domingo, 26 de setembro de 2010

É indispensável o fundamento ético para a política

Viagem Apostólica de Sua Santidade Bento XVI
ao Reino Unido, por ocasião da beatificação do
Cardeal John Henry Newman
de 16 a 19 de setembro de 2010

Encontro com expoentes da sociedade civil, do mundo acadêmico, cultural e empresarial, com o corpo diplomático e com líderes religiosos, no Westminster Hall de Londres

17 de setembro de 2010

Onde pode ser encontrado o fundamento ético para as escolhas políticas? A tradição católica sustenta que as normas objetivas que governam o reto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da revelação. Segundo esta compreensão, o papel da religião no debate político [...] é ajudar na purificação e lançar luz sobre a aplicação da razão na descoberta dos princípios morais objetivos. [...] Só posso exprimir a minha preocupação diante da crescente marginalização da religião, particularmente do Cristianismo [...]. Existem alguns que sustentam que a voz da religião deveria ser calada, ou ao menos relegada à esfera puramente privada

Senhor Presidente,
Agradeço o senhor pelas palavras de boas-vindas que me dirigiu em nome de toda esta distinta assembleia. No dirigir-me a vós, sou consciente do privilégio que me é concedido de falar ao povo britânico e aos seus representantes no Westminster Hall, um edifício que tem um significado único na história civil e política dos habitantes destas Ilhas. Permiti-me manifestar a minha estima pelo Parlamento, que há séculos tem sede neste lugar e que teve uma influência tão profunda sobre o desenvolvimento de formas de governo participativas no mundo, especialmente no Commonwealth e mais em geral nos países de língua inglesa. A vossa tradição de “common law” constitui a base do sistema legal de muitas nações, e a vossa particular visão dos respectivos direitos e deveres do Estado e de cada cidadão, e da separação dos poderes, permanece como fonte de inspiração para muitos no mundo.
Enquanto falo a vós neste lugar histórico, penso nos inúmeros homens e mulheres que, ao longo dos séculos, fizeram a sua parte em importantes eventos que tiveram lugar entre essas paredes e marcaram a vida de muitas gerações de britânicos e de outros povos. Particularmente, gostaria de recordar a figura de Thomas More, o grande estudioso e estadista inglês, admirado por crentes e não crentes pela integridade com a qual foi capaz de seguir a própria consciência, mesmo que às custas de desagradar o soberano, de quem era um “bom servidor”, visto que tinha escolhido servir a Deus antes. O dilema com o qual Thomas More se confrontava, naqueles tempos difíceis, a perene questão da relação entre aquilo que é devido a César e aquilo que é devido a Deus, me oferece a oportunidade de refletir brevemente convosco sobre o justo lugar que o credo religioso mantém no processo político.
A tradição parlamentar deste país deve muito ao senso instintivo de moderação presente na nação, ao desejo de atingir um justo equilíbrio entre as legítimas exigências do poder do Estado e os direitos daqueles que lhe estão sujeitos. Se, de um lado, na vossa história, foram dados passos decisivos para colocar um limite ao exercício do poder, de outro lado, as instituições políticas da nação foram capazes de evoluir para um notável grau de estabilidade. Neste processo histórico, a Grã-Bretanha emergiu como uma democracia pluralista, que atribui um grande valor para a liberdade de expressão, para a liberdade e afiliação política e para o respeito do estado de direito, com um forte senso dos direitos e deveres dos indivíduos, e da igualdade de todos os cidadãos diante da lei. A doutrina social católica, mesmo que formulada em uma linguagem diferente, tem muito em comum com essa abordagem, se se considera a fundamental preocupação pela salvaguarda da dignidade de cada pessoa, criada a imagem e semelhança de Deus, e a sua ênfase sobre o dever das autoridades civis de promoverem o bem-comum.
E, na verdade, as questões de fundo que estavam em jogo no processo contra Thomas More continuam a se apresentar, em termos sempre novos, com o mudar das condições sociais. Cada geração, enquanto busca promover o bem-comum, deve se perguntar sempre de novo: quais são as exigências que os governos podem impor razoavelmente aos próprios cidadãos, e até onde eles podem se extender? A qual autoridade se pode apelar para resolver os dilemas morais? Estas questões nos levam diretamente aos fundamentos éticos do discurso civil. Se os princípios morais que sustentam o processo democrático não se fundam, por sua vez, sobre nada de mais sólido do que o consenso social, então a fragilidade do processo se mostra em toda a sua evidência. Aqui se encontra o desafio real para a democracia.
A inadequação de soluções pragmáticas, de curto prazo, para os complexos problemas sociais e éticos foi colocada em toda evidência da recente crise financeira global. Há um vasto consenso sobre o fato de que a falta de um fundamento ético sólido da atividade econômica tenha contribuído para criar a situação de grave dificuldade na qual se encontra, agora, milhões de pessoas no mundo. Assim como “cada decisão econômica tem uma consequência de caráter moral” (Caritas in Veritate, 37), analogamente, no campo política, a dimensão moral das políticas atuadas tem consequências de largo alcance, que nenhum governo pode se permitir ignorar. Um exemplo positivo disso pode ser encontrado numa das conquistas particularmente notáveis do Parlamento britânico: a abolição do comércio de escravos. A campanha que levou a esta legislação epocal baseou-se sobre princípios morais sólidos, fundados sobre leis naturais, e constituiu-se em contribuição para a civilização da qual esta nação pode ser, muito justamente, orgulhosa.
A questão central que está em jogo, portanto, é a seguinte: onde pode ser encontra o fundamento ético para as escolhas políticas? A tradição católica sustenta que as normas objetivas que governam o reto agir são acessíveis à razão, prescindindo do conteúdo da revelação. Segundo esta compreensão, o papel da religião no debate político não é tanto o de fornecer tais normas, como se essas não pudessem ser conhecidas pelos não crentes – ainda menos é o de propor soluções políticas concretas, o que é absolutamente fora das competências da religião –, mas é muito mais ajudar na purificação e lançar luz sobre a aplicação da razão na descoberta dos princípios morais objetivos. Este papel “corretivo” da religião na relação com a razão, todavia, não foi sempre bem acolhido, em parte porque formas distorcidas de religião, como o sectarismo e o fundamentalismo, podem se mostrar como causas de sérios problemas sociais. E, por sua vez, estas distorções da religião emergem quando é dada uma atenção insuficiente ao papel purificador e estruturante da razão dentro da religião. É um processo que funciona em via de mão dupla. Sem a correção fornecida pela religião, de fato, mesmo a razão pode cair com presa de distorções, como acontece quando ela é manipulada pela ideologia, ou aplicada de modo parcial, que não leva em conta plenamente a dignidade da pessoa humana. Foi este uso distorcido da razão, no fim das contas, que deu origem ao comércio de escravos e, depois, aos muitos outros males sociais, até mesmo às ideologias totalitárias do século XX. Por isto, gostaria de sugerir que o mundo da razão e o mundo da fé – o mundo da secularidade racional e o mundo do credo religioso – têm necessidade um do outro e não deveriam temer entrar num profundo e contínuo diálogo, pelo bem de nossa civilização.
A religião, em outras palavras, para os legisladores não é um problema que precisa ser resolvido, mas um fator que contribui de modo vital para o debate público na nação. Neste contexto, devo exprimir a minha preocupação diante da crescente marginalização da religião, particularmente do Cristianismo, que está tomando forma em alguns ambientes, mesmo em nações que atribuem à tolerância um grande valor. Existem alguns que sustentam que a voz da religião deveria ser calada, ou pelo menos relegada à esfera puramente privada. Existem alguns que sustentam que a celebração pública de festividades como o Natal deveria ser desencorajada, segundo a discutível convicção de que ela poderia, de algum modo, ofender aqueles que pertencem a outras religiões ou a nenhuma. E existem outros ainda que – paradoxalmente com o objetivo de eliminar as discriminações – sustentam que os cristãos que assumem cargos públicos deveriam, em determinados casos, agir contra a própria consciência. Estes são sinais preocupantes da incapacidade de levar em conta nã apenas os direitos dos crentes à liberdade de consciência e de religião, como também o papel legítimo da religião na esfera pública. Gostaria, portanto, de convidar a todos vós, cada um nas respectivas esferas de influência, a buscar vias para promover e encorajar o diálogo entre fé e razão em cada nível da vida nacional.
A vossa disponibilidade neste sentido já se manifestou no convite sem precedentes que me fizestes hoje, e encontra expressão nestes setores de interesse nos quais o vosso governo se empenhou junto à Santa Sé. No campo da paz, houve trocas sobre a elaboração de um tratado internacional sobre o comércio de armas; acerca dos direitos humanos, a Santa Sé e o Reino Unido viram positivamente a difusão da democracia, especialmente nos últimos 65 anos; no campo do desenvolvimento, houve uma colaboração no alívio da dívida, no comércio justo e no financiamento para o desenvolvimento, sobretudo através da “International Finance Facility”, a “International Immunization Bond” e o “Advanced Market Commitment”. A Santa Sé está, além do mais, desejosa de buscar, com o Reino Unido, novos caminhos para promover a responsabilidade ambiental, para o benefício de todos.
Noto, outrossim, que o atual governo se empenhou para aplicar, até 2013, 0,7% da renda nacional a favor das ajudas para o desenvolvimento. Foi encorajante, nos últimos anos, notar os sinais positivos de um crescimento da solidariedade para com os pobres, que diz respeito ao mundo inteiro. Mas, para traduzir esta solidariedade em ação efetiva, é preciso novas ideias, que melhorem as condições de vida em áreas importantes como a produção de alimento, a formação, a ajuda às famílias, especialmente de imigrantes, e os serviços sanitários básicos. Quando está em jogo a vida humana, o tempo se faz sempre breve: na verdade, o mundo foi testemunha dos vastos recursos que os governos são capazes de recolher para salvar instituições financeiras tidas como “muito grandes para falirem”. Certamente, o desenvolvimento integral dos povos da terra não é menos importante: é um tarefa digna de atenção por parte de todo o mundo, verdadeiramente “muito grande para falir”. 
Este olhar geral para a cooperação recente enter Reino Unido e Santa Sé mostra bem o quanto o progresso tenha acontecido nos anos que transcorreram desde o estabelecimento de relações diplomáticas bilaterais, em favor da promoção no mundo dos muitos valores de fundo que compartilhamos. Espero e rezo para que esta relação continue a frutificar e que se reflita numa crescente aceitação da necessidade de diálogo e respeito, a todos os níveis da sociedade, entre o mundo da razão e o mundo da fé. Estou certo de que também neste país existem muitos campos nos quais a Igreja e as autoridades públicas podem trabalhar juntas pelo bem dos cidadãos, em harmonia com a histórica prática deste Parlamento de invocar a orientação do Espírito sobre aqueles que buscam melhorar as condições de vida de todo o gênero humano. Para que esta cooperação seja possível, as instituições religiosas, compreendido nisso aquelas ligadas à Igreja católica, devem ser livres para agir de acordo com os próprios princípios e as convicções específicas que lhes são próprias também, fundamentadas sobre a fé e sobre o ensinamento oficial da Igreja. Deste modo, poderão ser garantidos aqueles direitos fundamentais, como a liberdade religiosa, a liberdade de consciência e a liberdade de associação. Os anjos que nos olham da magnífica abóbada desta antiga sala nos lembra a longa tradição de onde se desenvolveu o Parlamento britânico. Eles nos lembra que Deus vigia constantemente sobre nós, para nos guiar e nos proteger. E eles nos chamam a reconhecer o contributo vital que o credo religioso concedeu e pode continuar concedendo para a vida da nação.
Senhor Presidente, agradeço-lhe ainda por esta oportunidade de me dirigir brevemente a este distinto auditório. Permita-me assegurar ao senhor e ao senhor Presidente da Câmara dos Lords os meus votos e a minha constante oração por vós e pelo frutuoso trabalho de ambas as Câmaras deste antigo Parlamento.
Obrigado, e Deus vos abençoe a todos!

* Texto extraído de Totus Tuus, traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

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