quarta-feira, 29 de novembro de 2006

O provincianismo neo-ateu

Proponho um texto de Marcelo Cavallari, publicado na Revista Época, nº 443, de 13 de novembro de 2006 (p. 97).

"Richard Dawkins, Daniel Dennett e os demais autores que se dedi­cam ao recente ateísmo militante parecem figuras saídas do século XIX. Naquele tempo, o método científico que havia conseguido tanto sucesso na teoria física ensaiava se expandir com igual sucesso para todas as áreas do conhecimento e prometia tornar a religião, e de quebra a filosofia, a lite­ratura, a arte e todas as outras formas de conhecimento, obsoleta.
Foi precisamente desse espírito ultra­cientificista que nasceu o século XX, o mais cruel da história da humanidade. Nunca se matou tanta gente. Nunca antes tantas atrocidades foram come­tidas. Nazismo e comunismo, engen­drados como sistemas de engenharia social destinados a reorganizar a sociedade segundo cri­térios científicos, foram os responsáveis pelos maiores massacres de que se tem notícia. Não era a religião – antes a perseguição a ela – que movia Hitler, Stálin, Mao Tsé-tung, Pol Pot. Os últimos baseavam-se na tese do socialismo científico de Karl Marx, que supostamente havia descoberto as leis de funcionamento da História. O primeiro, na eugenia ra­cista, que foi ciência respeitada durante boa parte do século XIX até resultar no nazismo.
Costumam-se pôr de lado esses pro­blemas adicionando o termo pseudo a teorias descartadas. Pseudocientíficas seriam as teorias racistas do nazismo ou o socialismo científico. E, atenção, o fato de que ambas as teses tenham se mostrado erradas não as torna não-científicas. Científico não é igual a verdadeiro, como o éter no qual se supunha que a luz se propagasse ou qualquer outra teoria descartada mos­tra. Científico é o que segue determi­nados padrões metodológicos aceitos pela comunidade científica.
A desconsideração desse simples fato por Dawkins, Dennett e pelos demais neo-ateus é o que mais enfra­quece seus argumentos. Eles escrevem como se a filosofia da ciência não existisse. Como se a ciência ainda pudesse reivindicar para si o papel de descobrir a verdade. O método científico é uma pequena área em que a razão pode ser usada. O poeta americano T. S. Elliot disse em seu livro Em Busca de uma Definição de Cultura que o pior tipo de provincianismo é o provincianismo no tempo, a crença de que só a maneira de pensar de nossa época faz sentido.
Os neo-ateus são piores. Argumentam, a partir de um provincianismo metodológico: só a ciência e seu método valem. Dawkins chega a citar uma piada do filósofo Bertrand Russell, segundo a qual a existência de Deus é tão impossível de provar pela ciência quanto a hipótese de que há uma xícara em órbita do Sol, entre a Terra e Marte. É um fato. E é um problema da ciência. Mostra um limite sério dela, a menos que se considere que a existência de Deus, o sentido do Universo e da vida sejam problemas tão importantes quanto a existência de uma xícara na órbita de um planeta distante.
Dawkins e Dennett descartam atabaIhoadamente as provas medievais da existência de Deus sob o argumento de que não são aceitáveis como provas científicas. É claro que não. São provas metafísicas. Foram descartadas por causa de filósofos, como Hume e Kant, que o fizeram ao preço de estabelecer limites estreitos para a razão humana. Dawkins, Dennett e os neo-ateus querem o melhor de dois mundos: reivindicam para a ciência uma capacidade quase ilimitada da razão humana. Para a religião, admitem no máximo o papel de uma consoladora ilusão para o vulgo. Se os neo-ateus são sérios em sua tentativa de tirar a religião do cenário, vão precisar discutir mais a fundo, mais informadamente e com menos provincianismo. Há muito mais entre o céu e a terra que o limitado método científico pode tomar em consideração".

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