terça-feira, 2 de junho de 2009

A aventura do descobrimento


Há uma semana atrás, numa aula de quarta-feira, na FEUSP, duas alunas da licenciatura em Biologia levantaram uma questão no mínimo instigante, que se poderia resumir numa pergunta que é a crux de toda a filosofia: que é o homem? Partindo de todo o aparato oferecido pela razão científica, fechavam as portas para a categoria da possibilidade. Foi uma aula bonita e provocadora. Hoje, respondendo ao email de uma dessas alunas - a Renata Orofino (obrigado, Rê!) -, me lembrei desse texto que traduzi há nove anos atrás. Achei que valeria a pena postá-lo aqui, para dar continuidade à conversa bonita apenas começada.


Os professores que hoje estão conosco (os professores Bersanelli, Rañada e Tsallis) são, para nós, mestres e amigos, como dissemos no convite para o encontro [1].
Mas, além do mais, são amigos entre si – creio que estarão de acordo comigo, ainda que não tenham tido oportunidade de se encontrarem pessoalmente até o dia de hoje – porque de certo modo têm se acompanhado em seus trabalhos cotidianos de docência e pesquisa. Lembro assim, por exemplo, quando Tsallis, depois de uma acalorada discussão científica, me falou dos “morangos de Bersanelli”, relembrando um artigo deste sobre a importância da “hipótese positiva” na pesquisa; de fato, ontem, me contava divertido como Bersanelli ficou famoso em todo o mundo (Japão, EUA, Brasil, Grécia, Argentina...) por seus morangos. Lembro também quando Bersanelli, ao lhe falar deste episódio, me pediu que expressasse sua amizade e gratidão ao professor Tsallis. Também o professor Rañada, entusiasta do mencionado artigo, propôs – numa iniciativa pouco frequente – a seus alunos um debate aberto sobre o dito artigo, ao qual acorreram umas cem pessoas.
O professor Bersanelli, doutor pela Universidade de Milão, é membro do Instituto de Física Cósmica do CNR. Trabalhou no grupo experimental de Rádio-Astronomia para a medição do fundo cósmico, da Universidade de Milão, assim como no Space Science Laboratory e no Lawrence Laboratory da Universidade de Berkeley. Formou parte de diversas expedições científicas ao Mont Blanc e à Antártida, o que lhe fez receber a Medalha de Ouro da National Science Foundation. E participa ou é responsável de vários projetos internacionais, como o GEM e o COBRAS/SAMBA.
O professor Fernandez-Rañada, doutor em Ciências pelas universidades de Paris e Complutense, trabalhou na Junta de Energia Nuclear e nas Universidades de Paris, Barcelona, Zaragoza e Complutense, onde é, na atualidade, catedrático de Física Teórica. Publicou numerosos livros e trabalhos em revistas internacionais de Física, assim como outros muitos sobre ciência e sociedade, divulgação, aspectos históricos ou ensaios científicos. Foi Prêmio de Pesquisa da Real Academia de Ciências, Medalha da Real Sociedade Espanhola de Física, fundador e diretor da Revista Espanhola de Física, diretor do Grupo Interuniversitário de Física Teórica (GIFT), e membro de diversas sociedades e conselhos científicos.
O professor Tsallis, doutor pela Universidade de Paris-Orsay é, na atualidade, o principal pesquisador no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Suas pesquisas se centraram, entre outros muitos temas, na Teoria de Transição de Fase e nos fenômenos críticos, o caos e os autômatos celulares, os processos de biogênese, os sistemas auto-organizados, a Mecânica Estatística e a Termodinâmica generalizadas. Publicou mais de 200 artigos em revistas científicas de prestígio, participou de conferências em uns 30 países, e dirigiu cursos de licenciatura e doutorado no Brasil, França, Argentina e EUA.
Queremos que esta mesa redonda seja um diálogo, para o que preparamos uma série de perguntas que iremos fazendo ao longo da conversa. Intervenham, pois, livremente.

O professor Rañada afirma que “se uma ciência não é divertida, emocionante e desafiante, não pode ser boa”, e o professor Tsallis que “a teoria nasce da imaginação, que o primeiro movimento sempre tem que ver com a fantasia”. Entendemos que com isto vocês afirmam que, para fazer ciência, não basta a mera análise, a mera demonstração; que são necessários também a intuição e o afeto. Vocês querem dizer que a intuição e o afeto formam parte da dinâmica da razão?


Rañada: Um ponto de vista comum é que a ciência está regida por uma espécie de automatismo que a faz fria e distante para o grande público. No entanto, a ciência consiste num olhar inteligente, consiste num olhar e no se assombrar. O assombro é o que mantém a curiosidade intelectual, como bem reconheceram os gregos ao simbolizarem a sabedoria na coruja de Minerva, de olhos desmesuradamente abertos. O positivismo do século XIX quis afirmar o contrário – “já não existe lugar para o assombro” –, tratando de fechá-lo todo em algumas equações. Mas, esta posição não se sustenta; cada progresso implica descobrir um novo mistério, e os descobrimentos como que manifestam a existência de um véu que se coloca sempre à frente de tudo.

Tsallis: Quero, antes de tudo, agradecer o convite que me fizeram, que me permitiu voltar à Espanha. A Espanha é um lugar de surpresas. É a terra de D. Quixote, o herói do irracional; e também é a terra do flamenco. O flamenco não pode não despertar em quem o contempla um assombro.
O título do encontro – “A aventura do descobrimento” –, que evoca a surpresa do descobrimento da América, me parece muito acertado. Porque, frente a um descobrimento, exige-se uma certa colocação do sujeito diante do real, que abandona o estabelecido; assim é como se faz um progresso. A ciência progride, caminha, desta maneira. Li e reli os textos que me entregaram para preparar este encontro, e fico surpreso com a grande correspondência entre o que nós três afirmamos. Por exemplo, a expressão “véu” que acaba de utilizar Rañada é equivalente à expressão “cortina” que eu tinha escrito nas notas que preparei para este encontro. A sensação que se tem no descobrimento é a mesma sensação que se tem frente a uma piada: a sensação de que algo iminente vai acontecer... as pessoas não têm a menor dúvida do sentido de uma piada. É como o insight que se produz quando se compreende uma piada. Existe um misto de intuição e de lógica: na piada se faz claro, é o mesmo que acontece quando um véu corre ante seus olhos.
A segunda palavra que encontrei no artigo de Rañada, igual a que usei no meu, é a palavra “magia”. Einstein disse que “o mais incompreensível do Universo é que parece ser compreensível”. Existe um vínculo profundo entre o eu e a realidade; assim, recentemente, um cientista francês que se dedica a um assunto de grande interesse na atualidade – compreender como funciona o cérebro – se referiu a esta frase de Einstein, completando: “e o mais incompreensível deste incompreensível é que parece que nós podemos compreender como compreendemos”.

Vocês me pedem que responda à pergunta: “quer dizer que a intuição e o afeto fazem parte da dinâmica da razão?” Efetivamente! Sem intuição – em oposição ao processo de dedução – não haveria progressos científicos de fundo. O método dedutivo consiste em partir de certas premissas que revelam conseqüências inesperadas de um esquema já existente, como por exemplo, se eu lhes pergunto quanta corda a mais falta para elevar a um metro de altura sobre a superfície terrestre uma corda que deu a volta ao mundo? Vocês responderiam que muitos metros, talvez milhares, dadas as dimensões da terra... A resposta; uns 6 metros (pi vezes o diâmetro é o perímetro de um círculo... pelo que, se o diâmetro aumenta 2 metros, o perímetro aumenta duas vezes pi) pode ir contra a intuição, mas é facilmente dedutível. Sem dúvida, os grandes progressos são sempre indutivos, se parecem mais com o insight da piada de que falamos a pouco.

Bersanelli: É a primeira vez que encontro tanta consonância com os que intervieram antes de mim; me facilitam a tarefa de dizer o que me interessa dizer.
Foi-nos feita uma pergunta muito interessante: o vínculo entre a razão e o afeto. A primeira observação em nossa experiência é que, para conhecer, faz falta ter interesse pelo objeto. É necessário que a realidade impacte a pessoa de tal maneira que suscite uma pergunta. Isto se vê na origem da ciência, mas também na experiência pessoal. Por exemplo, a Astrofísica é um desafio para a razão. A origem do meu interesse pela Astrofísica está em que quando era criança olhava o céu com o maravilhamento e o assombro que uma realidade grande provoca. Este maravilhamento original é maior e mais decisivo quando acontece o conhecimento; isto é um fenômeno afetivo. Sem maravilhamento ante a realidade, a razão fica paralisada. O mesmo acontece no estudo: é difícil estudar algo estranho, e é impossível conhecer algo que não nos toca para nada. Este deixar-se golpear pela realidade é necessário não só para o começo, mas também para cada passo do pesquisador; cada passo precisa do atrativo do objeto, do atrativo da finalidade... Não é adequada a redução da razão a seu aspecto lógico-dedutivo.

Rañada: Gostaria de recordar, neste ponto, uma estrofe de Machado:
Sem o amor as ideias
são como mulheres feias
ou cópias defeituosas
dos corpos das deusas

O cientista é um sonhador, deseja o impossível, deseja poder afirmar uma lei sempre, em todo o lugar. Sem dúvida, pelo que conheço de vocês, sei que são plenamente conscientes de que diante de vocês sempre haverá um oceano infinito desconhecido. Por que, ainda assim, seguem se perguntando?

Rañada: A pergunta é algo profundamente humano, é o que define o humano, inclusive frente ao que já se conhece. É o que nos permite sempre seguir assombrados. Sem se perguntar, os seres humanos não teriam chegado ao que são; é assim como atrás da evolução cósmica veio outra biológica, e logo outra cultural, cada vez mais rápidas. Nunca poderemos abandonar as perguntas.
Vocês sabem como Einstein imaginou pela primeira vez a teoria espacial da relatividade? Quando era ainda criança, e esperava um trem na estação, se perguntou, olhando para o relógio, o que aconteceria se ele se deslocasse o suficientemente rápido, como se estivesse “montado num raio de luz” que o fizesse chegar à imagem do relógio... seria como se a imagem permanecesse fixa, quer dizer, o tempo se paralisaria. E Heisenberg manifestou de novo, com a moderna teoria atômica da dualidade onda-corpúsculo da matéria, a velha disputa entre Platão e Demócrito acerca dos constituintes básicos da matéria: está formada pelas ideias ou pelos constituintes duros?

Tsallis: Newton, apesar de ter sido reconhecido como o maior cientista do mundo em sua época, dizia: “Ignoro como sou percebido pelos outros [pelos outros era considerado como um tremendo gênio!], mas me sinto como uma criança que, na praia, busca algumas pedras mais arredondadas que outras, enquanto diante de mim se estende infinito um oceano desconhecido”.
Tenho que confessar que não sei responder a essa pergunta. De todas as perguntas que vocês me fizeram esta é a única que não sei responder. Nunca ninguém jamais o saberá de todo. Então, por que nós queremos sempre saber mais, se sabemos que nunca ninguém o saberá de todo? Camus não soube responder, e eu tampouco. É o mito de Sísifo, que é condenado a subir uma grande pedra eternamente ao alto de uma montanha, e quando chega ao alto, a pedra volta a cair e assim tem que fazê-la subir eternamente. Por que Sísifo sobe de novo a montanha? Não o sei, mas sei que quando um ser querido está doente, nós fazemos tudo por ele, ainda que saibamos que vai morrer de qualquer modo. É algo misterioso. O amor leva ao cuidado do ser amado, por uma razão que eu não entendo, mas reconheço que é assim. Do mesmo modo que qual é o sentido de viver um dia mais se, finalmente, vamos morrer? É como o maravilhamento frente à realidade de que falava Marco.
Por outro lado, a satisfação do descobridor não é função do nível de conhecimento – se é total ou nulo –, mas do “salto” que propiciou dar nesse instante, da novidade descoberta. O progresso do homem, sua condição, não está ligado à “função conhecimento”, mas aos “pequenos incrementos” da dita função. É assim como se contribui ao infinito desconhecido. Ficamos satisfeitos se progredimos no ponto em que estamos. O homem é feito assim, ainda que não saiba dizer por quê.

Bersanelli: Agradeço esta pergunta, e quero dizer que, antes de tudo, é importante não a deixar sem resposta. Não há como desconsiderar que existe um Infinito no oceano da realidade que se nos apresenta, em última instância, como inalcançável. Não poderemos jamais defini-la completamente. Digo que não há como desconsiderar porque existe uma tendência muito difundida entre os cientistas que afirmam precisamente todo o contrário, são presas da ilusão que reaparece ciclicamente, de que a física pode chegar a descrever completamente a natureza. Esta postura censura a possibilidade do imprevisto: cada grande descobrimento foi, historicamente, a premissa de uma nova pergunta cada vez mais interessante... quer dizer, não existe descoberta, por pequena que seja, que não ilumine mais à frente de si mesma. A realidade é sempre mais rica que qualquer definição.
Parece-me que o aspecto mais misterioso do descobrimento é esta pergunta. A existência da pergunta, frente a um atrativo, desperta a vontade de ir ao encontro da realidade. Isto é um dado de fato. Misterioso. Que propõe uma alternativa: ou a natureza é malvada e se ri de nós provocando-nos um interesse inútil que não tem finalidade; ou, em cada passo limitado, existe uma real possibilidade de correspondência entre eu e a realidade. Damo-nos conta do cumprimento quando acontece. No caso da ciência, por exemplo, a correspondência se produz quando existem indícios que conduzem a uma certeza acerca de um fenômeno. O que é fonte de novas perguntas não tira nada de sua condição de certeza. Nossa razão é capaz de conhecer realmente. Existe a possibilidade de chegar a uma certeza ainda que seja ínfima frente às infinitas perguntas: sabemos, com certeza, que o Sol é uma estrela entre tantas outras, que Andrômeda é uma galáxia externa à nossa e não uma nebulosa interestelar como se acreditava até bem pouco tempo... Estas são certezas absolutas, que não podem ser já objeto de falsificações. Cabe sempre a possibilidade de alcançar algo verdadeiro ainda que seja ínfimo em relação ao infinito.
A relação com a realidade na ciência é análoga à relação com a pessoa que desperta em mim um atrativo: quanto mais a conheço, mais me dou conta de que não a possuo. Que a realidade seja um infinito (nunca a conhecerei até esgotá-la) não tira nada do atrativo que suscita em mim. A percepção do mistério infinito que existe no outro, ou na realidade, forma parte do gosto, do atrativo, do interesse pelo conhecer, e faz que este interesse seja cem vezes maior.

Rañada: Como dizia Bersanelli, é um mito pensar que podemos chegar a alcançar uma ciência definitiva, como aconteceu, por exemplo, ao prêmio nobel Steven Weinberg, especialista em Física de partículas, que escreveu um livro exatamente sobre isso... Isto é impossível! Por exemplo, para conhecer o que aconteceu no primeiro instante do Big-Bang necessitaríamos construir um acelerador de partículas de tamanho infinito. É verdade que os vamos construindo cada vez maiores e assim estamos sempre mais próximos desse primeiro instante, mas nunca o conheceremos totalmente.

Vocês falaram do instante do descobrimento, e falaram também de como, no descobrimento, nós podemos romper com o estabelecido. Sobre isto queremos fazer-lhes duas perguntas: por um lado, o que quer dizer para vocês que “é urgente não primar um esquema que se tenha previamente na mente por sobre a observação completa, apaixonada e insistente do fato, do conhecimento real”? Por outro lado, nos chamou muito a atenção a afirmação de Tsallis de que “o cientista encontra na beleza do descobrimento uma prova irrefutável de sua veracidade”, ou quando vocês falam da descoberta científica como de um excedente, como o espetáculo de um novo cenário que temos o privilégio de admirar e de comunicar. Que experiência vocês têm disso?

Rañada: Nem sempre é certo que toda a teoria bela é verdadeira: conhecemos, ao longo da história, algumas teorias muito belas que acabaram se demonstrando falsas. Mas, é verdade que é um bom indício. Por exemplo, pensemos em Pitágoras quando elaborou suas teorias sobre os números. Ou em Dirac (o descobridor do Delta que leva seu nome e da teoria relativista eletrônica) quando dizia que “é mais importante colocar beleza nas equações do que responder exatamente aos resultados experimentais”. O grande Richard Feynmann sentia uma emoção profunda ante as leis da natureza, a qual qualificava, inclusive, de religiosa. E Pauli exigiu de seus colegas um silêncio contemplativo no instante em que obteve, mediante microscópio eletrônico, a primeira “visão” dos átomos.

Tsallis: A importância da Beleza é tal que se pode fundamentar, praticamente, um método de trabalho, como dizia Rañada. Existe uma correspondência profunda entre a Beleza e a Verdade, assim como existe uma profunda conexão entre a ciência e a arte; não é em vão que se falou das utopias da arte e da ciência. Pedem-me, aqui na mesa, que lhes conte o que aconteceu a Einstein quando se verificou experimentalmente sua teoria da Relatividade Geral. Quando ele a elaborou, predisse uma pequena deflexão da luz do Sol, durante um eclipse, em torno da massa da Lua. Fizeram-se experimentos no Brasil e na África do Sul para verificar isso. Os primeiros resultados do Brasil que chegaram a Einstein não confirmaram sua teoria. Ele disse, então: “o experimento está equivocado; porque a teoria é demasiado bela para ser falsa”. Efetivamente, estava equivocado. Os resultados da África do Sul confirmaram sua predição de 1 minuto e 27 segundos, com uma precisão extraordinária: os resultados experimentais foram de 1 minuto e 25 segundos!
Um matemático hindu, que é meu amigo e com o qual troco correios eletrônicos repletos de equações, costuma me dizer: “essa equação não parece suficientemente elegante”. Ou, como dizia um matemático inglês: “bem representado implica uns 50% resolvido”. Chega um momento em que forma e conteúdo começam a se confundir. Por que é assim? Sei que é assim, mas por que? J. Keats dizia que “a Beleza é Verdade e a Verdade é Beleza”. Eu não sei exatamente em que consiste a Beleza, mas me coloque ante uma mulher bela e eu a reconhecerei.
Vou ensaiar uma explicação partindo de um exemplo. Nós percebemos o mundo em três dimensões ou, tudo o mais, em quatro, se levarmos em conta o tempo. Imaginemos que tenho que sair de uma prisão em que estou encarcerado. Se essa prisão fosse um círculo (duas dimensões), poderia sair dela utilizando a terceira dimensão (a altura). Se, agora, a prisão fosse uma habitação, poderia imaginar sair dela usando a quarta dimensão (o tempo), esperando que antes ou depois essa prisão deixe de existir e eu já esteja fora. Mas, ninguém pode imaginar sair dessa prisão se pararmos o tempo. Quer dizer: nós percebemos em 3+1 dimensões? A explicação pode ser: que eu tenha percepções graças à força eletromagnética e esta interação funciona em quatro dimensões. Se nós percebêssemos por interações gravitatórias que funcionam em mais de dez dimensões, poderíamos talvez perceber outras coisas. Quer dizer, a física é o estudo do que o homem pode perceber da verdade última (não exatamente a verdade última). Então: como nós percebemos a beleza e a verdade da mesma forma, por interação eletromagnética, isto poderia explicar a íntima conexão entre ambas de que antes falava. O certo é o belo, provoca em nós certa sensação de harmonia.
Assim, uma equação quando está em sua forma bela, quando é “elegante”, não só reflete adequadamente os experimentos (poderia fazê-lo igualmente ser belo), mas também aponta para o fato de que, nesse momento, está preparada para ser algo maior.

Vocês falaram da alegria que se experimenta no momento da descoberta. Mas, nos parece que Bersanelli vai mais à frente quando fala de alegria e de agradecimento. Por que você fala de agradecimento?

Bersanelli: O fato que emerge da experiência é que a realidade não somos nós que a fazemos. Buscamos estudar uma realidade que encontramos já feita antes de nós... em alguma medida, trata-se de uma realidade que se nos é entregue. Podemos discutir quanto queiramos sobre os limites que nós ou a realidade impõem ao nosso conhecimento dela, mas é certo que a realidade se desvela à nossa consciência: esta é a aventura do descobrimento. Não só pela genialidade, mas também por uma série de circunstâncias afortunadas.
Um passo à frente é sempre fonte de alegria porque, como dizíamos antes, é inconcebível que o universo se deixe conhecer; daqui a alegria do descobrimento. Mas, a gratidão é algo distinto, porque existe só dirigida às pessoas: nós só podemos ficar agradecidos a alguém, não a algo. A gratidão implica o reconhecimento do que faz tanto a realidade como o sujeito que a conhece. Esta gratidão constitui o modo natural de abordar a realidade. Se meu filho recebe como presente uma bicicleta muito mais bonita do que já sonhara, pode fazer duas coisas: levá-la ao jardim e montar-se nela, ou, um segundo antes, perguntar-se sobre quem a deu, de onde vem, de quem procede. Se escolheu esta segunda opção, e se fez esta pergunta, então tratará melhor a realidade e a bicicleta. Então, a gratidão surge ao mesmo tempo que a pergunta – ou, ao menos, uma necessidade de gratidão –, antes que a resposta, inclusive. Nós que fazemos um descobrimento não somente ficamos contentes, mas necessitamos comunicar o descobrimento, até aos colegas mais antipáticos, ainda antes de ter elaborado a resposta completa.

Tsallis: Queria acrescentar que, efetivamente, se tem uma sensação estranha quando descobrimos algo. Não há nenhum mérito ou desmérito em ser inteligente como em ser grosso, assim como não há mérito nem culpa em ser bonito ou em ser feio. É certo que, para fazer ciência, faz falta uma certa inteligência, mas pode ser que alguém descubra algo que outras pessoas muito mais inteligentes não puderam descobrir ainda que trabalhando muito sobre isso. A inteligência, a Beleza, o descobrimento... são, em última instância, dons inesperados: por isso, no âmbito da ciência, o talento não poderá nunca justificar a arrogância.

O que acabaram de dizer me oferece a ocasião de dizer que todas as coisas grandes na vida, como os descobrimentos mais significativos e importantes, acontecem por algo imprevisto; como tem sido todas as circunstâncias que fizeram possível esta “amizade”. Por isso, ainda que agora tenhamos que terminar, não é o final, mas o início de uma relação de ajuda e colaboração. Agradecemos ao Happening por brindar-nos com a possibilidade de que esta amizade tenha podido se concretizar através deste encontro. Muito obrigado a todos.

[1]O texto é a transcrição de um encontro acontecido na Espanha - o X Happening de Madrid -, em 1999. Traduzido por Paulo Roberto de Andrada Pacheco, sem revisão dos autores.

Nenhum comentário: