sábado, 13 de junho de 2009

Tu apenas, ó ideal, se penso, és verdadeiro


O testemunho de Enzo Piccinini no dia 12 de dezembro de 1998, durante os Exercícios Espirituais dos Universitários de Comunhão e Libertação, em Rímini, Itália. Enzo era um dos responsáveis de CL e faleceu em um acidente de carro em maio de 1999

Eu sou cirurgião na Universidade de Bolonha. Todas as vezes que me pedem para falar da minha experiência, o primeiro sentimento que tenho é de fugir porque – não sei o que vocês pensam – é difícil falar em público sem fingir sobre as coisas que mais se amam. E esta vida é a coisa que eu mais amo em absoluto.
Por isso, tenho uma espécie de temor, de pudor, porque o movimento, para mim, foi e é literalmente a minha salvação – literalmente! Eu não sei onde estaria sem o movimento. Sobretudo se penso em alguns anos atrás... seria absurdo só de pensar – chamaria de louco a qualquer um que me tivesse dito que estaria aqui, hoje, dizendo-lhes as coisas que lhes direi... porque isso foi algo que entrou devagar e foi me mudando inesperadamente.
Uma outra coisa, antes ainda de continuar: exatamente por isso que lhes disse, para mim é muito claro que tudo aquilo que eu sou eu recebi, me foi dado; por isso, é uma gratidão que não sei eliminar: quando os amigos me pedem um sacrifício pelo movimento, eu o faço com muito prazer.
Quando comecei a minha carreira universitária (a minha profissão, digamos assim, porque não era claro ainda), eu tinha terminado a faculdade de medicina e tinha que procurar uma referência para seguir profissionalmente, um mestre. Eu estava interessado em seguir a carreira de cirurgião, mas não tinha, então, diante de mim ninguém do movimento ou amigos mais próximos com os quais pudesse conversar sobre isso; por isso, fiz a coisa mais normal do mundo: fui atrás de todos os cirurgiões que existiam na universidade e escolhi aquele que me correspondia mais imediatamente. Escolhi aquele que eu sentia que coincidia com o que dizia: era um homem que era o que dizia, e me interessa algo assim; tinha ficado muito tocado por essa sua posição humanamente inteira. Assim, fui atrás dele, mas do jeito que um rapaz daquela idade segue (penso em vocês); eu era muito afeiçoado a ele, olhava para o modo como se movia, o que fazia, como repetia as coisas; na sala de operação eu ficava atento aos mínimos detalhes de seus movimentos etc.; lembro-me de que tinha um tic nervoso e que, com o tempo, acabei descobrindo em mim.
Naquela época, não éramos uma comunidade muito grande, e eu o convidava sempre para as reuniões da comunidade, quando fazíamos alguma assembléia, com a idéia de que, no fim das contas, ele nunca viria mesmo, mas eu continuava fazendo os convites... ficaria muito contente se ele aparecesse. Assim, um dia, eu o encontrei na assembléia. Vocês podem imaginar o temor e o tremor que eu senti: era um respeito e uma veneração... como alguém diante de um mestre que estima demais. Eu o encontrei ali e vocês podem imaginar estes 30 ou 40 rapazes que éramos, no máximo, todos jovens e este tipo careca que aparecia com sua cara de suiço: era uma característica sua que nunca perdeu. Já viram o telejornal suiço? Falam de uma festa ou do fim do mundo com a mesma cara, igual. E ele era exatamente assim. Eu estava ali todo duro, com um italiano perfeito, procurava as palavras certas, nenhum palavrão, e mantinha os olhos sempre nele. Eu me entusiasmava, e ele “suiço”; eu continuava, e ele “suiço”. Chego ao fim, ele se levanta e vai embora: sempre com mesma expressão. Dou os avisos correndo, paro-o na porta e com um estado de ânimo que vocês podem imaginar, lhe digo: “Professor, o que achou?”. Ele me olha – suiço – e diz: “Piccinini, estas coisas são para jovens: são belas, são verdadeiras, mas são para rapazinhos! Caem bem para vocês, para você, porque não sabe o que é a vida. Eu tive compromissos, a minha vida foi difícil, muitas dificuldades, mesmo desastres. Estas são coisas que os jovens fazem, é um entusiasmo que só os jovens têm”. Naquela hora, pessoal, desabou um mito e o tic nervoso desapareceu. Porque a consciência que me veio claramente era a de que algo é reconhecido como verdadeiro porque corresponde e permanece para sempre assim, mesmo porque o que reconhece o verdadeiro é como um detector, algo que temos dentro de nós e que nos caracteriza, e é esta exigência de verdade, de beleza, de justiça, de amar e de ser amados, que chamamos coração. Isto é estrutural e não pode ser colocado entre parênteses porque a situação é difícil ou porque as coisas não voltam ou porque ficamos velhos. É estrutural e é o ponto que nos caracteriza e que nos faz reconhecer as coisas verdadeiras que permanecem para sempre, e não se trata de um problema de idade ou de circunstância.
Desde aquele momento eu entendi que o problema era apenas um: que a unidade da minha pessoa (porque o que estava em questão era aquilo, mesmo diante de suas observações), a unidade da minha pessoa estava toda naquele fator que eu tinha dentro de mim e que me acompanhava do mesmo jeito que me acompanhou quando eu era mais jovem, quando comecei a jogar futebol, até quando cheguei à universidade, até agora. Era algo que me caracterizava: uma exigência de felicidade que nada poderia cancelar e que, de qualquer maneira, viria à tona sempre, mesmo que como uma amargura. Eu tinha entendido isso, e entendi desde então que a unidade da pessoa começa pelo fato de que a pessoa coloca o coração naquilo que faz, e isto – acreditem em mim – vale para quem, como eu, tem o que fazer diante de situações dramáticas (que, daqui a pouco, lhes contarei), mas vale também para quem está diante de um computador, assim como vale para quem faz as compras, ou para quem limpas as escadas: é igual. Colocar o coração naquilo que se faz significa colocar em jogo essa exigência de felicidade que é indomável porque é estrutural em nós.
Mas a vida, pouco tempo depois, começaria a se complicar e eu também fiz a experiência, como ele também fez, das situações que descrevia. Assim, tive que mudar de cidade, tive que mudar minha situação: fui para uma Divisão Cirúrgica maior, onde eu era considerado um intruso e, por isso, evidente e imediatamente, mors tua vita mea, por isso, um erro meu era motivo de festa para os outros... eu estava submetido, todos os dias, a um controle e a uma tensão que eram impressionantes. Além disso, minha família cresceu: no meio tempo, rindo e fazendo brincadeiras, eu tinha tido quatro filhos. E era um problema sério, porque eu não tinha dinheiro, e meus pais continuavam a me dar dinheiro. Era um pouco uma humilhação. Finalmente, eu disse a eles – e, nessa época, me davam também queijo e roupas – que eu ainda precisava era de dinheiro. Junto disso tudo, tinha ainda o empenho com o movimento. Eu havia me tornado, tout court, o responsável da maior comunidade do CLU da Itália – a de Bolonha – e, portanto, tinha ainda todo um conjunto de questões. E, nesse ponto, entendi que, de novo, a unidade da pessoa não poderia ser um equilíbrio procurado entre as atividades, as questões, as coisas a fazer, porque isto não era suficiente, mesmo porque eu não conseguia. O tempo, a disponibilidade, o trabalho, a família: não podia ser assim, porque colocar o coração naquilo que se faz não podia significar salvar tudo. Não podia ser: era uma totalidade mesmo dentro das circunstâncias que não podiam se resolver imediatamente ou aquelas que eu não conseguia colocar juntas por minha própria conta.
Assim, eu entendi que é possível colocar o coração naquilo que se faz se se está diante de algo maior do que você. É preciso algo maior do que você diante de si: trata-se daquilo que, na Escola de Comunidade, chamamos destino. Isso era o que poderia me ajudar, em cada situação a colocar o coração: algo maior do que eu, maior do que a minha capacidade. Cada passo da vida (ir para casa ou ir a uma assembléia com os universitários, ou, pela manhã, ir ao hospital) é um caminho em direção ao destino, sempre... cada passo é isso, é a resposta ao destino é o empenho com o destino.
Mas, não basta: não fica em pé nem mesmo assim. E tive que entender isso depois. Porque, no passar do tempo, o meu empenho universitário cresceu, a minha capacidade profissional se incrementou e, por isso, eu comecei a me tornar um ponto de referência no giro profissional que eu frequentava. E, por isso, cada vez mais me chegavam casos mais complicados e eu começava a ver que se as coisas iam bem ou mal não era sempre por um sucesso.
Assim, me lembro ainda, o que aconteceu com o pai de um de nós: foi operado e sua situação se complicou, eu o operei de novo e voltou a se complicar e foi assim por quase um ano, até que ele morreu. E nunca mais fiquei tranquilo com isso. Até que, um dia – estávamos numa reunião de responsáveis em Milão... éramos poucos com Giussani –, saindo da reunião de responsáveis, eu estava no corredor, Giussani se aproximou e me disse: “Como vai?”. E eu disse: “Tudo bem”. Ele para e me diz: “Como, tudo bem? O que está acontecendo?”. Disse-lhe: “Nada... bobagens. Depois daquelas coisas que nos dissemos no encontro, estas coisas são bobagens. Deixemos disso... não importa”. Ele parou, de repente – estava cansadíssimo - no corredor (e passava um monte de gente!): “Espera aí! Desculpe-me, Enzo, com todas essas bobagens que nos dissemos, quando há algo realmente importante não falamos sobre isso?”. Fiquei paralisado e disse: “Desculpe-me... olha, eu não queria, mas me aconteceu isto e me sinto culpado... não consigo mais dormir. Quer dizer, durmo uma hora, depois me vem à mente essa coisa... Mesmo a minha mulher está preocupada, porque depois de uma hora de sono me levanto... as coisas estão assim”. Ele me olha e me dá uma resposta que era a mais impensada – eu não podia nem mesmo imaginá-la. Ele me olha e diz: “Mas, Enzo... você, justo você”, com um rosto de desiludido, “justo você se comporta como se Cristo não existisse?! E como se tudo dependesse das suas mãos. Mas, como você pode acreditar que as coisas vão para frente assim? Você nunca mais fará as coisas que faz, você as fará como todos: buscar o que não lhe fere e que lhe deixam no lugar. Você nunca mais vai arriscar”. Depois, completou: “De qualquer maneira, eu quero voltar a falar disso com você. Quando puder, pode vir aqui?”. Imaginem! Dois dias depois, eu voltei. Nós nos encontramos em um almoço e ele disse: “Então, conta de novo”. Então, contei e disse: “Escute, Giussani, olha... eu não quero roubar o seu tempo, porque eu entendi. Olha só: lá onde trabalho tem uma capelinha e, agora, antes de ir para a sala de operação, eu passo ali e rezo e as coisas, então, entram no lugar. Estou mais tranquilo”. Aí, ele solta essa: “Enzo, mas que história é essa de rezar e rezar!? O problema não é rezar, é que você não sabe oferecer. O seu problema é que não sabe oferecer, e oferecer significa que a realidade não é algo que você tem nas mãos, não é sua, e que tudo aquilo que se faz é como se tivesse dentro um pedido de que o Senhor, o dono desta realidade, se revele, porque é assim que se vive... e você, me escute – já lhe disse isso, mas digo outra vez –, você vai parar de fazer o que faz e começará a ter medo de se arriscar”. E, de fato, era verdade, era impressionantemente verdade: já fazia dois meses que eu dizia a meus assistentes mais velhos: “pessoal, vamos parar de fazer essas intervenções: não precisamos de problemas... eu tenho que fazer minha carreira... e quanto menos problemas melhor”. Mas, a discussão continuou e ele me disse: “Mas, você sabe o que quer dizer oferecer? Quer dizer reconhecer que a realidade não é sua, que você não a fez, que você não é dono das coisas. Quer dizer que você está diante da realidade com uma pobreza que é o modo mais verdadeiro, mais autêntico de estar: nesse caso, você é seriamente mais realista, leva em consideração as coisas, se dá conta dos limites que tem... se não sabe, vai pedir e pedir e não deverá defender a sua imagem, a sua posição”.
Em suma, eu lhes disse, colocar o coração no que se faz é possível em qualquer situação, desde que haja algo maior do que você, mas este algo maior que você deve ser presente. Presente, quer dizer algo a que pode se dizer: “Eis, eis aqui”, isto é algo que você reconhece, a que responde a partir daquilo que faz. E responder a alguém ou a algo daquilo que se faz é o modo com o qual a realidade se torna dramaticamente presente, de outra maneira resta apenas o que você pensa, o que você sente, o que dá certo, o que não dá certo, e você cancela as coisas que não dão certo ou que não sente... porém, existe mesmo aquilo que você não sente ou aquilo que não dá certo.
Mas, não tinha acabado ainda: é esta a coisa que, ultimamente, é ainda mais clara. Não tinha acabado, porque, pouco tempo depois, aconteceu um episódio que me esclareceu o ponto final da questão (este é um episódio que dificilmente esquecerei): uma das nossas, a quem eu era muito afeiçoado, foi operada em um outro hospital e a sua situação se complicou. Giussani, num domingo de manhã, me telefona e me diz: “Você daria conta de assumir essa situação?”. Naquele hospital trabalhavam os meus chefes, por isso era um belo problema, ainda mais porque eu estava sob avaliação. Então, não conto isso a Giussani, mas digo: “Bem, se é necessário, eu o faço”. Faz-se. Vou até lá e, depois de pouco tempo – faço tudo muito rápido –, ele me pergunta: “Você acha que pode levá-la com você para Bolonha?”. Digo: “Caramba! Essa é dura”, mesmo porque em todos as conversas que tive com os cirurgiões, gente que eu conhecia muito bem, eles me havia dito: “Olha, não toque nela, não faça nada, porque nós a operamos: não é operável. Não faça nada, porque ela pode morrer nas suas mãos, entende? Empurre-a para frente, assuma-a [eles estavam contentes de quase me passarem o caso], mas não toque nela porque pode morrer, entende? Empurre-a para frente até que consiga algo com a terapia médica e espere que a coisa se resolva sozinha”. Assim, tomei-a comigo e trouxe para Bolonha e fiz literalmente assim: procurava de toda maneira entender se existia alguma margem para levá-la adiante sem empenhar-me com algo que já me haviam dito explicitamente que não era possível. E como quem me havia dito isso não era gente inexperiente, era verossímil. Empenhei-me seriamente a entender que margem eu tinha de espera, mas todos os dados me mostravam que não era possível esperar. Assim, num determinado momento, tive que ir em frente, tive que fazer. Era preciso fazer: os dados não me permitiam brincar com ela, não me permitiam deixá-la esperando. No dia em que decidi fazer a intervenção para o dia seguinte, mais tarde liguei para Giussani. Porque – eis o que eu queria dizer para vocês – não basta dizer que é necessário algo maior que esteja presente; não se consegue colocar o coração no que se faz, não se resiste por muito tempo, porque depois de um pouco de tempo a realidade é dura e o coração cede e, depois de outro pouco de tempo, começa o lamento e a autodefesa... é necessário não estar sozinhos. Assim, peguei o telefone e procurei Giussani. Tive a sorte de encontrá-lo e lhe disse: “Desculpe-me, Giussani, se telefono a essa hora da noite. Não quero que você resolva os particulares técnicos ou que me diga o que devo fazer, porque os dados já me levaram até esse ponto. Porém, se eu não tivesse encontrado você, teria que ter procurado outra pessoa qualquer porque – não sei se é errado ou não – preciso de uma comparação, de uma ajuda, de um conforto. De um conforto... mesmo que simplesmente um conforto, porque estou com medo e não estou tranquilo”. Ele me disse: “Não está errado, é muito justo. Porque toda a certeza científica não pode dar a você a segurança de tentar, bem como não pode dar a você a segurança na vida. É preciso a memória de um relacionamento vivo com você, de outra forma não é possível sair das próprias medidas, do que pode fazer”. Depois, disse: “Escute, os dados dizem o que dizem... diante de Deus, é necessário seguir em frente. Diante dos homens, não sei, mas não importa: diante de Deus, é preciso seguir em frente!”. Extraordinária aquela coisa! Extraordinária, pessoal, porque é uma certeza que é devida ao fato de que os dados são as circunstâncias, entendem? Não é apenas o fato das quatro radiografias: são as circunstâncias às quais deve responder, com as quais você olha para você, porque aquilo é o rosto com o qual Deus se apresenta na sua vida. E assim, eu a operei. E foi um intervenção incrível (me lembro ainda do tempo que durou). Depois, deixei passar um pouco mais de dias, porque não sabia ainda quais seriam os resultados. Três ou quatro dias depois, entendi que as coisas estavam caminhando bem e, então, liguei para Giussani: “Giussani, está inesperadamente caminhando tudo bem”. Silêncio. Depois, diz: “Desculpe, mas você tinha dúvidas?”. “Se eu tinha dúvidas? Eu estava cheio de dúvidas até o pescoço... era uma desastre, até emagreci”. E ele diz: “Olha, eu disse para você”... Foi bonito o que ele me disse: “Olha, nós vamos rezar a Deus e a São Pampuri, e você vai”. E no fim, ele me disse: “Obrigado por ter sido instrumento de um milagre”. É isso, pessoal, esta é a posição justa na vida, porque não poderia nem mesmo me ensoberbecer por tudo o que eu tinha feito. “Instrumento de um milagre”, quer dizer que eu não fiz nada. Se esta é a posição na vida, desculpem-me, mas que medo se pode ter mais na vida? O que pode fazer a gente parar?
A última observação sobre a minha profissão (e será brevíssima). Há dois ou três meses atrás, aconteceu um fato grave comigo e eu disse para Giussani: “Eu não sei mais – às vezes, me veem dúvidas atrozes – se o que faço e arrisco – é a última dúvida que tenho – se aquilo que faço e arrisco é fruto de um temperamento meu ou é uma obediência séria à realidade. Existe alguma maneira de entender? Às vezes, me parece que eu tenho o temperamento de arriscar assim. Existe alguma maneira de entender se é o meu temperamento ou é uma obediência à realidade?”. “Sim, e é aquele oferta de que lhe falei diante de algo presente, porque diante de algo presente é como a criança que está ali, está fazendo alguma coisa errada, chega o pai e entende o erro que está fazendo. Porque o presente dá uma dramaticidade. Alguém ou algo a quem responder àquilo que se faz dá uma dramaticidade à vida de tal forma que as coisas se tornam mais autenticamente presentes. Ir trabalhar assim, pode ser muito cansativo, você pode estar com a consciência toda virada, mas você levanta a cabeça e responde logo. E, depois, por que você tem medo do seu temperamento? [Pessoal, esta foi uma libertação para mim!] Por que você tem medo do seu temperamento? Se Deus fez você assim, quer dizer que você deve ser aquilo que você é! Por que deve ter medo do seu temperamento?”. Foi uma outra libertação, porque eu me penso sempre como sou, instintivo e violento.
Se este é o percurso da minha questão profissional, o outro ponto inesquecível da minha vida é ter entendido o que quer dizer querer bem. Estávamos, uma vez, no carro (eu estava levando Giussani de Cesena a Bolonha), conversando (muitas vezes, eu era seu motorista). Conversávamos e ele, então, me pergunta: “Como vai? Como vai a sua família?”... era um período em que já há um tempo (mas muito tempo mesmo) eu escutava muito frequentemente as observações que me faziam as pessoas que me circundavam: “mas, os seus filhos, a sua mulher... que vida é essa?”. E eu nunca tinha levado isso muito a sério, porque são coisas que me interessavam muito relativamente: eu sei o que sinto como verdadeiro e do que não me posso subtrair. Só que, depois de um tempo, estas coisas começaram a entrar dentro de mim e eu comecei a me perguntar: “Mas, que vida é essa que levo?”. Então, disse: “Giussani, tenho uma dúvida que me veio dentro e que, forçado a olhar para ela, comecei a me perguntar: que vida é essa que levo? Mas, eu os quero bem ou não?”. Ele disse: “Mas, escute, você quer bem à sua família?”. Disse: “Sim”. “Você quer bem aos seus filhos?”. Disse: “Sim”. “Me dê um exemplo!”. Não sei quantos de vocês já conseguiu dar um exemplo para uma pergunta dessas. Eu não sabia o que dizer. Então, contei-lhe o que acontecia: “Olha só... acontece muito frequentemente que chego em casa tarde, seja por causa da profissão que por causa do movimento, e minha mulher (naquela época, morávamos numa casa muito pequena – agora, é maior... mas está vazia, porque os filhos foram embora) deixa as portas dos quartos entreabertas para ouvir algum choro das crianças, se elas acordarem... Eu chego e preciso acender apenas as luzes da entrada, porque se acendo as outras os meninos acordam e fazem uma bagunça danada e minha mulher fica brava com isso... Acendo a luz da entrada, entro devagarzinho, tiro as roupas no corredor, sem fazer barulho; das portas entreabertas entra um pouquinho de luz que ilumina as caminhas de meus filhos. É difícil descrever, mas sinto uma ternura infinita ao vê-los ali na cama. Então, furtivamente, entro, pego um e, algumas vezes, acordam: ‘Papai!’. ‘Psiu! Senão a mamãe...’. Abraço-os e dou um beijinho...”. Então, disse a Giussani: “Em suma, acho que os quero bem”. E Giussani diz: “Não é assim que se quer bem. Olha só: o modo verdadeiro de querer bem é que exatamente quando esta ternura é intensa, verdadeira e irresistível, humanamente irresistível, você deveria dar um passo para trás, olhá-los e dizer: ‘O que será deles?’, porque querer bem é entender que têm um destino, que não são seus, são seus e não são seus, que têm um destino e que é exatamente olhando para a dramaticidade que o destino impõe no relacionamento e nas coisas, no futuro e no presente, que você os respeitará, os quererá bem, estará disposto a fazer tudo por eles, não vai se deixar chantagear se eles obedecem a você ou não”.
Aquilo era uma coisa nova, que entendo que é verdadeira sempre. Pensem quando um homem e uma mulher se querem bem: se não tem esse juízo, é como entre os cães, é a mesma coisa; o que há de diferente? É impressionante, porque aquilo me iluminou. Lembro-me de um encontro com Giussani, em Chieti, quando ele, pela primeira vez, introduziu, potente e publicamente, a questão do “tu”. Do “Tu” que faz do outro um “tu”; este Mistério que faz o “tu” ter consistência é um “Tu”, é algo com o qual você olha e, de repente, nasce um respeito, uma familiaridade e um respeito repentino, desconhecido antes, mas tão intenso... Mas... acrescento um detalhe: os filhos cresceram e foram todos embora... uma foi para a China, que é o lugar mais feio do mundo (me desculpo com os chineses presentes... mas vocês sabem disso também, né?). Mas, é verdade! Ir para a China é como voltar atrás dois mil anos de uma vez só. De fato, eu nunca entendi por que os meus colegas têm todo este amor pelo Oriente. Um outro que, segundo eu pensava, deveria ter feito a carreira de medicina, foi fazer Ciência da Comunicação em Lugano: entre os suiços de que lhes falava antes. De forma que não tem mais nenhum em casa. Às vezes, conseguimos nos encontrar todos, mas é raro. Assim, um dia, me encontrei com eles num almoço e eu pensava em uma coisa há bastante tempo e lhes perguntei: “Desculpem-me, por que vocês são do movimento? Eu nunca lhes falei do movimento... por que vocês são do movimento? É estranho, eu nunca falei disso com vocês”. É verdade, eu nunca tinha colocado esse problema na família: vivemos assim, eu vivi determinado por aquilo que começava a me tomar... e o vivi com minha mulher e com tudo. Então, depois de um tempinho, a mais velha respondeu: “Sabe por que somos do movimento? Primeiro, porque sempre ficamos tocados pela totalidade de sua dedicação ao movimento [que estranho: era exatamente o fator pelo qual eu era menos presente em casa, e foi a coisa que mais lhe tocou... Foi ali que entendi que é inútil, pessoal, tentar salvar tudo: o gosto pela vida, a beleza da vida é proporcional ao empenho com o ideal! O que vocês querem calcular ainda?...], e depois a outra coisa que nos tocou sempre é que quando você trazia seus amigos e nós os víamos ali, era um tipo de amizade que sempre havíamos desejado para nós”.
Pessoal, este é o ponto, porque a autoridade da nossa vida é uma amizade, e é uma amizade que toca porque é uma amizade que é impossível sem aquilo que nos dissemos e nos estamos dizendo hoje, e é um tipo de amizade que transparece numa modalidade de relacionamento, de dedicação, de totalidade, de intensidade, de serviço recíproco. Mas, onde encontram algo assim? Onde é possível? E, de fato, Cristo está presente numa amizade na qual a única razão é Ele. E é isto que convence a todos: fui convencido por isto. Em suma, eu entendo que aqui se joga tudo, nesse nível se joga tudo.
Então, desculpe-me, concluo. Duas coisas na minha vida são importantes. A primeira é esta: que exatamente por aquilo que lhes disse o gosto da vida não é negado a quem erra, mas a quem não tem um senso do infinito, do destino, do ideal, do Mistério presente, porque, então, o problema não é errar ou não errar. O gosto da vida não é negado a quem erra: é negado a quem não tem um nexo com o Destino que faz as coisas, com o Mistério presente. De tal forma que tudo é uma hipótese positiva... o tempo, que para todos é sinônimo de decadência, trabalha positivimente. Se olho para a minha vida, quanta coisa aconteceu! Digo sempre: se aconteceu assim até agora, imagina o que acontecerá no futuro! Veremos coisas belas. É interessante ou não? É uma aventura.
E está exatamente aqui o problema, porque a segunda coisa é que se eu tivesse que comparar a minha vida, como ela se desenrolou (tem uma lei física que diz que o horizonte muda na medida em que se muda o ponto de observação), eu usaria esta metáfora: a minha vida é como um balão... quanto mais vou, quanto mais subo, mais me empenho, mais estou dentro desta vida, mais descubro aspectos do humano que eram impossíveis antes: a capacidade de fidelidade, de amizade, de lealdade, de retomada, de ser indomável... coisas que nunca havia pensado antes. Por isso – última coisa – é uma gratidão. Como comecei, assim quero terminar: é uma gratidão que caracteriza a minha vida, por isso não tenho medo de dá-la toda.

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