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quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Os livros que permitiram que Stálin vencesse Hitler, mas não as consciências


Por Pietro Tosco

“Grande guerra patriótica” é o termo com o qual, na Rússia, se define a segunda guerra mundial. Trata-se de uma expressão particular, e para um ouvido ocidental parece retórica e evoca atmosferas distantes, ligadas ao século XIX. Na Rússia, porém, hoje, é uma expressão ouvida mais do que nunca. Não apenas isso, a guerra mesma, na suas várias interpretações, está no centro de um debate histórico e cultural bastante atual, porque ao conflito contra o Terceiro Reich hitleriano está ligada a memória de um momento crucial para a história soviética, mas também para a compreensão do momento atual da Rússia.
É por isso que o volume publicado por Marietti 1820 tem sido acolhido com tanto reconhecimento – E suas mães choraram: a grande guerra patriótica na literatura russa soviética e pós-soviética, de Frank Ellis, historiador e eslavista inglês, ex-soldado do Special Air Service britânico.
O livro é uma viagem na literatura russa sobre o tema da segunda guerra mundial, partindo das obras dos anos 1940 (portanto, com a guerra ainda em curso), para chegar até aos nossos dias. É uma monografia que cobre um espaço que tinha permanecido vazio no panorama ocidental e é uma obra que tem um valor atual porque, como sublinha Vittorio Strada no prefácio, a “Grande guerra patriótica” foi o teatro de grandes ambiguidades para as quais a atualidade russa é ainda incapaz de olhar com lucidez.
A guerra, de fato, foi um momento de ruptura paradoxalmente positivo, um flash de luz na obscura noite do totalitarismo soviético. Basta recordar que, no célebre e emocionado discurso depois do “traiçoeiro” ataque de Hitler, Stálin dirigiu-se à população aturdida colocando ao lado do apelo aos “companheiros” e às “companheiras” o mais tradicional e reacionário “irmãos e irmãs”. Abria-se, assim, um novo curso na história soviética: diante da guerra, o Regime não era mais capaz de mover a população somente com a força e com as armas da propaganda, com o medo e a suspeita, mas tinha que recorrer ao nunca apaziguado amor pela Pátria. Começou, assim, a “Grande guerra patriótica”.
Ela viu a mobilização de toda a população que, com um imenso tributo de sangue, obteve uma vitória memorável sobre o inimigo nazista. Pela primeira vez, desde 1917, no drama da guerra, o povo se moveu unido, não em nome do partido mas em nome da Pátria e da liberdade. Mas, exatamente a palavra “liberdade” tinha uma dupla face: era sim aquela que a Alemanha nazista queria destruir, mas era também aquela que, com uma repressão de não menor consistência, tinha sido perdida na União Soviética. A vitória final levou a um resultado paradoxal: a derrota do totalitarismo nazista e, ao mesmo tempo, a restauração do totalitarismo soviético, absurdamente justificada da vitória mesma.
Eis porque, de repente, a interpretação da guerra se torna matéria de conflito e de censura. É a guerra dos adjetivos a que se acena no subtítulo do livro de Ellis: qual literatura para qual leitura do conflito? Qual verdade sobre a guerra? Russa, soviética ou pós-soviética?
No pós-guerra, o Regime impôs uma visão oficial suprimindo toda leitura alternativa. Stálin, o Partido e a Armada Vermelha tinham derrotado Hitler, abatendo o maior de todos os totalitarismos da história de todos os tempos. Uma história perigosamente linear, na qual tudo devia ser resolvido num contraste de cores: o vermelho da vitória soviética contra o preto do monstro hitleriano. Mas, era todo o resto que não devia ser sabido. Não se devia recordar que a guerra tinha sido vencida com um número de vítimas mais de dez vezes superior ao dos inimigos, que o ataque repentino e as derrotas do primeiro ano de guerra tinha sido causada pelos erros de avaliação de Stálin, que a resistência tinha sido forçada à custa de massacres internos, que a polícia política havia combatido uma guerra na guerra, dizimando os seus mesmos soldados.
No entanto, o Regime não conseguiu impor a sua visão. Como escreveu Pasternak: “o prenúncio da liberdade já estava no ar, naqueles anos do pós-guerra, e constituía o único conteúdo histórico daquele momento”. Se o Regime não conseguiu vencer, o mérito foi também da grande literatura e da sua capacidade de permanecer pura diante da poluição ideológica, ancorada na realidade mesmo onde era a mais dura, trágica e ambígua. É o milagre da arte que nasce e permite conhecer onde tudo parece indizível e desumano.
Os autores desta literatura são, infelizmente, desconhecidos do grande público italiano, relegados principalmente ao interesse de estudos especializados. O mais conhecido é Vasili Grossman, que só muito recentemente começou a conhecer o sucesso que merece. Mas, se Vida e Destino é agora um hit das vendas, falta ainda a tradução do seu livro anterior, Por uma justa causa. Outros grandes autores são Viktor Nekrasov – Nas trincheiras de Stalingrado [no original, В окопах Сталинграда; ndt] –, Yuri Bondarev – Os batalhões precisam de fogo [no original, Батальоны просят огня; ndt] –, Grigory Baklanov – Os mortos não têm vergonha [no original, Мёртвые сраму не имут; ndt] –, Viktor Astafiev – O pastor e a pastorinha [no original, Пастух и пастушка; ndt] – e, talvez mais conhecido, Konstantin Simonov – Os dias e as noites [no original, Дни и ночи; ndt]. Com eles, muitos outros que Ellis indica e faz conhecer. Uma atenção particular merece Vasili Bykov, bielorusso, que escreveu até aos inícios deste decênio, conquistando um lugar importante que pode aproximá-lo de Grossman. Os seus romances não foram ainda traduzidos para o italiano, e esperamos que este livro seduza tradutores e editores a difundir a sua obra.
E as suas mães choraram é, portanto, uma grande novidade entre as prateleiras das livrarias. Importante, porque recoloca no primeiro plano aquela literatura que quis desafiar a visão oficial da guerra, imposta pelo Partido, e que ainda hoje é muito facilmente propagandeada.

Ficha técnica
Título: E le loro madri piansero: la Grande guerra patriottica nella letteratura russa sovietica e postsovietica
Autor: Frank Ellis
Editora: Marietti 1820
Ano: 2010
ISBN: 9788821194009
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* Texto extraído do IlSussidiario.net, do dia 5 de janeiro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Graças ao martírio, o homem que morre triunfa sobre o animal que vive



Por Michele Rosboch

A editora Adelphi publica, graças à valiosa tradução de Claudia Zonghetti, uma das primeiras obras do escritor Vasili Grossman, O Inferno de Treblinka. Trata-se de um documentário ágil (quase uma crônica “jornalística”, que foi publicada pela primeira vez no outono de 1944, na revista russa Znamja), fruto da observação de primeira mão do autor – na época, ele estava entre os mais apreciados cronista de guerra –, que foi mandado para o campo de Treblinka com a armada vermelha, em setembro de 1944. No livro, o autor de Vida e Destino relata com fidelidade o fruto das histórias contadas pelas testemunhas do inferno do lager, que foi, em seguida, destruído por uma revolta dos prisioneiros, em agosto de 1943, depois de ter assassinado mais de três milhões de pessoas, entre judeus, ciganos e outros cidadãos poloneses.
O fruto da investigação de Grossman foi, inclusive, usado como documento no processo de Nuremberg como prova dos crimes nazistas (mesmo que, num segundo momento, tenha se mostrado impreciso e até mesmo errôneo, por causa da emoção dos testemunhos recolhidos). É um quadro aterrorizante do abismo do mal e da deformação à qual a ideologia pode conduzir: “Todos estes seres não tinham nada de humano. Cérebro, coração e alma, palavras, gestos e hábitos eram deformados, uma horrenda caricatura que lembrava apenas levemente traços, pensamentos, sentimentos, hábitos, gestos humanos. (...) No novo lager nada era pensado para a vida, tudo era entendido para a morte” (pp. 15-16)
No livro emergem com clareza a abominação e a ignomínia dos carrascos nazistas, animados pelo projeto criminoso de contribuir com a “solução final”, através da anulação da vontade e da personalidade dos prisioneiros (valendo-se da “tortura da mentira”), antes ainda da sua cruel eliminação física: “Seres humanos nus dos quais tudo foi arrancado continuam tenazmente mil vezes mais humanos do que os animais com uniforme nazista que os circundam, continuam a respirar, a olhar e a pensar, os corações ainda batem. Então, os alemães arrancam de suas mãos sabão e toalha. E os depõem em fila de cinco em cinco” (p. 37)
Aos “animais” nazistas se contrapõem os “libertadores” soviéticos: no livro se afirma com clareza a diferença entre os alemães-malvados e os soviéticos-bonzinhos, que, depois, será superada em Vida e Destino, com a trágica denúncia tanto dos crimes nazistas quanto dos comunistas. De resto, Grossman, como repórter, tinha vivido em primeira pessoa a batalha de Stalingrado e a marcha sobre Berlim, e tinha ficado impressionado com o fato de que a União Soviética, depois de tantas atrocidades, tivesse representado, naquela ocasião, “a justa causa” da liberdade: “O poder. Carros armados e aviões, terras, cidades, céus, ferrovias, leis, jornais, rádio: tudo está nas suas mãos. O mundo silencia, achatado, submetido por bandidos com camisa marrom que o mantém em suas mãos. E no entanto, a muitos milhares de quilômetro, nas margens distantes do Volga, a artilharia soviética troveja ainda, proclamando obstinadamente a vontade do povo russo de lutar até a morte pela liberdade, e despertando, chamando para a luta os povos do mundo” (p. 28).
Mas isso não é tudo. Também nessa obra emerge a grandeza de Grossman, que não apenas é a grandeza do cronista ou do antinazista. Diante do drama da destruição do humano, Grossman reflete sobre a profundeza da natureza humana e sobre o significado da vida e da morte, dando voz àquelas perguntas últimas, que florescerão de modo emblemático na sua obra-prima Vida e Destino. “... Com um esforço sobre-humano uma mãe terá tentado conseguir um pouco mais de espaço para o seu filhos, esperando aliviar, pela milionésima vez, o seu último respiro. ‘Por que me sufocam? Por que não posso amar e ter filhos?’ terá se perguntado uma garota com a língua já entorpecida. A cabeça gira, um nó aperta a garganta. O que terão visto aqueles olhos vítreos, apagados? Cenas de infância e de dias felizes, ou talvez a duríssima última viagem?” (p. 52).
De onde vêm estas perguntas, que tornam “clássico” um repórter e interessante um livro que fala de fatos históricos distantes? O poder da escrita de Grossman está na grande capacidade de identificação com as coisas, na capacidade de colher naquilo que observa os sinais da verdade de um fenômeno. É bastante significativa, a propósito, a descrição com a qual ele conclui o livro: quando Grossman e os soldados da armada vermelha chegam a Treblinka as construções foram destruídas, mas é a terra com a sua cor escura (por causa das cinzas de milhares de cadáveres que tinha sido espalhadas no chão) que fala da vida do lager. E é daquela cor e daquela terra que a investigação sobre os eventos históricos do campo e sobre o humano partem.
Assim é Grossman: escuta um fato particular com tudo de si, deixando que esse fato liberte aquela infinidade de perguntas para as quais o coração do homem é feito. No final da leitura, o silêncio domina, eco misterioso daquele silêncio que “sobrevinha quando as portas das câmaras de gás eram fechadas” (p. 46), mas também humilde comoção pelo dom da vida, de que é tecida cada página da obra de Grossman: “Que grande é o dom da humanidade! Um dom que não morre enquanto não morre o homem. E se também sobrevier uma época histórica breve mas tremenda na qual o animal tiver a precedência sobre o homem, o homem morto pelo animal conservará, de qualquer forma, até o último instante, força de ânimo, mente lúcida e coração ardente. Enquanto que o animal triunfante que o mata continuará a ser apenas um animal. Na imortalidade do espírito humano existe, implícito, um sombrio martírio, triunfo – porém – do homem que morre sobre o animal que vive” (p. 43).

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 30 de junho de 2010. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

Leia também:


- Cristãos no lager, de P. Colognesi (em italiano).