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domingo, 6 de fevereiro de 2011

Direito à felicidade

Miguel Reale Júnior*

Em fins do ano passado foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado a denominada Emenda Constitucional da Felicidade, que introduz no artigo 6.º da Constituição federal, relativo aos direitos sociais, frase com a menção de que são estes essenciais à busca da felicidade.
Assim, pretende-se alterar o artigo 6.º da nossa Carta Magna para direcionar os direitos sociais à realização da felicidade individual e coletiva. O texto sugerido é o seguinte: "Art. 6.º - São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".
Segundo o senador Cristovam Buarque, a mudança na lei vai forçar os entes públicos a garantir condições mínimas de vida aos cidadãos, ao lado de se "humanizar a Constituição brasileira para tocar o coração com a palavra felicidade".
Igualmente, na Câmara dos Deputados foi apresentada emenda constitucional pela deputada gaúcha Manuela D"Ávila, cuja justificativa é "elevar o sentimento ou estado de espírito que, invariavelmente, é a felicidade, ao patamar de um autêntico direito".
Pondera-se, também, que a busca individual pela felicidade pressupõe a observância da felicidade coletiva. Há felicidade coletiva quando são adequadamente observados os itens que tornam mais feliz a sociedade. E a sociedade será mais feliz se todos tiverem acesso aos básicos serviços públicos de saúde, educação, previdência social, cultura, lazer, dentre outros, ou seja, justamente os direitos sociais essenciais para que se propicie aos indivíduos a busca da felicidade.
Na justificativa da emenda, refere-se como exemplo o artigo 1.º da Declaração de Direitos da Virgínia, de 12 de junho de 1776, no qual se diz: "Art.1.º - Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança".
Igualmente, lembra-se o Preâmbulo da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, em cujo final se afirma que a declaração é feita para lembrar aos homens os seus direitos naturais, inalienáveis e sagrados, e também a fim de que as reclamações dos cidadãos, dali em diante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.
Pensa-se possível obter a felicidade a golpes de lei, em quase ingênuo entusiasmo, ao imaginar que por dizer a Constituição serem os direitos sociais essenciais à busca da felicidade se vai, então, forçar os entes públicos a garantir condições mínimas de vida para, ao mesmo tempo, humanizar a Constituição. Fica por conta do imaginário, sempre bem recebido em nosso país, a ilusão de que é concretamente importante "elevar o sentimento ou estado de espírito que invariavelmente é a felicidade ao patamar de um autêntico direito".
A menção à felicidade era própria da concepção de mundo do Iluminismo, quando a deusa razão assomava ao Pantheon e a consagração dos direitos de liberdade e de igualdade dos homens levava à crença na contínua evolução da sociedade para a conquista da felicidade plena sobre a Terra. Os espíritos estavam dominados por grande otimismo em face do desfazimento da opressão do Ancien Régime e da descoberta dos direitos do homem. Trazer para os dias atuais, depois de todos os percalços que a História produziu para os direitos humanos, a busca da felicidade como fim do Estado de Direito é um anacronismo patente, sendo inaceitável hoje a inclusão de convicções apenas compreensíveis no irrepetível contexto ideológico do Iluminismo.
Confunde-se nessas proposições bem-intencionadas, politicamente corretas, o bem-estar social com a felicidade. A educação, a segurança, a saúde, o lazer, a moradia, e outros mais, são considerados direitos fundamentais de cunho social pela Constituição exatamente por serem essenciais ao bem-estar da população no seu todo. A satisfação desses direitos constitui prestação obrigatória do Estado visando dar à sociedade bem-estar, sendo desnecessária, portanto, a menção de que são meios essenciais à busca da felicidade para se gerar a pretensão legítima ao seu atendimento.
O povo pode ter intensa alegria, por exemplo, ao se ganhar a Copa do Mundo de Futebol, mas não há felicidade coletiva, e sim bem-estar coletivo. A felicidade é um sentimento individual tão efêmero como variável, a depender dos valores de cada pessoa.
Em nossa época consumista, a felicidade pode ser vista como a satisfação dos desejos, muitos ditados pela moda ou pelas celebridades, como um passeio pelo Rio Nilo. A felicidade pode ser a obtenção de glórias, de poder, de dinheiro, com a sofreguidão de que a satisfação de hoje empurra a um novo desejo amanhã. A felicidade pode residir no reconhecimento dos demais, por vezes importantes para o juízo que se faz de si mesmo. Ter orgulho, ter sucesso profissional podem trazer felicidade, passível de ser desfeita por um desastre, uma doença.
Também a felicidade pode advir, como propõe o budismo, de estar liberto dos desejos, ou por ficar realizado apenas com a satisfação dos desejos acessíveis. A felicidade é possível pela perda do medo das perdas, por ter harmonia com a natureza, graças ao conformismo com as contingências, pela imersão na vida espiritual e pela contemplação, na dedicação aos necessitados, bem como em vista de uma relação afetiva.
Assim, os direitos sociais são condições para o bem-estar, mas nada têm que ver com a busca da felicidade. Sua realização pode impedir de ser infeliz, mas não constitui, de forma alguma, dado essencial para ser feliz.

* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 5 de fevereiro de 2011.

sábado, 6 de novembro de 2010

Miguel Reale, 100 anos: fé e razão...


Por Miguel Reale Júnior *

Hoje meu pai completaria 100 anos. Morreu faz pouco mais de quatro anos, com quase 96. Escapou da velhice, tornou-se sábio. Após a morte de minha mãe, em 1999, passou a não mais desconversar a respeito da morte, consciente de que o tempo vivido, festejado ou sofrido impunha encarar com tranquilidade o mistério da finitude.
Acaba de ser lançado livro intitulado Variações 3, que reúne os artigos publicados nesta página de 2004 a 2006. É da leitura desses trabalhos que defluem as principais preocupações do seu final de vida. A morte de Norberto Bobbio atingiu-o não apenas pela amizade e pela admiração intelectual, mas em face da carta-testamento que este deixara para ser lida em sua câmara ardente. Nessa carta, Bobbio diz crer que após a morte sobrevém a escuridão, mas reconhece "como homem de razão e não de fé estar mergulhado no mistério que a razão não consegue penetrar em profundidade e as várias religiões interpretam de vários modos".
Meu pai reflete esse convite de Bobbio a se envolver no mistério da morte que a razão não explica e suscita a necessidade de harmonizar a busca das verdades eternas com a perquirição racional. A seu ver, apenas a fé supera os ditames da razão como substância das coisas esperadas e argumento das não aparentes. Indaga, então: como se tem ou não fé?
Responde que a fé é, para uns, o que resta uma vez superada a expectativa de soluções a partir da experiência, enquanto, para outros, seria um dom, uma dádiva divina, uma revelação. Para ele, a fé pertence ao domínio não do racional e sim do razoável, do que é plausível, sendo, portanto, uma conjetura necessária e inevitável.
Com o olhar da sabedoria construída pelo tempo vivido na análise das contingências humanas, conclui que a fé é um ato existencial a depender da pessoa que se é e da idade que se tem. Em seguida pondera com experiência: "Quando se é jovem prevalece o sentido da vida em sua imanência, mas à medida que o tempo passa atenua-se a preferência pelo agnosticismo e volta-se a atenção pelo que se oculta nas sombras do mistério." Conclui meu pai: "Quem tem fé não tem temor da morte e a vida é uma passagem para uma misteriosa forma de viver, sem corporeidade", não explicada pela razão, mas com esta compatível. No âmbito do mistério, e não do saber, alargam-se os horizontes da razão, não mais presa a limites intransponíveis, para prevalecer o campo do plausível, onde se crê por ser absurdo não crer. Ademais, a crença numa vida sem corporeidade ajuda a viver e traz paz de espírito.
Repercute, no entanto, no plano das relações intersubjetivas a compreensão da vida espiritual como resposta à insaciável agonia de procura de uma verdade sobre a existência além do demonstrado pela razão científica. Meu pai, sempre voltado para o real, o concreto e o experienciável, tira desta compreensão mística da vida consequências acerca de duas questões fundamentais das relações em sociedade: o exercício da caridade e da justiça sob uma perspectiva humanística.
A caridade não é, então, uma prática que se desvincule desta visão mística, pois, a seu ver, os atos de solidariedade realizam-se, na verdade, "em consonância com valor supremo, ao qual devemos nos sujeitar para regular nosso comportamento a um plano transcendente ao qual não se tem acesso somente com os poderes da razão".
Neste mundo, caracterizado pela fratura entre uma minoria que tem tudo, para a qual não há diferença entre o supérfluo e o necessário, e uma gigantesca massa excluída de qualquer bem, é preciso olhar os pobres carecedores de alimento e de moradia.
Assim, apenas se alcançará a justiça social graças ao exercício da virtude da alteridade, que vê o outro para prestar auxílio como um imperativo intersubjetivo a obrigar a todos a colaborar com os necessitados. A caridade não deve consistir, tão só, num ato de solidariedade que satisfaça as consciências individuais. A caridade, ao comprometer todos os detentores de autossuficiência, alcança dimensão social e consolida a democracia, que deixa de ser uma forma postiça de igualdade.
Conclui, então, que a queda do Muro de Berlim não pode significar a perda do horizonte de uma real justiça social, a ser construída a partir do exercício da virtude da alteridade, pois, a seu ver, a crise do capitalismo não é econômica, mas ética. Quando se estabelecer uma harmonia com base na solidariedade, poder-se-á encontrar uma solução social e política que atenda às aspirações de cada um e de todos.
Imbricada no exercício da caridade está a justiça, pois esta só se alcança se reinar a caridade existencial. O anseio de justiça sempre revela um sentimento de carência, ou seja, daquilo que falta ao indivíduo e à coletividade para que ambos se realizem na plenitude de seus valores éticos e existenciais.
Assim, a visão humanística e espiritual termina por levar à busca da realização de um ideal ético, ou seja, a construção de harmônica paz social. Este, segundo ele, o objetivo a ser perseguido pela política, cabendo ao Estado promover a realização do justo, bem como traçar um sistema de liberdade e de igualdade para a comunidade.
Dominado por esta profunda compreensão humanística, meu pai considera como valor maior a pessoa humana. Ao eleger a pessoa humana como fonte de todos os valores, dela defluindo os valores da liberdade espiritual e da justiça, não poderia deixar de crer num significado depois da morte, mesmo porque o reconhecimento da dignidade da pessoa humana não se compadece com a morte sendo o nada ou a escuridão.
Destarte, este é o maior legado por ele deixado: a crença na grandeza da pessoa humana e a revelação da crença na existência sem corporeidade, que nos faz com alegria lembrar, no seu centenário, não a sua morte, mas a sua vida repleta de ensinamentos.

* Miguel Reale Jr. é advogado, Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 6 de novembro de 2010.

sábado, 2 de outubro de 2010

''Nós somos a opinião pública''

Por Miguel Reale Júnior *

São repetidas as queixas de Lula de que as forças de oposição, compostas pelas elites, não admitem que um peão de fábrica tenha assumido a Presidência e alcançado sucesso. Essas queixas misturam ressentimento e vaidades. Basta lembrar, por exemplo, o que Lula disse, em maio de 2006, aos moradores de palafitas em Manaus: os adversários deviam "aprender" que um metalúrgico, com o quarto ano primário e curso do Senai, é capaz de fazer "muito mais do que eles neste país", pois a sabedoria do ser humano não está na quantidade de anos na escola, mas na "capacidade do sentimento".
Em julho de 2007, em Cuiabá, Lula comparou seus opositores aos mesmos que levaram Getúlio Vargas ao suicídio, setores da "elite" cuja raiva contra seu governo deriva da ação em favor dos pobres. Em fins de agosto de 2007, no Paraná, via a "campanha da imprensa" que o atingia como fruto da soma de duas "doenças malignas", a inveja e o preconceito.
Uma das espertezas da propaganda política está em colar à figura dos adversários a marca de inimigos do povo, que, para Lula, são os partidos de oposição e a imprensa reveladora dos podres do governo.
Há poucos dias, todavia, Lula extrapolou o plano das queixas e das acusações aos adversários, que de forma já imprudente vem qualificando como inimigos do povo, ao dizer: "O que eles não se conformam é o pobre estar conseguindo enxergar com os seus olhos, não precisa do tal do formador de opinião pública. Nós somos a opinião pública e nós mesmos nos formamos."
Essa manifestação levou à imediata reação da OAB, por meio do seu presidente, Ophir Cavalcanti Filho, bem como de entidades de imprensa e de representantes da sociedade civil, que proclamaram a importância da liberdade de expressão, que compreende a de informar e a de criticar, para abertamente se formarem as convicções políticas.
Ao afirmar Lula que não são precisos os formadores de opinião, pois "nós somos a opinião pública", desfaz-se o relevo do pluralismo de ideias, da diversidade de posições a serem suscitadas pelos chamados "formadores de opinião", que só existem onde houver ampla discussão e multiplicidade de perspectivas, com exame das contraposições e reflexão. Contra o pluralismo característico dos formadores de opinião, apresenta-se então uma verdade monolítica, única, que brota espontaneamente do povo, como uma comunidade orgânica homogênea: "A opinião pública somos nós."
Assim, para Lula, o povo forma-se a si mesmo e é o seu próprio porta-voz. Lula autoproclama-se o lídimo representante do sentimento deste povo, sentimento que sabe captar, pois já dissera, com razão, que a sabedoria se faz não só com estudo, mas com sentimento. Esquece, contudo, que sabedoria também não se alcança apenas com sentimento.
Agora, no calor da disputa eleitoral, almeja traduzir a forma de sentir desse povo de pobres que enxerga com os próprios olhos e torna dispensáveis os formadores de opinião. Para Lula, a opinião pública brota por obra de uma revelação natural do povo sobre o certo e o errado e acerca dos caminhos para a consecução do bem de todos. Com essa compreensão da via política construída de modo imanente a partir do próprio povo, cria-se uma perigosa estrada para um autoritarismo populista, que o século passado revelou de modo trágico.
No nazismo entendia-se que povo engendrava uma unidade incindível, na qual os indivíduos formam uma coletividade concreta, participando de um mesmo espírito objetivo que penetra e abraça a todos. O Führer, como o condutor da comunidade, encarna o espírito objetivo, o "são sentimento do povo".
O historiador italiano Emilio Gentile descreve o fascismo como a mobilização popular por meio de um partido único e de um chefe carismático que faz do uso racional do irracional a forma de uma política de massas que visa a privar as pessoas de sua individualidade como elementos celulares de uma coletividade nacional. O fascismo, diz Michel Winock, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris, detém a verdade, exclusiva, inconciliável com qualquer outra perspectiva e, portanto, hostil ao pluralismo.
Com certeza Lula, cujas inteligência e sensibilidade compensam a falta de estudo, sabe usar racionalmente o irracional, mas talvez não dimensione as consequências da guerra aberta deflagrada a partir da posição de presidente da República, com menosprezo ao pensamento, ao direito de crítica, ao jornalismo investigativo denunciante de graves irregularidades de seu governo, que transforma em golpismo, para legitimar uma verdade única a brotar como força viva de uma sociedade de pobres que se forma a si mesma e da qual é a encarnação como líder populista.
A consequência ficou patente na campanha. Os blogs pró-Dilma adotam desabrido maniqueísmo ao propagar que votar no PSDB/DEM é estar "contra o País" e do lado dos inimigos que devem ser expurgados. Na mobilização contra a imprensa surgem ameaças a jornalistas e promessas de retaliação a revistas e jornais qualificados de golpistas por terem divulgado matérias contra o PT ou sua candidata. O clima é de ódio e violência.
Estão aí lançados os ingredientes de uma receita de autoritarismo populista que terá Lula como condutor e Dilma como coadjuvante, sem força para manobrar os radicalismos despertados.
Mas se Dilma, eleita, não quiser ser apenas coadjuvante? No jogo entre sentimento de inferioridade intelectual e orgulho de sua passagem pela Presidência, Lula já disse que a partir de janeiro vai estudar novamente ou ensinar a governar. Longe do Planalto, Lula poderá, talvez, confrontar-se com Dilma presidente ao pretender dar lições de como governar. Será um conflito entre presidentes: a que é e o que não deixou de ser por sua popularidade e gosto do poder. Assim, o risco de um autoritarismo populista remanesce duplicado.

* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 2 de outubro de 2010. 

sábado, 4 de setembro de 2010

Macunaímas

Por Miguel Reale Júnior*

Às vésperas de se definirem pelo voto os novos dirigentes do Brasil, cabe perquirir sobre a relação que se estabelece entre o sistema eleitoral e os personagens que atuam nesta trama denominada eleição. O primeiro personagem é, sem dúvida, o eleitorado, nossa gente.
Os relatos de viajantes nos primórdios do século 19 são manifestamente constrangedores, a mostrar características de nosso povo nos planos intelectual e moral. Thomas Lindsey, capitão de pequeno navio, aportou em Porto Seguro em 1801, onde foi preso por aceitar proposta do ouvidor-mor de trocar parte da carga que trazia por pau-brasil. Alegava em sua defesa que jamais poderia imaginar ser ilegal comerciar produto ofertado pela principal autoridade local. Permaneceu o inglês anos retido na Bahia. Em narrativa sobre o Brasil, destaca a ignorância dos habitantes e sua indolência, pois a "única ocupação que os empolga é o baralho". Mais contundente é a observação de que nos negócios prevalece entre os brasileiros a astúcia, sendo exceção os que preservam a retidão na realização de transações.
Quando da proclamação da República, mais de 80% eram analfabetos. No plano moral, Luís Martins, em O Patriarca e o Bacharel, reproduz versos de jovem líder republicano: "Aqui ser honrado é vitupério;/ confiar no direito é grã loucura;/ pois só pode fazer boa figura/ quem for servil ou não passar por sério." Para Alberto Salles, ideólogo da República, o brasileiro é muito sociável, mas não solidário, sem ter o sentido de comunidade e de bem comum. Daí a expressão que melhor traduz o individualismo egoísta: "Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro."
Se o País passou, evidentemente, por grande processo civilizatório de lá para cá, no entanto falta muito. Mário de Andrade, em fins dos anos 20, descreve o herói de nossa gente, Macunaíma, espelho do brasileiro como astuto, preguiçoso, espontâneo, a usar a "esperteza para escapar da socialidade adulta", na expressão de Alfredo Bosi.
Em Conta de Mentiroso, Roberto DaMatta indica o "jeitinho" brasileiro como forma de fuga da letra dura da lei, para fazer prevalecer as regras da amizade, do clientelismo, imperando a máxima "aos amigos tudo, aos inimigos a lei". Desse modo, o interesse pelo bem comum desaparece quando o agente político trata da coisa pública como se privada fosse.
No século 21, a situação nos planos intelectual e moral ainda é preocupante. Dados do Tribunal Superior Eleitoral mostram que, dos eleitores brasileiros, 8 milhões são analfabetos e 19 milhões apenas sabem ler e escrever sem terem frequentado uma escola, considerados, portanto, como de alfabetização rudimentar; 73,3 milhões de eleitores, ou 58,26% do total, não conseguiram completar o ensino fundamental. Excluídas as categorias anteriores, são 46 milhões de analfabetos funcionais, isto é, têm capacidade de decodificar minimamente as letras, de escrever uma pequena carta, mas não têm , todavia, capacidade de compreender textos, interpretá-los e analisá-los.
O autor de novelas da Globo Sílvio de Abreu, em entrevista à revista Veja, mostrou o desprezo atual pelo herói virtuoso, pois hoje deve, ao gosto do telespectador, ser do vilão a vitória, em vista de a esperteza ganhar reconhecimento de valor social.
O sistema eleitoral, por sua vez, só complica a situação, pois não vincula o candidato a deputado a interesses do eleitor, como ocorreria no voto distrital misto. São milhares de candidatos a deputado, sem coloração partidária alguma, mesmo porque os partidos e seus próceres se misturam e se igualam, sem disputas ideológicas ou programáticas, sem sequer divergências pessoais. Tudo se confunde.
O eleitor médio, sem poder de crítica, é, no caso da escolha para o Executivo, envolvido pelo clima emocional e na opção para deputado, levado a votar em nome conhecido de cantor, artista, jogador de futebol ou de chefete do reduto em que vive. A questão moral é indiferente: corruptos e mensaleiros foram e serão eleitos.
Um país sem heróis virtuosos adota como figura popular um presidente que reproduz Macunaíma, ao colocar a captação do eleitor, a esperteza, acima de qualquer outro interesse. Prova do que digo está no fato de o menino Leandro, do conjunto habitacional Nelson Mandela, ter desnudado o rei. Leandro gravou diálogo com Lula acerca da prática de esporte naquele local:
Leandro: Por que aqui não tem tênis?
Lula: Que tênis? Tênis é esporte da burguesia, porra! E natação?
Leandro: A gente não pode entrar na piscina.
Sérgio Cabral: Por quê?
Leandro: Porque não abre para a população.
Sérgio Cabral: Por que não abre para a população?
Leandro: Não sei, eu vim aqui hoje para perguntar...
Lula, então, volta-se para Sérgio Cabral e diz: O dia que a imprensa vier aí e pegar um final de semana com essa porra fechada, o prejuízo político será infinitamente maior que colocar dois guardas aí. Coloca dois guardas aí. Coloca o bombeiro para tomar conta e abre isso.
O popular presidente, cujo estilo debochado tem sucesso, mostrou, sem querer, mais que um modo de ser, desprezo pelo bem do povo. Como se viu, ao presidente pouco importa a população poder usufruir a piscina. É de relevo apenas evitar o malefício político de uma reportagem negativa: "Coloca dois guardas aí", que o prejuízo é muito menor que o desgaste político da denúncia do descaso. Atender à população é de somenos, o que vale é evitar o escândalo eleitoralmente desastroso. Mas o povo é indiferente a esta enorme amoralidade, à esperteza presidencial, que recebe aprovação maciça de uma população sem capacidade de crítica.
É dentro deste universo, pintado com realismo, que se definirá o nosso futuro. Que os políticos de bem a serem eleitos tenham a coragem e a indignação necessárias para resistir à eventual tomada do poder pelos macunaímas do século 21.

* Miguel Reale Júnior é advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi Ministro da Justiça. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 04 de setembro de 2010.