quinta-feira, 30 de julho de 2009

A paixão segundo nós mesmos

Republico um post de alguns meses atrás... pela beleza do texto! Trata-se de uma poesia de Bruno Tolentino, extraída da Balada do Cárcere. Deleitem-se, amigos!
I
A paixão segundo nós mesmos
não é o mero exercício inglório,
o exaustivo repositório
do sem-sentido dado a esmo
e usado em vão: essa paixão,
malentendida como a vida,
como a lenda da perfeição,
é a demonstração desmedida
da descoberta do sensível
como um dos lados do incompleto,
do corpo embriagado, o indiscreto
enamorado do invisível
mais semicego por decreto
da insuficiente inteligência.

Porque toda paixão anda perto
dessa obscura impaciência
que de si mesma faz a tocha
perecível, e assim pouco a pouco
ilumina primeiro a coxa
tão desejada, em seguida o louco
desejo irascível, e logo,
segundo as lógicas do incêndio,
a razão mesma desse esplêndido
enamoramento do fogo:
é que não chega a existir inteira
toda a elusiva realidade
até que um corpo caia à beira
de outro corpo, na totalidade...

O apaixonado é o incendiário
da água turva da superfície,
mergulhador do imaginário
e descobridor, só por isso,
daquele assombroso esplendor
que ele adivinhou sob a pele,
sob o gesto... É por causa do amor
insensato e sensiente que ele,
um louco, toca as profundezas
do ser total, daquele êxtase
aliciante da beleza
imortal. É cavalgando a besta
que a alma depara o Criador.
Mas é tudo uma questão de amor.

II
O perigo para a criatura,
o único verdadeiro perigo,
é desconfiar dessa loucura
que a movimenta sob o signo
multiforme do imperecível.
É não confiar no invisível.

É distrair-se, é deslembrar-se
da perfeita vocação que a trouxe
a este mundo, e abraçar o disfarce,
o sensível, como se ele fosse
a total declinação do enigma:
a finitude como estigma.

Porque é tudo invisível: o nada
é o ilusório sobretudo
da vida sempre adivinhada,
a vida princípio de tudo
e sem fim como todo princípio.
O olhar apaixonado e limpo

apreende o real inteiro,
e inteiridade é devoção.
Como a semente no canteiro
primeiro estremece e só então
deita raiz, sacode a cega
unidade da terra e entrega

enfim sob uma luz perfeita
o talo, a folha, o fruto, o dente
tão frágil da nova semente
à promessa de outra colheita,
assim o olhar da criatura
recebe o mundo e a investidura

de sua semidivindade.
O perigo é baixar a pálpebra
entre o esplendor da realidade
e o desespero, essa falsa álgebra
que interpõe entre o ser e a vida
uma distância descabida.

É preciso olhar com cuidado,
lançar contra todo argumento
aquele olhar maravilhado
e novo, aquele olhar sedento
que subverte e transfigura.
O ser é a visão que procura.

* TOLENTINO, Bruno (1996). Balada do cárcere. Rio de Janeiro: Topbooks, pp. 111-113.

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