Mostrando postagens com marcador Pietro Barcellona. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Pietro Barcellona. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Quem nos livrará das ilusões do mau desejo?



Por Francesco Botturi

Num recente trabalho de Pietro Barcellona foi reproposto o tema da modernidade tecnológica e da sua orientação ao pós-humano, na qual se delineia uma alternativa prático-histórica para as “tradições culturais humanistas” com seu patrimônio ético-religioso e metafísico. Uma reflexão renovada, em suma, acerca da potencial, e em parte já atual, sublevação antropológica, de que falavam também dois recentes e interessantes textos de Antonio Allegra.
A questão é hoje fundamental; persistiríamos em não querer compreender o nosso tempo se não  notássemos que ele é atravessado por uma tendência, altamente sintomática ainda que minoritária, a considerar antiquado e falido o humanismo ocidental (veja-se, por exemplo, Sloterdijk recordado por Allegra) e a encarar como única alternativa possível e desejável uma disponibilização técnica integral do homem e do mundo, como racionalização criativa da existência. Portanto, não tanto uma alternativa laica própria do humanismo tradicional (para ficar claro, o humanismo dos direitos humanos, da solidariedade internacional, da democracia liberal etc.), mas uma alternativa frontal e global à ideia do humano como paradigma e medida intangível de sentido.
Trata-se não de uma forma nova de humanismo, mas de uma hipótese pós-humanista, na qual o humano encontra novo sentido na medida em que é sujeito-objeto ao mesmo tempo das mais avançadas possibilidades de transformação técnica. Uma técnica não mais concebida a serviço de um grande projeto reformador (estaríamos ainda numa visão humanista de um ideal meta-técnico colocado como guia dos processos históricos), mas uma técnica entendida como operadora de uma grande e integral transformação consequente ao seu experimentalismo mesmo (da qual, segundo penso, a ideia do “futurismo” italiano foi uma antecipação artístico-cultural interessante: a técnica não mais como executora de projetos, mas como criadora em si mesma de novidades, produtora, por si mesma, de nova antropologia).
Esta visão exasperada do nosso futuro se mantém e se torna atraente em razão de um concurso de fatores persuasivos, que é oportuno evidenciar: racionalidade técnico-científica, exercício de poder e experiência de liberdade. Uma síntese operativa que, na realidade, não deixa ninguém indiferente, porque coloca em jogo fatores antropológicos primários. Por isto, mesmo quem não assume como sua uma visão pós-humanista hard, compartilha facilmente dela a perspectiva de fundo que considera o homem como um constructo psíquico ou social modificável conforme o gosto – como recorda Barcellona –, como já é particularmente visível no vasto âmbito da biopolítica contemporânea; ou melhor, a aceitação de tais perspectivas é o modo normal com o qual o humanismo tradicional se desintegra por dentro no uso contemporâneo.
Isto adquirido, não acredito, porém, que seja proveitoso proceder através de uma sistemática contraposição entre o novo paradigma e o da tradição humanista. Mesmo porque neste tipo de confronto – entre aquilo que tem um seu passado e aquilo que tem um seu futuro – é óbvio que sai ganhando quem for mais persuasivo... Trata-se muito mais de entrar na síndrome antropológica que fundamenta a perspectiva pós-humana para compreender o que do humano está em jogo e o que torna tão atraente assim este jogo do humano.
Falei acerca de três fatores convergentes significativos; consideremo-los outra vez. A importância da racionalidade científica e técnica é óbvia, assim como é evidente o reducionismo que faz dela o paradigma do conhecimento e da ação. A crítica a tal reducionismo já é habitual e facilmente compartilhada: outras formas de conhecer e agir são essenciais para o homem e para a sua condição histórica. Menos usual é, porém, a consideração acerca da motivação que torna fascinante tal reducionismo. Ela está ligada ao baricentro da síndrome pós-humanista, que está no exercício de poder, expressão prática, concreta e eficiente de um fator humano subentendido, absolutamente decisivo: o desejo.
O fascínio da perspectiva pós-humanista – ainda que se leve em consideração suas exasperações e loucuras – é o seu apelo secreto ao desejo humano de transformação da sua condição histórica numa condição qualitativamente superior. Desejo que é o vetor irreprimível da aventura humana (como tentei mostrar no texto La generazione del beneA geração do bem, em tradução livre – publicado pela Vita e Pensiero, em 2009). A impotência contemporânea da tradição humanista – segundo penso – deriva principalmente da sua incapacidade de se fazer competitiva no plano do desejo humano, da discussão sobre seu objeto adequado, da sua proposta como forma possível de vida. Então, mesmo o terceiro elemento de fascínio, a experiência da liberdade, poderia assumir um significado diferente do de um exercício libertário e subjetivo da escolha para se tornar compromisso voluntarista com a aventura do desejo e relação solidária com as outras liberdades.
Para uma perspectiva neo-humanista não é suficiente a contraposição ao pós-humanismo; é necessária uma perspectiva sensata, na qual os fatores de influência do pós-humanismo – saber, desejo e poder, liberdade – encontrem uma amplitude e uma síntese melhores.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 20 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Por que se confunde a liberdade de informação com a fofoca midiática?


Entrevista feita com Pietro Barcellona. Realizada por Federico Ferraù

Pietro Barcellona é filósofo e professor de Filosofia do Direito na Universidade da Catânia. É membro leigo do Conselho Superior da Magistratura, na Itália. “Neste país – disse Barcellona –, de fato, não é mais possível discutir, porque quem expressa uma opinião deve, imediatamente, ser partidário de um lado ou de outro”.

O que faz o senhor se sentir incomodado, professor?
Vivemos imersos em um clima de maniqueísmo extremista que está se tornado cada vez mais uma forma de pensamento único, e que representa uma patologia grave da vida democrática. Pessoalmente, não partilho desta batalha tão furiosa contra o risco da mordaça e a favor da liberdade absoluta de escuta telefônica de quem quer que seja.

Nem mesmo quando este é o único instrumento para descobrir crimes graves?
Todos os delitos devem ser descobertos e, para isso, é preciso dotar-se de instrumentos para fazê-lo. Mas, olhemos para a realidade dos fatos. Vimos de uma experiência muito longa de interceptações realizadas por centros de poder, sobre as quais ainda não temos nenhuma clareza. Pessoas como Giuliano Tavaroli e Gioacchino Genchi – e muitos outros antes deles – dedicaram tempo e recursos para “escutar” a vida democrática, construindo não averiguações da verdade, mas dossiês chantagistas que serviram apenas para desestabilizar o país.

Interceptamos ou não interceptamos ligações telefônicas?
Penso que o tema das escutas não possa mais ser visto apenas sob o ponto de vista da busca da verdade sobre os inimigos da máfia, sobre crimes mais graves e sobre tudo o que respeita ao código penal. As escutas telefônicas já fazem parte do contexto geral da nossa vida pública. É verdade que deram alguns resultados muito importantes quanto aos crimes de mafiosos, mas em 80% dos casos seu uso foi absolutamente anômalo e serviu para construir, em sinergia com o sistema midiático, processos mais ou menos fantasiosos sem nenhuma comprovação verdadeira.

O senhor, enfim, dá prevalência à privacidade.
Está vendo? Essa é a falsa contraposição. A vida privada é um grande bem, mas o verdadeiro tema é: nesse país, o que serve para se ter acesso à verdade dos fatos? O problema da verdade absorve tanto o problema da tutela da liberdade de imprensa, quanto a tutela do cidadão privado que pretende muito justamente a reserva. O uso indiscriminado das interceptações telefônicas, pelo contrário, levou a uma manipulação contínua da verdade.

Por exemplo?
Penso em Ottaviano Del Turco. Veio à tona uma encenação midiática na qual Del Turco, imerso em uma série de acusações que vinham em grande medida das escutas e das declarações dadas, mais ou menos livremente, por arrependidos, aparecia como um dos maiores criminosos da nossa vida pública.

Falemos da imprensa. A mídia, favorável ou contra o governo, falou de lei-da-mordaça.
Eu não acredito que se deva colocar a mordaça na imprensa. Ela deve ser livre, mas isso não significa que se pode fazer um jornalismo que nunca cita as fontes, no qual tudo se confunde.

Explique-se melhor.
Se eu leio, por exemplo, os artigos  sobre a “panelinha” de Balducci e Anemone, não consigo mais distinguir o que foi extraído da escuta, do que foi declarado ao magistrado (por quem foi interrogado), da reconstrução que o jornalista faz da história, e das declarações que circulam em certos ambientes. São quatro planos que se entrecruzam e que formam um todo único no qual os fatos esvanecem nas conjecturas ou nas reconstruções cheias de interesse. Deduzo a convicção de que Balducci e Anemone provavelmente cometeram certos atos, mas nenhuma das coisas reportadas contém um mínimo de indicação para verificar a veracidade das coisas ditas.

O senhor falou de “manipulação da verdade” induzida pelo uso distorcido das escutas. Não lhe parece exagerado?
Aqui, não me interessa a verdade com V maiúsculo, ma a verdade pública. O último livro de Priore e Fasanella demonstra que este país, desde o Caso Moro, foi objeto de desestabilizações organizadas por poderes ocultos. Mais do que se ocupar de como se pode enfrentar o tema da verdade dos fatos que dizem respeito à vida coletiva, somos chamados a escolher de que lado ficar: mas é uma falsa alternativa, porque o interceptador é sempre um homem santo, enquanto que o interceptado é sempre um réprobo. Nesse caminho, eu não fico, porque não ajuda a ninguém.

Como é possível “colocar-se na ótica do interesse coletivo, para a transparência e para a verdade”, como o senhor escreveu recentemente?
Seria necessária uma reforma política, jurídica e moral. Temo que nenhum dessas, sozinha, bastaria para mudar a mentalidade das pessoas. Se, pelo contrário, cada um pensa poder ser juiz de tudo, como acontece agora, toda reforma seria inútil. Quem é magistrado, que seja magistrado. Quem é jornalista, que seja jornalista.

Valerio Onida nos disse, certa vez, que o direito de informação, ou seja, de informar e ser informados, não pode ser anulado em nome de uma exigência de privacidade. O que o senhor pensa a esse respeito?
Estimo Onida, mas a sua resposta reflete aquela impostação que “rompe” com a complexidade do problema. Hoje, a comunicação não é mais a de meio século atrás. Se um jornal difunde a notícia que uma pessoa vai ser presa porque um crime lhe foi contestado, essa pessoa, na opinião pública, é presa por ter cometido aquele crime. Isto é comunicação? É liberdade de informação?

O que mais é liberdade informação, além de ser um direito garantido pela Constituição?
É aquilo que eu dizia no início: é o direito que os cidadãos temos de conhecer a verdade dos fatos sobre os quais se fundamentam as grandes decisões. É o primado da verdade dos fatos sobre as opiniões pessoais, que deve ser posto como premissa de todo raciocínio sobre a informação. Nenhum conflito puramente objetivo entre uma pessoa que deve acusar e outra que deve defender produzirá alguma verdade estável.

Estamos realmente seguros de que a introdução de novas regras, além daquelas que já existem, leve realmente a uma solução dos problemas?
Não sei. O que eu considero relevante é que não podem existir fontes ocultas e que quem dá notícias deve sempre poder dizer de qual fonte se serviu. Mas sobretudo, sou contra a ideia – que alguns querem fazer valer a todo custo – de que, neste momento, exista o risco de uma mordaça sendo imposta à imprensa. Parece-me absolutamente infundada.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 31 de maio de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A pergunta pelo sentido: um “discurso inútil” e, por isso, mais verdadeiro

por Francesco Ventorino

Elogio del discorso inutile (Elogio do discurso inútil; ndt) é a obra que melhor do que qualquer outra caracteriza a virada cultural e espiritual que marcou os últimos vinte anos da vida de Pietro Barcellona. Desde a sua militância no Partido Comunista, depois da queda do muro de Berlim e a consequente e dramática evidência das degenerações dos regimes comunistas estruturalmente ligados à luta do proletariado, através do trabalho de uma revisão profunda da sua personalidade, Barcellona chegou, como uma certa “ressurreição da consciência de si”, a um ponto no qual tudo é recuperado, sobretudo o seu passado, nos desejos mais profundos que o haviam marcado. Importantes – diria decisivos – foram para ele os encontros feitos.
“Não se pode comprar a nenhum preço a alegria de estar vivos depois de uma noite de tempestuosa cruzada no céu. O ‘sem preço’ do excedente é o valor das relações entre o eu e o mundo, entre si e o outro, que não se pode reduzir a valor de troca e que não é calculável com critérios de medida utilitários” (p. 16) 
Poder-se-ia dizer que a história de si que Barcellona quer contar é uma exaltação do incalculável, como sentido e fundamento de esperança pela existência humana, da “irrupção do impensado” e da “experiência do excedente”, que podem ser descritos apenas com a “linguagem incomensurável da alegria da vida” ou, se quisermos, do discurso inútil.
É uma oposição clara contra a pretensão de reconduzir tudo àquilo que é explicável e à linguagem científica como algo que a tudo compreende que, na época atual, parece ser a única via de acesso a uma verdade qualquer. A subjetividade humana na sua exigência de compreender e falar da realidade não se deixa constranger por uma descrição ou explicação científica. É necessário, portanto, dar espaço a discursos “alternativos”. Em primeiro lugar ao discurso psicanalítico.
“Amadureci, no curso da minha vida e das minhas experiências, a profunda convicção de que o discurso psicanalítico não é capaz de responder aos cânones da razão de cálculo e que não existem resultados práticos causalmente imputáveis a alguma modificação fisiobiológica. (...) Por isso, acredito que a psicanálise tenda a realizar uma compreensão do mundo e de si mesma não como aprendizado de técnicas comportamentais úteis para agir em uma determinada situação” (p. 68).
Se a psicanálise tende a realizar “uma compreensão do mundo e de si mesma”, ela se abre inevitavelmente ao discurso filosófico ou à busca do originário. Aquele discurso – confessa Barcellona – que, desde quando era um garoto, o atraiu, com uma modalidade quase “socrática”, e que o marcou, em seguida, por toda a vida.
Neste ponto, o autor se pergunta por que a filosofia no curso da história tenha parado de ser um discurso inútil, isto é, “tendido a compreender a si mesmo” e se tenha transformado em discurso instrumental, isto é, voltado “a explicar o porquê dos eventos que acontecem ao longo do caminho da nossa existência”. Eis a resposta:
“A trágica experiência da falência da possa da verdade absoluta, sem sombras nem mistérios, impulsionou os filósofos a substitui-la pela ‘certeza’ adquirida através da experimentação das hipóteses, como resultado de um método ‘científico’, fundado sobre regras precisas. Enquanto o discurso filosófico acaba coincidindo completamente com a filosofia da ciência, seria preciso, pelo contrário, recomeçar da derrubada da relação entre pensamento e vida efetiva, e voltar a recuperar a ‘inútil’ elementariedade da filosofia como ‘vida que se sabe’, para compreender que a ‘verdade’ está na experiência imediata que cada um faz do relacionamento entre si, os outros e o mundo” (p. 104).
O que há, portanto, por trás da redução da pergunta pelo especificamente humano a lógica, epistemologia e teoria do conhecimento?
“É um trabalho de remoção do problema da finitude dos ‘seres mortais’”.
É a negação da parte do homem da pertença originária e constitutiva do seu ser que nos levou à época da “morte de Deus” que é seguida da época da “morte do homem”.
“Como consequência extrema da vontade de matar a deus, hoje, com as teorias pós-humanas, neuro-científicas e cognitivistas, estamos diante de uma tentativa de ‘matar o homem’, colocando em crise a dimensão da ‘subjetividade espiritual’ que o acompanhou durante o caminho histórico” (p. 125).
E no entanto, no coração de cada ser humano, permanece “o sentido profundo da dimensão religiosa” como “busca de um caminho de salvação, que não é apenas a esperança de um perdão das próprias culpas, mas sobretudo é o desejo de conservar, para além da soleira do obscuro silêncio, os afetos e o sentido da própria existência” (p. 131).
Vem ao encontro desta exigência, de modo impensado e impensável, o cristianismo, graças à sua extraordinária inovação introduzida por Cristo na história da condição humana.
“O evento do nascimento de Cristo é um sobressalto do Universo que se rebela contra o próprio destino mortal; é uma energia que não reenvia a nada mais do que à própria manifestação,que irrompe na história humana e suspende o seu fluxo, porque a sua presença plena só é pensável na medida em que é compreendida como evento instantâneo, sem pressupostos” (pp. 134-135).
Na conclusão da obra, o autor confessa que o discurso religioso, que encontro no anúncio do evento cristão o seu cume de significado para a existência humana e a sua salvação do nada, é aquele discurso inútil no qual se realizam todos os outros discursos, porque
o ser humano não pode saber-se, no seu ser ‘fora de medida’, no seu ser submetido às leis do tempo e da morte, se não encontra na própria existência a explosão do Evento absoluto, no qual o filho do homem e o filho de Deus se reúnem no amor” (p. 148).
Confissão que me comove porque diz respeito a mim pessoalmente. Barcellona, de fato, reconhece que este encontro, para ele, aconteceu através de “um padre, de quem me tornei amigo nestes últimos anos” (p. 147).

* Extraído de IlSussidiario.net, do dia 15 de junho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.