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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

JMJ: a silenciosa semeadura do Senhor na contemporaneidade



Viagem Apostólica a Madri
Por ocasião da XXVI Jornada Mundial da Juventude
18 a 21 de agosto de 2011

Entrevista concedida pelo Santo Padre Bento XVI
aos jornalistas durante o voo para Madri

Voo Papal
Quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Padre Lombardi: Santidade, bem-vindo entre nós, muito obrigado por nos conceder, como é comum, este breve encontro durante o voo de ida. A “comunidade volante” dos jornalistas, aqui, é composta por 56 pessoas de vários países, mas os jornalistas que o esperam em Madri são mais de 4 mil. É um recorde para a Espanha e também se considerarmos os eventos mundiais. Todos nos comprometemos, naturalmente, a ecoar adequadamente suas palavras neste belíssimo acontecimento. Como é comum, proponho algumas perguntas que me foram dadas, há alguns dias, pelos jornalistas aqui presentes.

Santo Padre, estamos na 26ª Jornada Mundial da Juventude, a 12ª celebrada com um grande encontro mundial. João Paulo II, que as inventou, agora é Beato, e é o Protetor Oficial desta JMJ de Madri. No início do seu Pontificado, nos perguntávamos se o senhor iria continuar a linha do seu Predecessor. Agora, o senhor já está na sua terceira Jornada Mundial, depois de Colônia e de Sydney. Como o senhor vê o significado destes eventos na “estratégia” pastoral da Igreja universal no Terceiro Milênio?

Santo Padre: Caros amigos, bom dia! Fico contente de ir convosco para a Espanha por ocasião deste grande acontecimento. Depois de duas JMJ vividas também pessoalmente, posso apenas dizer que foi realmente uma inspiração a que foi dada ao Papa João Paulo II, quando criou esta realidade de um grande encontro dos jovens e do mundo com o Senhor. Eu diria que estas JMJ são um sinal, uma cascata de luz; dão visibilidade para a fé, visibilidade para a presença de Deus no mundo e criam, assim, a coragem de ser crente. Frequentemente os crentes se sentem isolados neste mundo, quase perdidos. Aqui, veem que não estão sozinhos, que há uma grande rede de fé, uma grande comunidade de crentes no mundo, que é belo viver nesta amizade universal. E, assim, me parece, nascem amizades, amizades que ultrapassam os confins das diversas culturas, dos diversos países. E este nascimento de uma rede universal de amizade, que liga o mundo e Deus, é uma importante realidade para o futuro da humanidade, para a vida da humanidade de hoje. Naturalmente, a JMJ não pode ser um acontecimento isolado: faz parte de um caminho maior, é preparado por este caminho da Cruz que passa por diversos países e já une jovens sob o sinal da Cruz e do maravilhoso sinal de Nossa Senhora. E assim a preparação da JMJ é muito mais que preparação técnica de um acontecimento com tantos problemas técnicos, naturalmente; é uma preparação interior, um colocar-se em caminho em direção aos outros, juntos rumo a Deus. E também, na sequência, após o estabelecimento de grupos de amizade, manter este contato universal que abre as fronteiras das culturas, dos contrastes humanos, religiosos, e assim é um caminho contínuo que guia a um novo vértice, a uma nova JMJ. Parece-me, neste sentido, que é preciso ver a JMJ como sinal, parte de um grande caminho; cria amizades, abre fronteiras e torna visível o fato de que é bonito estar com Deus, que Deus está conosco. Neste sentido, queremos dar continuidade a esta grande ideia do Beato Papa João Paulo II.

Padre Lombardi: Santidade, os tempos mudam. A Europa e o mundo ocidental em geral vivem uma crise econômica profunda, mas que também manifesta dimensões de grave inquietação social e moral e de grande incerteza pelo futuro, que se tornam particularmente dolorosas para os jovens. Nos dias passados vimos, por exemplo, os fatos acontecidos na Grã Bretanha, com desencadeamento de rebeliões ou de agressões. Ao mesmo tempo, há sinais de comprometimento generoso e entusiasmado, de voluntariado e de solidariedade, de jovens crentes e não crentes. Em Madri, encontraremos muitos jovens maravilhosos. Quais mensagens a Igreja pode dar para a esperança e o encorajamento dos jovens do mundo, sobretudo aqueles que, hoje, são tentados pelo desânimo e pela rebelião?

Santo Padre: Sim. Confirma-se, na atual crise econômica, aquilo que já havia aparecido na grande crise anterior, ou seja, que a dimensão ética não é algo exterior aos problemas econômicos, mas uma dimensão interior e fundamental. A economia não funciona apenas como uma autoregulamentação de mercado, mas precisa de uma razão ética para funcionar para o homem. E aparece outra vez aquilo que João Paulo II já havia dito na sua primeira encíclica social, isto é, que o homem deve ser o centro da economia e que a economia não deve ser medida segundo o proveito máximo, mas segundo o bem de todos, e que deve incluir a responsabilidade pelo outro e só funcionará verdadeiramente bem na medida em que funcionar de modo humano, respeitando o outro. E com as diversas dimensões: responsabilidade pela própria nação e não apenas por si mesmos; responsabilidade pelo mundo – também uma nação não está isolada, também a Europa não está isolada, mas é responsável por toda a humanidade e deve pensar nos problemas econômicos sempre a partir da responsabilidade pelas outras partes do mundo, por aquelas que sofrem, têm sede e fome, não têm futuro. E, portanto – terceira dimensão desta responsabilidade –, responsabilidade pelo futuro. Sabemos que é preciso proteger nosso planeta, mas devemos proteger – somando tudo – o funcionamento do serviço de trabalho econômico para todos e pensar que o amanhã é também o hoje. Se os jovens de hoje não encontram perspectivas na sua vida, também o nosso hoje é errado e “malvado”. Por isso, a Igreja, com a sua doutrina social, com a sua doutrina sobre a responsabilidade na relação com Deus, abre para a capacidade de renunciar ao proveito máximo e ver as coisas na dimensão humanista e religiosa, ou seja, ser um para o outro. Assim, novos caminhos podem se abrir. O grande número de voluntários que trabalham em diversos lugares do mundo, não para si, mas para o outro, e encontram exatamente assim o sentido da vida, demonstram que é possível fazer isto e que uma educação para estes grandes objetivos, como tenta fazer a Igreja, é fundamental para o nosso futuro.

Padre Lombardi: Santidade, os jovens do mundo de hoje vivem geralmente em ambientes multiculturais e multiconfessionais. A tolerância recíproca é mais necessária do que nunca. O senhor insiste sempre muito sobre o tema da verdade. O senhor não pensa que esta insistência sobre a verdade e sobre a única Verdade que é Cristo possa ser um problema para os jovens de hoje? Não acredita que esta insistência os dirija para a contraposição e para a dificuldade de dialogar e buscar junto com os outros?

Santo Padre: A vinculação entre verdade e intolerância, monoteísmo e incapacidade de diálogo com os outros, é um argumento que frequentemente retorna no debate sobre o cristianismo de hoje. E, naturalmente, é verdade que na história houve abusos, seja do conceito da verdade, seja do conceito do monoteísmo; mas foram abusos. A realidade é totalmente diferente. O argumento está errado, porque a verdade é acessível somente na medida em que há liberdade. Podem ser impostos, com violência, comportamentos, observâncias, atividades, mas não a verdade! A verdade se abre apenas para a liberdade, para o livre consentimento, e por isso liberdade e verdade são intimamente unidas, uma é condição para a outra. E, além do mais, buscar a verdade, os verdadeiros valores que dão vida e futuro, não tem alternativa: não queremos a mentira, não queremos o positivismo de normas impostas com uma certa força; somente os valores verdadeiro levam ao futuro, por isso, dizemos que é necessário buscar os valores verdadeiros e não permitir o arbítrio de alguns, não deixar que se fixe uma razão positivista que nos diz, acerca dos problemas éticos, dos grandes problemas do homem, que não existe uma verdade racional. Isto sim seria expor verdadeiramente o homem ao arbítrio daqueles que têm o poder. Devemos estar sempre em busca da verdade, dos verdadeiros valores; temos um núcleo nos valores, nos direitos humanos fundamentais; outros elementos fundamentais semelhantes são reconhecidos e, exatamente eles, nos permitem um diálogo uns com os outros. A verdade como tal é dialógica porque tenta conhecer melhor, entender melhor e o faz em diálogo com os outros. Assim, buscar a verdade e a dignidade do homem é a maior defesa da liberdade.

Padre Lombardi: Uma última pergunta, Santidade. As Jornadas Mundiais da Juventude são um tempo muito bonito e suscitam muitos entusiasmos, mas os jovens, depois, voltam para suas casas e encontram de novo um mundo no qual a prática religiosa está diminuindo cada vez mais fortemente. Muitos deles, provavelmente, não serão mais vistos na igreja. Como é possível dar continuidade aos frutos das Jornadas Mundiais da Juventude? O senhor acredita que, efetivamente, elas deem frutos de longa duração, para além dos momentos de grande entusiasmo?

Santo Padre: Deus sempre semeia silenciosamente, nunca aparece imediatamente nas estatísticas. E com a semente que o Senhor coloca na terra com as JMJ, acontece como a semente de que Ele fala no Evangelho: algumas caem no caminho e se perdem; outras caem sobre a pedra e se perdem; outras caem entre os espinhos e se perdem; mas algumas caem em terra boa e produzem muitos frutos. Exatamente assim é a semeadura da JMJ: muito se perde – e isto é humano. Com outras palavras do Senhor: o grão de mostarda é pequeno, mas cresce e se torna uma grande árvore. Com outras palavras ainda: certamente, muito se perde, e não podemos dizer que a partir de amanhã recomeça um grande crescimento da Igreja. Deus não age assim. Mas, cresce em silêncio e cresce muito. Sei das outras JMJ que muitas amizades nasceram, amizades para uma vida inteira; tantas novas experiências. E é sobre este crescimento silencioso que colocamos nossa confiança e estamos seguros, mesmo que as estatísticas não falem muito... a semente do Senhor realmente cresce e será, para muitas pessoas, o início de uma amizade com Deus e com outros, de uma universalidade do pensamento, de uma responsabilidade comum que realmente nos mostra que estes dias trazem frutos. Obrigado!

Padre Lombardi: Obrigado ao senhor, Santidade, por esta conversa que já nos orienta rumo aos temas essenciais destes dias belíssimos. Desejamos ao senhor, naturalmente, que estes dias sejam – não obstante o calor – cheios de alegria e de satisfação. Porém, antes de deixar o senhor retornar ao seu lugar, queria dizer que também para a nossa comunidade hoje é um dia de festa, porque há uma das nossas decanas, uma que fez todas as viagens de João Paulo II e todas as do senhor, exceto uma, porque não estava muito bem, e que hoje está fazendo aniversário. Os anos são naturalmente poucos, mesmo que as viagens tenham sido tantas. Trata-se de Paloma Gómez Borrero a quem felicitamos junto como senhor.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 18 de agosto de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sábado, 25 de junho de 2011

Da Eucaristia deriva o sentido profundo da presença social da Igreja

Santa Missa na Solenidade do Corpus Christi

Homilia do Santo Padre Bento XVI

Basílica de São João de Latrão
Quinta-feira, 23 de junho de 2011

Caros irmãos e irmãs,
A festa do Corpus Christi é inseparável da Quinta-feira Santa, da Missa de Lava-pés, na qual se celebra solenemente a instituição da Eucaristia. Enquanto que na noite de Quinta-feira Santa se revive o mistério de Cristo que se oferece a nós no pão partido e no vinho derramado, hoje, na festa do Corpus Christi, este mesmo mistérios é proposta para a adoração e para a meditação do Povo de Deus, e o Santíssimo Sacramento é levado em procissão pelas ruas das cidades e dos vilarejos, para manifestar que Cristo ressuscitado caminha em meio a nós e nos guia para o Reino dos céus. Aquilo que Jesus nos deu na intimidade do Cenáculo, hoje é manifestado abertamente, porque o amor de Cristo não é reservado a alguns, mas é destinado a todos. Na Missa do Lava-pés da última Quinta-feira Santa sublinhei que, na Eucaristia, acontece a transformação dos dons desta terra – o pão e o vinho – com a finalidade de transformar a nossa vida e inaugurar assim a transformação do mundo. Nesta noite, gostaria de retomar esta perspectiva.
Tudo parte, se poderia dizer, do coração de Cristo, que, na Última Ceia, na vigília da Sua paixão, agradeceu e louvou a Deus e, fazendo assim, com a potência do Seu amor, transformou o sentido da morte para a qual se encaminhava. O fato de o Sacramento do Altar ter assumido o nome “Eucaristia” – “ação de graças” – exprime exatamente isto: que a mudança da substância do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Cristo é fruto do dom que Cristo fez de si mesmo, dom de um Amor mais forte do que a morte, Amor divino que o fez ressuscitar dos mortos. Eis porque a Eucaristia é alimento de vida eterna, Pão da vida. Do coração de cristo, da sua “oração eucarística” até a vigília da paixão, brota aquele dinamismo que transforma a realidade nas suas dimensões cósmica, humana e histórica. Tudo procede de Deus, da onipotência do Seu Amor Uno e Trino, encarnado em Jesus. Neste Amor está imerso o coração de Cristo; por isso, Ele sabe agradecer e louvar a Deus mesmo diante da traição e da violência, e deste modo muda as coisas, as pessoas e o mundo.
Esta transformação é possível graças a uma comunhão mais forte do que a divisão, a comunhão de Deus mesmo. A palavra “comunhão”, que usamos também para designar a Eucaristia, resume em si a dimensão vertical e a horizontal do dom de Cristo. É bela e muito eloquente a expressão “receber a comunhão” referida no ato de comer o Pão eucarístico. Com efeito, quando realizamos este ato, entramos em comunhão com a vida mesma de Jesus, no dinamismo desta vida que se doa a nós e para nós. De Deus, através de Jesus, até a nós: uma única comunhão se transmite na Santa Eucaristia. Escutamos isto há pouco, na segunda Leitura, das palavras do apóstolo Paulo dirigidas aos cristãos de Corinto: “O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão” (1Cor 10, 16-17).
Santo Agostinho nos ajuda a compreender a dinâmica da comunhão eucarística quando faz referência a uma espécie de visão que teve, na qual Jesus lhe disse: “Eu sou o alimento dos fortes. Cresce e me terás. Tu não me transformarás em ti, como o alimento do corpo, mas serás tu que serás transformado em mim” (Conf. VII, 10, 18). Enquanto, portanto, o alimento corporal é assimilado pelo nosso organismo e contribui para o nosso sustento, no caso da Eucaristia trata-se de um Pão diferente: não somos nós a assimilá-lo, mas ele nos assimila a si, de forma que nos tornamos conformes a Jesus Cristo, membro do seu corpo, uma coisa só com Ele. Esta passagem é decisiva. De fato, exatamente porque é Cristo que, na comunhão eucarística, nos transforma em Si, a nossa individualidade, neste encontro, é aberta, liberada do seu egocentrismo e inserida na Pessoa de Jesus, que, por sua vez, é imersa na comunhão trinitária. Assim, a Eucaristia, na medida em que nos une a Cristo, nos abre também aos outros, nos torna membros uns dos outros: não somos mais divididos, mas uma única coisa nEle. A comunhão eucarística me une à pessoa que tenho ao meu lado, e com a qual talvez não tenho nem mesmo um bom relacionamento, mas também aos irmãos distantes, em todas as partes do mundo. Disto, da Eucaristia, deriva portanto o sentido profundo da presença social da Igreja, como testemunham os grandes Santos sociais, que foram sempre grandes almas eucarísticas. Quem reconhece Jesus na Hóstia Santa, O reconhece no irmão que sofre, que tem fome e sede, que é estrangeiro, que está nu, doente, preso; e fica atento a toda pessoa, se compromete, de modo concreto, com todos aqueles que estão em necessidade. Do dom de amor de Cristo provém portanto a nossa especial responsabilidade de cristãos na construção de uma sociedade solidária, justa, fraterna. Especialmente no nosso tempo, no qual a globalização nos torna cada vez mais dependentes uns dos outros, o Cristianismo pode e deve agir de modo que esta unidade não se construa sem Deus, ou seja, sem o verdadeiro Amor, o que daria espaço para confusão, para o individualismo, para o abuso de todos contra todos. O Evangelho mira, desde sempre, para a unidade da família humana, uma unidade não imposta de fora, nem por interesses ideológicos ou econômicos, mas a partir do sentido de responsabilidade de uns pelos outros, porque nos reconhecemos membros de um mesmo corpo, do corpo de Cristo, porque aprendemos e continuamos a aprender constantemente do Sacramento do Altar que a partilha, o amor é a vida da verdadeira justiça.
Voltemos, agora, ao ato de Jesus na Última Ceia. O que aconteceu naquele momento? Quando Ele disse: Este é o meu corpo que é dado por vós, este é o meu sangue derramado por vós e por todos, o que acontece? Jesus, neste gesto, antecipa o evento do Calvário. Ele aceita, por amor, toda a paixão, com o sofrimento e a violência que ela carrega, até à morte de cruz; aceitando-a deste modo a transforma num ato de doação. Esta é a transformação de que o mundo mais precisa, porque o redime por dentro, o abre às dimensões do Reino dos céus. Mas esta renovação do mundo Deus quer realizar sempre através do mesmo caminho seguido por Cristo, aquele caminho, antes, que é Ele mesmo. Não há nada de mágico no Cristianismo. Não há atalhos, mas tudo passa através da lógica humilde e paciente do grão de trigo que morre para dar vida, a lógica da fé que transporta montanhas com a força suave de Deus. Por isto, Deus quer continuar a renovar a humanidade, a história e o cosmo através desta cadeia de transformações, de que a Eucaristia é o sacramento. Mediante o pão e o vinho consagrados, nos quais está realmente presente o Seu Corpo e Sangue, Cristo nos transforma, assimilando-nos a Ele: nos envolve na Sua obra de redenção, tornando-nos capazes, pela graça do Espírito Santo, de viver segundo a mesma lógica de doação, como grãos de trigo unidos a Ele e nEle. Assim, semeia-se e amadurecem nos sulcos da história a unidade e a paz, que são o fim para o qual tendemos, segundo o desígnio de Deus.
Sem ilusões, sem utopias ideológicas, caminhamos pelas estradas do mundo, carregando dentro de nós o Corpo do Senhor, como a Virgem Maria no mistério da Visitação. Com a humildade de nos sabermos simples grãos de trigo, custodiemos a firme certeza de que o amor de Deus, encarnado em Cristo, é mais forte do que o mal, do que a violência e do que a morte. Saibamos que Deus prepara para todos os homens céus novos e terra nova, nos quais reinam a paz e a justiça – e na fé entrevemos o mundo novo, que é a nossa verdadeira pátria. Também nesta noite, enquanto o sol se põe nesta nossa amada cidade de Roma, coloquemo-nos em caminho: conosco está Jesus Eucaristia, o Ressuscitado, que disse “Eu estou convosco todos os dias, até ao fim do mundo” (Mt 28, 20). Obrigado, Senhor Jesus! Obrigado pela Tua fidelidade, que sustenta a nossa esperança. Fica conosco, porque a noite já está caindo. “Bom Pastor, verdadeiro Pão, ó Jesus, piedade de nós; nutre-nos, defende-nos, leva-nos aos bens eternos, na terra dos viventes!”. Amém.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 23 de junho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Mais sociedade faz bem para o Estado!

por Luigi Giussani

“Não consigo encontrar, como ser humano, uma outra razão para essa dignidade do homem, perante a qual tudo se deve curvar, ou em função da qual tudo se deve mover; até mesmo, e sobretudo, a vida em sociedade; do contrário, a afirmação do indivíduo e a afirmação da pessoa não passariam de uma violência voluntarista.
A estrutura social deve servir a essa estrutura humana (e não o contrário), na organicidade, embora trabalhosa, a ser imaginada e a ser preservada. Ora, de fato, constituindo a maior riqueza que o homem pode usar na existência, o poder tende a se interessar por aquilo que sustenta a si mesmo, tende a se automanter. Portanto, não se interessa tanto pelo homem, ou é tentado a não se interessar pelo homem, mas pelas suas reações, porque pode organizá-las num programa e suscitá-las conforme determinada linha.
Enfim, o poder tem a tentação de governar minuciosamente as reações do homem, e quanto mais se desenvolvem com habilidade os instrumentos de relação coletiva, mais essa possibilidade cresce. A estrutura social tende a admitir as exigências funcionais ao status quo, ou então a um projeto, a um programa, digamos, revolucionário, que derrube o status quo.
A insistência nos “valores comuns”, por exemplo, parece-me um jogo para rebaixar, uma tentativa de homologação que leve a obliterar e a cancelar as diferenças incômodas, e com isso, em última instância, as identidades reais. Assim, parece impossível que pertencer a um poder imanente a um determinado momento histórico não faça agir de modo potencialmente antitético ao valor originário da pessoa. É aqui que o poder se toma abuso de poder, a menos que ele seja continuamente contestado; é na vigilância e na colaboração para isso, a meu ver, que consiste a democracia verdadeira e viva.
O problema é análogo ao que ocorre na relação entre uma pessoa auto consciente e o seu Destino: se a pessoa não for continuamente provocada, a própria sujeição e a funcionalidade ao Destino serão impossíveis. É impossível a ela passar uma hora sem ser contradita da, sem se corromper seu caminho! Há como que uma força de gravidade sufocando todos os ímpetos, até os mais ideais;. enquanto estes se desenvolvem, aquela força já os dobra a uma posição oposta ao próprio ímpeto.
Portanto, somente parece-me possível o poder da sociedade não contradizer o ímpeto original da pessoa se, em coro, o poder for contestado, avaliado e acompanhado por formas de colaboração. Somente com a vigilância do povo o poder não se torna abuso de poder.
A democracia nasce como diálogo e colaboração entre entidades humanas que se estimam enquanto identidades precisas, e se respeitam não porque estabelecem limites entre si, mas pelo imperscrutável Destino da diferença, que é “caminho diferente para o destino comum”, como dizia Pascoli.
É nesse sentido que um espírito autenticamente religioso não pode deixar de ser autenticamente democrático. Mas sem esse olhar, ou sem essa perspectiva do Mistério inerente a toda presença, não sei se o homem é capaz de aceder àquela “veneração” pela qual é alimentada a estima, a própria mortificação na convivência, a capacidade de colaboração, a vigilância vivida em comum.
Interessa-me observar que, antes de mais nada, não podemos aceitar exclusivamente aquilo que consideramos possível, tolerável, legítimo. Resistir a essa sub-reptícia limitação não é fácil (digo”sub-reptícia”, pois acredito que normalmente se desenvolve, pelo menos nas origens, de forma inconsciente); mas resistir a essa sub-reptícia limitação que permite e aceita no outro somente aquilo que se considera possível, tolerável, legítimo significa, evidentemente, destruir uma fascinante diferença. É preciso conviver com a concepção antropológica e social que a pessoa tem.
Nesse sentido, há uma outra decorrência que é interessante salientar: creio que quem detém o poder não pode ter como objetivo deter todo o poder. Um pluralismo verdadeiro deve permitira expressão da pessoa também nas suas dimensões culturais e sociais, e, portanto, associativas: é uma terceira decorrência sugerida na Mater et magistra, de João XXIII, que inclui, entre os direitos fundamentais do homem, o direito à associação (MM, nn. 52-53; cf. PT, n. 11).
Isto me introduz no último pensamento que gostaria de lembrar: se a dignidade do homem vem daquele núcleo originário que não deriva de seu pai e de sua mãe, nem do conjunto dos antecedentes dos quais eles são função e instrumento; se a dignidade do homem consiste na relação com um quid último, quese condensa e se expressa - condensa-se metafisicamente e expressa-se existencialmente - em exigências e em desejos infinitos; se, portanto, uma convivência deve, antes de tudo, partir do respeito à identidade dos outros, essas exigências, esses desejos estimulam o homem a organizar estruturas que lhes sejam respostas. Essas exigências e esses desejos, com efeito, tanto mais estimularão o homem quanto mais intensa for a consciência da exigência do desejo, e levá-lo-ão a construir uma obra, como tentativa de realizar uma estrutura que facilite e torne estável a resposta às suas exigências. Para o homem, é impossível não procurar algumas afinidades, não buscar uma companhia, e é nesse sentido que o valor associativo se torna também eminentemente operativo.
O ponto fundamental para julgar o relacionamento entre pessoa (ou liberdade) e poder (sociedade e poder) é exatamente este: que a sociedade seja guiada de tal modo que a força do poder, antes de tudo, seja utilizada para facilitar, valorizar, intensificar a obra – uma ou várias – que tende a originar-se do indivíduo, sobretudo do indivíduo associado.
Por isso, sempre insisti na fórmula segundo a qual um verdadeiro governo do povo, de uma sociedade humanamente viva, deve, acima de tudo, favorecer a criatividade da base, só intervindo (conforme o conclamado “princípio de subsidiariedade” da Doutrina Social da Igreja) para realizar, sustentar e, eventualmente, criar aquilo que ainda não foi pensado na atividade dos homens conscientes e vivos. “Mais sociedade, menos Estado!” não significa de modo algum encobrir o valor do Estado, mas simplesmente mostrar ao Estado o horizonte último da sua atividade: ajudar o homem, cada homem, a caminhar rumo ao seu Destino, com toda a produtividade e, por isso, com a utilidade, em todos os sentidos, de que a Natureza o tornou capaz”.

* Trecho de O eu, o poder, as obras, de Luigi Giussani.