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sexta-feira, 6 de maio de 2011

Uma guilhotina para a razão

Por Paulo R. A. Pacheco

Aquilo a que alguns vêm chamando de "vitória jurídica", no caso da aprovação, por unanimidade, no STF, da união estável homoafetiva, só poderia ser assim chamada caso existissem duas forças jurídicas se antagonizando. O que não é, nem de longe, verdade: lembremo-nos de que a Carta Magna brasileira deixa bem claro aquilo que deve ser chamado "casamento", aquilo que deve receber o título de "família", eliminando, antes de qualquer conflito, toda e qualquer possibilidade de antagonismo - essa, por sinal, é a grande virtude de toda prescrição, vale dizer, descrever a ordenação dos fatos legais a partir da normalização, ou seja, da suposta ausência de casos contraditórios (não é preciso ser um grande sábio para saber que toda verdadeira norma, diga-se de passagem, não vem depois do delito, não é fruto do delito ou da necessidade de corrigir o delito a posteriori... a norma vem antes do delito e depois da identificação do Bem e do Justo e do Verdadeiro... é fruto da razão e não da reação). Lembremo-nos também de que não há, em parte alguma de nossa Constituição, impedimento implícito ou explícito para que, nos termos da lei, se estabelecessem contratos, de que natureza fossem, entre pares de mesmo sexo. Lembremo-nos, outrossim, de que o casamento civil ou o reconhecimento da união estável, para fins de proveito de benefícios, nada mais são que contrato registrado em cartório.
A vitória, evidentemente - e que, inclusive, é mister afirmar, fere a Constituição ao mudar o estatuto da célula social e fere o direito natural, ao estabelecer a definição de família a partir da opinião de um grupo (majoritário ou não, não interessa) - não é jurídica, mas ideológica. Vejam-se os votos proferidos pela totalidade dos senhores ministros do Supremo: não há um único caso de exercício inteligente da argumentação jurídica. Os "argumentos", quando muito, são tentativas medíocres de poetização do politicamente correto ou arremedos de justificação psicanalítica para o injustificável. Sim, a vitória foi da boçalidade e da ideologia. E não é preciso ser um jurista, um advogado, um "entendedor" de leis, basta ter um cérebro e saber usar a razão - atividade, a propósito, cada vez menos comum entre os homens na contemporaneidade.
Triste ver que o Supremo Tribunal Federal é feito de uma única voz... pior, de uma altissonante voz unida pela homologação do pensamento.
Vencendo-se essa primeira batalha ideológica, abre-se o precedente para que, aos poucos, se estabeleçam os "argumentos" (se é que se pode usar esta palavra no caso daquilo que nossos potentados do Judiciário vomitam) sobre os quais se construirão outras vitórias ideológicas, como a descriminação do aborto. Foi assim, no passado, quando a ideologia pró-divórcio venceu uma primeira batalha em prol do Estado Laico... plantando o conceito falacioso de que laicismo é sinônimo de laicidade. E o Estado, finalmente, depois de ter invadido nossos lares e mentes, invadirá nossos corpos... E as mulheres, "donas de seus corpos", descobrirão tarde demais que não dominam nada de si. E os homens e mulheres, finalmente livres para fazerem o que quiserem do "bônus" que carregam entre as pernas (metáfora usada pelo "ministro poeta" Ayres Brito), descobrirão tarde demais que o que fazem na intimidade não tem nada de privado.
Aumenta em mim o nojo por este estado de coisas. E temo pelo momento em que - talvez um pouco paranoicamente demais, é verdade - dizer do "nojo" pela mediocridade e pela patrulha do pensamento será crime passível de morte (e não exagero em dizer "morte"... porque todos sabemos que ela não precisa ser explicitamente corte de cabeças, à la iluminismo francês... basta que seja uma guilhotina usada contra a razão para que haja morte do quê de humano que define a pessoa).
Dixit.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Anatel ameaça o sigilo

E ainda há quem diga que essa história de projeto de controle estatal é pura paranoia de reacionário... A coisa que me impressiona é que ninguém se dê o trabalho de saber o que se passa nos porões do governo e das tais agências reguladoras que aí estão... ou que, quando sabem de alguma coisa, acham que tudo está dentro da normalidade e que não há nada a temer. Então, tá!
Abaixo, segue editorial do jornal O Estado de São Paulo do dia 21 de janeiro. Já há alguns dias tenho acompanhado essa história... entre estupefato e indignado.

Está em risco o direito de cada um ao sigilo telefônico e à privacidade. A ameaça parte da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), criada para regular um serviço de utilidade pública e para proteger o consumidor, não para bisbilhotar a vida dos clientes das telefônicas. A Anatel pretende instalar um sistema de fiscalização remoto, vinculado à estrutura das empresas, para ter acesso a informações sobre todas as chamadas. O objetivo, segundo a agência, é combater abusos contra o consumidor. Não haverá violação de sigilo, argumentam os defensores da proposta, porque o conteúdo das conversas será preservado. Esta alegação é insustentável.
É direito de cada um telefonar a quem quiser, quantas vezes quiser e por quanto tempo quiser sem ter de dar satisfações a qualquer agente público ou privado. O mesmo direito vigora no caso de cada ligação recebida. Sem ordem judicial, ninguém pode intrometer-se legalmente na vida de João ou de Antônio para verificar se foi feita alguma chamada para o número desta ou daquela pessoa. Mesmo para a autorização judicial há regras. O juiz tem de avaliar se há motivo razoável para a solicitação da quebra de sigilo. Além disso, ele deve limitar a autorização a propósitos bem definidos e por prazo determinado, para evitar a concessão de poderes excessivos à autoridade policial.
Dados como os pretendidos pela Anatel - números chamados, duração das conversas e frequência das ligações - têm sido usados em investigações policiais. Podem valer como indícios e até como provas. Autoridades policiais pedem autorização para a busca dessas informações precisamente porque o acesso aos dados configura quebra de sigilo. Essa é a interpretação aceita pelas Polícias e pela Justiça.
É também, e não por casualidade, a opinião de advogados atuantes no setor de telecomunicações. Bastará o acesso da agência ao número chamado, à data e à duração do contato para ser configurada a violação de sigilo, disse o especialista Pedro Dutra. "Isso é ilegal, desnecessário e ineficaz", acrescentou.
A Anatel já tentou incluir em contratos de concessão uma cláusula de acesso aos dados, mas as companhias se opuseram, lembrou o advogado Floriano de Azevedo Marques, também citado em reportagem publicada ontem no Estado. Se a agência insistir na tentativa, provavelmente haverá reação por via judicial, acrescentou o especialista.
A pretensão da Anatel é claramente contrária a um direito consagrado pela Constituição. Nenhuma esforço de justificação realizado até agora produziu mais que um arremedo de argumento. O simples acesso aos dados não envolve quebra de sigilo, disse uma fonte do governo mencionada na reportagem. A relação da Anatel com as informações sobre as chamadas seria análoga, segundo essa fonte, à relação da Receita com os dados fornecidos pelos contribuintes. A analogia é obviamente falsa.
As informações transmitidas pelo contribuinte ao Fisco são necessárias ao cumprimento das obrigações tributárias. O dever do Fisco em relação ao sigilo consiste em impedir o vazamento dos dados. Mesmo essa restrição, como se viu na última campanha eleitoral, foi violada mais de uma vez. A relação entre o usuário dos serviços de telecomunicações e a Anatel é muito diferente do vínculo entre o pagador de impostos e a Receita.
De fato, a relação é oposta: no caso das telecomunicações, o credor é o usuário da telefonia, enquanto a parte sujeita a obrigações é a Anatel. O cliente da operadora não tem obrigação de expor sua vida privada à agência, mas tem o direito de exigir proteção. Essa proteção não depende, obviamente, do acesso permanente àquelas informações. A desconfiança em relação aos dados fornecidos pela operadora, em caso de reclamação, é uma desculpa precária e uma confissão de incompetência técnica.
Se o acesso permanente às informações sobre telefonemas for considerado legalmente aceitável, o sigilo das comunicações estará correndo risco de extinção. Em nome da segurança dos cidadãos, a Polícia poderá reivindicar igual direito à bisbilhotice. Por enquanto, a maioria dos policiais e juízes continua levando a sério o preceito constitucional. A Anatel deveria imitá-los. 

* Editorial do jornal O Estado de São Paulo, do dia 21 de janeiro de 2011. Extraído da versão online do jornal.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Humm! Qualquer semelhança...

Há quase 80 anos atrás, no dia 10 de fevereiro de 1933, Joseph Goebbels, então futuro Ministro do Povo e da Propaganda do governo nazista, pronunciava o discurso abaixo (traduzido pelo Reinaldo Azevedo e que pode ser lido na íntegra aqui)... 11 dias depois, o adorável Adolf Hitler assumia como Chanceler da Alemanha...
Leiam um trecho do seu discurso... é preciso muito pouco para torná-lo um discurso que cabe muito bem na boca dos "inteliquituais" - nossos Ministros do Povo e da Propaganda (ou, para usar uma imagem bastante conhecida dos leitores de Orwell, Ministros da Verdade) - que assombram nossas universidades... Ai, ai! E a história se repete... e a impressão que tenho é que nada, ou muito pouco, se aprendeu... ou estamos de tal forma anestesiados e vacinados contra a verdade e os fatos que de nada adianta afirmá-los.

Companheiros,
Antes de o encontro começar, gostaria de chamar a atenção para alguns artigos da imprensa de Berlim que asseguram que eu não deveria merecer a atenção das rádios alemãs, uma vez que sou insignificante demais, pequeno demais e mentiroso demais para poder me dirigir ao mundo inteiro.
Nesta noite, vocês testemunharão um evento de massa como nunca aconteceu antes na história da Alemanha e, provavelmente, do mundo.(…)
Quando a imprensa judaica reclama que o movimento Nacional Socialista tem a permissão de falar em todas as rádios alemãs por causa de seu chanceler, podemos responder que só estamos fazendo o que vocês sempre fizeram no passado. Há alguns anos, não falávamos da boca pra fora quando dizíamos que vocês, judeus, são nossos professores e que só queremos ser seus alunos e aprender com vocês. Além disso, é preciso esclarecer que aquilo que esses senhores conseguiram no terreno da política de propaganda durante os últimos 14 anos foi realmente uma porcaria. Apesar de eles controlarem os meios de comunicação, tudo o que conseguiram fazer foi encobrir os escândalos parlamentares, que eram inúteis para formar uma nova base política.(…) Se hoje a imprensa judaica acredita que pode fazer ameaças veladas contra o movimento Nacional-Socialista e acredita que pode burlar nossos meios de defesa, então, não deve continuar mentindo. Um dia nossa paciência vai acabar e calaremos esses judeus insolentes, bocas mentirosas! E se outros jornais judeus acham que podem, agora, mudar para o nosso lado com as suas bandeiras, então só podemos dar uma resposta: “Por favor, não se dêem ao trabalho!”
Ademais, os nossos homens da SA e os companheiros de partido podem se acalmar: a hora do fim do terror vermelho chegará mais cedo do que pensamos. Quem pode negar que a imprensa bolchevique mente quando o [jornal] Die Rote Fahne, este exemplo da insolência judaica, se atreve a afirmar que o nosso camarada Maikowski e o policial Zauritz foram fuzilados por nossos próprios companheiros?
Esta insolência judaica tem mais passado do que terá futuro. Em pouco tempo, ensinaremos os senhores da Karl Liebnecht Haus [sede do Partido Comunista] o que é a morte, como nunca aprenderam antes. Eu só queria acertar as contas com os [nossos] inimigos na imprensa e com os partidos inimigos e dizer-lhes pessoalmente o que quero dizer em todas as rádios alemãs para milhões de pessoas.

Chesterton (2010), numa obra recentemente traduzida para o português - O homem eterno -, numa determinada altura do texto, faz uma longa sequência de argumentação acerca de uma certa tendência dos intelectuais em assumir falácias como se fossem verdades. Obviamente, que não o fazem ingenuamente... Ingênuo seria pensar que o fazem ingenuamente. Segundo ele, infelizmente há uma falácia que é muito fácil de ser assumida como verdadeira: "a falácia da suposição de que, pelo fato de uma ideia ser maior no sentido de mais ampla, ela é, por consequência, maior no sentido de mais fundamental, fixa e certa" (p. 77). Segue-se a essa afirmação um exemplo para ilustrá-la. Mas, podemos nos valer de um exemplo que nos é muito mais próximo: o lulo-petismo e toda a sua verborragia cheia de números acerca das melhorias sociais a que se chegou no país. Uma ideia, por mais ampla que seja, não é mais fundamental, fixa e certa. Converse (falo portanto daqueles com quem se pode conversar... porque há aqueles com quem é impossível um diálogo, visto que sequer levantam a cara da grama) com um petista e se entenderá o que estou dizendo: logo vem uma inundação de números para provar que, para que o miserável venha a ser pessoa, antes é necessário que tenha comida na barriga... Por mais vasta que seja a dedução a que chegam no seu "raciossímio", não passa de uma dedução... não é, portanto, uma verdade! Não é, portanto, nem fundamental, fixa nem certa, porque "embora a contradição possa lhes parecer um paradoxo, isso é exatamente o contrário da verdade. É a realidade grande que é secreta e invisível; é a realidade pequena que é evidente e enorme" (Chesterton, 2010, p. 79). Em outras palavras: enquanto se olhar para a enormidade dos números (que por verdadeiros que sejam são apenas deduções e não verdades), não se olhará para a pessoa, essa realidade "evidente e enorme", que não é aquilo que o Estado pensa dela... especialmente este Estado que se coloca acima do bem e do mal e que substitui a ontologia pelo moralismo... especialmente este Estado que, arrancando-nos o Ser e tudo que a Ele representa, arranca-nos a dignidade humana, arranca-nos a liberdade, arranca-nos o próprio ser, matando-nos aos poucos na medida em que nos imbeciliza e "mediocriza".

domingo, 26 de setembro de 2010

É indispensável o fundamento ético para a política

Viagem Apostólica de Sua Santidade Bento XVI
ao Reino Unido, por ocasião da beatificação do
Cardeal John Henry Newman
de 16 a 19 de setembro de 2010

Encontro com expoentes da sociedade civil, do mundo acadêmico, cultural e empresarial, com o corpo diplomático e com líderes religiosos, no Westminster Hall de Londres

17 de setembro de 2010

Onde pode ser encontrado o fundamento ético para as escolhas políticas? A tradição católica sustenta que as normas objetivas que governam o reto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da revelação. Segundo esta compreensão, o papel da religião no debate político [...] é ajudar na purificação e lançar luz sobre a aplicação da razão na descoberta dos princípios morais objetivos. [...] Só posso exprimir a minha preocupação diante da crescente marginalização da religião, particularmente do Cristianismo [...]. Existem alguns que sustentam que a voz da religião deveria ser calada, ou ao menos relegada à esfera puramente privada

Senhor Presidente,
Agradeço o senhor pelas palavras de boas-vindas que me dirigiu em nome de toda esta distinta assembleia. No dirigir-me a vós, sou consciente do privilégio que me é concedido de falar ao povo britânico e aos seus representantes no Westminster Hall, um edifício que tem um significado único na história civil e política dos habitantes destas Ilhas. Permiti-me manifestar a minha estima pelo Parlamento, que há séculos tem sede neste lugar e que teve uma influência tão profunda sobre o desenvolvimento de formas de governo participativas no mundo, especialmente no Commonwealth e mais em geral nos países de língua inglesa. A vossa tradição de “common law” constitui a base do sistema legal de muitas nações, e a vossa particular visão dos respectivos direitos e deveres do Estado e de cada cidadão, e da separação dos poderes, permanece como fonte de inspiração para muitos no mundo.
Enquanto falo a vós neste lugar histórico, penso nos inúmeros homens e mulheres que, ao longo dos séculos, fizeram a sua parte em importantes eventos que tiveram lugar entre essas paredes e marcaram a vida de muitas gerações de britânicos e de outros povos. Particularmente, gostaria de recordar a figura de Thomas More, o grande estudioso e estadista inglês, admirado por crentes e não crentes pela integridade com a qual foi capaz de seguir a própria consciência, mesmo que às custas de desagradar o soberano, de quem era um “bom servidor”, visto que tinha escolhido servir a Deus antes. O dilema com o qual Thomas More se confrontava, naqueles tempos difíceis, a perene questão da relação entre aquilo que é devido a César e aquilo que é devido a Deus, me oferece a oportunidade de refletir brevemente convosco sobre o justo lugar que o credo religioso mantém no processo político.
A tradição parlamentar deste país deve muito ao senso instintivo de moderação presente na nação, ao desejo de atingir um justo equilíbrio entre as legítimas exigências do poder do Estado e os direitos daqueles que lhe estão sujeitos. Se, de um lado, na vossa história, foram dados passos decisivos para colocar um limite ao exercício do poder, de outro lado, as instituições políticas da nação foram capazes de evoluir para um notável grau de estabilidade. Neste processo histórico, a Grã-Bretanha emergiu como uma democracia pluralista, que atribui um grande valor para a liberdade de expressão, para a liberdade e afiliação política e para o respeito do estado de direito, com um forte senso dos direitos e deveres dos indivíduos, e da igualdade de todos os cidadãos diante da lei. A doutrina social católica, mesmo que formulada em uma linguagem diferente, tem muito em comum com essa abordagem, se se considera a fundamental preocupação pela salvaguarda da dignidade de cada pessoa, criada a imagem e semelhança de Deus, e a sua ênfase sobre o dever das autoridades civis de promoverem o bem-comum.
E, na verdade, as questões de fundo que estavam em jogo no processo contra Thomas More continuam a se apresentar, em termos sempre novos, com o mudar das condições sociais. Cada geração, enquanto busca promover o bem-comum, deve se perguntar sempre de novo: quais são as exigências que os governos podem impor razoavelmente aos próprios cidadãos, e até onde eles podem se extender? A qual autoridade se pode apelar para resolver os dilemas morais? Estas questões nos levam diretamente aos fundamentos éticos do discurso civil. Se os princípios morais que sustentam o processo democrático não se fundam, por sua vez, sobre nada de mais sólido do que o consenso social, então a fragilidade do processo se mostra em toda a sua evidência. Aqui se encontra o desafio real para a democracia.
A inadequação de soluções pragmáticas, de curto prazo, para os complexos problemas sociais e éticos foi colocada em toda evidência da recente crise financeira global. Há um vasto consenso sobre o fato de que a falta de um fundamento ético sólido da atividade econômica tenha contribuído para criar a situação de grave dificuldade na qual se encontra, agora, milhões de pessoas no mundo. Assim como “cada decisão econômica tem uma consequência de caráter moral” (Caritas in Veritate, 37), analogamente, no campo política, a dimensão moral das políticas atuadas tem consequências de largo alcance, que nenhum governo pode se permitir ignorar. Um exemplo positivo disso pode ser encontrado numa das conquistas particularmente notáveis do Parlamento britânico: a abolição do comércio de escravos. A campanha que levou a esta legislação epocal baseou-se sobre princípios morais sólidos, fundados sobre leis naturais, e constituiu-se em contribuição para a civilização da qual esta nação pode ser, muito justamente, orgulhosa.
A questão central que está em jogo, portanto, é a seguinte: onde pode ser encontra o fundamento ético para as escolhas políticas? A tradição católica sustenta que as normas objetivas que governam o reto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da revelação. Segundo esta compreensão, o papel da religião no debate político não é tanto o de fornecer tais normas, como se essas não pudessem ser conhecidas pelos não crentes – ainda menos é o de propor soluções políticas concretas, o que é absolutamente fora das competências da religião –, mas é muito mais ajudar na purificação e lançar luz sobre a aplicação da razão na descoberta dos princípios morais objetivos. Este papel “corretivo” da religião na relação com a razão, todavia, não foi sempre bem acolhido, em parte porque formas distorcidas de religião, como o sectarismo e o fundamentalismo, podem se mostrar como causas de sérios problemas sociais. E, por sua vez, estas distorções da religião emergem quando é dada uma atenção insuficiente ao papel purificador e estruturante da razão dentro da religião. É um processo que funciona em via de mão dupla. Sem a correção fornecida pela religião, de fato, mesmo a razão pode cair com presa de distorções, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia, ou aplicada de modo parcial, que não leva em conta plenamente a dignidade da pessoa humana. Foi este uso distorcido da razão, no fim das contas, que deu origem ao comércio de escravos e, depois, aos muitos outros males sociais, até mesmo às ideologias totalitárias do século XX. Por isto, gostaria de sugerir que o mundo da razão e o mundo da fé – o mundo da secularidade racional e o mundo do credo religioso – têm necessidade um do outro e não deveriam temer entrar num profundo e contínuo diálogo, pelo bem de nossa civilização.
A religião, em outras palavras, para os legisladores não é um problema que precisa ser resolvido, mas um fator que contribui de modo vital para o debate público na nação. Neste contexto, devo exprimir a minha preocupação diante da crescente marginalização da religião, particularmente do Cristianismo, que está tomando forma em alguns ambientes, mesmo em nações que atribuem à tolerância um grande valor. Existem alguns que sustentam que a voz da religião deveria ser calada, ou pelo menos relegada à esfera puramente privada. Existem alguns que sustentam que a celebração pública de festividades como o Natal deveria ser desencorajada, segundo a discutível convicção de que ela poderia, de algum modo, ofender aqueles que pertencem a outras religiões ou a nenhuma. E existem outros ainda que – paradoxalmente com o objetivo de eliminar as discriminações – sustentam que os cristãos que assumem cargos públicos deveriam, em determinados casos, agir contra a própria consciência. Estes são sinais preocupantes da incapacidade de levar em conta nã apenas os direitos dos crentes à liberdade de consciência e de religião, como também o papel legítimo da religião na esfera pública. Gostaria, portanto, de convidar a todos vós, cada um nas respectivas esferas de influência, a buscar vias para promover e encorajar o diálogo entre fé e razão em cada nível da vida nacional.
A vossa disponibilidade neste sentido já se manifestou no convite sem precedentes que me fizestes hoje, e encontra expressão nestes setores de interesse nos quais o vosso governo se empenhou junto à Santa Sé. No campo da paz, houve trocas sobre a elaboração de um tratado internacional sobre o comércio de armas; acerca dos direitos humanos, a Santa Sé e o Reino Unido viram positivamente a difusão da democracia, especialmente nos últimos 65 anos; no campo do desenvolvimento, houve uma colaboração no alívio da dívida, no comércio justo e no financiamento para o desenvolvimento, sobretudo através da “International Finance Facility”, a “International Immunization Bond” e o “Advanced Market Commitment”. A Santa Sé está, além do mais, desejosa de buscar, com o Reino Unido, novos caminhos para promover a responsabilidade ambiental, para o benefício de todos.
Noto, outrossim, que o atual governo se empenhou para aplicar, até 2013, 0,7% da renda nacional a favor das ajudas para o desenvolvimento. Foi encorajante, nos últimos anos, notar os sinais positivos de um crescimento da solidariedade para com os pobres, que diz respeito ao mundo inteiro. Mas, para traduzir esta solidariedade em ação efetiva, é preciso novas ideias, que melhorem as condições de vida em áreas importantes como a produção de alimento, a formação, a ajuda às famílias, especialmente de imigrantes, e os serviços sanitários básicos. Quando está em jogo a vida humana, o tempo se faz sempre breve: na verdade, o mundo foi testemunha dos vastos recursos que os governos são capazes de recolher para salvar instituições financeiras tidas como “muito grandes para falirem”. Certamente, o desenvolvimento integral dos povos da terra não é menos importante: é um tarefa digna de atenção por parte de todo o mundo, verdadeiramente “muito grande para falir”. 
Este olhar geral para a cooperação recente enter Reino Unido e Santa Sé mostra bem o quanto o progresso tenha acontecido nos anos que transcorreram desde o estabelecimento de relações diplomáticas bilaterais, em favor da promoção no mundo dos muitos valores de fundo que compartilhamos. Espero e rezo para que esta relação continue a frutificar e que se reflita numa crescente aceitação da necessidade de diálogo e respeito, a todos os níveis da sociedade, entre o mundo da razão e o mundo da fé. Estou certo de que também neste país existem muitos campos nos quais a Igreja e as autoridades públicas podem trabalhar juntas pelo bem dos cidadãos, em harmonia com a histórica prática deste Parlamento de invocar a orientação do Espírito sobre aqueles que buscam melhorar as condições de vida de todo o gênero humano. Para que esta cooperação seja possível, as instituições religiosas, compreendido nisso aquelas ligadas à Igreja católica, devem ser livres para agir de acordo com os próprios princípios e as convicções específicas que lhes são próprias também, fundamentadas sobre a fé e sobre o ensinamento oficial da Igreja. Deste modo, poderão ser garantidos aqueles direitos fundamentais, como a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e a liberdade de associação. Os anjos que nos olham da magnífica abóbada desta antiga sala nos lembra a longa tradição de onde se desenvolveu o Parlamento britânico. Eles nos lembra que Deus vigia constantemente sobre nós, para nos guiar e nos proteger. E eles nos chamam a reconhecer o contributo vital que o credo religioso concedeu e pode continuar concedendo para a vida da nação.
Senhor Presidente, agradeço-lhe ainda por esta oportunidade de me dirigir brevemente a este distinto auditório. Permita-me assegurar ao senhor e ao senhor Presidente da Câmara dos Lords os meus votos e a minha constante oração por vós e pelo frutuoso trabalho de ambas as Câmaras deste antigo Parlamento.
Obrigado, e Deus vos abençoe a todos!

* Texto extraído de Totus Tuus, traduzido por Paulo R. A. Pacheco.