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sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Caros professores, foi assim que vocês “mataram” a sua autoridade


Por Giovanni Gobber

Autoridade é uma palavra com muitos sentidos. Pela origem, vem da palavra latina auctoritas, que indicava capacidade de fazer crescer, portanto “prestígio, estima”: vinha de auctor, que denotava “quem faz crescer, quem é fundador”. Na base havia o verbo augere, ou seja “aumentar”. No dicionário etimológico de Ernout e Meillet, augere goza da máxima atenção, visto que deu origem a um grande número de derivados, entre os quais aparece o nome dos augures, os sacerdotes que escrutavam os fenômenos naturais, como o voo dos pássaros, e formulavam previsões, chamadas augurium, porque se acreditava que fossem favoráveis. Os antigos precisavam de auxilium, ou seja, de uma ajuda que “faz as forças crescerem”. Neste âmbito é que se coloca a experiência da auctoritas: a palavra tem valor positivo e atesta a confiança no futuro, que é visto como crescimento, desenvolvimento e é promessa de um bem.
Na época moderna, por causa de uma metonímia (que transfere a palavra de um elemento a outro no mesmo domínio), autoridade se transferiu da capacidade para o indivíduo que tem a capacidade. Dessa forma é que se passou a chamar como autoridade também a pessoa que reveste um alto cargo público (uma posição que confere o poder de “fazer crescer”, de “construir”). Trata-se de um uso de matriz francesa, que remonta ao tardo século XVIII. Uma passagem ulterior tirou a relação com os indivíduos: autoridade, assim, passou a designar o poder legal de gerir os comportamentos sociais. O nexo com o antigo verbo augere e com o prestígio gozado pelos auctores passou a ser opaco. Além do mais, este vínculo se percebe ainda hoje, mesmo que levemente, no adjetivo autoridade (autorevole) e no substantivo autoridade (autorevolezza). O elemento –evole é um derivado do latim –abilis: auctorabilis designava quem é capaz de ser auctor.
Como se pode notar, a moderna autoridade (autorevolezza) está próxima, pelo sentido, da antiga auctoritas: é um prestígio moral, uma estima que se difunde na comunidade e não depende de uma imposição, mas de um compartilhamento. A autoridade era dotada de um fundamento razoável: era reconhecida porque se viam os seus efeitos.
Outros tempos, outros costumes. No mundo moderno, se rompeu o vínculo entre moral e razão.
Consequentemente, autoridade denota sobretudo aquilo que impõe. O bem futuro não é considerado. A ênfase recai sobre a obrigação no presente. A educação não sabe o que fazer com esta autoridade: impondo a obediência não se “faz crescer”; no máximo, se comprime, se reprime.
A crise da autoridade no mundo moderno talvez esteja ligada ao divórcio com a autoridade (autorevolezza). A rebelião surge onde a autoridade indica apenas imposição, obrigação incapaz de mostrar um bem futuro que confira sentido à obediência. Pelo contrário, lá onde age um indivíduo ou um exemplo de autoridade (autorevole), se percebe a necessidade de obedecer. Não se sente como uma obrigação, mas como uma necessidade de seguir quem tem autoridade. Uma disciplina por demais rígida é bem difundida na prática esportiva: quem se submete a treinamentos duros e monótonos encontra uma razão naquilo que faz – e é a recompensa do sucesso futuro. O mesmo vale para quem enfrenta “sessões” exaustivas na academia, enquanto enfrenta a dificuldade de se preparar para provas.
A autoridade depende do bem que pode suscitar. Se não se vê um bem futuro, não se encontra motivo para seguir quem chama para a obediência. Muitos indivíduos – muitas das vezes jovens – recusam a autoridade por este motivo. Outros indivíduos – menos jovens que os primeiros – não aceitam a recusa da autoridade. Estes, por sua vez, não têm autoridade (autorevolezza), não têm a capacidade de mostrar o bem futuro. Há também quem contribuiu, no passado, para a destruição do princípio de uma autoridade fundada sobre um bem do fundamento razoável, e agora se lamenta porque a autoridade não é mais seguida. 
Resta a possibilidade de construir relacionamentos humanos construídos no encontro com pessoas de carne e osso, capazes de “fazer crescer”, ou seja, de educar e ter esperança no futuro. Convém voltar “a crescer”, dizem. Para isto, não são necessários personagens “sóbrios”, austeros, paladinos do rigor, dispensadores de sermões vazios. Para crescer é preciso gerar humanidade. E isto é possível na medida em que se parta da caridade guiada pela fé. O futuro não é apenas dos usuais Übermenschen, para quem tudo é permitido e nenhum veto parece ser fundado.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 16 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Crise da autoridade? O grande erro da liberdade moderna...


Por Stefano Biancu

Nestas páginas enfrentou-se, sob vários aspectos, o tema da crise da autoridade. O dissídio entre autoridade e razão representa, para o bem e para o mal, um nó constitutivo do aspecto intelectual da nossa modernidade. Hannah Arendt já falava disso: a crise atual da autoridade depende diretamente da estrutura intelectual e político-social da modernidade ocidental, que perdeu “the dimension of depth” – a dimensão da profundidade. Ou, para dizer com poucas palavras, a referência constitutiva a qualquer coisa de (sempre) precedente e fundante.
Convém, todavia, reconhecer como a atual crise da razão moderna não só não resultou numa ampla reavaliação da autoridade, como também exacerbou a crise mesma.
Explico-me. A única forma de autoridade que a modernidade reconheceu como legítima é a da razão autônoma, entendida como essência exclusivamente pensante (res cogitans) aplicada ao conhecimento de uma realidade substancialmente redutível a seus aspectos mensuráveis e quantificáveis (res extensa). A crise da única forma de autoridade tida como legítima – a da razão autônoma – levou a crise da autoridade, dessa forma, ao seu paroxismo.
No alvorecer da modernidade, os desafios inerentes à grande representação de uma distinção clara entre res cogitans e res extensa era dúplice. Em primeiro lugar, tratava-se de garantir a possibilidade de uma relação objetiva e neutra com o real, e isto com a finalidade de legitimar a ciência moderna: convinha postular um sujeito (res cogitans) que fosse de uma matéria completamente diferente da do objeto de sua observação (res extensa). Em segundo lugar, tratava-se de reagir à exagerada pretensão de mediação proveniente de instâncias políticas e religiosas: convinha afirmar a imediaticidade de certos direitos fundamentais do indivíduo, direitos que deveriam ser reconhecidos para cada ser humano desde o seu nascimento, e portanto independentemente da sua história e da sua posição, ou seja, da sua colocação no tempo e no espaço. Neste sentido, a grande representação teórica de uma res cogitans atemporal e aespacial teve o mérito de assegurar e garantir o nascimento e o desenvolvimento não apenas da ciência moderna, como também do Estado de direito. Méritos preciosos e de valor indubitável.  
Os problemas, porém, nasceram no momento em que se sustentou que esta representação artificial pudesse exaurir completamente a humanidade do homem. Ler e tentar compreender a autoridade a partir do paradigma de uma razão radicalmente livre de pressupostos (res cogitans) significou, de fato, se opor à possibilidade de encontrar categorias adequadas para o objetivo. Com efeito, é evidente como não é possível compreender a autoridade a não ser a custo de uma radical reflexão tardia acerca da nossa humanidade e da nossa liberdade, na medida em que humanidade e liberdade ricas de pressupostos: ou na medida em que as considerarmos como inseridas num tempo e num espaço.
Se de fato, jurídica e politicamente, a liberdade só pode ser um direito universal a ser reconhecido imediatamente para quem quer que seja, de um ponto de vista ético e antropológico esta imediaticidade representa apenas uma abstração. Eticamente, a liberdade é, de fato, também um dever e uma responsabilidade. Antropologicamente, sempre se está no caminho em direção à própria liberdade. Não nascemos livres: tornamo-nos livres, e nos tornamos graças ao encontro com liberdades mais maduras do que a nossa, que se tornam assim autoridades. Mais a liberdade com a qual se entra na relação é madura, tanto mais ela terá o caráter de uma autoridade geradora de liberdades. No fundo, este é o princípio de toda educação.
Neste sentido, ao lado de uma experiência (jurídico-política) da liberdade como direito, convém reconhecer uma experiência da liberdade como dever (nível ético) e, finalmente, uma mais fundamental experiência da liberdade como dom (nível antropológico). Ter achatado toda experiência possível da liberdade a partir do paradigma jurídico-político de um direito a ser reivindicado imediatamente, levou a uma redução da autoridade a limite (mais ou menos necessário) da liberdade. Tem significado, na melhor das hipóteses, uma redução da autoridade ao nível de um mal menor a ser suportado: seja como for, a uma frustração da liberdade.
Para voltar a compreender a natureza geradora de uma autêntica relação de autoridade, é preciso portanto voltar a prestar contas com a dimensão temporal da nossa história humana: com aquela dimensão da profundidade de que falava Arendt. No nível individual, isto significa  reconhecer que sempre estamos no caminho em direção à nossa própria liberdade – em direção à nossa própria humanidade – que não pode ser simplesmente tomada como um dado óbvio (a não ser no quadro daquela preciosa abstração jurídico-política que constitui um dos pilares do moderno Estado de Direito). No nível social, prestar contas com a dimensão constitutiva da temporalidade significa reconhecer que somos colocados dentro de uma estrutura de transmissão em virtude da qual é importante não apenas garantir as condições de um “espaço público”, mas também de uma “duração pública” (que se revela essencial exatamente para garantir a qualidade do espaço público).
Somente reconhecendo a rica genealogia da nossa liberdade e da nossa humanidade – como liberdade e humanidade ricas de pressupostos – é que será possível voltar a compreender a natureza de uma autoridade geradora de liberdade: mesmo no contexto da modernidade.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 15 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Porta fidei


Carta Apostólica
sob forma de Motu Proprio
Porta fidei
Do Sumo Pontífice
Bento XVI
com a qual se proclama o Ano da Fé.

1. A PORTA DA FÉ (cf. At 14, 27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na Sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se em um caminho que dura a vida inteira. Este caminho tem início no Batismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual podemos nos dirigir a Deus com o nome de Pai, e se conclui com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da Sua própria glória aqueles que creem nEle (cf. Jo 17, 22). Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor (cf. 1Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da Sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor.
2. Desde o princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do pontificado, disse: “A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens para fora do deserto, para lugares de vida, de amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude” [1]. Acontece não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora, tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado [2]. Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes setores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas.
3. Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16). O homem contemporâneo também pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer nEle e a beber na Sua fonte, de onde jorra água viva (cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentar da Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida, oferecidos como sustento daqueles que são Seus discípulos (cf. Jo 6, 51). De fato, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma força, este ensinamento de Jesus: “Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna” (Jo 6, 27). E a questão, então posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós também hoje: “Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?” (Jo 6, 28). Conhecemos a resposta de Jesus: “A obra de Deus é esta: crer nAquele que Ele enviou” (Jo 6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para se poder chegar definitivamente à salvação.
4. À luz de tudo isto, decidi proclamar um Ano da Fé. Este terá início a 11 de outubro de 2012, no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, a 24 de novembro de 2013. Na referida data de 11 de outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, texto promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II [3], com o objetivo de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 como instrumento ao serviço da catequese [4] e foi realizado com a colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o mês de outubro de 2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo de particular reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a celebrar um Ano da Fé. O meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um ano semelhante, em 1967, para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono centenário do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para que houvesse, em toda a Igreja, “uma autêntica e sincera profissão da mesma fé”; quis ainda que esta fosse confirmada de maneira “individual e coletiva, livre e consciente, interior e exterior, humilde e franca” [5]. Pensava que a Igreja poderia assim retomar “exata consciência da sua fé para a reavivar, purificar, confirmar, confessar” [6]. As grandes convulsões, que se verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a necessidade de uma celebração como tal. Esta terminou com a Profissão de Fé do Povo de Deus [7], para atestar como os conteúdos essenciais, que há séculos constituem o patrimônio de todos os crentes, necessitam de ser confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre nova para se dar testemunho coerente deles em condições históricas diversas das do passado.
5. Sob alguns aspectos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como uma “consequência e exigência pós-conciliar” [8], bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à profissão da verdadeira fé e da sua reta interpretação. Pareceu-me que fazer coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, “não perdem o seu valor nem a sua beleza. É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério, no âmbito da Tradição da Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa” [9]. Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a propósito do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: “Se o lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja” [10].
6. A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de fato, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição dogmática Lumen gentium, afirma: “Enquanto Cristo ‘santo, inocente, imaculado’ (Hb 7, 26), não conheceu o pecado (cf. 2Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Hb 2, 17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja ‘prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus’, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1Cor 11, 26). Mas é robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz” [11].
Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da Sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. At 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem em uma vida nova: “Pelo Batismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos em uma vida nova” (Rm 6, 4). Em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afetos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A “fé, que atua pelo amor” (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de ação, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2Cor 5, 17).
7. “Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele” (2Cor 5, 14): é o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo para proclamar o Seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o Seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor de uma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do Seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de fato, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à Sua Palavra a fim de se tornarem Seus discípulos. Os crentes – atesta Santo Agostinho – “fortificam-se acreditando” [12]. O Santo Bispo de Hipona tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus [13]. Os seus numerosos escritos, onde se explica a importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias como um patrimônio de riqueza incomparável e consentem ainda que tantas pessoas à procura de Deus encontrem o justo percurso para chegar à “porta da fé”.
Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a se tornarem mais conscientes e a revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo em um momento de profunda mudança como este que a humanidade está vivendo. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do Credo.
9. Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é “a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força” [14]. Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada [15] e refletir sobre o próprio ato com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a aprender de memória o Credo. É que este lhes servia de oração diária, para não esquecerem o compromisso assumido com o Batismo. Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo Agostinho quando afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a entrega do Credo): “O símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós o recebestes e proferistes, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por ele” [16].
10. Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o ato pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. Com efeito, existe uma unidade profunda entre o ato com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite entrar nesta realidade quando escreve: “Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé” (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro ato, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus e ação da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma.
A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas, estava Lídia. “O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia” (At 16, 14). O sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o conhecimento dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se depois o coração – autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela graça, que consente ter olhos para ver em profundidade e compreender que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um fato privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este “estar com Ele” introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um ato da liberdade, exige também assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a própria fé a toda as pessoas. É o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e corajoso.
A própria profissão da fé é um ato simultaneamente pessoal e comunitário. De fato, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Batismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da Igreja Católica, “‘Eu creio’: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião do Batismo. ‘Nós cremos’: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. ‘Eu creio’: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: ‘Eu creio’, ‘Nós cremos’” [17].
Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade ao que é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque a garantia da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o Seu mistério de amor [18].
Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um verdadeiro “preâmbulo” da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao mistério de Deus. Com efeito, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência “daquilo que vale e permanece sempre” [19]. Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao encontro dAquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo ao nosso encontro [20]. É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé.
11. Para chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio precioso e indispensável no Catecismo da Igreja Católica. Este constitui um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição apostólica Fidei depositum – não sem razão assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II – o Beato João Paulo II escrevia: “Este catecismo dará um contributo muito importante à obra de renovação de toda a vida eclesial (...). Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso, instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial” [21].
É precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol da redescoberta e do estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm no Catecismo da Igreja Católica a sua síntese sistemática e orgânica. Nele, de fato, sobressai a riqueza de doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história. Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os Mestres de teologia aos Santos que atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma memória permanente dos inúmeros modos em que a Igreja meditou sobre a fé e progrediu na doutrina para dar certeza aos crentes na sua vida de fé.
Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando as páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, em seguida à profissão de fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual Cristo está presente e operante, continuando a construir a Sua Igreja. Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos cristãos. Na mesma linha, a doutrina do Catecismo sobre a vida moral adquire todo o seu significado, se for colocada em relação com a fé, a liturgia e a oração.
12. Assim, no Ano em questão, o Catecismo da Igreja Católica poderá ser um verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para os que se comprometem com a formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto cultural. Com tal finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da Fé a redigir, de comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma Nota, através da qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos moldes mais eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.
De fato, em nossos dias mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogações, que provêm de uma mentalidade diversa que, hoje de uma forma particular, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica, porque ambas, embora por caminhos diferentes, tendem para a verdade [22].
13. Será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos.
Ao longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, “autor e consumador da fé” (Hb 12, 2): nEle encontra plena realização toda a ânsia e aspiração do coração humano. A alegria do amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra plena realização no mistério da Sua Encarnação, do Seu fazer-Se homem, do partilhar conosco a fragilidade humana para a transformar com a força da Sua ressurreição. NEle, morto e ressuscitado para a nossa salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da nossa história de salvação.
Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao Altíssimo pelas maravilhas que realizava naqueles que a Ele se confiavam (cf. Lc 1, 46-55). Com alegria e tremor, deu à luz o seu Filho unigênito, mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando em José, seu Esposo, levou Jesus para o Egito a fim de salvá-Lo da perseguição de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na Sua pregação e permaneceu ao Seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27). Com fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando no coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51), transmitiu-a aos Doze reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. At 1, 14; At 2, 1-4).
Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28). Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e realizado na Sua Pessoa (cf. Lc 11, 20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a Sua doutrina, deixando-lhes uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos como Seus discípulos depois da morte dEle (cf. Jo 13, 34-35). Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida em torno do ensinamento dos Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir às necessidades dos irmãos (cf. At 2, 42-47).
Pela fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando tudo para viver em simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a castidade, sinais concretos de quem aguarda o Senhor, que não tarda a vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma ação em prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).
Pela fé, no correr dos séculos, homens e mulheres de todas as idades, cujos nomes estão escritos no Livro da vida (cf. Ap 7, 9; Ap 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados.
Pela fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na história.
14. O Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São Paulo: “Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade” (1Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: “De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento cotidiano, e um de vós lhes disser: ‘Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome’, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: ‘Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé’” (Tg 2, 14-18). 
A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra realizar o seu caminho. De fato, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. “Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes” (Mt 25, 40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que permite reconhecer Cristo, e é o Seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre que Se faz nosso próximo no caminho da vida. Sustentados pela fé, olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando “novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça” (2Pd 3, 13; cf. Ap 21, 1).
15. Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pediu ao discípulo Timóteo que “procure a fé” (cf. 2Tm 2, 22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2Tm 3, 15). Sintamos este convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente de muitos outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim.
Que “a Palavra do Senhor avance e seja glorificada” (2Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé tornar cada vez mais firme a relação com Cristo Senhor, dado que só nEle temos a certeza para olhar o futuro e a garantia de um amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do apóstolo Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: “É por isso que exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações; deste modo, a qualidade genuína da vossa fé – muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes nEle e vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das almas” (1Pd 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia, permanece nEle como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À Mãe de Deus, proclamada “feliz porque acreditou” (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de graça.
Dado em Roma, em São Pedro, no dia 11 de outubro do ano 2011, sétimo de Pontificado.

BENEDICTUS PP. XVI

Notas
[1] Homilia no início do ministério petrino do Bispo de Roma (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710.
[2] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no Terreiro do Paço (Lisboa – 11 de Maio de 2010): L’Osservatore Romano (ed. port. de 15/V/2010), 3.
[3] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 113-118.
[4] Cf. Relação final do Sínodo Extraordinário dos Bispos (7 de Dezembro de 1985), II, B, a, 4: L’Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 650.
[5] Paulo VI, Exort. ap. Petrum et Paulum Apostolos, no XIX centenário do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (22 de Fevereiro de 1967): AAS 59 (1967), 196.
[6] Ibid.: o.c., 198.
[8] Paulo VI, Audiência Geral (14 de Junho de 1967): Insegnamenti, V (1967), 801.
[9] João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 57: AAS 93 (2001), 308.
[10] Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 52.
[11] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 8.
[12] De utilitate credendi, 1, 2.
[13] Cf. Confissões, 1, 1.
[14] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 10.
[15] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 116.
[16] Santo Agostinho, Sermo 215, 1.
[18] Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, cap. III: DS 3008-3009; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 5.
[19] Bento XVI, Discurso no “Collège des Bernardins” (Paris, 12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 722.
[20] Cf. Santo Agostinho, Confissões, 13, 1.
[21] Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 115 e 117.
[22] Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 34.106: AAS 91 (1999), 31-32.86-87.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 11 de outubro de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A grande alternativa proposta por Bento XVI entre o Mistério e a falta de sentido



Entrevista realizada por Federico Ferraù com Nikolaus Lobkowicz

“Como reconhecer o que é justo?” É esta a pergunta fundamental que está no centro da extraordinária reflexão sobre os fundamentos do direito que Bento XVI desenvolveu no seu discurso no Bundestag, durante a última viagem apostólica à Alemanha. IlSussidiario.net conversou a respeito dele com o filósofo Nikolaus Lobkowicz, que foi reitor da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique e Presidente da Universidade Católica de Eichstätt, e atualmente é diretor do ZIMOS - Zentral Institut für Mittel- und Osteuropastudien, centro de estudos dedicado à Europa Central e Oriental.

Professor Lobkowicz, o discurso que o Papa Bento XVI dirigiu ao Parlamento Federal Alemão é, de verdade, tão importante assim?
Certamente. Não era a primeira vez que um Papa falava diante de um Parlamento: pensem nos discursos de Paulo VI e de João Paulo II diante da Assembleia Geral das Nações Unidas. Mas, é a primeira vez que um Papa, a convite do Presidente do Parlamento Alemão, discursa diante dele. A Alemanha é o país de origem de Martinho Lutero, do homem de quem brotou a primeira grande divisão da cristandade na época moderna. A maior parte das divisões ocorridas depois foi apenas uma consequência direta ou indireta deste acontecimento. Em primeiro lugar, é certo que Bento XVI aceitou o convite do Parlamento da sua pátria, mas, segundo penso, o significado verdadeiro do seu discurso diante do Parlamento Federal está no fato de se inserir nos esforços do Pontífice no sentido de promover a “reunificação” dos cristãos.

Uma reunificação? Mas, será uma proposta realista?
Esta reunificação é, para um católico, invariavelmente uma “recondução”, não à força, para a Igreja romana católica assim como se encontra hoje, mais especificamente à comunidade dos cristãos tal como a queria o Senhor e da qual a Igreja católica sempre se concebeu e ainda se concebe como a representante. Bento XVI certamente foi convidado como um chefe de Estado, a Cidade do Vaticano. Todavia, todos entenderam este convite não como um convite de um Estado a outro Estado, mas como o convite àquele que é o chefe da comunidade cristã de longe a mais numerosa, uma comunidade que se considera como a comunidade dos cristãos da qual se dividiram todas as outras. Naturalmente, hoje, a Alemanha não é apenas um país de católicos ou protestantes. Muitos membros do Parlamento alemão são mais ou menos explicitamente ateus. Por isto, Bento XVI, entre as possíveis numerosas variantes para a sua alocução, escolheu um discurso que não sublinhasse aquilo que é especificamente católico e nem mesmo aquilo que é cristão, mas, por assim dizer, aquilo que é direito natural. Aquilo que a Igreja chama “direito natural” é, sim, provavelmente, compreensível particularmente a partir de um ponto de vista católico, mas é, em última instância, acessível a qualquer um, seja cristão ou não. A doutrina do direito natural está fundamentada na ordem da criação e não especificamente na obra de Redenção de Jesus Cristo.

Segundo o Papa, não podemos descobrir e explicar aquilo que é “justo” sem retornar ao conceito de “natureza”. Por quê?
Porque, para descobrir o que é justo, é preciso aprofundar a pergunta que diz respeito ao quê (ou quem) é o homem. “Natureza”, neste contexto, é compreendida não, ou somente incidentalmente, como a realidade fora do homem, mas como a essência do homem, assim como Deus o criou e quis. Este homem é danificado pelo pecado, pelo “pecado original”. Mas a sua essência não é destruída por ele – como, pelo contrário, afirmam os protestantes. Uma das diferenças mais importantes entre a compreensão do homem católica e a protestante consiste no fato que, para Lutero, nada daquilo que o homem realiza sem a graça de Deus pode ser ordenado e bom, enquanto que a Igreja católica sempre sustentou que a graça realiza a natureza, por isso a pressupõe e constrói sobre ela. Paradoxalmente, a compreensão protestante do homem fez como que não se pudesse quase mais falar daquilo que é o homem segundo a sua essência.

Explique isto melhor, professor.
Uma vez que tudo é destruído pelo pecado, até às suas últimas raízes, no fim o homem pode fazer tudo o que lhe vem em mente. Até mesmo a maior das perversões é, em última instância, legítima ou, pelo menos, compreensível, porque Deus, se o homem se arrepende do que fez, na medida em que é Deus misericordioso, o perdoa. Por assim dizer, deve perdoar: onde nada de humano é legítimo por si mesmo, tudo aquilo que o homem é e faz deve ser perdoado. Porém, a Igreja católica sempre sustentou que o homem, não obstante o dano causado pelo pecado original, é bom segundo a sua essência. Deve simplesmente agir e viver em conformidade com sua essência, e não contra ela. A graça constrói sobre esta essência e a realiza. Certamente falta algo se não há a graça, por exemplo, se um homem não encontrou a Cristo e não foi batizado. Mas, isto não significa que algo ou alguém a quem falta algo é inevitavelmente mau ou mesmo malvado.

Os pagãos confirmam isso, como dizia São Paulo.
Sim. Para o pagão, mesmo o do mundo moderno, falta algo, mas, por isto, não é também automaticamente um celerado que, ao final, deve ser condenado e danado. Neste sentido, a doutrina católica é um convite para conhecer Deus e se aproximar dEle, enquanto que a protestante é, em última instância, sempre a tentativa de uma salvação da danação. Por vezes, a radicalidade quase absurda desta concepção, a concepção protestante, levou a pensar que, no fundo, tudo aquilo que o homem faz para si e para os outros seja compreensível e, por isso mesmo, perdoável. Naturalmente, é preciso considerar que quase desde o seu início não existiu “a” doutrina protestante: desde sua origem ela se dividiu em um número de variantes constantemente em crescimento. Algumas delas até mesmo se aproximaram de novo da perspectiva católica.

Segundo o senhor, qual é a pedra angular de todo o discurso do Papa? Por quê?
Sendo que o Papa falou para pessoas de convicções muito diferentes, falou quase como um filósofo, naturalmente um filósofo cristão, e não em primeiro lugar como um teólogo. Isto foi simples para ele: de fato, Ratzinger, assim como Hans Urs von Balthasar ou Henri de Lubac, meio século atrás, é um dos homens mais cultos do nosso tempo e também um dos mais cultos da longa história de bispos de Roma. Eu consideraria como pensamento fundamental do seu discurso a intuição segundo a qual até certo ponto não é necessário ser um cristão crente para reconhecer o que é correto e justo, o que cabe ao homem e o que não cabe. Exatamente por isso o seu discurso tocou também os deputados que não queriam saber nada sobre a fé cristã. Teria tocado também aqueles que não queriam escutar o seu discurso e que, por isso, se mantiveram distantes. As maiorias não podem decidir o que é verdadeiro e o que é falso, justo ou injusto, o que faz bem ao homem e o que lhe traz algum dano. Por isto, é necessária a justa compreensão da essência da realidade e, sobretudo, do homem, uma compreensão que a Igreja católica sempre afirmou como possível e urgente. A fé cristã não nega esta compreensão, mas a realiza.

O Papa citou várias vezes o “coração dócil” (literalmente o “coração que escuta”; ndt) de Salomão. Este coração é razão, mas é também definido como consciência. Não tem um pouco de... confusão? Por quê?
Há duas maneiras para descrever aquilo que, em alemão, se chama “consciência”. De um lado a consciência é descrita como uma voz no fundo da nossa autoconsciência que adverte e condena; de outro lado, com este conceito se entende uma dedução graças à qual podemos saber quais das nossas ações seria ou era moral ou imoral, errada ou justa. Nesta última descrição, a razão desempenha um papel decisivo. Se se pensa sobre o que é ou seria razoável, busca-se o modo justo de agir. É preciso apenas prestar atenção no fato que “razoável” e “justo” significam, neste caso, algo de totalmente diferentes de “esperto”, “que promete sucesso” ou coisas parecidas. Razoáveis, neste sentido, são todas aquelas decisões e ações que, de verdade, consideram tudo aquilo de que se deve ser tido em conta, por exemplo que Deus nos deu, junto com nossa essência, também uma ordem moral, que devemos respeitar e que devemos considerar em todas as nossas decisões.

É este o “coração que escuta”?
Aquilo a que o Papa se refere quando fala do “coração que escuta” é exatamente isto: se escutamos a nossa consciência, escutamos a razão, neste sentido. Isto pressupõe, naturalmente, que não escutemos as premissas de uma ideologia que falsifica a realidade. No fundo, cada um de nós conhece esta situação: sabemos o que seria “a coisa justa”, porém nos persuadimos continuamente de que seria justo algo diferente, às vezes tão distante no tempo que a nossa consciência “emudece” e não é mais possível escutar a sua voz de advertência. Se eu torturo ou mato alguém, traio a minha mulher ou roubo algo, no fundo, sempre sei, independentemente da minha visão de mundo, que isto “não é justo”; só que me convenço que, levando em consideração as minhas circunstâncias, isto é justo ou até mesmo necessário. Naquele momento, sei perfeitamente que estou me iludindo, mas tendo me distrair, me convenço, minto para mim mesmo.

Na primeira parte, o Papa disse que “aquilo que é justo” não é mais evidente. Por onde passa o caminho (o método) para reencontrar esta evidência? Como nós, homens pós-modernos, podemos encontrar isto? 
Aquilo que eu acabei de descrever se tornou cada vez menos claramente reconhecível na nossa cultura, por causa do desaparecimento das tradições cristãs. Desde a Idade Média (Ratzinger escreveu sua tese de habilitação para a Universidade de Munique sobre Boaventura) nasceram sempre mais frequentemente filosofias ou modos de pensar comuns que apagaram e, por assim dizer, renegaram as tradições cristãs e, deste modo, também aquelas partes do pensamento da antiguidade pré-cristã retomadas pelo cristianismo. Isto causou uma atrofia ou mesmo um ressecamento das convicções tradicionais sobre o que é “justo”. Eu, no fundo, acredito que seja um absurdo esta frase feita sobre os “pós-modernos”. De fato, a ruptura é muito mais antiga, sobretudo na cultura alemã. Pensadores como Kant, Hegel ou Nietzsche, que tinham muita coisa justa para dizer, mas descuidaram da verdade sobre questões essenciais, marcaram a cultura alemã de modo determinante. Mesmo se Hegel, por exemplo, tivesse ficado horrorizado ao conhecer a ideologia dos nazistas ou dos comunistas, ainda assim algumas convicções atuais, particularmente nos países de língua alemã, são referidas a ele e aos seus herdeiros. Assim, a Igreja católica, a partir de muitos pontos de vista, se tornou quase a única instituição a manter vivo aquilo que a cultura ocidental entendeu. Eu acredito, por isso, que seja possível readquirir as justas convicções sobre aquilo que é verdadeiro, significativo, correto e justo, somente na medida em que o mundo, e sobretudo os países de língua alemã, se tornem “mais católicos” outra vez.

O que o senhor quer dizer com isso?
Com isto não entendo necessariamente que todos devem se tornar católicos. Mas se trata de um modo de pensar que somente os católicos conseguem levar adiante, e também uma parte essencial dos crentes ortodoxos e anglicanos. Com efeito, não gostaria de excluir que nos estamos aproximando de um tempo que, na tradição cristã, é descrito como o do anticristo. Exatamente nas últimas décadas, por exemplo, se tornou particularmente atual a visão do anticristo apresentada por Vladimir Soloviov no início do século XX. Talvez o fim da história da humanidade, o “fim do mundo”, esteja mais perto do que geralmente pensamos...

É necessário chamar em causa a razão criativa de Deus para tornar a unir razão e natureza?
Sim, porque em última instância apenas a ideia segundo a qual Deus é o criador, de um lado, de toda a realidade, e de outro, também da nossa razão, é que nos permite ver ambas como ordenadas uma à outra. Se não somos nada mais do que macacos por acaso altamente desenvolvidos, vivemos num mundo no qual tudo o que está em jogo é a sobrevivência; mas o homem não sobreviverá para sempre. Somente na medida em que se admite que Deus criou o mundo por amor ao homem, é que a nossa existência tem um sentido neste mundo. Para aqueles que veem em nós um macaco que, por acaso, é mais desenvolvido, de forma que tudo se deve ao acaso de uma cega evolução que poderia mesmo ter terminado de uma forma completamente diferente da forma como terminou, não é possível existir nenhum sentido “objetivo” para a existência do homem. Então, não somos nada mais do que produto do acaso, que, um dia, se apagará novamente e desaparecerá. Então, nada tem sentido; e o homem não é nada mais nada menos do que um Prometeu que, um dia, desaparecerá de novo. Às vezes me espanto ao ver como os homens conseguem apenas suportar uma tal ideia; provavelmente podem suportá-la somente porque nunca a levaram até às suas extremas conclusões. Houve homens, no século passado, que se suicidaram por causa desta visão, com a ideia, por assim dizer, que a única coisa na qual podemos ainda dar prova de nós e que nos demonstra nossa unicidade consiste no fato que somos o único ser vivo sobre a terra que pode “eliminar” a si mesmo intencional e conscientemente. Dostoievski descreveu de forma persuasiva esta visão das coisas no seu romance Os Demônios...

Por que o Papa falou do “movimento ecológico na política alemã a partir dos anos 1970”? Qual é o sentido desta referência específica?
João Paulo II já havia falado de um dever do cristão de preservar o ambiente da destruição, ao invés de simplesmente desfrutar dele até que não reste mais nada. Não devemos esquecer que o movimento e o partido dos “verdes”, na Alemanha, tem sua origem, sim, a partir dos marxistas, mas atraiu também muitos cristãos que estavam preocupados com a destruição do ambiente. Conheço pessoalmente alguns “verdes” que são cristãos convictos. O desejo de proteger a criação é mais do que um mero sentimentalismo; no fundo, todos queremos viver num mundo que não tenha perdido completamente a sua natureza original. Por trás disto há também a preocupação com o sustento da humanidade que continua crescendo...

Por que a doutrina do direito natural não é mais popular no pensamento católico?
Este, efetivamente, é um problema: eu o descreveria como uma preocupante “protestantização” de uma parte dos teólogos católicos e da teologia ensinada por eles. Ver o jusnaturalismo como uma premissa importante e como uma implicação da interpretação da fé pertence à grande tradição da teologia católica. Para mim, há dois motivos que justificam a cada vez menor disponibilidade a se ocupar deste tema: em primeiro lugar, o influxo dos protestantes agnósticos (“somente a Sagrada Escritura vale!”), em segundo lugar, alguns modernos desenvolvimentos do direito natural, que argumentam de modo completamente diverso daquele da tradição cristã. Para dizer a verdade, emerge também o fato que não é fácil continuar a desenvolver o direito natural clássico da Igreja católica: parece que já foi dito tudo o que era essencial. Parece-me que o significado da doutrina do direito natural consista sobretudo no fato que contradiz a ideia segundo a qual existam apenas duas alternativas: a ciência moderna, frequentemente positivista, e a fé cega, quase irracional. Já há bastante tempo, desde antes de se tornar papa, que Ratzinger tem realçado o significado da terceira alternativa: o jusnaturalismo como uma representação daquilo que emerge da essência corretamente entendida do homem. Trata-se de não esquecer uma determinada visão de homem: do homem como criatura, a que a fé cristã não se opõe, mas realiza.

O Papa disse durante a celebração ecumênica em Erfurt, na sexta-feira passada que “a fé não é algo que concebemos ou com o que concordamos. É o fundamento sobre o qual vivemos”. O que significa isto para o diálogo interreligioso na Europa cristã?
Antes que o Papa viesse à Alemanha, houve, na Alemanha e na Áustria, uma discussão acalorada e vivaz. De um lado, alguns protestantes esperavam que o Papa, por assim dizer, canonizasse, pelo menos em parte, Lutero (e também Calvino e Zwingli); de outro lado, houve um movimento entre os teólogos católicos que queria abolir o celibato e até mesmo ordenar mulheres. Diante disto, Bento XVI sublinhou que a unidade dos cristãos e o seu restabelecimento não pode ser, em última instância, obra do homem, ou seja, não se trata de algo que se alcançará (como é no caso de questões políticas) através de tratados e compromissos. Somente o Espírito Santo, e não a negociação entre nós, pobres homens, pode indicar o caminho. Ao mesmo tempo, as palavras do Papa foram um chamado de atenção “para o caminho que já trilhamos”. Há meio século atrás, uma oração ecumênica como aquela que houve em Erfurt seria impensável. As palavras do Papa que o senhor acabou de citar, recordam a “longa duração” que sempre foi característica da Igreja católica: a disponibilidade do coração aberto para esperar até que o Senhor nos indique o caminho.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 28 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Como reconhecemos o que é justo?



Visita ao Parlamento Federal

Discurso do Papa Bento XVI 

Palácio Reichstag de Berlim
Quinta-feira, 22 de setembro de 2011  

Ilustre Senhor Presidente Federal!
Senhor Presidente do Bundestag!
Senhora Chanceler Federal!
Senhor Presidente do Bundesrat!
Senhoras e Senhores Deputados!
E, para mim, uma honra e uma alegria falar diante desta Câmara Alta, diante do Parlamento da minha Pátria alemã, que se reúne aqui em representação do povo, eleita democraticamente para trabalhar pelo bem da República Federal da Alemanha. Quero agradecer ao Senhor Presidente do Bundestag o convite que me fez para pronunciar este discurso, e também as amáveis palavras de boas-vindas e de apreço com que me acolheu. Neste momento, dirijo-me a vós, prezados Senhores e Senhoras, certamente também como concidadão que se sente ligado por toda a vida às suas origens e acompanha solidariamente as vicissitudes da pátria alemã. Mas o convite para pronunciar este discurso foi dirigido a mim como Papa, como Bispo de Roma, que carrega a responsabilidade suprema da Igreja Católica. Deste modo, vós reconheceis o papel que compete à Santa Sé como parceira no seio da Comunidade dos Povos e dos Estados. Em base a esta minha responsabilidade internacional, quero vos propor algumas considerações sobre os fundamentos do Estado liberal de direito.
Seja-me permitido começar as minhas reflexões sobre os fundamentos do direito com uma pequena narrativa tirada da Sagrada Escritura. Conta-se, no Primeiro Livro dos Reis, que Deus concedeu ao jovem rei Salomão fazer um pedido por ocasião da sua entronização. Que irá pedir o jovem soberano neste momento tão importante: sucesso, riqueza, uma vida longa, a eliminação dos inimigos? Não pede nada disso; mas sim: “Concede ao teu servo um coração dócil, para saber administrar a justiça ao teu povo e discernir o bem do mal” (1Re 3, 9). Com esta narrativa, a Bíblia quer nos indicar o que deve ser, em última análise, importante para um político. O seu critério último e a motivação para o seu trabalho como político não devem ser o sucesso e menos ainda o lucro material. A política deve ser um compromisso em prol da justiça e, assim, criar as condições de fundo para a paz. Naturalmente um político procurará o sucesso, sem o qual não poderia jamais ter a possibilidade de uma ação política efetiva; mas o sucesso há de estar subordinado ao critério da justiça, à vontade de atuar o direito e à inteligência do direito. É que o sucesso pode tornar-se também um aliciamento, abrindo assim o caminho para a falsificação do direito, a destruição da justiça. “Se se põe de lado o direito, em que se distingue então o Estado de um grande bando de ladrões?” – sentenciou uma vez Santo Agostinho (De civitate Dei IV, 4, 1). Nós, alemães, sabemos pela nossa experiência que estas palavras não são fúteis. Experimentamos a separação entre o poder e o direito, o poder colocar-se contra o direito, o seu pisotear o direito, de tal modo que o Estado se tornou o instrumento para a destruição do direito: tornou-se um bando de ladrões muito bem organizado, que quase chegou a ameaçar o mundo inteiro e impeli-lo até à beira do precipício. Servir ao direito e combater o domínio da injustiça é e permanece sendo a tarefa fundamental do político. Num momento histórico em que o homem adquiriu um poder até agora impensável, esta tarefa torna-se particularmente urgente. O homem é capaz de destruir o mundo. Pode manipular-se a si mesmo. Pode, por assim dizer, criar seres humanos e excluir outros seres humanos de serem homens. Como reconhecemos o que é justo? Como podemos distinguir entre o bem e o mal, entre o verdadeiro direito e o direito apenas aparente? O pedido de Salomão permanece sendo a questão decisiva perante a qual se encontram também hoje o homem político e a política.
Grande parte da matéria que se deve regular juridicamente pode ter por critério suficiente o da maioria. Mas é evidente que, nas questões fundamentais do direito em que está em jogo a dignidade do homem e da humanidade, o princípio majoritário não basta: no processo de formação do direito, cada pessoa que tem responsabilidade deve ela mesma procurar os critérios da própria orientação. No século III, o grande teólogo Orígenes justificou assim a resistência dos cristãos a certos ordenamentos jurídicos em vigor: “Se alguém se encontrasse no povo de Cítia que tem leis irreligiosas e fosse obrigado a viver no meio deles, (…) estes agiriam, sem dúvida, de modo muito razoável se, em nome da lei da verdade que precisamente no povo da Cítia é ilegalidade, formassem juntamente com outros, que tenham a mesma opinião, associações mesmo contra o ordenamento em vigor” [Contra Celsum GCS Orig. 428 (Koetschau); cf. FÜRST, A. (2006). “Monotheismus und Monarchie. Zum Zusammenhang von Heil und Herrschaft in der Antike”. Theol.Phil. 81, pp. 321-338; a citação está na página 336; cf. também RATZINGER, J. (1971). Die Einheit der Nationem, Eine Vision der Kirchenväter. Salzburg-München, p. 60].
Com base nesta convicção, os combatentes da resistência agiram contra o regime nazista e contra outros regimes totalitários, prestando assim um serviço ao direito e à humanidade inteira. Para estas pessoas era evidente de modo incontestável que, na realidade, o direito vigente era injustiça. Mas, nas decisões de um político democrático, a pergunta sobre o que corresponda agora à lei da verdade, o que seja verdadeiramente justo e possa tornar-se lei não é igualmente evidente. Hoje, de fato, não é por si mesmo evidente aquilo que seja justo e possa se tornar direito vigente m relação às questões antropológicas fundamentais. À questão de saber como se possa reconhecer aquilo que verdadeiramente é justo e, deste modo, servir à justiça na legislação, nunca foi fácil encontrar resposta e hoje, na abundância dos nossos conhecimentos e das nossas capacidades, uma tal questão tornou-se ainda muito mais difícil.
Como se reconhece o que é justo? Na história, os ordenamentos jurídicos foram quase sempre religiosamente motivados: com base numa referência à Divindade, decide-se aquilo que é justo entre os homens. Ao contrário de outras grandes religiões, o cristianismo nunca impôs ao Estado e à sociedade um direito revelado, nunca impôs um ordenamento jurídico derivado de uma revelação. Mas apelou para a natureza e para a razão como verdadeiras fontes do direito; apelou para a harmonia entre razão objetiva e subjetiva, mas uma harmonia que pressupõe serem as duas esferas fundadas na Razão criadora de Deus. Deste modo, os teólogos cristãos associaram-se a um movimento filosófico e jurídico que estava formado já desde o século II (a.C.). De fato, na primeira metade do século II pré-cristão, deu-se um encontro entre o direito natural social, desenvolvido pelos filósofos estóicos, e autorizados mestres do direito romano [cf. WALDSTEIN, W. (2010). Ins Herz geschrieben. Das Naturrecht als Fundament einer menschlichen Gesellschaft. Augsburg, pp. 31-61]. Neste contato nasceu a cultura jurídica ocidental, que foi, e é ainda agora, de importância decisiva para a cultura jurídica da humanidade. Desta ligação pré-cristã entre direito e filosofia parte o caminho que leva, através da Idade Média cristã, ao desenvolvimento jurídico do Iluminismo até à Declaração dos Direitos Humanos e depois à nossa Lei Fundamental alemã, pela qual o nosso povo reconheceu, em 1949, “os direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça no mundo”.
Foi decisivo para o desenvolvimento do direito e o progresso da humanidade que os teólogos cristãos tivessem tomado posição contra o direito religioso, requerido pela fé nas divindades, e se tivessem colocado ao lado da filosofia, reconhecendo como fonte jurídica válida para todos a razão e a natureza na sua correlação. Esta opção já havia sido realizada por São Paulo, quando afirma na Carta aos Romanos: “Quando os gentios que não têm a Lei [a Torá de Israel], por natureza agem segundo a Lei, eles (…) são lei para si próprios. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, como resulta do testemunho da sua consciência” (Rm 2, 14-15). Aqui aparecem os dois conceitos fundamentais de natureza e de consciência, sendo aqui a “consciência” o mesmo que o “coração dócil” de Salomão, a razão aberta à linguagem do ser. Deste modo se até à época do Iluminismo, da Declaração dos Direitos Humanos depois da II Guerra Mundial e até à formação da nossa Lei Fundamental, a questão acerca dos fundamentos da legislação parecia esclarecida, no último meio século verificou-se uma dramática mudança da situação. Hoje considera-se a ideia do direito natural uma doutrina católica bastante singular, sobre a qual não valeria a pena discutir fora do âmbito católico, de tal modo que quase se tem vergonha mesmo só de mencionar o termo. Queria brevemente indicar como se veio a criar esta situação. Antes de mais nada é fundamental a tese segundo a qual haveria entre o ser e o dever ser um abismo intransponível: do ser não poderia derivar um dever, porque se trataria de dois âmbitos absolutamente diversos. A base de tal opinião é a concepção positivista de natureza, quase adotada por todos hoje em dia. Se se considera a natureza – no dizer de Hans Kelsen - “um agregado de dados objetivos, unidos uns aos outros como causas e efeitos”, então realmente dela não pode derivar qualquer indicação que seja de algum modo de caráter ético (Waldstein, op. cit., 15-21). Uma concepção positivista de natureza, que compreende a natureza de modo puramente funcional, tal como a conhecem as ciências naturais, não pode criar qualquer ponte para a ética e o direito, mas suscitar de novo respostas apenas funcionais. Entretanto o mesmo vale para a razão numa visão positivista, que é considerada por muitos como a única visão científica. Segundo ela, o que não é verificável ou falsificável não entra no âmbito da razão em sentido estrito. Por isso, a ética e a religião devem ser atribuídas ao âmbito subjetivo, caindo fora do âmbito da razão no sentido estrito do termo. Onde vigora o domínio exclusivo da razão positivista – e tal é, em grande parte, o caso da nossa consciência pública –, as fontes clássicas de conhecimento da ética e do direito são postas fora de jogo. Esta é uma situação dramática que interessa a todos e sobre a qual é necessário um debate público; convidar urgentemente para ele é uma intenção essencial deste discurso.
O conceito positivista de natureza e de razão, a visão positivista do mundo é, no seu conjunto, uma parcela grandiosa do conhecimento humano e da capacidade humana, à qual não devemos de modo algum renunciar. Mas ela mesma no seu conjunto não é uma cultura que corresponda e seja suficiente ao ser humano em toda a sua amplitude. Onde a razão positivista se considera como a única cultura suficiente, relegando todas as outras realidades culturais para o estado de subculturas, aquela diminui o homem, antes, ameaça a sua humanidade. Digo isto pensando precisamente na Europa, onde vastos ambientes procuram reconhecer apenas o positivismo como cultura comum e como fundamento comum para a formação do direito, reduzindo todas as outras convicções e os outros valores da nossa cultura ao estado de uma subcultura. Assim a Europa se coloca, face às outras culturas do mundo, numa condição de falta de cultura e suscitam-se, ao mesmo tempo, correntes extremistas e radicais. A razão positivista, que se apresenta de modo exclusivista e não é capaz de perceber algo para além do que é funcional, assemelha-se aos edifícios de concreto armado sem janelas, nos quais nos damos o clima e a luz por nós mesmos e já não queremos receber estes dois elementos do amplo mundo de Deus. E no entanto não podemos iludir-nos, pois em tal mundo autoconstruído bebemos em segredo e igualmente nos “recursos” de Deus, que transformamos em produtos nossos. É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo para a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo.
Mas, como fazê-lo? Como encontramos a entrada justa na vastidão, no conjunto? Como pode a razão reencontrar a sua grandeza sem escorregar no irracional? Como pode a natureza aparecer novamente na sua verdadeira profundidade, nas suas exigências e com as suas indicações? Chamo à memória um processo da história política recente, esperando não ser mal entendido nem suscitar demasiadas polêmicas unilaterais. Diria que o aparecimento do movimento ecológico na política alemã a partir dos anos 1970, apesar de não ter talvez aberto janelas, todavia foi, e continua a ser, um grito que anseia por ar fresco, um grito que não se pode ignorar nem deixar de lado, porque se vislumbra nele muita irracionalidade. Pessoas jovens deram-se conta de que, nas nossas relações com a natureza, há algo que não está bem; que a matéria não é apenas um material para nossa factura, mas a própria terra traz em si a sua dignidade e devemos seguir as suas indicações. É claro que aqui não faço propaganda por um determinado partido político; nada me seria mais alheio do que isso. Quando na nossa relação com a realidade há qualquer coisa que não funciona, então devemos todos refletir seriamente sobre o conjunto e todos somos remetidos à questão acerca dos fundamentos da nossa própria cultura. Seja-me permitido deter-me um momento mais neste ponto. A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que – a meu ver –, hoje como ontem, é negligenciado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.
Voltemos aos conceitos fundamentais de natureza e razão, de onde partíramos. O grande teórico do positivismo jurídico, Kelsen, em 1965 – com a idade de 84 anos (consola-me o fato de ver que, aos 84 anos, ainda se é capaz de pensar algo de razoável) –, abandonou o dualismo entre ser e dever ser. Antes, ele tinha dito que as normas só podem derivar da vontade. Consequentemente – acrescenta ele – a natureza só poderia conter em si mesma normas, se uma vontade tivesse colocado nela estas normas. Mas isto – diz ele – pressuporia um Deus criador, cuja vontade se inseriu na natureza. “Discutir sobre a verdade desta fé é absolutamente vão” – observa ele a tal propósito (citado segundo Waldstein, op.cit., 19). Mas sê-lo-á verdadeiramente? – eu perguntaria. É verdadeiramente desprovido de sentido refletir se a razão objetiva que se manifesta na natureza não pressuponha uma Razão criadora, um Creator Spiritus?
Aqui deveria vir em nossa ajuda o patrimônio cultural da Europa. Foi na base da convicção sobre a existência de um Deus criador que se desenvolveram a ideia dos direitos humanos, a ideia da igualdade de todos os homens perante a lei, o conhecimento da inviolabilidade da dignidade humana em cada pessoa e a consciência da responsabilidade dos homens pelo seu agir. Estes conhecimentos da razão constituem a nossa memória cultural. Ignorá-la ou considerá-la como mero passado seria uma amputação da nossa cultura no seu todo e privá-la-ia da sua integralidade. A cultura da Europa nasceu do encontro entre Jerusalém, Atenas e Roma, do encontro entre a fé no Deus de Israel, a razão filosófica dos Gregos e o pensamento jurídico de Roma. Este tríplice encontro forma a identidade íntima da Europa. Na consciência da responsabilidade do homem diante de Deus e no reconhecimento da dignidade inviolável do homem, de cada homem, este encontro fixou critérios do direito, cuja defesa é nossa tarefa neste momento histórico.
Ao jovem rei Salomão, na hora de assumir o poder, foi concedido formular um seu pedido. Que sucederia se nos fosse concedido a nós, legisladores de hoje, fazer um pedido? O que é que pediríamos? Penso que também hoje, em última análise, nada mais poderíamos desejar que um coração dócil, a capacidade de distinguir o bem do mal e, deste modo, estabelecer um direito verdadeiro, servir à justiça e à paz. Agradeço-vos pela vossa atenção!

* Extraído do site do Vaticano, do dia 22 de setembro de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Manuel II Paleólogo e a cruz azul de Padre Brown



Por Miguel Delgado Galindo *

Há cinco anos atrás, no dia 12 de setembro, Bento XVI realizou a memorável lectio magistralis, “Fé, razão e universidade: recordações e reflexões” – por ocasião da sua viagem apostólica à Baviera, em 2006 – na Universidade de Regensburg, onde ele havia ensinado Teologia Dogmática e História dos Dogmas entre 1969 e 1977. Acredito que todos se lembram bem da primeira parte daquela aula, quando o Papa se referiu a um trecho de um diálogo ocorrido entre o culto imperador bizantino, Manuel II Paleólogo, e um sábio persa, que provavelmente ocorreu no ano de 1391 na atual Ancara.
Naquela conversa, o imperador – contestando o uso da violência como meio para difundir a fé – declara com firmeza ao seu interlocutor que não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus. Como pôde afirmar diversas vezes e de diferentes formas, com clareza explícita, ao se referir a esta citação, o Pontífice pretendia chamar a atenção para a relação essencial que existe entre fé e razão, sem que, com isso, quisesse de alguma maneira tornar suas as expressões polêmicas do Paleólogo.
Esta passagem da aula magna do Papa em Regensburg, recentemente, voltou à minha memória, quando eu estava relendo o conto do célebre escritor britânico Gilbert K. Chesterton – de quem, no último dia 14 de junho, foram recordados os setenta e cinco anos de morte – A cruz azul, publicado pela primeira vez em setembro de 1910 numa revista londrina, “The Story-Teller”, e acrescentado ao primeiro volume das novelas de Padre Brown, volume que traz como título A inocência de Padre Brown.
Este conto é o primeiro de uma longa série de policiais, conhecidos e geniais, que têm como protagonista Padre Brown, talvez o personagem mais conhecido de Chesterton. O herói é um padre católico, descrito pelo autor como um homem de baixa estatura e de modos gentis, originário de um vilarejo do Essex, que se envolvendo em várias investigações acaba por conseguir resolver os casos mais estranhos e intrincados.
Diferentemente de Sherlock Holmes – o lendário personagem criado por Arthur I. Conan Doyle, e famoso por suas agudas observações fundadas sobre deduções racionais auxiliadas pela ciência –, o método de investigação de Padre Brown está fundado essencialmente sobre um profundo conhecimento da alma humana, além de também se fundar sobre uma vasta experiência sacerdotal. É por esta razão que as histórias do padre investigador são sempre cheias de humanidade e de inteligência perspicaz.
No início do conto A cruz azul, Padre Brown desembarca no porto britânico de Harwich. Na sua bagagem o sacerdote traz consigo uma cruz de prata ricamente ornamentada com safiras, já que pretende mostrá-la aos participantes de um congresso eucarístico em Londres, para onde deverá ir.
Entre os passageiros do trem que liga Harwich à metrópole britânica, viajam junto com Padre Brown, Hercule Flambeau, o ladrão mais famoso e procurado do mundo, além de Aristide Valentin, chefe da polícia parisiense, que está procurando o primeiro desde a Bélgica, acreditando que Flambeau já tenha chegado à Inglaterra. Durante a viagem para Londres, Padre Brown diz a seus companheiros de viagem, com certa inocência, que ele deve manter certa prudência, porque uma das suas bagagens traz um objeto de grande valor. O policial, imediatamente, adverte o padre a manter muita atenção ao tal objeto e a evitar de falar a respeito dele a todos aqueles que ele encontra.
Chegando em Londres, Valentin – ainda fazendo suas investigações – começa a seguir as pistas, aparentemente contraditórias, de dois sacerdotes. Um deles, de fato, é Padre Brown; o outro é exatamente Hercule Flambeau, que, tendo tomado conhecimento da existência da valiosa cruz azul, se vestiu de padre para tentar tomar posse dela.
Alarmado, o padre verdadeiro envia a cruz azul para Westminster. Quando Valentin consegue finalmente alcançar Padre Brown e Flambeau nos prados de Hampstead, assiste, escondido entre arbustos, a um interessante diálogo entre os dois, durante o qual o ladrão diz ao padre: “Ah, sim! Estes infiéis modernos apela à razão; mas quem é que consegue olhar para aqueles milhões de mundos sem sentir em si que podem muito bem existir universos maravilhosos acima de nós, onde a razão é absolutamente irracional?”. Padre Brown replica imediatamente: “Não, a razão é sempre razoável, mesmo no último limbo, no último confim das coisas. Sei que acusam a Igreja de humilhar a razão, mas é exatamente o contrário. A Igreja é a única na terra que sustenta que a razão é realmente suprema. A Igreja é a única na terra que afirma que até Deus é obrigado pela razão”.
Logo depois, Flambeau pede abertamente ao Padre Brown que lhe entregue a cruz de safiras, mas o sacerdote se recusa. Então, o ladrão, zombando do padre, lhe revela que ele havia preparado, anteriormente, um pacote semelhante em tudo àquele do Padre Brown, e o havia trocado por aquele que continha a preciosa cruz. Mas, o sacerdote investigador responde ao ladrão que, imaginando o estratagema, havia tomado o cuidado de trocar novamente os pacotes, conseguindo manter a cruz azul a salvo. Flambeau, em suma, estava em posse de simples pedaços de ferro sem valor.
O conto se encerra quando o ladrão fantasiado pergunta a Padre Brown como ele havia feito para se dar conta de que ele não era um verdadeiro padre. O sacerdote responde, então, com sabedoria e simplicidade: “Você atacou a razão. E péssima teologia”. É preciso acrescentar que, em seguida, Flambeau abandona o caminho da deliquência, torna-se um grande amigo de Padre Brown e o acompanha, a partir de então, em algumas de suas aventuras.
Bento XVI, desde o início do seu pontificado, quis afirmar a beleza da fé e, ao mesmo tempo, a sua razoabilidade. Deus, de fato, é também razão (lògos), e consequentemente crer é razoável.
Por isto, os católicos são chamados a testemunhar e levar Cristo aos outros com convicção e alegria, exatamente como fez o Papa em Madri, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, e como continua fazendo, dia após dia. Como há cinco anos, em Regensburg, onde Bento XVI ofereceu-nos uma magistral aula de teologia.

* Miguel Delgado Galindo é Sub-Secretário do Pontíficio Conselho para os Leigos. Texto extraído do L'Osservatore Romano, do dia 15 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Universidade: casa onde se busca a verdade da pessoa humana



Viagem Apostólica a Madri
Por ocasião da XXVI Jornada Mundial da Juventude
18 a 21 de agosto de 2011

Encontro com Jovens Professores Universitários

Discurso do Papa Bento XVI

Basílica do Mosteiro de São Lourenço do Escorial
Sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Senhor Cardeal Arcebispo de Madri,
Queridos Irmãos no Episcopado,
Queridos Padres Agostinianos,
Queridos Professores e Professoras,
Distintas Autoridades,
Meus amigos!
Com regozijo esperava este encontro convosco, jovens professores das universidades espanholas, que prestais uma colaboração esplêndida para a difusão da verdade em circunstâncias nem sempre fáceis. Saúdo-vos cordialmente e agradeço as amáveis palavras de boas-vindas e também a música executada que ressoou maravilhosamente neste mosteiro de grande beleza artística, testemunho eloquente, durante séculos, de uma vida de oração e estudo. Neste lugar emblemático, razão e fé fundiram-se harmoniosamente na pedra austera para modelar um dos monumentos mais renomados de Espanha.
Saúdo também com particular afeto a todos os que participaram, nestes dias, do Congresso Mundial das Universidades Católicas, em Ávila, sob o lema: “Identidade e missão da Universidade Católica”.
Encontrar-me aqui no vosso meio faz-me recordar os meus primeiros passos como professor na Universidade de Bonn. Quando ainda se sentiam as feridas da guerra e eram muitas as carências materiais, a tudo supria o encanto de uma atividade apaixonante, o trato com colegas das diversas disciplinas e o desejo de dar resposta às inquietações últimas e fundamentais dos alunos. Esta universitas, que então vivi, de professores e estudantes que procuram, juntos, a verdade em todos os saberes ou – como diria Afonso X, o Sábio – esse “ajuntamento de mestres e escolares com vontade e capacidade para aprender os saberes” (Sete Partidas, partida II, título XXXI), clarifica o sentido e mesmo a definição da Universidade.
No lema da presente Jornada Mundial da Juventude – “Enraizados e edificados em Cristo, firmes na fé” (cf. Col 2, 7) –, podeis também encontrar luz para compreender melhor o vosso ser e ocupação. Neste sentido, como escrevi aos jovens na Mensagem preparatória para estes dias, os termos “enraizados, edificados e firmes” falam de alicerces seguros para a vida (cf. n. 2).
Mas onde os jovens poderão encontrar estes pontos de referência numa sociedade vacilante e instável? Às vezes pensa-se que a missão de um professor universitário seja hoje, exclusivamente, a de formar profissionais competentes e eficientes que satisfaçam as exigências laborais de cada período concreto. Diz-se também que a única coisa que se deve privilegiar, na presente conjuntura, é a capacitação meramente técnica. Sem dúvida, prospera na atualidade esta visão utilitarista da educação mesmo universitária, difundida especialmente a partir de âmbitos extra-universitários. Contudo vós que vivestes como eu a Universidade e que a viveis agora como docentes, sentis certamente o anseio de algo mais elevado que corresponda a todas as dimensões que constituem o homem. Como se sabe, quando a mera utilidade e o pragmatismo imediato se erigem como critério principal, os danos podem ser dramáticos: desde os abusos de uma ciência que não reconhece limites para além de si mesma, até ao totalitarismo político que se reanima facilmente quando é eliminada toda a referência superior ao mero cálculo de poder. Ao invés, a genuína ideia de universidade é que nos preserva precisamente desta visão reducionista e distorcida do humano.
Com efeito, a universidade foi, e deve continuar sendo, a casa onde se busca a verdade própria da pessoa humana. Por isso, não é uma casualidade que tenha sido precisamente a Igreja quem promoveu a instituição universitária; é que a fé cristã nos fala de Cristo como o Logos por Quem tudo foi feito (cf. Jo 1, 3) e do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus. Esta boa nova divisa uma racionalidade em toda a criação e contempla o homem como uma criatura que compartilha e pode chegar a reconhecer esta racionalidade. Deste modo, a universidade encarna um ideal que não deve ser desvirtuado por ideologias fechadas ao diálogo racional, nem por servilismos a uma lógica utilitarista de simples mercado, que olha para o homem como mero consumidor.
Aqui está a vossa importante e vital missão. Sois vós que tendes a honra e a responsabilidade de transmitir este ideal universitário: um ideal que recebestes dos vossos mais velhos, muitos deles humildes seguidores do Evangelho e que, como tais, se converteram em gigantes do espírito. Devemos nos sentir seus continuadores, numa história muito diferente da deles mas cujas questões essenciais do ser humano continuam a exigir a nossa atenção convidando-nos a ir mais longe. Sentimo-nos unidos a eles, nesta cadeia de homens e mulheres que se devotaram a propor e a valorizar a fé perante a inteligência dos homens. E, para fazê-lo, não basta ensiná-lo, é preciso vivê-lo, encarná-lo, à semelhança do Logos que também se encarnou para estabelecer a sua morada entre nós. Neste sentido, os jovens precisam de mestres autênticos: pessoas abertas à verdade total nos diversos ramos do saber, capazes de escutar e viver dentro de si mesmos este diálogo interdisciplinar; pessoas convencidas sobretudo da capacidade humana de avançar a caminho da verdade. A juventude é tempo privilegiado para a busca e o encontro com a verdade. Como já disse Platão: “Busca a verdade enquanto és jovem, porque, se o não fizeres, depois escapar-te-á das mãos” (Parmênides, 135d). Esta sublime aspiração é o que de mais valioso podeis transmitir, pessoal e vitalmente, aos vossos estudantes, e não simplesmente algumas técnicas instrumentais e anônimas nem alguns dados frios e utilizáveis apenas funcionalmente.
Por isso, encarecidamente vos exorto a não perderdes jamais tal sensibilidade e encanto pela verdade, a não esquecerdes que o ensino não é uma simples transmissão de conteúdos, mas uma formação de jovens a quem deveis compreender e amar, em quem deveis suscitar aquela sede de verdade que possuem no mais fundo de si mesmos e aquele anseio de superação. Sede para eles estímulo e fortaleza.
Para isso, é preciso ter em conta, em primeiro lugar, que o caminho para a verdade completa compromete o ser humano na sua integralidade: é um caminho da inteligência e do amor, da razão e da fé. Não podemos avançar no conhecimento de algo, se não nos mover o amor; nem tampouco amar uma coisa em que não vemos racionalidade; porque “não aparece a inteligência e depois o amor: há o amor rico de inteligência e a inteligência cheia de amor” (Caritas in veritate, 30). Se estão unidos a verdade e o bem, o estão igualmente o conhecimento e o amor. Desta unidade deriva a coerência de vida e pensamento, a exemplaridade que se exige de todo o bom educador.
Em segundo lugar, temos que considerar que a verdade em si mesma está para além do nosso alcance. Podemos procurá-la e aproximar-nos dela, mas não possui-la totalmente; antes, é ela que nos possui e estimula. Na atividade intelectual e docente, a humildade é também uma virtude indispensável, pois protege da vaidade que fecha o acesso à verdade. Não devemos atrair os estudantes para nós mesmos, mas encaminhá-los para essa verdade que todos procuramos. Nisto vos ajudará o Senhor, que vos propõe ser simples e eficazes como o sal, ou como a lâmpada que dá luz sem fazer ruído (cf. Mt 5, 13).
Tudo isto nos convida a voltar incessantemente o olhar para Cristo, em cujo rosto resplandece a Verdade que nos ilumina; mas que é também o Caminho que leva à plenitude sem fim, fazendo-Se caminhante conosco e sustentando-nos com o seu amor. Radicados nEle, sereis bons guias dos nossos jovens. Com esta esperança, coloco-vos sob o amparo da Virgem Maria, Sede da Sabedoria, para que Ela vos faça colaboradores do seu Filho com uma vida repleta de sentido para vós mesmos, e fecunda de frutos, tanto de conhecimento como de fé, para vossos alunos. Muito obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 19 de agosto de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.