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domingo, 24 de julho de 2011

Segredo e bandalheira

Por Roberto Romano*

O Brasil é o país da corrupção e do segredo, lados da vida nacional que impedem qualquer confiança nas instituições. Os operadores do Estado, sobretudo com o "privilégio de foro", desobedecem às regras basilares da fé pública. O roubo dos recursos coletivos é respondido, entre nós, com perseguição à imprensa, compra de movimentos sociais, sigilo no financiamento de obras. Sem consciência histórica, os nossos políticos e partidos retomam séculos de tirania. A prudência mínima aconselha ligar a censura (o caso do jornal O Estado de S. Paulo é prova) e o segredo que encobre as piores ilicitudes cometidas à sombra do poder. Como disse alguém, "o dia pertence à opinião pública. Nele, os segredos são espancados e os governantes não podem usar o beleguim que realiza o serviço sujo "sob ordem superior". A noite aninha o segredo, covarde razão de Estado".
Os séculos 19 e 20 reuniram censura e hábitos políticos corrompidos, a começar pelo Império de Napoleão I, que espalhou o terror e a guerra com base nas imunidades do Poder Executivo. O fascismo, o nazismo e o stalinismo exibiram o exato contrário da transparência e do respeito à cidadania. Hannah Arendt afirma que a vida totalitária significa a reunião de "sociedades secretas estabelecidas publicamente". Hitler assumiu, para a sua quadrilha, os princípios das sociedades secretas. Ele promulgou algumas regras simples em 1939:
  • Ninguém, sem necessidade de ser informado, deve receber informação;
  • ninguém deve saber mais do que o necessário;
  • e ninguém deve saber algo anteriormente ao necessário.

Segundo Norberto Bobbio, não lido no Congresso Nacional e nos demais palácios de Brasília, "o governo democrático (...) desenvolve a sua própria atividade sob os olhos de todos porque todos os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual razão os levaria periodicamente às urnas e em quais bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? (...) O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina" (O Poder Mascarado).
Quem abre os jornais brasileiros "antigos" percebe o caminho dos que hoje defendem mistérios nas contas públicas e não têm coragem de abrir arquivos ditatoriais. A luta pela transparência, que muitos fingiam conduzir, não passou mesmo de "bravata". O segredo embaralha interesses de grupos privados e assuntos de governo, como no caso Antônio Palocci e no recente episódio no Ministério dos Transportes. Ele ameaça as formas democráticas: nele, os administradores governamentais exasperam aspectos ilegítimos das políticas no setor público. Entramos no paradoxo: o público é definido fora do público e se torna opaco. O segredo, de fato, manifesta-se em todos os coletivos humanos, das igrejas às seitas, dos Estados aos partidos, dos advogados aos juízes, das corporações aos clubes esportivos, da imprensa aos gabinetes da censura, dos laboratórios e bibliotecas universitários às fábricas, dos bancos às obras de caridade. Mas vale repetir a suspeita de Adam Smith: "Como é possível determinar, segundo regras, o ponto exato a partir do qual um delicado sentido de justiça ruma para o escrúpulo fraco e frívolo da consciência? Quando o segredo e a reserva começam a caminhar para a dissimulação?" (Teoria dos Sentimentos Morais, 1759.)
A prudência define a passagem da prática correta do sigilo para uma outra, em que o poder abusivo e tirânico se manifesta. O pensamento ético sempre se opõe ao sigilo, salvo em situações de guerra. Segundo Bentham, a publicidade é "a lei mais apropriada para garantir a confiança pública". O segredo, pensa ele, "é instrumento de conspiração; ele não deve, portanto, ser o sistema de um governo normal. (...) Toda democracia considera desejável a publicidade, seguindo a premissa fundamental de que todas as pessoas deveriam conhecer os eventos e circunstâncias que lhes interessam, visto que esta é a condição sem a qual elas não podem contribuir nas decisões sobre elas mesmas".
Os democratas ou republicanos autênticos devem se acautelar contra o segredo, pois ele se instala na raiz do poder ditatorial e dos golpes de Estado. Não admira que os nossos políticos, herdeiros de costumes definidos nos porões de duas ditaduras, considerem "normais" (com bênçãos de alguns magistrados) tanto o disfarce no manejo das contas públicas quanto a censura à imprensa. Oligarcas manhosos de partidos fisiológicos estão bem no retrato do controle oficial secreto e corrupto. Eles se acostumaram a dobrar a espinha diante dos poderosos porque tal hábito lhes permite corroer as franquias dos "cidadãos comuns". Presos aos favores, vendem a preço vil a dignidade pública na bacia das almas dos Ministérios. Mas cobram caro, das pessoas livres, a crítica aos seus desmandos. A sua técnica de aliciamento usa os laços do "é dando que se recebe", que lhes propicia o controle das informações. Só pode chegar ao público o que eles autorizam. Os coronéis estão mais vivos do que nunca, na pretensa República brasileira.
Já os que, antes de chegar aos postos de autoridade, sempre criticaram os donos do poder, embora queiram exibir uma face polida e bela, escondem (nas paredes escuras dos corredores palacianos) uma repulsiva adesão à bandalheira. A sua figura efetiva? A carantonha de Dorian Gray ou a estátua de Glauco, imagem divina que, por causa das muitas trapaças do tempo, se transformou em bestial. Nada mais desprezível do que o paladino da ética que, por "realismo", age como secretário de práticas contrárias à transparência no manejo dos recursos públicos.

* Texto extraído d'O Estado de São Paulo (versão online), do dia 24 de julho de 2011. Roberto Romano é filósofo, professor de Ética e Filosofia na UNICAMP, é autor, entre outros, de "O caldeirão de Medeia" (Perspectiva)

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Humm! Qualquer semelhança...

Há quase 80 anos atrás, no dia 10 de fevereiro de 1933, Joseph Goebbels, então futuro Ministro do Povo e da Propaganda do governo nazista, pronunciava o discurso abaixo (traduzido pelo Reinaldo Azevedo e que pode ser lido na íntegra aqui)... 11 dias depois, o adorável Adolf Hitler assumia como Chanceler da Alemanha...
Leiam um trecho do seu discurso... é preciso muito pouco para torná-lo um discurso que cabe muito bem na boca dos "inteliquituais" - nossos Ministros do Povo e da Propaganda (ou, para usar uma imagem bastante conhecida dos leitores de Orwell, Ministros da Verdade) - que assombram nossas universidades... Ai, ai! E a história se repete... e a impressão que tenho é que nada, ou muito pouco, se aprendeu... ou estamos de tal forma anestesiados e vacinados contra a verdade e os fatos que de nada adianta afirmá-los.

Companheiros,
Antes de o encontro começar, gostaria de chamar a atenção para alguns artigos da imprensa de Berlim que asseguram que eu não deveria merecer a atenção das rádios alemãs, uma vez que sou insignificante demais, pequeno demais e mentiroso demais para poder me dirigir ao mundo inteiro.
Nesta noite, vocês testemunharão um evento de massa como nunca aconteceu antes na história da Alemanha e, provavelmente, do mundo.(…)
Quando a imprensa judaica reclama que o movimento Nacional Socialista tem a permissão de falar em todas as rádios alemãs por causa de seu chanceler, podemos responder que só estamos fazendo o que vocês sempre fizeram no passado. Há alguns anos, não falávamos da boca pra fora quando dizíamos que vocês, judeus, são nossos professores e que só queremos ser seus alunos e aprender com vocês. Além disso, é preciso esclarecer que aquilo que esses senhores conseguiram no terreno da política de propaganda durante os últimos 14 anos foi realmente uma porcaria. Apesar de eles controlarem os meios de comunicação, tudo o que conseguiram fazer foi encobrir os escândalos parlamentares, que eram inúteis para formar uma nova base política.(…) Se hoje a imprensa judaica acredita que pode fazer ameaças veladas contra o movimento Nacional-Socialista e acredita que pode burlar nossos meios de defesa, então, não deve continuar mentindo. Um dia nossa paciência vai acabar e calaremos esses judeus insolentes, bocas mentirosas! E se outros jornais judeus acham que podem, agora, mudar para o nosso lado com as suas bandeiras, então só podemos dar uma resposta: “Por favor, não se dêem ao trabalho!”
Ademais, os nossos homens da SA e os companheiros de partido podem se acalmar: a hora do fim do terror vermelho chegará mais cedo do que pensamos. Quem pode negar que a imprensa bolchevique mente quando o [jornal] Die Rote Fahne, este exemplo da insolência judaica, se atreve a afirmar que o nosso camarada Maikowski e o policial Zauritz foram fuzilados por nossos próprios companheiros?
Esta insolência judaica tem mais passado do que terá futuro. Em pouco tempo, ensinaremos os senhores da Karl Liebnecht Haus [sede do Partido Comunista] o que é a morte, como nunca aprenderam antes. Eu só queria acertar as contas com os [nossos] inimigos na imprensa e com os partidos inimigos e dizer-lhes pessoalmente o que quero dizer em todas as rádios alemãs para milhões de pessoas.

Chesterton (2010), numa obra recentemente traduzida para o português - O homem eterno -, numa determinada altura do texto, faz uma longa sequência de argumentação acerca de uma certa tendência dos intelectuais em assumir falácias como se fossem verdades. Obviamente, que não o fazem ingenuamente... Ingênuo seria pensar que o fazem ingenuamente. Segundo ele, infelizmente há uma falácia que é muito fácil de ser assumida como verdadeira: "a falácia da suposição de que, pelo fato de uma ideia ser maior no sentido de mais ampla, ela é, por consequência, maior no sentido de mais fundamental, fixa e certa" (p. 77). Segue-se a essa afirmação um exemplo para ilustrá-la. Mas, podemos nos valer de um exemplo que nos é muito mais próximo: o lulo-petismo e toda a sua verborragia cheia de números acerca das melhorias sociais a que se chegou no país. Uma ideia, por mais ampla que seja, não é mais fundamental, fixa e certa. Converse (falo portanto daqueles com quem se pode conversar... porque há aqueles com quem é impossível um diálogo, visto que sequer levantam a cara da grama) com um petista e se entenderá o que estou dizendo: logo vem uma inundação de números para provar que, para que o miserável venha a ser pessoa, antes é necessário que tenha comida na barriga... Por mais vasta que seja a dedução a que chegam no seu "raciossímio", não passa de uma dedução... não é, portanto, uma verdade! Não é, portanto, nem fundamental, fixa nem certa, porque "embora a contradição possa lhes parecer um paradoxo, isso é exatamente o contrário da verdade. É a realidade grande que é secreta e invisível; é a realidade pequena que é evidente e enorme" (Chesterton, 2010, p. 79). Em outras palavras: enquanto se olhar para a enormidade dos números (que por verdadeiros que sejam são apenas deduções e não verdades), não se olhará para a pessoa, essa realidade "evidente e enorme", que não é aquilo que o Estado pensa dela... especialmente este Estado que se coloca acima do bem e do mal e que substitui a ontologia pelo moralismo... especialmente este Estado que, arrancando-nos o Ser e tudo que a Ele representa, arranca-nos a dignidade humana, arranca-nos a liberdade, arranca-nos o próprio ser, matando-nos aos poucos na medida em que nos imbeciliza e "mediocriza".

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

"Minha pátria": Hans e Sophie Scholl, não há liberdade sem beleza


Por Angelo Bonaguro

Atravessada a ponte, Forchtenberg está todo ali, abrigado sob as ruínas do seu antigo castelo. Nesse povoado, passaram parte de sua infância Hans e Sophie Scholl, dois dos protagonistas da Rosa Branca, o grupo de estudantes que se opôs de modo não violento ao regime nazista e que foram condenados a morte em 1943. Desde 2006 é possível percorrer os lugares da sua infância graças ao “Percurso Scholl”, que, para o turista, se torna uma espécie de caça ao tesouro que se desenrola para cima e para baixo entre as  ruelas tortuosas daquela que, aqui, deve ser chamada “cidade”!
A primeira etapa é fácil de encontrar: o município onde Sophie nasceu, no dia 9 de maio de 1921. Seu pai, Robert Scholl, havia se recusado a prestar o serviço militar durante a Primeira Guerra Mundial, e em 1916 casou-se com Magdalene Müller, filha de um alfaiate de Forchtenberg, de onde Robert, em 1919, tinha sido eleito prefeito. A família cresceu rapidamente: Inge, Hans, Elisabeth e Sophie. Eram os anos duros do pós-guerra, a nascente República de Weimar era assediada pelas reparações impostas pelos vencedores e obrigada a prestar contas com uma hiperinflação que provocou desempregos e tensões, preparando o solo sobre o qual se desenvolveria o nacional-socialismo.
Do centro do município se sobe em direção à igreja evangélica do Arcanjo Miguel, onde Sophie foi batizada. Quando eram crianças, no inverno, se divertiam descendo em alta velocidade, no trenó, a colina da igreja até ao rio. A infância dos irmãos Scholl foi ligada ao ambiente paroquial também pela amizade com a família do pastor Krauss; ao lado da igreja ainda existe o jardim paroquial onde, antes, os filhos do prefeito brincavam com os filhos do pároco.
Um caminho curto sobe em direção às ruínas do castelo. Construído no século XIII, durante a Guerra dos Trinta Anos, acabou em ruínas e assim permaneceu. Nos anos 1920 as crianças iam até lá para brincar, construíam casinhas com as pedras, mas era perigoso, sendo assim o prefeito impediu o acesso.
Scholl era partidário de uma política “progressista”, mas não conseguia muito sucesso mesmo tendo conseguido construir um canal, um novo armazém para as colheitas e um ginásio. Em 1924, conseguiu até mesmo a façanha de ligar Forchtenberg à rede ferroviária, e nessa ocasião, perto do castelo, foi preparado um espetáculo teatral.
Descendo em direção ao centro vemos, de quando em quando, esplêndidas casas pitorescas, típicas da região, rodeadas de jardinzinhos repletos de plantas de todos os tipos. O velho orfanato não existe mais, mas o arbusto de rosas brancas é o sinal eloquente de que se está no caminho certo. Nos tempos de Sophie, ele hospedava umas setenta crianças: a senhorinha cuidava deles, cantando com eles e contando histórias da Bíblia. Naturalmente, brincavam: com a patinete, no tanque de areia e com a água da fonte.
Mas, a velha escola permaneceu. “A melhor não sou, as mais bonita não quero ser, mas a mais inteligente, sim”, repetia Sophie. Havia três salas, cada um das quais recebia duas classes juntas, de forma que, por um tempo, Sophie esteve na mesma sala de Elisabeth. Quando, exatamente no dia do seu aniversário, Elisabeth foi “rebaixada” dos primeiros bancos (os mais merecedores se sentavam na frente), Sophie considerou isso uma tremenda injustiça e foi protestar com o professor.
O percurso desce em direção ao Kocher, onde o pequeno dique era o lugar preferido para mergulhar: aos seis anos, Sophie aprendeu a nadar com Inge, enquanto Hans se arriscou no rio gelado.
Inge sempre se lembrou: “Como o canal não funcionava muito bem, na primavera sempre tinha alguns alagamentos. Meu pai nos comprava pernas de pau, com as quais atravessávamos as estradas alagadas, seguros como pequenos reis que estivessem saindo para conquistar novos territórios”. Ao longo do rio, no lugar da horta e do pomar dos Scholl, hoje existe a estação de ônibus. Na frente, uma escadinha convida a subir sobre os antigos muros, dos quais ainda resta uma torrezinha e um pedaço de calçada.
A vida dos irmãos Scholl não se esgotava à vida no povoado, como Sophie escreveu: “Não posso ver uma torrente límpida sem sentir vontade de colocar meus pés dentro! Tanto menos, consigo, em maio, passar por um prado sem me lançar no meio dele... Se viro, minha cabeça toca o tronco áspero de uma macieira. Como ela espalha, de forma protetora, os seus ramos sobre mim!... Aperto meu rosto contra a sua casca quente e penso: ‘minha terra, pátria’, e experimento um sentimento imenso de gratidão naquele momento”. E Inge: “Os arredores de Forchtenberg eram incrivelmente belos. Vinhedos e bosques de faias misturadas com pinheiros circundavam a cidade. Passávamos dias inteiros naqueles bosques”. Ainda hoje é assim.
Nas eleições de 1929, Robert Scholl perdeu e a família se transferiu. Hans e Sophie prosseguiram os estudos em Mônaco, onde se ampliou a rede de amigos decisiva para a vida dos dois. Houve espaço também para uma paixão inicial pelos ideias do nacional-socialismo, seguida pela repentina desilusão e repulsa, até ao ponto de pagar com a vida a dissidência.
Romano Guardini se exprimiu assim, por ocasião de sua comemoração em novembro de 1945: “Eram pessoas normais, que viviam suas vida intensamente; alegravam-se com as coisas belas que a vida lhes dava, e suportavam as dificuldades impostas. Olhavam direto para o futuro, prontos para a boa obra e confiantes nas promessas que a juventude traz consigo. Mas eram cristãos por convicção... Lutaram pela liberdade do espírito e pela honra do homem, e o seu nome permanecerá ligado a esta luta. Porém, no mais profundo, viveram na irradiação do sacrifício de Cristo, que não tem necessidade de nenhum fundamento na existência imediata, mas brota livremente da fonte criativa do eterno amor”.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 8 de setembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Graças ao martírio, o homem que morre triunfa sobre o animal que vive



Por Michele Rosboch

A editora Adelphi publica, graças à valiosa tradução de Claudia Zonghetti, uma das primeiras obras do escritor Vasili Grossman, O Inferno de Treblinka. Trata-se de um documentário ágil (quase uma crônica “jornalística”, que foi publicada pela primeira vez no outono de 1944, na revista russa Znamja), fruto da observação de primeira mão do autor – na época, ele estava entre os mais apreciados cronista de guerra –, que foi mandado para o campo de Treblinka com a armada vermelha, em setembro de 1944. No livro, o autor de Vida e Destino relata com fidelidade o fruto das histórias contadas pelas testemunhas do inferno do lager, que foi, em seguida, destruído por uma revolta dos prisioneiros, em agosto de 1943, depois de ter assassinado mais de três milhões de pessoas, entre judeus, ciganos e outros cidadãos poloneses.
O fruto da investigação de Grossman foi, inclusive, usado como documento no processo de Nuremberg como prova dos crimes nazistas (mesmo que, num segundo momento, tenha se mostrado impreciso e até mesmo errôneo, por causa da emoção dos testemunhos recolhidos). É um quadro aterrorizante do abismo do mal e da deformação à qual a ideologia pode conduzir: “Todos estes seres não tinham nada de humano. Cérebro, coração e alma, palavras, gestos e hábitos eram deformados, uma horrenda caricatura que lembrava apenas levemente traços, pensamentos, sentimentos, hábitos, gestos humanos. (...) No novo lager nada era pensado para a vida, tudo era entendido para a morte” (pp. 15-16)
No livro emergem com clareza a abominação e a ignomínia dos carrascos nazistas, animados pelo projeto criminoso de contribuir com a “solução final”, através da anulação da vontade e da personalidade dos prisioneiros (valendo-se da “tortura da mentira”), antes ainda da sua cruel eliminação física: “Seres humanos nus dos quais tudo foi arrancado continuam tenazmente mil vezes mais humanos do que os animais com uniforme nazista que os circundam, continuam a respirar, a olhar e a pensar, os corações ainda batem. Então, os alemães arrancam de suas mãos sabão e toalha. E os depõem em fila de cinco em cinco” (p. 37)
Aos “animais” nazistas se contrapõem os “libertadores” soviéticos: no livro se afirma com clareza a diferença entre os alemães-malvados e os soviéticos-bonzinhos, que, depois, será superada em Vida e Destino, com a trágica denúncia tanto dos crimes nazistas quanto dos comunistas. De resto, Grossman, como repórter, tinha vivido em primeira pessoa a batalha de Stalingrado e a marcha sobre Berlim, e tinha ficado impressionado com o fato de que a União Soviética, depois de tantas atrocidades, tivesse representado, naquela ocasião, “a justa causa” da liberdade: “O poder. Carros armados e aviões, terras, cidades, céus, ferrovias, leis, jornais, rádio: tudo está nas suas mãos. O mundo silencia, achatado, submetido por bandidos com camisa marrom que o mantém em suas mãos. E no entanto, a muitos milhares de quilômetro, nas margens distantes do Volga, a artilharia soviética troveja ainda, proclamando obstinadamente a vontade do povo russo de lutar até a morte pela liberdade, e despertando, chamando para a luta os povos do mundo” (p. 28).
Mas isso não é tudo. Também nessa obra emerge a grandeza de Grossman, que não apenas é a grandeza do cronista ou do antinazista. Diante do drama da destruição do humano, Grossman reflete sobre a profundeza da natureza humana e sobre o significado da vida e da morte, dando voz àquelas perguntas últimas, que florescerão de modo emblemático na sua obra-prima Vida e Destino. “... Com um esforço sobre-humano uma mãe terá tentado conseguir um pouco mais de espaço para o seu filhos, esperando aliviar, pela milionésima vez, o seu último respiro. ‘Por que me sufocam? Por que não posso amar e ter filhos?’ terá se perguntado uma garota com a língua já entorpecida. A cabeça gira, um nó aperta a garganta. O que terão visto aqueles olhos vítreos, apagados? Cenas de infância e de dias felizes, ou talvez a duríssima última viagem?” (p. 52).
De onde vêm estas perguntas, que tornam “clássico” um repórter e interessante um livro que fala de fatos históricos distantes? O poder da escrita de Grossman está na grande capacidade de identificação com as coisas, na capacidade de colher naquilo que observa os sinais da verdade de um fenômeno. É bastante significativa, a propósito, a descrição com a qual ele conclui o livro: quando Grossman e os soldados da armada vermelha chegam a Treblinka as construções foram destruídas, mas é a terra com a sua cor escura (por causa das cinzas de milhares de cadáveres que tinha sido espalhadas no chão) que fala da vida do lager. E é daquela cor e daquela terra que a investigação sobre os eventos históricos do campo e sobre o humano partem.
Assim é Grossman: escuta um fato particular com tudo de si, deixando que esse fato liberte aquela infinidade de perguntas para as quais o coração do homem é feito. No final da leitura, o silêncio domina, eco misterioso daquele silêncio que “sobrevinha quando as portas das câmaras de gás eram fechadas” (p. 46), mas também humilde comoção pelo dom da vida, de que é tecida cada página da obra de Grossman: “Que grande é o dom da humanidade! Um dom que não morre enquanto não morre o homem. E se também sobrevier uma época histórica breve mas tremenda na qual o animal tiver a precedência sobre o homem, o homem morto pelo animal conservará, de qualquer forma, até o último instante, força de ânimo, mente lúcida e coração ardente. Enquanto que o animal triunfante que o mata continuará a ser apenas um animal. Na imortalidade do espírito humano existe, implícito, um sombrio martírio, triunfo – porém – do homem que morre sobre o animal que vive” (p. 43).

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 30 de junho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Leia também:


- Cristãos no lager, de P. Colognesi (em italiano).

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

1942/Alemanha - 2010/Brasil

Publiquei, há quatro anos, o post que segue abaixo... Na ocasião - ano de campanha eleitoral -, eram evidentes, para mim, as semelhanças entre o que os jovens da Rosa Branca criticavam do regime nazi-fascista alemão e o regime que poderia ser descrito como ditadura edulcorada do lulo-petismo brasileiro. Hoje, passados mais quatro anos de totalitarismo edulcorado, de pobrismo paternalista esvaziador da consciência e da liberdade, de censura velada da imprensa, de controle estatal dentro de casa, de ignorância como sinônimo de poder, de culto à personalidade parva do rei da escatologia... e, enfim, de mediocridade elevada à categoria de valor, as parecenças se tornaram ainda mais gritantes... Não é demais lembrar, inclusive, as semelhanças de alguns personagens da política brasileira atual com os porcos Napoleão e Garganta de "A Revolução dos Bichos", de George Orwell... e por que não nos lembrarmos também do Partido tal como descrito em "1984", do mesmo escritor? Mas, deixo à avaliação de vocês o que esses jovens alemães escreveram há mais de 60 anos atrás.

No verão de 1942, um grupo de jovens universitários alemães começou a divulgar uma série de panfletos contra o Nazismo. Tratava-se da Rosa Branca: Sophie Scholl, Hans Scholl, Christoph Probst, Alexander Schmorell, Willi Graf, Kurt Huber, George Wittenstein e Hans Leipelt compunham o grupo de resistência passiva. No dia 27 de julho de 1942, escreveram o primeiro de seis panfletos, antes de começarem a ser perseguidos e alguns decapitados pelo regime nacional-socialista.

Segue uma tradução (do italiano) de um extrato do primeiro panfleto:

"Não há nada de mais indigno para um povo civil que deixar-se governar, sem nenhuma oposição, por um bando de irresponsáveis dominados pelos próprios instintos. Não é verdade que cada alemão hoje se envergonha do seu governo? E quem de nós tem idéia das dimensões da infâmia que um dia cairão sobre nós e sobre nossos filhos, quando o véu cair dos nossos olhos e enfim vierem à luz os crimes mais horríveis, infinitamente superiores a qualquer medida? Se o povo alemão está assim corrompido e deteriorado na sua mais íntima essência a ponto de renunciar, sem levantar nem menos uma mão e numa confiança irracional na discutível legitimidade da história (...); se renuncia à liberdade do homem de intervir no curso da história e submetê-lo às próprias decisões racionais; se os alemães, assim privados de toda individualidade, se tornaram uma massa insípida e vil, então, de fato, merecem a ruína.
Goethe fala dos alemães como de um povo trágico, semelhantes aos judeus e aos gregos, mas hoje se parecem mais a uma manada insignificante e privada de vontade, de adeptos, privados, nos extratos mais profundos, do próprio miolo e roubados da própria essência, prontos a deixar-se conduzir à ruína. Parece assim, mas não é assim; antes, com uma violência lenta, enganadora e sistemática, cada indivíduo foi induzido a caminhar em direção a uma prisão espiritual e apenas quando se descobriu acorrentado, se tornou consciente da desventura. Só poucos reconheceram a ruína iminente, e o prêmio para suas heróicas advertências foi a morte. Será preciso ainda falar do destino destes homens.
Se cada um espera que o outro comece, os mensageiros da Nemesi vingadora se aproximarão sempre mais, sem limites, e então ainda uma última vítima será lançada sem sentido nas mãos do demônio insaciável. Por isso, nesta última hora, cada indivíduo, consciente da própria responsabilidade como parte da civilização cristã e ocidental, deve opor-se até onde puder, trabalhar contra o flagelo da humanidade, contra o fascismo e contra todo sistema de Estado absoluto semelhante a este. Façam resistência passiva - resistência -, onde quer que estejam, impeçam que esta máquina de guerra atéia continue a funcionar, antes que seja muito tarde, antes que as últimas cidades se tornem, como Köln, um monte de escombros e antes que a última juventude do povo derrame seu sangue por causa da arrogância de um ser sub-humano. Não esqueçam que cada povo merece o regime que suporta!".

* Na foto: Alex Schmorell, Sophie Scholl e Hans Scholl

quarta-feira, 29 de novembro de 2006

O provincianismo neo-ateu

Proponho um texto de Marcelo Cavallari, publicado na Revista Época, nº 443, de 13 de novembro de 2006 (p. 97).

"Richard Dawkins, Daniel Dennett e os demais autores que se dedi­cam ao recente ateísmo militante parecem figuras saídas do século XIX. Naquele tempo, o método científico que havia conseguido tanto sucesso na teoria física ensaiava se expandir com igual sucesso para todas as áreas do conhecimento e prometia tornar a religião, e de quebra a filosofia, a lite­ratura, a arte e todas as outras formas de conhecimento, obsoleta.
Foi precisamente desse espírito ultra­cientificista que nasceu o século XX, o mais cruel da história da humanidade. Nunca se matou tanta gente. Nunca antes tantas atrocidades foram come­tidas. Nazismo e comunismo, engen­drados como sistemas de engenharia social destinados a reorganizar a sociedade segundo cri­térios científicos, foram os responsáveis pelos maiores massacres de que se tem notícia. Não era a religião – antes a perseguição a ela – que movia Hitler, Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot. Os últimos baseavam-se na tese do socialismo científico de Karl Marx, que supostamente havia descoberto as leis de funcionamento da História. O primeiro, na eugenia ra­cista, que foi ciência respeitada durante boa parte do século XIX até resultar no nazismo.
Costumam-se pôr de lado esses pro­blemas adicionando o termo pseudo a teorias descartadas. Pseudocientíficas seriam as teorias racistas do nazismo ou o socialismo científico. E, atenção, o fato de que ambas as teses tenham se mostrado erradas não as torna não-científicas. Científico não é igual a verdadeiro, como o éter no qual se supunha que a luz se propagasse ou qualquer outra teoria descartada mos­tra. Científico é o que segue determi­nados padrões metodológicos aceitos pela comunidade científica.
A desconsideração desse simples fato por Dawkins, Dennett e pelos demais neo-ateus é o que mais enfra­quece seus argumentos. Eles escrevem como se a filosofia da ciência não existisse. Como se a ciência ainda pudesse reivindicar para si o papel de descobrir a verdade. O método científico é uma pequena área em que a razão pode ser usada. O poeta americano T. S. Elliot disse em seu livro Em Busca de uma Definição de Cultura que o pior tipo de provincianismo é o provincianismo no tempo, a crença de que só a maneira de pensar de nossa época faz sentido.
Os neo-ateus são piores. Argumentam, a partir de um provincianismo metodológico: só a ciência e seu método valem. Dawkins chega a citar uma piada do filósofo Bertrand Russell, segundo a qual a existência de Deus é tão impossível de provar pela ciência quanto a hipótese de que há uma xícara em órbita do Sol, entre a Terra e Marte. É um fato. E é um problema da ciência. Mostra um limite sério dela, a menos que se considere que a existência de Deus, o sentido do Universo e da vida sejam problemas tão importantes quanto a existência de uma xícara na órbita de um planeta distante.
Dawkins e Dennett descartam atabaIhoadamente as provas medievais da existência de Deus sob o argumento de que não são aceitáveis como provas científicas. É claro que não. São provas metafísicas. Foram descartadas por causa de filósofos, como Hume e Kant, que o fizeram ao preço de estabelecer limites estreitos para a razão humana. Dawkins, Dennett e os neo-ateus querem o melhor de dois mundos: reivindicam para a ciência uma capacidade quase ilimitada da razão humana. Para a religião, admitem no máximo o papel de uma consoladora ilusão para o vulgo. Se os neo-ateus são sérios em sua tentativa de tirar a religião do cenário, vão precisar discutir mais a fundo, mais informadamente e com menos provincianismo. Há muito mais entre o céu e a terra que o limitado método científico pode tomar em consideração".

terça-feira, 31 de outubro de 2006

1942/Alemanha - 2006/Brasil

No verão de 1942, um grupo de jovens universitários alemães começou a divulgar uma série de panfletos contra o Nazismo. Tratava-se da Rosa Branca: Sophie Scholl, Hans Scholl, Christoph Probst, Alexander Schmorell, Willi Graf, Kurt Huber, George Wittenstein e Hans Leipelt compunham o grupo de resistência passiva. No dia 27 de julho de 1942, escreveram o primeiro de seis panfletos, antes de começarem a ser perseguidos e alguns decapitados pelo regime nacional-socialista.

Segue uma tradução (do italiano) de um extrato do primeiro panfleto:

"Não há nada de mais indigno para um povo civil que deixar-se governar, sem nenhuma oposição, por um bando de irresponsáveis dominados pelos próprios instintos. Não é verdade que cada alemão hoje se envergonha do seu governo? E quem de nós tem idéia das dimensões da infâmia que um dia cairão sobre nós e sobre nossos filhos, quando o véu cair dos nossos olhos e enfim vierem à luz os crimes mais horríveis, infinitamente superiores a qualquer medida? Se o povo alemão está assim corrompido e deteriorado na sua mais íntima essência a ponto de renunciar, sem levantar nem menos uma mão e numa confiança irracional na discutível legitimidade da história (...); se renuncia à liberdade do homem de intervir no curso da história e submetê-lo às próprias decisões racionais; se os alemães, assim privados de toda individualidade, se tornaram uma massa insípida e vil, então, de fato, merecem a ruína.
Goethe fala dos alemães como de um povo trágico, semelhantes aos judeus e aos gregos, mas hoje se parecem mais a uma manada insignificante e privada de vontade, de adeptos, privados, nos extratos mais profundos, do próprio miolo e roubados da própria essência, prontos a deixar-se conduzir à ruína. Parece assim, mas não é assim; antes, com uma violência lenta, enganadora e sistemática, cada indivíduo foi induzido a caminhar em direção a uma prisão espiritual e apenas quando se descobriu acorrentado, se tornou consciente da desventura. Só poucos reconheceram a ruína iminente, e o prêmio para suas heróicas advertências foi a morte. Será preciso ainda falar do destino destes homens.
Se cada um espera que o outro comece, os mensageiros da Nemesi vingadora se aproximarão sempre mais, sem limites, e então ainda uma última vítima será lançada sem sentido nas mãos do demônio insaciável. Por isso, nesta última hora, cada indivíduo, consciente da própria responsabilidade como parte da civilização cristã e ocidental, deve opor-se até onde puder, trabalhar contra o flagelo da humanidade, contra o fascismo e contra todo sistema de Estado absoluto semelhante a este. Façam resistência passiva - resistência -, onde quer que estejam, impeçam que esta máquina de guerra atéia continue a funcionar, antes que seja muito tarde, antes que as últimas cidades se tornem, como Köln, um monte de escombros e antes que a última juventude do povo derrame seu sangue por causa da arrogância de um ser sub-humano. Não esqueçam que cada povo merece o regime que suporta!".
* Na foto: Alex Schmorell, Sophie Scholl e Hans Scholl