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domingo, 9 de outubro de 2011

Sociedade sem graça


Por José de Souza Martins

A falta de liberdade deu lugar à falsa concepção de que ela só pode existir quando for sem freios

A variedade e a frequência da violência que nos assombra constitui indício de profundas e alarmantes mudanças sociais fora de controle: pais que matam filhos, filhos que matam pais, netos que matam avós, bebês que são jogados no lixo, bêbados que dirigem carros em alta velocidade e matam. E mesmo humoristas que querem fazer rir à custa do desrespeito e do menosprezo pelo outro. A sociedade está ficando sem graça. Só há graça na reciprocidade de valores sociais em contraposição à tentação de conveniências pessoais. Nossa tradição de humor é de raiz conservadora e se baseia, sobretudo, em fazer rir das contradições próprias das insuficiências da nossa modernidade, do imitar sem ser ou do ser sem saber. Daí que o caipira seja o nosso sujeito crítico por excelência e nosso insuperável personagem de humor.
A sociedade dos incalculáveis ganhos econômicos tornou-se a sociedade das incalculáveis perdas morais. Falta uma bolsa de valores sociais, que meça diariamente quanto perdemos de nós mesmos, de nossa dignidade, de nossa autoestima, da estima e do respeito pelo outro. A sociedade do pendão da esperança está se transformando na sociedade da desesperança e do ceticismo.
Já há uma rotina de notícias sobre pessoas embriagadas que, dirigindo carro, atropelam, machucam e matam. Vamos nos acostumando, que é o pior sinal da complacência e da rendição incondicional à banalização da vida. Assassinos do volante foram soltos até antes que suas vítimas fossem enterradas. Edson Roberto Domingues, 55 anos, trabalhador, negro, chefe de família, teve 90% do corpo queimado quando seu caminhãozinho foi batido, e pegou fogo, pelo carro Camaro, importado, de R$ 165 mil, dirigido por um jovem embriagado, em disparada, que feriu quatro outras pessoas. Naquela rua a velocidade máxima é de 60 km por hora, que Edson Roberto respeitava. Foi vitimado por um bêbado irresponsável que corria a 116 km por hora. Mediante fiança de R$ 245 mil, o autor da violência foi solto 24 horas antes da morte de sua vítima e dois dias antes que a família a enterrasse no Cemitério da Lapa.
O respeitador da lei foi irremediavelmente punido, como se fosse o culpado; o violador da lei passou umas horas na cadeia e está livre, como se fosse vítima. O assassino vai ser julgado por homicídio doloso, mas o STF já tem decisão sobre outro caso do mesmo gênero, de 2002, em que o dolo é questionado. Como observou um especialista, uma pena que deveria ser de 20 anos de prisão acaba sendo, no máximo, de 4 anos e até trocada por cestas básicas para os pobres. Quando o dinheiro pode pagar por aquilo que não tem preço, quando vida e moeda se equivalem, já significa que nessa equivalência a condição humana se perdeu. O abrandamento do Código de Processo Penal, para casos assim, vai na mesma direção.
História igual ao do dono do Porsche de R$ 600 mil que abalroou e destruiu o carro dirigido por uma moça, matando-a. Salvo por um bombeiro, ele saiu dos escombros de seu carro preocupado unicamente com os danos ao seu veículo. Nossa alma foi mercantilizada no egoísmo da equivalência mercantil do que não é equivalente ou não deveria ser.
Os longos anos de ditadura, de falta de liberdade e de direitos, deram lugar a uma sociedade que se embriaga na falsa concepção de que a liberdade só existe no abuso da liberdade sem freios, sem regras, sem respeito pela liberdade do outro. De que o direito só o é no abuso do direito sem a contrapartida de um código de deveres, os do respeito pelo direito do outro. A democratização corre o risco de se tornar uma farsa na anomia que desagrega, na falta de normas decorrentes de valores sociais de referência. Esses casos sugerem que os valores estão invertidos, pervertidos.
O eixo do nosso senso de justiça vem se deslocando do que por longo tempo definiu os valores sociais e regulou o comportamento das pessoas, a sociedade valorizada como todo. A sociedade tinha a primazia na definição do certo e do errado, do bem e do mal. É verdade que a vara de marmelo teve uma função histórica na formação do caráter do brasileiro, até a geração de nossos pais e avós. O Brasil venceu essa fase repressiva e descabida e começou a formar seus filhos na brandura da compreensão, na honestidade pedagógica de falar, mas de também ouvir.
Mas essa revolução de perspectiva não levou em conta os trânsfugas da educação tradicional e da moderna, os que confundiram liberdade com abuso, direito com prepotência, democracia com impunidade. Chegamos ao tempo cinzento das novas iniquidades, o do direito torto, da lei capciosa, da lei de Gerson, do individualismo exacerbado, da solidão que cega. Em larga extensão, a sociedade brasileira está matando o outro e o sentido da alteridade e da reciprocidade. "Deus é brasileiro" foi frase comum na boca de todos durante um longo tempo de nossa história. Mas Deus morre todos os dias não só nos atos dos que a si mesmos se supõem deuses; também nas várias modalidades de aniquilamento do semelhante.

* José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, autor, dentre outros, de A Política Do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011). Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 9 de outubro de 2011.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Invoquemos, no domingo, a misericórdia de Deus


CL adere ao apelo da Conferência Episcopal Italiana pelas vítimas da violência na África e na Ásia

Comunhão e Libertação adere ao convite que a Conferência Episcopal Italiana (CEI) dirigiu às paróquias, comunidades religiosas, associações, grupos e movimentos a rezarem, no domingo, dia 13 de marco de 2011, pela seguinte intenção: “Peçamos, para as vítimas da violência, a misericórdia de Deus e, para todos, a reconciliação, a justiça e a paz”.
Aproximamo-nos de Bento XVI que, em face da violência que os homens praticam, testemunha uma fé que se torna inteligência da realidade, único caminho de saída da confusão e de sustento da esperança do futuro. 
Como Padre Giussani disse, “sem o reconhecimento do Mistério presente, a noite avança, a confusão avança”. A misericórdia, pelo contrário, é “o abraço último do Mistério, contra o qual o homem – mesmo o mais distante e o mais perversos ou mais obscuro, o mais tenebroso – não pode opor nada, não pode opor nenhuma objeção: pode abandoná-lo, mas abandonando a si mesmo e a seu próprio bem. O Mistério como misericórdia é a última palavra mesmo sobre todas as possibilidades terríveis da história. Por isso, a existência se expressa, como último ideal, na mendicância. O verdadeiro protagonista da história é o mendicante: Cristo mendicante do coração do homem e o coração do homem mendicante de Cristo”.
Bento XVI é testemunha suprema desta paixão pelo destino dos irmãos homens que apenas Cristo torna possível: 
“Acompanho sempre e com grande preocupação as tensões que, nestes dias, são registradas em diversos países da África e da Ásia. Peço ao Senhor Jesus que o comovente sacrifício da vida do Ministro paquistanês Shahbaz Bhatti desperte nas consciências a coragem e o compromisso com a tutela da liberdade religiosa de todos os homens e, ao fazê-lo, promova sua igual dignidade. Meu pensamento se dirige também à Líbia, onde os recentes combates têm causado muitas mortes e uma crescente crise humanitária. Para todas as vítimas e para aqueles que se encontram em situações aflitivas asseguro minhas orações e minha proximidade, enquanto invoco a assistência e o socorro às pessoas afetadas” (Angelus de 6 de março de 2011). 

A assessoria de imprensa de C
Milão, 10 de março de 2011.

* Extraído do site oficial de CL, no dia 11 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Postagens de hoje

Quanto mais abafada for a voz do nosso coração, mais vigorosamente ela deve insistir até se sobrepor ao tumulto dos pensamentos invasores e tocar o ouvido fiel do Senhor. 

... um inesperado percurso dentro de si, que todavia não se encerra numa introspecção sem saída, mas se abre sobre a história pessoal do protagonista, relendo-a sob uma nova luz.

Um entrevista com Fabrice Hadjadj sobre o ateísmo e o senso religioso.

Sair-se bem na escola seria, então, visto como expressão de e não oposição ao próprio desejo de satisfação. Para dizer em duas palavras: não se é obrigado a ir para a universidade para se ser feliz. Mas, se o deseja, isto é o que a realidade lhe pede para fazer.

Caro ateu, não ceda aos novos ídolos...


Entrevista realizada por Lorenzo Fazzini

Um “desafio” saudável lançado aos ateus para que sejam, de verdade, sem ídolos. E continuem capazes de se abrir a “uma espera do inesperado” que pode ter o rosto de Cristo, o Deus recusado pelos crentes de seu tempo. Fabrice Hadjadj, filósofo francês, convertido ao cristianismo, vai falar esta noite na Universidade Católica de Milão (na Aula Magna, às 21h), sobre “Modernidade e modernismo. A propósito do senso religioso”

Deus. Podemos falar disso com os não crentes?
É preciso reconhecer que a primeira dificuldade consiste no discutir a esse respeito com os crentes. É o Evangelho que nos ensina: Jesus não se dirige aos ateus, mas aos especialistas da fé, escribas e fariseus. Ele quer revelar a eles o mistério do Pai. Mas, eles não o compreendem, e acabam por crucificá-lo. É difícil para nós admitir que foram alguns crentes que levaram o Filho de Deus à morte. Quando se acredita, seria necessário lutar para não reduzir Deus a um pequeno ídolo doméstico. Este nome deveria nos abrir a garganta como um abismo. E, no entanto, nós o pronunciamos como uma banalidade conceitual. Se o pronunciássemos com a vertigem do apaixonado! Antes da minha conversão, não suportava que se pronunciasse a palavra “Deus”: eu a considerava como um coringa jogado sobre a mesa, traiçoeiramente, durante uma partida de cartas. Soava-me como um modo de evitar os problemas e entender mal a tragédia da vida.

Como “verificar” a ideia, frequentemente confusa, de Deus?
Ele não abole o drama da existência, mas o realiza. É o que revela o mistério da Cruz. Os crentes o crucificam acima de Deus, e no entanto Deus clama a Deus: Por que me abandonaste? Não é algo de abissal? Não é, talvez, verdade que isto destrói todos os nossos ídolos e nos leva ao drama do “amor forte como a morte”? É preciso que os crentes reconheçam tal drama e vivam o segundo mandamento, que nos pede para não pronunciar em vão o nome de Deus. Os não crentes poderiam entendê-lo melhor.

O senhor fala por experiência?
Sim. A minha conversão foi também “linguística”. Descobri que o significante “Deus” correspondia à verdade do “Sim” de Friedrich Nietzsche e do “Aberto” de Rainer M. Rilke. E que não era uma postura poética ou um conceito filosófico, mas a realidade de uma Pessoa que me havia precedido no fundo da obscuridade. “Deus” não significava mais uma solução, mas uma aventura. Não uma resposta, mas um apelo. Não se trata de uma estratégia de marketing. Quando encontrarmos o melhor modo de falar de Deus, não será mais seguro que o outro, nos escutando, se converta. Se falarmos de Deus imitando a força de Jesus, alguns se converterão, outros acabarão nos crucificando. É o sinal de que, finalmente, falamos bem.

O senhor definiu a espiritualidade como “um truque do diabo”. Sobre o que discutir com os ateus?
Sobre a sexualidade. No meu Mística da Carne mostro que o sexo nos remete à profundidade autêntica, até às vísceras de Deus. No princípio, Deus cria o homem à sua imagem, homem e mulher, de modo que a sua relação sexual, com a sua fecundidade natural, se torne a imagem da Trindade. Qualquer que seja o ponto de partida – uma margarida ou um caramujo –, se falarmos corretamente, chegaremos inevitavelmente a Deus: ele não é relegado às alturas, mas comparece no mais “baixo”. O cristianismo é o contrário do espiritualismo, é espiritualidade da encarnação: o Verbo se fez carne e se dá a nós através de um ato espiritual e carnal, a eucaristia. Os sacramentos são os toques de Cristo. Para ir em direção a Deus temos que nos aproximar daquele padre que nos é antipático, daquele cristão que nos enche a paciência na cadeira ao lado, daquele pobre para convidá-lo à mesa.

Recentemente, a apologética se recuperou. Mas o senhor não escreveu palavras ternas a esse respeito...
Não tenho nada contra a apologética. Pois é o que eu mesmo tento fazer agora. Mas tem o perigo de permanecer no nível do debate de ideias. O cristianismo não diz respeito a uma ideologia: é uma vida. E a sua alma se encontra no amor. Quando separamos o amor da verdade caímos no sentimentalismo. E se afastamos a verdade do amor, terminamos no dogmatismo. A Verdade própria do cristianismo é uma Pessoa, não uma teoria. E Deus mesmo não é uma natureza anônima, mas uma comunhão de Pessoas. Muitas sabedorias filosóficas pretendem que a realização do homem consista num conhecimento teórico ou num estado de serenidade. O cristianismo propõe outra coisa: um encontro. Para fazer boa apologética é preciso isto: antes do confronto ideal, maravilhemo-nos com o rosto do nosso interlocutor; e mesmo se ele não entender nada e, no fim, nos encher a paciência, continuemos a admirar nele a maravilha que Deus contempla e que ele mesmo, o ateu, ignora.

No seu livro-entrevista, Bento XVI sublinha a relação, positiva e fecunda, entre cristianismo e modernidade. Quais são os aspectos dessa relação que enriquecem a fé?
A modernidade traz duas exigências. A primeira é de natureza crítica: o homem moderno recusa receber algo tão somente porque seja transmitido por seus pais. Reclama razões e quer compreender. Mas pode ser ambígua: ou conduz a um dobrar-se mortal sobre si mesma ou conduz a uma maior inteligência da fé. Segundo: o homem moderno deseja uma plenitude “aqui e agora”. Por isso, rompe com o além. Ora, o nó é que nunca estamos “aqui e agora” para nós mesmos. O tempo foge e, quando estamos em algum lugar, projetamos ir para outro. Faltamos à presença. Nunca estamos uns com os outros. Para estarmos completamente presentes, temos que coincidir com o ser e poder dizer: “Eu sou aquele que sou”. Este é o privilégio do Eterno. Por isso, voltar-se para Ele não é fugir do “aqui e agora”, mas nos aproximarmos dele e buscar ser mais presentes a tudo e a todos.

No seu A fé dos demônios o senhor critica os “novos ateus” como Michel Onfray, exemplo do ateu “enganado” que “não busca mais”. Os não crentes são todos assim?
Chamo a atenção daqueles ateus que não são aquilo que pretendem ser. Um ateu é alguém “sem deus”, alguém que de se desfazer de todos os ídolos, esforçando-se para não tornar o próprio ateísmo um ídolo. Seria triste libertar-se da religião de Cristo para fabricar para si mesmo uma religião do ateísmo. É o que acontece na maior parte dos casos. Ser verdadeiramente ateus representa algo de verdadeiramente difícil. Quando se abandona o Deus transcendente, confecciona-se para si mesmo outros ídolos: razão, raça, revolução, mercado... Visto que não somos Deus, mas seres de desejo, temos necessidade de um princípio para polarizar as nossas vidas. Tentei ser o mais ateu possível. Ao fim, desembaraçando-me de todos os ídolos, restou em mim a disponibilidade para acolher aquilo que não vinha de mim, aquilo que, para alguns, é a transcendência e que o catecismo chama Revelação. Tal disponibilidade consiste numa abertura para o encontro. Heráclito a definia como “a espera do inesperado”, uma abertura que se oferecer num acontecimento que nos alcança através de uma multidão de testemunhas: a “tradição apostólica”. Uma série de encontros que partiram de Jesus e me alcançaram.

* Extraído do jornal Avvenire, do dia 3 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Bridge over troubled water



By Simon and Garfunkel

When you're weary
Feeling small
When tears are in your eyes
I will dry them all

I'm on your side
When times get rough
And friends just can't be found
Like a bridge over troubled water
I will lay me down
Like a bridge over troubled water
I will lay me down

When you're down and out
When you're on the street
When evening falls so hard
I will comfort you

I'll take your part
When darkness comes
And pain is all around
Like a bridge over troubled water
I will lay me down
Like a bridge over troubled water
I will lay me down

Sail on Silver Girl,
Sail on by
Your time has come to shine
All your dreams are on their way

See how they shine
If you need a friend
I'm sailing right behind
Like a bridge over troubled water
I will ease your mind
Like a bridge over troubled water
I will ease your mind

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Não basta uma proclamação abstrata da liberdade religiosa...

Discurso do Papa Bento XVI
ao Corpo Diplomático acreditado junto da Santa Sé
para a troca de bons votos de início de ano

Sala Régia
Segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Excelências,
Senhoras e Senhores,
Com alegria, dou-vos as boas vindas a este encontro que, cada ano, vos reúne ao redor do Sucessor de Pedro a vós, ilustres Representantes de tão grande número de países. Este encontro reveste-se de alto significado, porque oferece uma imagem e, simultaneamente, um exemplo do papel da Igreja e da Santa Sé na comunidade internacional. A cada um de vós dirijo as minhas saudações e votos cordiais, em particular a quantos estão aqui pela primeira vez. Agradeço-vos pelo empenho e atenção com que, no exercício das vossas delicadas funções, seguis as minhas atividades, as da Cúria Romana e, assim de certa maneira, a vida da Igreja Católica em todo o mundo. O vosso Decano, Embaixador Alejandro Valladares Lanza, fez-se intérprete dos vossos sentimentos, e agradeço-lhe os votos que me exprimiu em nome de todos. Sabendo como é unida a vossa comunidade, tenho a certeza que hoje, no vosso pensamento, tendes presente a Embaixadora do Reino da Holanda, Baronesa van Lynden-Leijten, que regressou à casa do Pai há algumas semanas. Na oração, associo-me aos vossos sentimentos.
Quando começa um novo ano, ainda ressoa nos nossos corações e no mundo inteiro o eco daquele anúncio jubiloso que se manifestou, há vinte séculos, na noite de Belém, noite que simboliza a condição da humanidade em sua carência de luz, de amor e de paz. Aos homens de então como aos de hoje, os mensageiros celestes trouxeram a boa nova da chegada do Salvador: "O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; para os que habitavam na terra da escuridão, uma luz começou a brilhar" (Is 9, 1). O mistério do Filho de Deus que Se torna Filho do homem supera seguramente toda a expectativa humana. Na sua gratuidade absoluta, este acontecimento de salvação é a resposta autêntica e completa ao desejo profundo do coração. A verdade, o bem, a felicidade, a vida em plenitude que cada homem busca, consciente ou inconscientemente, são-lhe concedidos por Deus. Cada pessoa, ao anelar por estes benefícios, está à procura do seu Criador, porque "só Deus responde à sede que está no coração de cada homem" (Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini, 23). A humanidade, em toda a sua história, através das suas crenças e dos seus ritos, manifesta uma busca incessante de Deus e "estas formas de expressão são tão universais que bem podemos chamar ao homem um ser religioso" (Catecismo da Igreja Católica, 28). A dimensão religiosa é uma característica inegável e irrefreável do ser e do agir do homem, a medida da realização do seu destino e da construção da comunidade a que pertence. Por isso, quando o próprio indivíduo ou aqueles que o rodeiam negligenciam ou negam este aspecto fundamental, geram-se desequilíbrios e conflitos em todos os níveis, tanto no plano pessoal como no interpessoal.
Nesta verdade primária e basilar, encontra-se a razão por que indiquei a liberdade religiosa como o caminho fundamental para a construção da paz, na Mensagem para a Celebração da Jornada Mundial da Paz deste ano. De fato, a paz constrói-se e conserva-se apenas na medida em que o homem possa livremente procurar e servir a Deus no seu coração, na sua vida e nas suas relações com os outros.  
Senhoras e Senhores Embaixadores, a vossa presença nesta circunstância solene é um convite a fazer uma viagem panorâmica sobre todos os países que representais e sobre o mundo inteiro. Não há porventura, neste panorama, numerosas situações onde, infelizmente, o direito à liberdade religiosa é lesado ou negado? Este direito do homem – que, na realidade, é o primeiro dos direitos, porque historicamente se afirmou em primeiro lugar e ainda porque tem como objeto a dimensão constitutiva do homem, isto é, a sua relação com o Criador – não é demasiadas vezes posto em discussão ou violado? Parece-me que a sociedade, os seus responsáveis e a opinião pública hoje se dão conta em medida maior, embora nem sempre de maneira exata, desta grave ferida infligida à dignidade e à liberdade do homo religiosus, para a qual já várias vezes senti necessidade de chamar a atenção de todos.
Fi-lo durante as minhas viagens apostólicas do ano passado a Malta e a Portugal, a Chipre, à Grã-Bretanha e à Espanha. Independentemente das características destes países, de todos conservo uma recordação cheia de gratidão pelo acolhimento que me reservaram. A Assembleia Especial para o Oriente Médio do Sínodo dos Bispos, que decorreu no Vaticano durante o mês de Outubro, foi um período de oração e de reflexão, durante o qual o pensamento se dirigiu, insistentemente, para as comunidades cristãs daquela região do mundo, tão provadas por causa da sua adesão a Cristo e à Igreja.
Sim, olhando para o Oriente, os atentados que semearam morte, sofrimento e desconcerto entre os cristãos do Iraque, a ponto de os impelir a deixar a terra onde seus pais viveram ao longo dos séculos, contristaram-nos profundamente. Renovo às autoridades deste país e aos chefes religiosos muçulmanos o meu ansioso apelo a trabalharem para que os seus concidadãos cristãos possam viver em segurança e continuar a prestar a sua contribuição à sociedade de que são membros com pleno título. Também no Egito, em Alexandria, o terrorismo feriu brutalmente fiéis em oração numa igreja. Esta sucessão de ataques é mais um sinal da urgente necessidade que há de os governos da região adotarem, não obstante as dificuldades e as ameaças, medidas eficazes para a proteção das minorias religiosas. Será preciso dizê-lo uma vez mais? No Oriente Médio, "os cristãos são cidadãos originários e autênticos, leais à sua pátria e fiéis a todos os seus deveres nacionais. É natural que possam gozar de todos os direitos de cidadania, de liberdade de consciência e de culto, de liberdade no campo do ensino e da educação e no uso dos meios de comunicação" (Mensagem ao Povo de Deus da Assembleia Especial para o Oriente Médio do Sínodo dos Bispos, 10). A este respeito, aprecio a atenção pelos direitos dos mais débeis e a clarividência política de que deram prova alguns países da Europa nos últimos dias, pedindo uma resposta concertada da União Europeia a fim de que os cristãos sejam defendidos no Oriente Médio. Quero, enfim, recordar que a liberdade religiosa não é plenamente aplicada quando se garante apenas a liberdade de culto, com limitações. Além disso, encorajo a acompanhar a plena tutela da liberdade religiosa e dos outros direitos humanos com programas que, desde a escola primária e no quadro do ensino religioso, eduquem para o respeito de todos os irmãos em humanidade. Além disso, pelo que diz respeito aos Estados da Península Arábica, onde vivem numerosos trabalhadores emigrantes cristãos, espero que a Igreja Católica possa dispor de adequadas estruturas pastorais.
Entre as normas que lesam o direito das pessoas à liberdade religiosa, uma menção particular deve ser feita da lei contra a blasfêmia no Paquistão: de novo encorajo as autoridades deste país a realizarem os esforços necessários para a ab-rogar, tanto mais que é evidente que a mesma serve de pretexto para provocar injustiças e violências contra as minorias religiosas. O trágico assassinato do Governador do Punjab mostra como é urgente caminhar neste sentido: a veneração a Deus promove a fraternidade e o amor, não o ódio nem a divisão. Outras situações preocupantes, por vezes com atos de violência, podem ser mencionadas no Sul e Sudeste do continente asiático, em países que aliás têm uma tradição de relações sociais pacíficas. O peso particular de uma determinada religião numa nação não deveria jamais implicar que os cidadãos pertencentes a outra confissão fossem discriminados na vida social ou, pior ainda, que se tolerasse a violência contra eles. A este respeito, é importante que o diálogo inter-religioso favoreça um compromisso comum por reconhecer e promover a liberdade religiosa de cada pessoa e de cada comunidade. Enfim, como já recordei, a violência contra os cristãos não poupa a África. Os ataques contra lugares de culto na Nigéria, precisamente enquanto se celebrava o Natal de Cristo, são outro triste testemunho disso mesmo.
Por outro lado, em diversos países, a Constituição reconhece uma certa liberdade religiosa, mas, de fato, a vida das comunidade religiosas torna-se difícil e por vezes até precária (cf. Conc. Vat. II, Decl. Dignitatis humanae, 15), porque o ordenamento jurídico ou social se inspira em sistemas filosóficos e políticos que postulam um estrito controle – para não dizer um monopólio – do Estado sobre a sociedade. É preciso que cessem tais ambiguidades, de maneira que os crentes não se vejam lacerados entre a fidelidade a Deus e a lealdade à sua pátria. De modo particular, peço que seja por todo o lado garantida às comunidades católicas a plena autonomia de organização e a liberdade de cumprir a sua missão, de acordo com as normas e padrões internacionais neste campo.
Neste momento, o meu pensamento volta-se de novo para a comunidade católica da China continental e os seus Pastores, que vivem um período de dificuldade e provação. Mudando de latitude, quero dirigir uma palavra de encorajamento às autoridades de Cuba – país que celebrou, em 2010, setenta e cinco anos de ininterruptas relações diplomáticas com a Santa Sé – para que o diálogo, que felizmente se instaurou com a Igreja, se reforce e amplie ainda mais.
Voltando o nosso olhar para o Ocidente, deparamos com outros tipos de ameaça contra o pleno exercício da liberdade religiosa. Penso, em primeiro lugar, em países onde se reconhece uma grande importância ao pluralismo e à tolerância, enquanto a religião sofre uma crescente marginalização. Tende-se a considerar a religião, toda a religião, como um fator sem importância, alheio à sociedade moderna ou mesmo desestabilizador e procura-se, com diversos meios, impedir toda e qualquer influência dela na vida social. Deste modo, chega-se a pretender que os cristãos ajam, no exercício da sua profissão, sem referimento às suas convicções religiosas e morais, e mesmo em contradição com elas, como, por exemplo, quando estão em vigor leis que limitam o direito à objeção de consciência dos profissionais da saúde ou de certos operadores do direito.
Neste contexto, não é possível deixar de alegrar-se com a adoção pelo Conselho da Europa, no passado mês de outubro, de uma Resolução que protege o direito do pessoal médico à objeção de consciência face a certos atos que lesam gravemente o direito à vida, como o aborto. 
Outra manifestação da marginalização da religião, e particularmente do cristianismo, consiste em banir da vida pública festas e símbolos religiosos, em nome do respeito por quantos pertencem a outras religiões ou por aqueles que não acreditam. Agindo deste modo, não apenas se limita o direito dos crentes à expressão pública da sua fé, mas cortam-se também raízes culturais que alimentam a identidade profunda e a coesão social de numerosas nações. No ano passado, alguns países europeus associaram-se ao recurso apresentado pelo governo italiano na causa, bem conhecida, da exposição do crucifixo nos lugares públicos. Desejo exprimir a minha gratidão às autoridade destas nações e a quantos se empenharam neste sentido, episcopados, organizações e associações civis ou religiosas, particularmente ao Patriarcado de Moscou e demais representantes da hierarquia ortodoxa, bem como a todas as pessoas – crentes, mas também não crentes – que sentiram necessidade de manifestar a sua adesão a este símbolo grávido de valores universais.
Reconhecer a liberdade religiosa significa, além disso, garantir que as comunidades religiosas possam agir livremente na sociedade, com iniciativas nos setores social, caritativo ou educativo. Pode-se constatar por todo o lado, no mundo, a fecundidade das obras da Igreja Católica nestes âmbitos. Causa preocupação ver este serviço que as comunidades religiosas prestam a toda a sociedade, particularmente em favor da educação das jovens gerações, comprometido ou dificultado por projetos de lei que correm o risco de criar uma espécie de monopólio estatal em matéria escolástica, como se constata, por exemplo, em certos países da América Latina. Quando vários deles celebram o segundo centenário da sua independência, ocasião propícia para se recordar a contribuição da Igreja Católica para a formação da identidade nacional, exorto todos os governos a promoverem sistemas educativos que respeitem o direito primordial das famílias de decidir sobre a educação dos filhos e que se inspirem no princípio de subsidiariedade, fundamental para organizar uma sociedade justa.
Continuando a minha reflexão, não posso passar sem referir outra ameaça à liberdade religiosa das famílias em alguns países europeus, onde é imposta a participação em cursos de educação sexual ou cívica que propagam concepções da pessoa e da vida pretensamente neutras mas que, na realidade, refletem uma antropologia contrária à fé e à reta razão.
Senhoras e Senhores Embaixadores, nesta circunstância solene, permiti-me explicitar alguns princípios que inspiram a Santa Sé, com toda a Igreja Católica, na sua atividade junto das Organizações Internacionais intergovernamentais, a fim de promover o pleno respeito da liberdade religiosa para todos. Em primeiro lugar, aparece a convicção de que não se pode criar uma espécie de escala na gravidade da intolerância com as religiões. Infelizmente, é frequente uma tal atitude, sendo precisamente os atos discriminatórios contra os cristãos aqueles que se consideram menos graves, menos dignos de atenção por parte dos governos e da opinião pública. Ao mesmo tempo, há que rejeitar também o contraste perigoso que alguns querem instaurar entre o direito à liberdade religiosa e os outros direitos do homem, esquecendo ou negando assim o papel central do respeito da liberdade religiosa na defesa e proteção da alta dignidade do homem. Menos justificáveis ainda são as tentativas de contrapor ao direito da liberdade religiosa pretensos novos direitos, promovidos ativamente por certos setores da sociedade e inseridos nas legislações nacionais ou nas diretrizes internacionais, mas que, na realidade, são apenas a expressão de desejos egoístas e não encontram o seu fundamento na natureza humana autêntica. Enfim, é preciso afirmar que não basta uma proclamação abstrata da liberdade religiosa: esta norma fundamental da vida social deve encontrar aplicação e respeito a todos os níveis e em todos os campos; caso contrário, não obstante justas afirmações de princípio, corre-se o risco de cometer profundas injustiças contra os cidadãos que desejam professar e praticar livremente a sua fé.
A promoção de uma plena liberdade religiosa das comunidades católicas é também a finalidade que visa a Santa Sé quando conclui Concordatas ou outros Acordos. Alegro-me por Estados de várias regiões do mundo e de diferentes tradições religiosas, culturais e jurídicas terem escolhido o meio das convenções internacionais para organizar as relações entre a comunidade política e a Igreja Católica, estabelecendo através do diálogo o quadro de uma colaboração no respeito das recíprocas competências. No ano passado, foi concluído e entrou em vigor um Acordo para a assistência religiosa aos fiéis católicos das Forças Armadas na Bósnia Herzegovina, e atualmente estão em curso negociações em diversos países. Delas esperamos uma saída positiva, capaz de assegurar soluções respeitosas da natureza e da liberdade da Igreja para o bem da sociedade inteira.
De igual modo está ao serviço da liberdade religiosa a atividade dos Representantes Pontifícios junto dos Estados e das Organizações Internacionais. Com satisfação desejo assinalar que as autoridades vietnamitas aceitaram que eu designe um Representante, que há de, com as suas visitas, exprimir à querida comunidade católica deste país a solicitude do Sucessor de Pedro. Queria igualmente recordar que, durante o ano passado, a rede diplomática da Santa Sé se consolidou ainda mais na África, estando doravante assegurada uma presença estável em três países onde o Núncio não é residente. Ainda neste continente, irei visitar, se Deus quiser, o Benim no próximo mês de novembro, para entregar a Exortação Apostólica que recolherá os frutos dos trabalhos da Segunda Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos.
Diante deste ilustre auditório, quero por último reafirmar vigorosamente que a religião não constitui um problema para a sociedade, não é um fator de perturbação ou de conflito. Quero repetir que a Igreja não procura privilégios, nem deseja intervir em âmbitos alheios à sua missão, mas simplesmente exercer a mesma com liberdade. Convido cada um a reconhecer a grande lição da história: "Como se pode negar a contribuição das grandes religiões do mundo para o desenvolvimento da civilização? A busca sincera de Deus levou a um respeito maior da dignidade do homem. As comunidades cristãs, com o seu patrimônio de valores e princípios, contribuíram bastante para a tomada de consciência das pessoas e dos povos a respeito da sua própria identidade e dignidade, bem como para a conquista de instituições democráticas e para a afirmação dos direitos do homem e seus correlativos deveres. Também hoje, numa sociedade cada vez mais globalizada, os cristãos são chamados – não só através de um responsável empenhamento civil, econômico e político, mas também com o testemunho da própria caridade e fé – a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do reto ordenamento das realidades humanas" (Mensagem para a Celebração da Jornada Mundial da Paz, 1 de Janeiro de 2011, n. 7).
Emblemática a este respeito é a figura da Beata Madre Teresa de Calcutá: o centenário do seu nascimento foi celebrado tanto em Tirana, Skopje e Pristina como na Índia; foi-lhe prestada uma vibrante homenagem não só pela Igreja, mas também pelas autoridades civis, os líderes religiosos e pessoas sem conta de todas as confissões. Exemplos como o dela mostram ao mundo quão benéfico é para a sociedade inteira o compromisso que nasce da fé.
Que nenhuma sociedade humana se prive, voluntariamente, da contribuição fundamental que são as pessoas e as comunidades religiosas! Como recordava o Concílio Vaticano II, assegurando a todos plenamente a justa liberdade religiosa, a sociedade poderá "gozar dos bens da justiça e da paz que derivam da fidelidade dos homens a Deus e à sua santa vontade" (Decl. Dignitatis humanae, 6). 
Por isso, ao mesmo tempo que formulo votos de um novo ano rico de concórdia e de real progresso, exorto a todos, responsáveis políticos, líderes religiosos e pessoas de todas as categorias, a empreenderem com determinação o caminho para uma paz autêntica e duradoura, que passa pelo respeito do direito à liberdade religiosa em toda a sua extensão.
Sobre este compromisso, cuja atuação necessita do esforço da família humana inteira, invoco a Bênção de Deus Onipotente, que realizou a nossa reconciliação com Ele e entre nós por meio do seu Filho Jesus Cristo, nossa paz (cf. Ef 2, 14).
Um Ano feliz para todos!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 10 de janeiro de 2011. Revisado por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Liberdade religiosa, caminho para a paz - 03

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI
PARA A CELEBRAÇÃO DO XLIV DIA MUNDIAL DA PAZ

1 DE JANEIRO DE 2011

LIBERDADE RELIGIOSA, CAMINHO PARA A PAZ

A dimensão pública da religião 
6. Embora movendo-se a partir da esfera pessoal, a liberdade religiosa – como qualquer outra liberdade – realiza-se na relação com os outros. Uma liberdade sem relação não é liberdade perfeita. Também a liberdade religiosa não se esgota na dimensão individual, mas realiza-se na própria comunidade e na sociedade, coerentemente com o ser relacional da pessoa e com a natureza pública da religião.
O relacionamento é uma componente decisiva da liberdade religiosa, que impele as comunidades dos crentes a praticarem a solidariedade em prol do bem comum. Cada pessoa permanece única e irrepetível e, ao mesmo tempo, completa-se e realiza-se plenamente nesta dimensão comunitária.
Inegável é a contribuição que as religiões prestam à sociedade. São numerosas as instituições caritativas e culturais que atestam o papel construtivo dos crentes na vida social. Ainda mais importante é a contribuição ética da religião no âmbito político. Tal contribuição não deveria ser marginalizada ou proibida, mas vista como válida ajuda para a promoção do bem comum. Nesta perspectiva, é preciso mencionar a dimensão religiosa da cultura, tecida através dos séculos graças às contribuições sociais e sobretudo éticas da religião. Tal dimensão não constitui de modo algum uma discriminação daqueles que não partilham a sua crença, mas antes reforça a coesão social, a integração e a solidariedade.

Liberdade religiosa, força de liberdade e de civilização:
os perigos da sua instrumentalização
7. A instrumentalização da liberdade religiosa para mascarar interesses ocultos, como por exemplo a subversão da ordem constituída, a apropriação de recursos ou a manutenção do poder por parte de um grupo, pode provocar danos enormes às sociedades. O fanatismo, o fundamentalismo, as práticas contrárias à dignidade humana não se podem jamais justificar, e menos ainda o podem ser se realizadas em nome da religião. A profissão de uma religião não pode ser instrumentalizada, nem imposta pela força. Por isso, é necessário que os Estados e as várias comunidades humanas nunca se esqueçam de que a liberdade religiosa é condição para a busca da verdade e que a verdade não se impõe pela violência mas pela "força da própria verdade".[10] Neste sentido, a religião é uma força positiva e propulsora na construção da sociedade civil e política.
Como se pode negar a contribuição das grandes religiões do mundo para o desenvolvimento da civilização? A busca sincera de Deus levou a um respeito maior da dignidade do homem. As comunidades cristãs, com o seu patrimônio de valores e princípios, contribuíram imensamente para a tomada de consciência das pessoas e dos povos a respeito da sua própria identidade e dignidade, bem como para a conquista de instituições democráticas e para a afirmação dos direitos do homem e seus correlativos deveres.
Também hoje, numa sociedade cada vez mais globalizada, os cristãos são chamados – não só através de um responsável empenho civil, econômico e político, mas também com o testemunho da própria caridade e fé – a oferecer a sua preciosa contribuição para o árduo e exaltante compromisso em prol da justiça, do desenvolvimento humano integral e do reto ordenamento das realidades humanas. A exclusão da religião da vida pública subtrai a esta um espaço vital que abre para a transcendência. Sem esta experiência primária, revela-se uma tarefa árdua orientar as sociedades para princípios éticos universais e torna-se difícil estabelecer ordenamentos nacionais e internacionais nos quais os direitos e as liberdades fundamentais possam ser plenamente reconhecidos e realizados, como se propõem os objetivos – infelizmente ainda menosprezados ou contestados – da Declaração Universal dos direitos do homem de 1948.

Uma questão de justiça e de civilização:
o fundamentalismo e a hostilidade contra os crentes prejudicam a laicidade positiva dos Estados
8. A mesma determinação, com que são condenadas todas as formas de fanatismo e de fundamentalismo religioso, deve animar também a oposição a todas as formas de hostilidade contra a religião, que limitam o papel público dos crentes na vida civil e política.
Não se pode esquecer que o fundamentalismo religioso e o laicismo são formas reverberadas e extremas de rejeição do legítimo pluralismo e do princípio de laicidade. De fato, ambas absolutizam uma visão redutiva e parcial da pessoa humana, favorecendo formas, no primeiro caso, de integralismo religioso e, no segundo, de racionalismo. A sociedade, que quer impor ou, ao contrário, negar a religião por meio da violência, é injusta para com a pessoa e para com Deus, mas também para consigo mesma. Deus chama a Si a humanidade através de um desígnio de amor, o qual, ao mesmo tempo que implica a pessoa inteira na sua dimensão natural e espiritual, exige que lhe corresponda em termos de liberdade e de responsabilidade, com todo o coração e com todo o próprio ser, individual e comunitário. Sendo assim, também a sociedade, enquanto expressão da pessoa e do conjunto das suas dimensões constitutivas, deve viver e organizar-se de modo a favorecer a sua abertura à transcendência. Por isso mesmo, as leis e as instituições de uma sociedade não podem ser configuradas ignorando a dimensão religiosa dos cidadãos ou de modo que prescindam completamente da mesma; mas devem ser comensuradas – através da obra democrática de cidadãos conscientes da sua alta vocação – ao ser da pessoa, para o poderem favorecer na sua dimensão religiosa. Não sendo esta uma criação do Estado, não pode ser manipulada, antes deve contar com o seu reconhecimento e respeito.
O ordenamento jurídico a todos os níveis, nacional e internacional, quando consente ou tolera o fanatismo religioso ou anti-religioso, falta à sua própria missão, que consiste em tutelar e promover a justiça e o direito de cada um. Tais realidades não podem ser deixadas à mercê do arbítrio do legislador ou da maioria, porque, como já ensinava Cícero, a justiça consiste em algo mais do que um mero ato produtivo da lei e da sua aplicação. A justiça implica reconhecer a cada um a sua dignidade,[11] a qual, sem liberdade religiosa garantida e vivida na sua essência, fica mutilada e ofendida, exposta ao risco de cair sob o predomínio dos ídolos, de bens relativos transformados em absolutos. Tudo isto expõe a sociedade ao risco de totalitarismos políticos e ideológicos, que enfatizam o poder público, ao mesmo tempo que são mortificadas e coarctadas, como se lhe fizessem concorrência, as liberdades de consciência, de pensamento e de religião.

Notas
[10] Cf. CONC. ECUM. VAT. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 1.
[11] Cf. CÍCERO, De inventione, II, 160.

* Retirado do site do Vaticano, do dia 1o de janeiro de 2011. Adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

Liberdade religiosa, caminho para a paz - 02

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI
PARA A CELEBRAÇÃO DO XLIV DIA MUNDIAL DA PAZ

1 DE JANEIRO DE 2011

LIBERDADE RELIGIOSA, CAMINHO PARA A PAZ

Liberdade religiosa e respeito recíproco
3. A liberdade religiosa está na origem da liberdade moral. Com efeito, a abertura à verdade e ao bem, a abertura a Deus, radicada na natureza humana, confere plena dignidade a cada um dos seres humanos e é garantia do respeito pleno e recíproco entre as pessoas. Por conseguinte, a liberdade religiosa deve ser entendida não só como imunidade da coação mas também, e antes ainda, como capacidade de organizar as próprias opções segundo a verdade.
Existe uma ligação indivisível entre liberdade e respeito; de fato, "cada homem e cada grupo social estão moralmente obrigados, no exercício dos próprios direitos, a ter em conta os direitos alheios e os seus próprios deveres para com os outros e o bem comum".[5] 
Uma liberdade hostil ou indiferente a Deus acaba por se negar a si mesma e não garante o pleno respeito do outro. Uma vontade, que se crê radicalmente incapaz de procurar a verdade e o bem, não tem outras razões objetivas nem outros motivos para agir senão os impostos pelos seus interesses momentâneos e contingentes, não tem uma "identidade" a preservar e construir através de opções verdadeiramente livres e conscientes. Mas assim não pode reclamar o respeito por parte de outras "vontades", também estas desligadas do próprio ser mais profundo e capazes, por conseguinte, de fazer valer outras "razões" ou mesmo nenhuma "razão". A ilusão de encontrar no relativismo moral a chave para uma convivência pacífica é, na realidade, a origem da divisão e da negação da dignidade dos seres humanos. Por isso se compreende a necessidade de reconhecer uma dupla dimensão na unidade da pessoa humana: a religiosa e a social. A este respeito, é inconcebível que os crentes "tenham de suprimir uma parte de si mesmos – a sua fé – para serem cidadãos ativos; nunca deveria ser necessário renegar a Deus, para se poder gozar dos próprios direitos".[6]

A família, escola de liberdade e de paz
4. Se a liberdade religiosa é caminho para a paz, a educação religiosa é estrada privilegiada para habilitar as novas gerações a reconhecerem no outro o seu próprio irmão e a sua própria irmã, com quem caminhar juntos e colaborar para que todos se sintam membros vivos de uma mesma família humana, da qual ninguém deve ser excluído.
A família fundada sobre o matrimônio, expressão de união íntima e de complementaridade entre um homem e uma mulher, insere-se neste contexto como a primeira escola de formação e de crescimento social, cultural, moral e espiritual dos filhos, que deveriam encontrar sempre no pai e na mãe as primeiras testemunhas de uma vida orientada para a busca da verdade e para o amor de Deus. Os próprios pais deveriam ser sempre livres para transmitir, sem constrições e responsavelmente, o próprio patrimônio de fé, de valores e de cultura aos filhos. A família, primeira célula da sociedade humana, permanece o âmbito primário de formação para relações harmoniosas em todos os níveis de convivência humana, nacional e internacional. Esta é a estrada que se há de sabiamente percorrer para a construção de um tecido social robusto e solidário, para preparar os jovens à assunção das próprias responsabilidades na vida, numa sociedade livre, num espírito de compreensão e de paz.

Um patrimônio comum
5. Poder-se-ia dizer que, entre os direitos e as liberdades fundamentais radicados na dignidade da pessoa, a liberdade religiosa goza de um estatuto especial. Quando se reconhece a liberdade religiosa, a dignidade da pessoa humana é respeitada na sua raiz e reforça-se a índole e as instituições dos povos. Pelo contrário, quando a liberdade religiosa é negada, quando se tenta impedir de professar a própria religião ou a própria fé e de viver de acordo com elas, ofende-se a dignidade humana e, simultaneamente, acabam ameaçadas a justiça e a paz, que se apoiam sobre a reta ordem social construída à luz da Suma Verdade e do Sumo Bem.
Neste sentido, a liberdade religiosa é também uma aquisição de civilização política e jurídica. Trata-se de um bem essencial: toda a pessoa deve poder exercer livremente o direito de professar e manifestar, individual ou comunitariamente, a própria religião ou a própria fé, tanto em público como privadamente, no ensino, nos costumes, nas publicações, no culto e na observância dos ritos. Não deveria encontrar obstáculos, se quisesse eventualmente aderir a outra religião ou não professar religião alguma. Neste âmbito, revela-se emblemático e é uma referência essencial para os Estados o ordenamento internacional, enquanto não consente alguma derrogação da liberdade religiosa, salvo a legítima exigência da justa ordem pública.[7] Deste modo, o ordenamento internacional reconhece aos direitos de natureza religiosa o mesmo status do direito à vida e à liberdade pessoal, comprovando a sua pertença ao núcleo essencial dos direitos do homem, àqueles direitos universais e naturais que a lei humana não pode jamais negar.
A liberdade religiosa não é patrimônio exclusivo dos crentes, mas da família inteira dos povos da terra. É elemento imprescindível de um Estado de direito; não pode ser negada, sem ao mesmo tempo minar todos os direitos e as liberdades fundamentais, pois é a sua síntese e ápice. É "o papel de girassol para verificar o respeito de todos os outros direitos humanos".[8] Ao mesmo tempo que favorece o exercício das faculdades humanas mais específicas, cria as premissas necessárias para a realização de um desenvolvimento integral, que diz respeito unitariamente à totalidade da pessoa em cada uma das suas dimensões.[9]

Notas

[5] CONC. ECUM. VAT. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 7.
[6] BENTO XVI, Discurso à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (18 de Abril de 2008): AAS 100 (2008), 337.
[7] Cf. CONC. ECUM. VAT. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 2.
[9] Cf. BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 11.


* Retirado do site do Vaticano, do dia 1o de janeiro de 2011. Adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

Liberdade religiosa, caminho para a paz - 01

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE BENTO XVI
PARA A CELEBRAÇÃO DO XLIV DIA MUNDIAL DA PAZ

1 DE JANEIRO DE 2011

LIBERDADE RELIGIOSA, CAMINHO PARA A PAZ

1. NO INÍCIO DE UM ANO NOVO, desejo fazer chegar a todos e a cada um os meus votos: votos de serenidade e prosperidade, mas sobretudo votos de paz. Infelizmente também o ano que encerra as portas esteve marcado pela perseguição, pela discriminação, por terríveis atos de violência e de intolerância religiosa.
Penso, em particular, na amada terra do Iraque, que, no seu caminho para a desejada estabilidade e reconciliação, continua a ser cenário de violências e atentados. Recordo as recentes tribulações da comunidade cristã, e de modo especial o vil ataque contra a catedral siro-católica de "Nossa Senhora do Perpétuo Socorro" em Bagdá, onde, no último dia 31 de outubro, foram assassinados dois sacerdotes e mais de cinquenta fiéis, quando se encontravam reunidos para a celebração da Santa Missa. A este ataque seguiram-se outros nos dias sucessivos, inclusive contra casas privadas, gerando medo na comunidade cristã e o desejo, por parte de muitos dos seus membros, de emigrar à procura de melhores condições de vida. Manifesto-lhes a minha solidariedade e a da Igreja inteira, sentimento que ainda recentemente teve uma concreta expressão na Assembleia Especial para o Oriente Médio do Sínodo dos Bispos, que encorajou as comunidades católicas no Iraque e em todo o Oriente Médio a viverem a comunhão e continuarem a oferecer um decidido testemunho de fé naquelas terras.
Agradeço vivamente aos governos que se esforçam por aliviar os sofrimentos destes irmãos em humanidade e convido os católicos a orarem pelos seus irmãos na fé que padecem violências e intolerâncias e a serem solidários com eles. Neste contexto, achei particularmente oportuno partilhar com todos vós algumas reflexões sobre a liberdade religiosa, caminho para a paz. De fato, é doloroso constatar que, em algumas regiões do mundo, não é possível professar e exprimir livremente a própria religião sem pôr em risco a vida e a liberdade pessoal. Em outras regiões, há formas mais silenciosas e sofisticadas de preconceito e oposição contra os crentes e os símbolos religiosos. Os cristãos são, atualmente, o grupo religioso que padece o maior número de perseguições devido à própria fé. Muitos suportam diariamente ofensas e vivem frequentemente em sobressalto por causa da sua procura da verdade, da sua fé em Jesus Cristo e do seu apelo sincero para que seja reconhecida a liberdade religiosa. Não se pode aceitar nada disto, porque constitui uma ofensa a Deus e à dignidade humana; além disso, é uma ameaça à segurança e à paz e impede a realização de um desenvolvimento humano autêntico e integral.[1]
De fato, na liberdade religiosa exprime-se a especificidade da pessoa humana, que, por ela, pode orientar a própria vida pessoal e social para Deus, a cuja luz se compreendem plenamente a identidade, o sentido e o fim da pessoa. Negar ou limitar arbitrariamente esta liberdade significa cultivar uma visão redutiva da pessoa humana; obscurecer a função pública da religião significa gerar uma sociedade injusta, porque esta seria desproporcionada à verdadeira natureza da pessoa; isto significa tornar impossível a afirmação de uma paz autêntica e duradoura para toda a família humana.
Por isso, exorto os homens e mulheres de boa vontade a renovarem o seu compromisso pela construção de um mundo onde todos sejam livres para professar a sua própria religião ou a sua fé e viver o seu amor a Deus com todo o coração, toda a alma e toda a mente (cf. Mt 22, 37). Este é o sentimento que inspira e guia a Mensagem para a XLIV Jornada Mundial da Paz, dedicada ao tema: Liberdade religiosa, caminho para a paz.

Direito sagrado à vida e a uma vida espiritual
2. O direito à liberdade religiosa está radicado na própria dignidade da pessoa humana,[2] cuja natureza transcendente não deve ser ignorada ou negligenciada. Deus criou o homem e a mulher à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 27). Por isso, toda a pessoa é titular do direito sagrado a uma vida íntegra, mesmo do ponto de vista espiritual. Sem o reconhecimento do próprio ser espiritual, sem a abertura ao transcendente, a pessoa humana retrai-se sobre si mesma, não consegue encontrar resposta para as perguntas do seu coração sobre o sentido da vida e dotar-se de valores e princípios éticos duradouros, nem consegue sequer experimentar uma liberdade autêntica e desenvolver uma sociedade justa.[3]
A Sagrada Escritura, em sintonia com a nossa própria experiência, revela o valor profundo da dignidade humana: "Quando contemplo os céus, obra das vossas mãos, a lua e as estrelas que lá colocastes, que é o homem para que Vos lembreis dele, o filho do homem para dele Vos ocupardes? Fizestes dele quase um ser divino, de honra e glória o coroastes; destes-lhe poder sobre a obra das vossas mãos, tudo submetestes a seus pés" (Sl 8, 4-7).
Perante a sublime realidade da natureza humana, podemos experimentar a mesma admiração expressa pelo salmista. Esta manifesta-se como abertura ao Mistério, como capacidade de interrogar-se profundamente sobre si mesmo e sobre a origem do universo, como íntima ressonância do Amor supremo de Deus, princípio e fim de todas as coisas, de cada pessoa e dos povos.[4] A dignidade transcendente da pessoa é um valor essencial da sabedoria judaico-cristã, mas, graças à razão, pode ser reconhecida por todos. Esta dignidade, entendida como capacidade de transcender a própria materialidade e buscar a verdade, há de ser reconhecida como um bem universal, indispensável na construção de uma sociedade orientada para a realização e a plenitude do homem. O respeito de elementos essenciais da dignidade do homem, tais como o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, é uma condição da legitimidade moral de toda a norma social e jurídica.

Notas
[1] Cf. BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 29.55-57.
[2] Cf. CONC. ECUM. VAT. II, Decl. sobre a liberdade religiosa Dignitatis humanae, 2.
[3] Cf. BENTO XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 78.
[4] Cf. CONC. ECUM. VAT. II, Decl. sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs Nostra aetate, 1.

* Retirado do site do Vaticano, do dia 1o de janeiro de 2011. Adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 2 de janeiro de 2011

A Mãe de Deus nos mostra o rosto do seu Filho...



Homilia do Santo Padre Bento XVI

Basílica Vaticana
Sábado, 1° de janeiro de 2011

Caros irmãos e irmãs!
Ainda envolvidos pelo clima espiritual do Natal, no qual contemplamos o mistério do nascimento de Cristo, hoje celebramos com os mesmos sentimentos a Virgem Maria, que a Igreja venera como Mãe de Deus, na medida em que deu carne ao Filho do eterno Pai. As leituras bíblicas desta solenidade dão especial atenção ao Filho de Deus feito homem e ao “nome” do Senhor. A primeira leitura nos apresenta a solene bênção que os sacerdotes pronunciam sobre os Israelitas nas grandes festas religiosas: ela é precisamente marcada pelo nome do Senhor, repetido três vezes, como que exprimindo a plenitude e a força que deriva de uma tal invocação. Este texto de bênção litúrgica, de fato, evoca a riqueza da graça e da paz que Deus doa ao homem, com uma benévola disposição por ele, e que se manifesta com o “resplandecer” do rosto divino e o “voltá-lo” para nós.
A Igreja escuta, outra vez, hoje, estas palavras, enquanto pede ao Senhor que abençoe o novo ano que apenas começou, na consciência de que, ante aos trágicos eventos que marcam a história, ante às lógicas de guerra que ainda precisam ser superadas, somente Deus pode tocar o ânimo humano no profundo e assegurar esperança e paz à humanidade. Já se consolidou, de fato, a tradição de que no primeiro dia do ano a Igreja, espalhada por todo o mundo, eleve uma oração para invocar a paz. É bom iniciar um novo trajeto colocando-se, decididamente, no caminho da paz. Hoje, queremos acolher o grito de tantos homens, mulheres, crianças e anciãos vítimas da guerra, que é o rosto mais horrendo e violento da história. Nós, hoje, rezamos para que a paz, que os anjos anunciaram aos pastores na noite de Natal, chegue a todos os lugares: “super terram pax in hominibus bonae voluntatis” (Lc 2, 14). Por isto, especialmente com a nossa oração, queremos ajudar cada homem e cada povo, particularmente os que têm responsabilidade de governo, a caminhar de modo sempre mais decidido no caminho da paz.
Na segunda leitura, São Paulo resume na adoção filial a obra de salvação realizada por Cristo, na qual a figura de Maria está como que engastada. Graças a ela o Filho de Deus, “nascido de mulher” (Gal 4, 4), pôde vir ao mundo como verdadeiro homem, na plenitude do tempo. Tal realização, tal plenitude, diz respeito ao passado e às esperas messiânicas, que se realizam, mas, ao mesmo tempo, se refere também à plenitude no sentido absoluto: no verbo feito carne, Deus disse sua Palavra última e definitiva. No início deste ano, ressoa assim o convite a caminhar com alegria em direção à luz do “sol que surge do alto” (Lc 1, 78), já que, na perspectiva cristã, todo o tempo é habitado por Deus, não há futuro que não seja em direção de Cristo e não existe plenitude fora da de Cristo.
O trecho do Evangelho de hoje termina com a imposição do nome de Jesus, enquanto Maria participa em silêncio, meditando no coração, do mistério desse seu Filho, que de modo singular é dom de Deus. Mas, a perícope evangélica que escutamos evidencia particularmente os pastores, que voltaram “glorificando e louvando a Deus por tudo o que haviam visto e ouvido” (Lc 2, 20). O anjo tinha anunciado a eles que, na cidade de Davi, ou seja, em Belém, havia nascido o Salvador e que encontrariam o sinal: um menino envolto em faixas dentro de uma manjedoura (cf. Lc 2, 11-12). Partindo apressadamente, eles encontraram Maria e José e o Menino. Notamos como o Evangelista fala da maternidade de Maria a partir do Filho, daquele “menino envolto em faixas”, porque é Ele – o Verbo de Deus (Jo 1, 14) – o ponto de referência, o centro do evento que está acontecendo e Ele que faz a maternidade de Maria ser qualificada como “divina”.
Esta atenção prevalente que as leituras de hoje dedicam ao “Filho”, a Jesus, não reduz o papel da Mãe, pelo contrário, a coloca na perspectiva mais justa: Maria, de fato, é verdadeira Mãe de Deus exatamente em virtude da sua total relação com Cristo. Por isso, glorificando o Filho se honra a Mãe e honrando-se a Mãe se glorifica o Filho. O título de “Mãe de Deus”, que hoje a liturgia ressalta, sublinha a missão única da Virgem Santa na história da salvação: missão que está na base do culto e da devoção que o povo cristão reserva a ela. Maria, de fato, não recebeu o dom de Deus somente para si mesma, mas para trazê-lo ao mundo: na sua virgindade fecunda, Deus deu aos homens os bens da salvação eterna (cf. Oração da Coleta). E Maria oferece continuamente a sua mediação ao Povo de Deus peregrino na história em direção à eternidade, como, antes, ofereceu aos pastores de Belém. Ela, que deu a vida terrena ao Filho de Deus, continua a dar aos homens a vida divina, que é Jesus mesmo e o seu Santo Espírito. Por isto, é considerada mãe de todo homem que nasce para a Graça e é invocada como Mãe da Igreja.
É em nome de Maria, mãe de Deus e dos homens, que desde o dia 1º de janeiro de 1968 se celebra em todo o mundo a Jornada Mundial da Paz. A paz é dom de Deus, como escutamos na primeira leitura: “O Senhor... te conceda a paz” (Nm 6, 26). Ela é o dom messiânico por excelência, o primeiro fruto da caridade que Jesus nos doou, é a nossa reconciliação e pacificação com Deus. A paz é também um valor humano a ser realizado no plano social e no político, mas tem suas raízes afundadas no mistério de Cristo (cf. Conc. Vat. II, Cost. Gaudium et spes, 77-90). Nesta solene celebração, por ocasião da quadragésima quarta Jornada Mundial da Paz, fico feliz de saudar os ilustres Senhores Embaixadores sediados na Santa Sé, com meus melhores votos por sua missão. Uma saudação cordial e fraterna ao meu Secretário de Estado e aos outros Responsáveis pelos Dicastérios da Cúria Romana, com particular pensamento pelo Presidente do Pontifício Conselho da Justiça e da Paz  e para seus colaboradores. Desejo manifestar a eles meu vivo reconhecimento pelo empenho cotidiano em favor de uma convivência pacífica entre os povos e pela formação sempre mais sólida de uma consciência de paz na Igreja e no mundo. Nesta perspectiva, a comunidade eclesial está sempre mais empenhada a agir, segundo as indicações do Magistério, no sentido de oferecer um seguro patrimônio espiritual de valores e de princípios na contínua busca pela paz.
Quis recordar em minha Mensagem pela Jornada que celebramos hoje, intitulada “Liberdade religiosa, caminho para a paz”: “O mundo precisa de Deus. Precisa de valores éticos e espirituais, universais e compartilhados, e a religião pode oferecer uma contribuição preciosa para esta busca, para a construção de uma ordem social e internacional justa e pacífica” (n. 15). Sublinhei, por isso, que “a liberdade religiosa é elemento imprescindível de um Estado de direito; não podemos negar isso sem atacar, ao mesmo tempo, todos os direitos e as liberdades fundamentais, que são sua síntese e vértice” (n. 5).
A humanidade não pode se mostrar resignada pela força negativa do egoísmo e da violência; não deve se habituar com os conflitos que provocam vítimas e colocam em risco o futuro dos povos. Diante das ameaçadoras tensões do momento, diante especialmente das discriminações, dos abusos e das intolerâncias religiosas, que hoje tocam especialmente os cristãos (cf. ibid., 1), ainda uma vez dirijo um urgente apelo a não ceder ao desconforto e à resignação. Exorto a todos a rezarem para que cheguem a bom termo os esforços empreendidos por muitos no sentido de promover e construir a paz no mundo. Para esta difícil tarefa não bastam as palavras, é preciso o empenho concreto e constante dos responsáveis das nações, mas é necessário sobretudo que cada pessoa se sinta animada pelo autêntico espírito da paz, que deve ser implorada sempre de novo na oração e vivida nas relações cotidianas, em cada ambiente.
Nesta celebração eucarística, temos diante dos olhos, para a nossa veneração, a imagem de Nossa Senhora do Sacro Monte de Viggiano, tão cara aos povos da Basilicata. A Virgem Maria nos dá o seu Filho, nos mostra o rosto do seu Filho, Príncipe da Paz: que ela nos ajude a permanecer na luz deste rosto, que brilha sobre nós (cf. Nm 6, 25), para redescobrir toda a ternura de Deus Pai; que ela nos sustente na invocação do Espírito Sano, para que se renove a face da terra e se transformem os corações, tirando deles a dureza diante da bondade desarmante do Menino que nasceu para nós. A Mãe de Deus nos acompanhe neste novo ano; obtenha para nós e para o mundo inteiro o desejado dom da paz. Amém.

* Texto retirado do site do Vaticano, do dia 1o de janeiro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 172

Asunción, 20 de dezembro de 2010.

Caros amigos,
No jornal local “Ultima Hora” foi publicado este artigo assinado pelo jornalista Cristian Cantero.
Desejo a todos um Bom Natal!!!

“No meio do correio eletrônico e dos votos de Natal e tantos outros cumprimentos, encontrei um que me chamou a atenção pelo seu título ‘De zero a um’.
Lendo o conteúdo, descobri que se trata de uma associação sem fins lucrativos, fundadas por amigos do Padre Aldo Trento, para ajudar as obras que se desenvolvem na paróquia San Rafael, neste caso em particular da Casinha de Belém. Para relatar a história da origem desta denominação, Padre Aldo, um dia, disse que, tendo recebido os boletins escolares de seus ‘filhos’ da Casinha de Belém, deu-se conta de que quase todos tinha tomado bomba; e, então, pensou que, ao invés de chamar a atenção deles e censurá-los, como qualquer pai de família faria, deveria organizar uma festa.
Segundo o relato do mesmo Padre Aldo, ele disse aos garotos naquele momento: ‘Meus filhos, eu os cumprimento porque a coisa mais importante da vida não é ter nota 5; ou seja, vocês eram considerados ‘ninguém’ e passaram a ser protagonistas da própria vida!’.
Para entender isto, é necessário recordar quem são estas crianças recolhidas por Padre Aldo: estão com ele porque foram abandonadas pelas suas famílias e esquecidas pela sociedade. Alguns são filhos órfãos dos doentes de AIDS que morreram na clínica Divina Providência ‘São Riccardo Pampurri’.
Poder-se-ia dizer que são crianças a quem a vida deu uma segunda oportunidade, por que encontraram um lugar, um lar, onde são valorizados e tratados com dignidade; um lugar onde aprendem a ser protagonistas da própria vida.
No mundo onde os parâmetros com os quais se medem as pessoas são o êxito, o poder, o dinheiro ou a fama a que se pode chegar, escutar ou ler histórias deste tipo nos permite compreender qual é o valor e o sentido verdadeiro da vida.
Tantas vezes, os pais nos preocupamos demais com o assegiurar o bem-estar material aos nossos filhos, reduzindo a educação à simples instrução ou à transmissão de dados, e é por isso que nos habituamos a medir a capacidade das crianças a partir dos resultados que obtêm, como se fosse uma simples fórmula matemática.
Mas, educar é muito mais ajudar uma pessoa a se tornar verdadeiramente homem. qualquer pessoa pode gerar filhos, mas poucos são aqueles que educam verdadeiramente os próprios filhos, isto quer dizer que o educam a enfrentar a vida, as circunstâncias de modo adequado e razoável. Se queremos educar, devemos respeitar e usar a razão e a liberdade dos nossos filhos, conscientes de que são pessoas diferentes de nós; o seu futuro não nos pertence.
É revelador o testemunho do psiquiatra vienense Viktor Frankl, que contava a confidência que um estudante americano lhe fez: ‘Tenho 22 anos, sou graduado, tenho um carro de luxo, sou economicamente independente, e tenho à disposição mais sexo e prestígio do que eu precisaria. Mas, apesar de tudo isso, me pergunto: que sentido tem ter tudo isto?’.
A educação verdadeira é ajudar a pessoa a entender o sentido da realidade em geral e o seu significado último. Mas, para fazer isto, é preciso que existam genitores que se deixem educar mesmo se tiverem 50 anos! Porque este processo dura a vida inteira e ninguém nunca termina de aprender. Como disse Padre Aldo, ‘apenas a partir da experiência de um abraço humano é que o meu eu desperta, se comove e se move’. E, assim, se converte em um desafio o passar de zero a um.
Cristian Cantero”

Ciao
Padre Aldo

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Cartas do P.e Aldo 170





Asunción, 2 de dezembro de 2010.

“E agora, eis o que diz o Senhor, aquele que te criou, Jacó, e te formou, Israel: Nada temas, pois eu te resgato, eu te chamo pelo nome, és meu. Se tiveres de atravessar a água, estarei contigo. E os rios não te submergirão; se caminhares pelo fogo, não te queimarás, e a chama não te consumirá. Pois eu sou o Senhor, teu Deus, o Santo de Israel, teu salvador. (...) Porque és precioso a meus olhos, porque eu te aprecio e te amo. Fica, tranqüilo, pois estou contigo” (Is 43, 1-5).

Como não chorar de comoção lendo estas palavra de Isaías? É Deus que fala a mim e a você e aos meus filhinhos, mais bonitos do que o sol e as estrelas, e do que as minhas Dolomitas.
Olhem os meus dois filhos que, aproveitando da ausência momentânea da enfermeira, conseguiram juntar suas duas camas... e vejam como “brincam” entre si.
Eles são gravemente deficientes, e no entanto entre eles há uma linguagem, uma comunicação que nasce da evidência que, para eles, aquilo que Isaías disse é uma experiência
Assim como é uma experiência para o meu pequeno Victor que não pode ficar sem Mário e Aldo. Parece um bonequinho de cera, todo machucado, e porém é Jesus sobre a cruz que, há dois anos, geme e sofre pelos meus e pelos pecados de vocês.
Viver aquilo que Giussani disse quando falava do sacrifício (o primeiro ponto, item “c” da Escola de Comunidade: “quando o sacrifício se torna um valor para a vida do homem”) e olhar estes meus filhinhos, me faz perceber, cada dia mais, a graça, o valor objetivo, o dom que é o “monstro”, o “repugnante” (são as palavras que Giussani usa) sacrifício, dor, que somente na cruz de Jesus, onde as minhas crianças estão pregadas, encontra o seu único e verdadeiro significado.
Ciao
Padre Aldo

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

David Foster Wallace: a outra face das coisas


Por Linda Stroppa

No último dia 15 de novembro, um encontro do ciclo “Ex Cathedra” enfrentou um dos maiores escritores americanos. Que nunca deu nada por óbvio. Fazendo emergir, de uma partida de tênis ou de uma fila de carros na estrada, a grandeza do homem

Aquilo que faz de Foster Wallace um grande escritor não é a inteligência ou o estilo. Mas, “num certo sentido, poderíamos falar de piedade. Por si, antes de tudo”. Quem disse foi Luca Doninelli, jornalista e escritor, leitor apaixonado de David Foster Wallace, “um dos maiores autores que a América deu ao mundo”. Originário de meio-oeste, nascido no ano de 1962, morreu em 2008. “Professor de literatura e tenista sem sucesso”: basta isso para apresentá-lo. O resto emerge dos seus contos.
E foi assim o dia 15 de novembro, quando, no ciclo de encontros “Ex Cathedra”, promovido pela Fundação Vita e pela Associação Testori, Luca Doninelli e a atriz Danielle Sassoon deram voz às palavras de This is water (conto não traduzido em língua portuguesa; ndt): a saudação – e o convite – dirigido pelo escrito norteamericano aos formandos do Kenyon College, em Ohio.
Era o ano de 2005. Foster Wallace subiu ao palco. Parabenizou apressadamente os estudantes. E, em seguida, começou. “Há dois jovens peixes que nadam”, assim deu início ao discurso, “e, num certo ponto, encontram um peixe ancião que está nadando na direção oposta, acena saudando-os e diz: ‘Salve, rapazes. Como está a água?’. Os dois jovens peixes nadam um pouco mais, depois um olha para o outro e diz: ‘Mas, que diabos é a água?’”. Dez segundos de silêncio. Onde estava o tom acadêmico? Não estava citando nenhum grande mestre. Surgiram perguntas.
Foi o autor mesmo quem esclareceu as ideias: “As realidades mais óbvias, onipresentes, são frequentemente as mais difíceis de entender”. Uma banalidade, mas apenas aparentemente. Não há nada de óbvio. Foster Wallace nos pega pela mão e nos mostra isso. Seguem-se páginas comoventes: são uma advertência aos seus estudantes, que ainda não sabem o que é que está em jogo. Quanto à vida. “A educação que se deveria receber na universidade”, diz, “não diz tanto respeito à capacidade de pensar, mas muito mais à faculdade de escolher o que pensar”. Segundo obviedade aparente. Mas que, graças à pena irônica, Foster Wallace declina. Até levar o leitor a uma alternativa. Clara. Diante da rotina congelante do “dia após dia”, feita de “intermináveis filas no supermercado e intermináveis filas nas estradas”, podemos escolher. Eis a grandeza do homem.
Podemos escolher ficar perenemente aborrecidos nas “bobagens frustrantes do cotidiano”, ou então... Há um “ou então”. A outra face das coisas. Segunda pausa de silêncio. Em seguida, a conclusão: “Depende do que vocês querem levar em consideração”. Ou seja, dependa do que vocês desejam: do que vocês escolhem venerar. “Porque, para bem dizer – continua o escritor – no mundo dos adultos o ateísmo não existe”. E as alternativas, às vezes, não são possíveis, mas sagradas. Tudo depende do fato de vencer ou não a “modalidade predefinida”, a inconsciência do deixar-se viver. Se é assim, estamos ferrados. Porque “o aspecto traiçoeiro de algumas escolhas não é que sejam malvadas ou pecaminosas. É que sejam inconscientes, e ponto final”.
Foster Wallace é categórico. Como no romance Infinite Jest (também sem tradução para o português; ndt) e nos outros contos que ele escreveu. Ele só dá aquilo que pode oferecer: a si mesmo. “Para ele, a literatura é um modo de entregar-se inteiro aos outros”, explica Doninelli. “E não pergunta qual deve ser a resposta, mas exige que se responda”. O que implica numa escolha. É este o augúrio que dirige a seus estudantes. Para que aprendam a julgar. Se esta é a água.

* Texto extraído de Tracce.it, do dia 18 de novembro de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Há um iluminismo “politicamente incorreto” que faz bem à democracia


Por Sergio Belardinelli

Duas são as questões em torno das quais gira, fundamentalmente, L’altro Illuminismo. Política, religione e funzione pubblica della verità [O outro Iluminismo. Política, religião e função pública da verdade, ainda não traduzido para o português, cujo autor é Sergio Belardinelli; ndt]: a relativa à verdade no debate público e a relativa à identidade do Ocidente. É notável que na cultura hodierna, sobretudo naquela mais inclinada a se apresentar como “iluminista” e “iluminada”, poucos conceitos são tão desacreditados como o conceito de verdade, considerado superado, perigoso para o pluralismo, para a liberdade e para as instituições liberal-democráticas. No livro, tenta-se recordar, pelo contrário, como Iluminismo e cultura política moderna são filhos principalmente de uma razão apaixonada pela verdade.
Pelo fato de viver em um contexto sociocultural marcado pela presença de diversas opiniões acerca daquilo que é verdadeiro e justo, e de tomarmos nossas decisões políticas sempre a partir da maioria, ficamos erroneamente convencidos de que a uma opinião é tão boa como outra; tornamo-nos relativistas, com a convicção de que isso é o melhor modo para sermos tolerantes. Aos crentes se pede, não por acaso, que vivam “como se Deus não existisse”.
Mas, isto significa apenas colocar uma má filosofia na base de uma prática excelente como é a prática democrática que, a longo prazo, poderia ser esvaziada. As nossas decisões políticas são tomadas pela maioria, não porque a verdade não exista, mas simplesmente porque, graças a uma certa ideia que temos do homem e da sua incomensurável dignidade, é muito melhor uma decisão errada tomada com o consenso da maioria do que uma decisão justa imposta com a força.
Isto, pelo menos, deveria estar bem claro para todos aqueles que aprenderam a colocar a liberdade e a dignidade dos homens em primeiro lugar. De resto, uma verdade que seja incapaz de suportar não ser reconhecida, ser ofendida, digamos mesmo crucificada, não seria de um tipo suficientemente robusto. Muito diferente de relativismo ou “viver como se Deus não existisse”.
A recuperação do pathos iluminista (e religioso) pela verdade, uma verdade que, em última instância, nos é revelada, da qual não somos senhores, que podemos aceitar ou não aceitar, mas que permanece, de qualquer maneira, indisponível, constitui, segundo penso, a melhor estratégia para subtrair o debate público entre crentes e não crentes da sua derivação em incomunicabilidade, e para restaurar o justo vigor do pluralismo, da liberdade, da tolerância e da laicidade mesma.
Tanto mais as questões são espinhosas e tanto mais se faz necessário raciocinar acerca delas com o respeito de todos, sem preconceitos, mas também com a confiança de que os bons argumentos prevalecerão sobre os menos bons. Esta deveria ser a consciência de um Iluminismo que consiga construir sobre a secularização, colocando-se fora daquele que pode ser seu resultado mais extremo: o niilismo. 
Outro tema relevante do livro é o da identidade. Um lugar comum bastante difundido quer que o nosso mundo ocidental coloque-se, a partir de agora, no caminho do relativismo multiculturalista, convencido de que este seja o único modo para enfrentar os desafios da globalização e o confronto com culturas diferentes da nossa, sem ceder ao fanatismo e à violência.
No livro, procura-se mostrar que se trata de um erro gravíssimo, que, além de danificar os ocidentais, danificará também os “outros”, alimentando exatamente aquele fanatismo que queremos evitar. Não é passando-se de “ninguém” que estaremos favorecendo o encontro e o diálogo entre culturas diferentes e frequentemente hostis. Mas, o erro, pelo menos segundo penso, se explica com a remoção da dimensão universalista que está por trás das grandes bandeiras da identidade ocidental: razão, verdade, liberdade, justiça, dignidade do homem. retirada esta dimensão universalista, o confronto racional e intercultural se reduz a mero “jogo linguístico”, um artifício verbal para dizer simplesmente que não sabemos mais o que devemos carregar, cada vez mais pendurados à beira da ideologia.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 31 de agosto de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.