacidades, e nos fechamos ao estupor. Não se trata de fazer, mas de ser. O ser é, de fato, no fundo, estupor. Para dar-se conta disso é preciso saber-se abandonar ao repouso, viver – pelo menos um dia por semana, um momento no dia – a bênção do shabbat, que se poderia também chamar a nossa essência dominical. Parem tudo (Parai! Sabei que eu sou Deus, diz o salmo 45) e olhem uma flor, uma paisagem, escutem um quarteto de Mozart (ou de Haydn), contemplem o rosto de uma criança... Admirem mesmo uma garrafa, uma simples garrafa, como Morandi sabe admirá-la, não com uma genialidade especial, mas como um respiro amplo, com o coração aberto e disponível (o que é ainda melhor do que a genialidade), e eis que o mistério aparecerá, a incompreensibilidade da presença de uma garrafa... Mesmo a menor das garrafas é uma garrafa jogada ao mar, que esconde uma mensagem do criador de todas as coisas.

No ano passado, o senhor concluiu a sua entrevista no Il Sussidiario com estas palavras: “É preciso que a ação começa com um gesto de gratuidade. Se esta gratuidade não está presente, nunca estarei na direção do ser”. De onde pode vir esta gratuidade?
Não me lembro de ter dito isso. Talvez porque era exatamente um “gesto de gratuidade”... A gratuidade pode ter dois sentidos. Há a gratuidade do absurdo. E há a gratuidade da graça. Tudo aquilo que fazemos, todos os nossos cálculos, todos os nossos projetos, devem desembocar em uma ou outra dessas gratuidades. Encontrou um bom trabalho, e depois? Casa-se com uma mulher, e depois? Tem filhos, e depois? Ou não há nenhum sentido e você se encontra na gratuidade do absurdo. Ou então, tudo isso tem o sentido de um amor, um amor que dá a vida, e você se encontra na gratuidade da graça. Ou uma ou a outra. Mas antes ainda de entender a gratuidade quanto à finalidade da existência, ela pode ser entendida a partir da sua presença mesma: como é possível que eu esteja aqui? De onde me vem esse dom? É um presente envenenado? Também aqui: ou reconheço a graça de ser, ou então acho absurda a existência (mas nesse último caso me contradigo, porque desfruto da existência para desprezar a existência – esta é a minha própria absurdidade). O ato de render graças é o fundamento de toda ação porque, se não reconheço a graça de ser, então tudo aquilo que poderei fazer será da ordem do desprezo do ser, da regressão, da negação. Isso poderá assumir uma aparência humanista, apresentar-se como uma utopia de sociedade perfeita; na verdade, já que não vejo a existência como uma graça, essa utopia será o triunfo do nada: o seu fundamento será o ressentimento. Sob o pretexto de construir um super-homem ou uma super-sociedade, o empreendimento seria a destruição da sociedade e do homem.

O senhor vai apresentar o livro de Dom Giussani L’io rinasce in un incontro. O que lhe sugeriu a leitura desse livro? O senhor compartilha a escolha do título?
Saibam que se eu encontrei o pessoal de CL é porque aquelas pessoas encontraram afinidade entre o meu modo de colocar as questões e o de Dom Giussani. Eu não o conhecia. Travei contato com sua obra apenas há dois anos atrás. Depois, me pediram para fazer a apresentação, em Paris, do livro É possível viver assim? (em abril de 2009). Naquele momento, pude experimentar aquela afinidade de pensamento. Aquele foi um verdadeiro encontro, precisamente. Fiquei tocado com a simplicidade, a força, a tangibilidade concreta das suas palavras. Assim, a leitura de L’io rinasce in un incontro foi a continuação da mesma onda. Cada vez que leio Dom Giussani não é que encontre ideias novas, porque temos o mesmo enraizamento em Santo Tomás e na poesia e, sobretudo (eu devo isso ao teatro), um senso análogo do drama. Não, aquilo que eu acho, o que é muito melhor, é a novidade das ideias que eu já possuo, uma espécie de energia, de envio missionário, de impulsão no sentido de comunicar e viver na “dramaticidade e letícia...”. Quanto ao título do livro, tem a sua evidência. Uma evidência que imerge na profundidade de Deus. O que sabemos nós dessa profundidade? Deus é Trindade. Ele é único em três Pessoas. O Pai gera o Filho na comunhão do Espírito. De tal forma que Deus mesmo é eternamente nascimento e encontro. Um nascimento e um encontro infinito...

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de agosto de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.