quarta-feira, 1 de novembro de 2006

Mais sociedade faz bem para o Estado!

por Luigi Giussani

“Não consigo encontrar, como ser humano, uma outra razão para essa dignidade do homem, perante a qual tudo se deve curvar, ou em função da qual tudo se deve mover; até mesmo, e sobretudo, a vida em sociedade; do contrário, a afirmação do indivíduo e a afirmação da pessoa não passariam de uma violência voluntarista.
A estrutura social deve servir a essa estrutura humana (e não o contrário), na organicidade, embora trabalhosa, a ser imaginada e a ser preservada. Ora, de fato, constituindo a maior riqueza que o homem pode usar na existência, o poder tende a se interessar por aquilo que sustenta a si mesmo, tende a se automanter. Portanto, não se interessa tanto pelo homem, ou é tentado a não se interessar pelo homem, mas pelas suas reações, porque pode organizá-las num programa e suscitá-las conforme determinada linha.
Enfim, o poder tem a tentação de governar minuciosamente as reações do homem, e quanto mais se desenvolvem com habilidade os instrumentos de relação coletiva, mais essa possibilidade cresce. A estrutura social tende a admitir as exigências funcionais ao status quo, ou então a um projeto, a um programa, digamos, revolucionário, que derrube o status quo.
A insistência nos “valores comuns”, por exemplo, parece-me um jogo para rebaixar, uma tentativa de homologação que leve a obliterar e a cancelar as diferenças incômodas, e com isso, em última instância, as identidades reais. Assim, parece impossível que pertencer a um poder imanente a um determinado momento histórico não faça agir de modo potencialmente antitético ao valor originário da pessoa. É aqui que o poder se toma abuso de poder, a menos que ele seja continuamente contestado; é na vigilância e na colaboração para isso, a meu ver, que consiste a democracia verdadeira e viva.
O problema é análogo ao que ocorre na relação entre uma pessoa auto consciente e o seu Destino: se a pessoa não for continuamente provocada, a própria sujeição e a funcionalidade ao Destino serão impossíveis. É impossível a ela passar uma hora sem ser contradita da, sem se corromper seu caminho! Há como que uma força de gravidade sufocando todos os ímpetos, até os mais ideais;. enquanto estes se desenvolvem, aquela força já os dobra a uma posição oposta ao próprio ímpeto.
Portanto, somente parece-me possível o poder da sociedade não contradizer o ímpeto original da pessoa se, em coro, o poder for contestado, avaliado e acompanhado por formas de colaboração. Somente com a vigilância do povo o poder não se torna abuso de poder.
A democracia nasce como diálogo e colaboração entre entidades humanas que se estimam enquanto identidades precisas, e se respeitam não porque estabelecem limites entre si, mas pelo imperscrutável Destino da diferença, que é “caminho diferente para o destino comum”, como dizia Pascoli.
É nesse sentido que um espírito autenticamente religioso não pode deixar de ser autenticamente democrático. Mas sem esse olhar, ou sem essa perspectiva do Mistério inerente a toda presença, não sei se o homem é capaz de aceder àquela “veneração” pela qual é alimentada a estima, a própria mortificação na convivência, a capacidade de colaboração, a vigilância vivida em comum.
Interessa-me observar que, antes de mais nada, não podemos aceitar exclusivamente aquilo que consideramos possível, tolerável, legítimo. Resistir a essa sub-reptícia limitação não é fácil (digo”sub-reptícia”, pois acredito que normalmente se desenvolve, pelo menos nas origens, de forma inconsciente); mas resistir a essa sub-reptícia limitação que permite e aceita no outro somente aquilo que se considera possível, tolerável, legítimo significa, evidentemente, destruir uma fascinante diferença. É preciso conviver com a concepção antropológica e social que a pessoa tem.
Nesse sentido, há uma outra decorrência que é interessante salientar: creio que quem detém o poder não pode ter como objetivo deter todo o poder. Um pluralismo verdadeiro deve permitira expressão da pessoa também nas suas dimensões culturais e sociais, e, portanto, associativas: é uma terceira decorrência sugerida na Mater et magistra, de João XXIII, que inclui, entre os direitos fundamentais do homem, o direito à associação (MM, nn. 52-53; cf. PT, n. 11).
Isto me introduz no último pensamento que gostaria de lembrar: se a dignidade do homem vem daquele núcleo originário que não deriva de seu pai e de sua mãe, nem do conjunto dos antecedentes dos quais eles são função e instrumento; se a dignidade do homem consiste na relação com um quid último, quese condensa e se expressa - condensa-se metafisicamente e expressa-se existencialmente - em exigências e em desejos infinitos; se, portanto, uma convivência deve, antes de tudo, partir do respeito à identidade dos outros, essas exigências, esses desejos estimulam o homem a organizar estruturas que lhes sejam respostas. Essas exigências e esses desejos, com efeito, tanto mais estimularão o homem quanto mais intensa for a consciência da exigência do desejo, e levá-lo-ão a construir uma obra, como tentativa de realizar uma estrutura que facilite e torne estável a resposta às suas exigências. Para o homem, é impossível não procurar algumas afinidades, não buscar uma companhia, e é nesse sentido que o valor associativo se torna também eminentemente operativo.
O ponto fundamental para julgar o relacionamento entre pessoa (ou liberdade) e poder (sociedade e poder) é exatamente este: que a sociedade seja guiada de tal modo que a força do poder, antes de tudo, seja utilizada para facilitar, valorizar, intensificar a obra – uma ou várias – que tende a originar-se do indivíduo, sobretudo do indivíduo associado.
Por isso, sempre insisti na fórmula segundo a qual um verdadeiro governo do povo, de uma sociedade humanamente viva, deve, acima de tudo, favorecer a criatividade da base, só intervindo (conforme o conclamado “princípio de subsidiariedade” da Doutrina Social da Igreja) para realizar, sustentar e, eventualmente, criar aquilo que ainda não foi pensado na atividade dos homens conscientes e vivos. “Mais sociedade, menos Estado!” não significa de modo algum encobrir o valor do Estado, mas simplesmente mostrar ao Estado o horizonte último da sua atividade: ajudar o homem, cada homem, a caminhar rumo ao seu Destino, com toda a produtividade e, por isso, com a utilidade, em todos os sentidos, de que a Natureza o tornou capaz”.

* Trecho de O eu, o poder, as obras, de Luigi Giussani.

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