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domingo, 25 de dezembro de 2011

Deus manifestou-Se... como menino


Missa da noite de Natal
Solenidade do Natal do Senhor
Homilia do Santo Padre Bento XVI
Basílica Vaticana
24 de Dezembro de 2011

Amados irmãos e irmãs!
A leitura que ouvimos, tirada da Carta do Apóstolo São Paulo a Tito, começa solenemente com a palavra “apparuit”, que encontramos de novo na leitura da Missa da Aurora: “apparuit – manifestou-se”. Esta é uma palavra programática, escolhida pela Igreja para exprimir, resumidamente, a essência do Natal. Antes, os homens tinham falado e criado imagens humanas de Deus, das mais variadas formas; o próprio Deus falara de diversos modos aos homens (cf. Hb 1,1: leitura da Missa do Dia). Agora, porém, aconteceu algo mais: Ele Se manifestou, mostrou-Se, saiu da luz inacessível em que habita. Ele, em pessoa, veio para o meio de nós. Na Igreja antiga, esta era a grande alegria do Natal: Deus manifestou-Se. Já não é apenas uma ideia, nem algo que se há de intuir a partir das palavras. Ele “Se manifestou”. 
Mas agora perguntamo-nos: Como Se manifestou? Ele verdadeiramente quem é? A este respeito, diz a leitura da Missa da Aurora: “Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens” (Tt 3, 4). Para os homens do tempo pré-cristão – que, vendo os horrores e as contradições do mundo, temiam que o próprio Deus não fosse totalmente bom, mas pudesse, sem dúvida, ser também cruel e arbitrário –, esta era uma verdadeira ‘epifania’, a grande luz que se nos manifestou: Deus é pura bondade. Ainda hoje há pessoas que, não conseguindo reconhecer a Deus na fé, se interrogam se a Força última que segura e sustenta o mundo seja verdadeiramente boa, ou então se o mal não seja tão poderoso e primordial como o bem e a beleza que, por breves instantes luminosos, se nos deparam no nosso cosmos. “Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o Seu amor pelos homens”: eis a certeza nova e consoladora que nos é dada no Natal.
Na primeira das três leituras desta Missa de Natal, a liturgia cita um texto tirado do livro do Profeta Isaías, que descreve, de forma ainda mais concreta, a epifania que se verificou no Natal: “Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi concedido. Tem o poder sobre os ombros, e dão-lhe o seguinte nome: ‘Conselheiro admirável! Deus valoroso! Pai para sempre! Príncipe da Paz!’. O poder será engrandecido numa paz sem fim” (Is 9, 5-6). Não sabemos se o profeta, ao falar assim, tenha em mente um menino concreto nascido no seu período histórico. Mas isso parece ser impossível. Trata-se do único texto no Antigo Testamento, onde de um menino, de um ser humano, se diz: o seu nome será Deus valoroso, Pai para sempre. Estamos perante uma visão que se estende muito para além daquele momento histórico apontando para algo misterioso, colocado no futuro. Um menino, em toda a sua fragilidade, é Deus valoroso; um menino, em toda a sua indigência e dependência, é Pai para sempre. E isto “numa paz sem fim”. Antes, o profeta falara duma espécie de “grande luz” e, a propósito da paz dimanada dEle, afirmara que o bastão do opressor, o calçado ruidoso da guerra, toda a veste manchada de sangue seriam lançados ao fogo (cf. Is 9, 1.3-4).
Deus manifestou-Se... como menino. É precisamente assim que Ele Se contrapõe a toda a violência e traz uma mensagem de paz. Neste tempo, em que o mundo está continuamente ameaçado pela violência em tantos lugares e de muitos modos, em que não cessam de reaparecer bastões do opressor e vestes manchadas de sangue, clamamos ao Senhor: Vós, o Deus forte, Vos manifestastes como menino e mostrastes-Vos a nós como Aquele que nos ama e por meio de quem o amor há de triunfar. Fizestes-nos compreender que, unidos convosco, devemos ser artífices de paz. Amamos o vosso ser menino, a vossa não-violência, mas sofremos pelo fato de perdurar no mundo a violência, levando-nos a rezar assim: Demonstrai a vossa força, ó Deus. Fazei que, neste nosso tempo e neste nosso mundo, sejam queimados os bastões do opressor, as vestes manchadas de sangue e o calçado ruidoso da guerra, de tal modo que a vossa paz triunfe neste nosso mundo.
Natal é epifania: a manifestação de Deus e da sua grande luz num menino que nasceu para nós. Nascido no estábulo de Belém, não nos palácios do rei. Em 1223, quando Francisco de Assis celebrou em Greccio o Natal com um boi, um jumento e uma manjedoura cheia de feno, tornou-se visível uma nova dimensão do mistério do Natal. Francisco de Assis designou o Natal como “a festa das festas” – mais do que todas as outras solenidades – e celebrou-a com “solicitude inefável” (2 Celano, 199: Fontes Franciscanas, 787). Beijava, com grande devoção, as imagens do menino e balbuciava-lhes palavras de ternura como se faz com os meninos – refere Tomás de Celano (ibidem). 
Para a Igreja antiga, a festa das festas era a Páscoa: na ressurreição, Cristo arrombara as portas da morte, e assim mudou radicalmente o mundo: criara para o homem um lugar no próprio Deus. Pois bem! Francisco não mudou, nem quis mudar, esta hierarquia objetiva das festas, a estrutura interior da fé com o seu centro no mistério pascal. Mas, graças a Francisco e ao seu modo de crer, aconteceu algo de novo: ele descobriu, numa profundidade totalmente nova, a humanidade de Jesus. Este fato de Deus ser homem resultou-lhe evidente ao máximo, no momento em que o Filho de Deus, nascido da Virgem Maria, foi envolvido em panos e colocado numa manjedoura. A ressurreição pressupõe a encarnação. 
O Filho de Deus visto como menino, como verdadeiro filho de homem: isto tocou profundamente o coração do Santo de Assis, transformando a fé em amor. “Manifestaram-se a bondade de Deus e o seu amor pelos homens”: esta frase de São Paulo adquiria assim uma profundidade totalmente nova. No menino do estábulo de Belém, pode-se, por assim dizer, tocar Deus e acarinhá-Lo. E o Ano Litúrgico ganhou assim um segundo centro numa festa que é, antes de tudo, uma festa do coração.
Tudo isto não tem nada de sentimentalismo. É precisamente na nova experiência da realidade da humanidade de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava Jesus menino, porque, neste ser menino, tornou-se-lhe clara a humildade de Deus. Deus tornou-Se pobre. O seu Filho nasceu na pobreza do estábulo. No menino Jesus, Deus fez-Se dependente, necessitado do amor de pessoas humanas, reduzido à condição de pedir o seu, o nosso, amor. Hoje, o Natal tornou-se uma festa dos negócios, cujo fulgor ofuscante esconde o mistério da humildade de Deus, que nos convida à humildade e à simplicidade. Peçamos ao Senhor que nos ajude a alongar o olhar para além das fachadas lampejantes deste tempo a fim de podermos encontrar o menino no estábulo de Belém e, assim, descobrimos a autêntica alegria e a verdadeira luz.
Francisco fazia celebrar a santíssima Eucaristia, sobre a manjedoura que estava colocada entre o boi e o jumento (cf. 1 Celano, 85: Fontes, 469). Depois, sobre esta manjedoura, construiu-se um altar para que, onde outrora os animais comeram o feno, os homens pudessem agora receber, para a salvação da alma e do corpo, a carne do Cordeiro imaculado – Jesus Cristo –, como narra Celano (cf. 1 Celano, 87: Fontes, 471). Na Noite santa de Greccio, Francisco – como diácono que era – cantara, pessoalmente e com voz sonora, o Evangelho do Natal. E toda a celebração parecia uma exultação contínua de alegria, graças aos magníficos cânticos natalícios dos Frades (cf. 1 Celano, 85 e 86: Fontes, 469 e 470). Era precisamente o encontro com a humildade de Deus que se transformava em júbilo: a sua bondade gera a verdadeira festa.
Hoje, quem entra na igreja da Natividade de Jesus em Belém dá-se conta de que o portal de outrora com cinco metros e meio de altura, por onde entravam no edifício os imperadores e os califas, foi em grande parte tapado, tendo ficado apenas uma entrada com metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito com a intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assaltos, mas sobretudo para evitar que se entrasse a cavalo na casa de Deus. Quem deseja entrar no lugar do nascimento de Jesus deve inclinar-se. 
Parece-me que nisto se encerra uma verdade mais profunda, pela qual nos queremos deixar tocar nesta noite santa: se quisermos encontrar Deus manifestado como menino, então devemos descer do cavalo da nossa razão “iluminada”. Devemos depor as nossas falsas certezas, a nossa soberba intelectual, que nos impede de perceber a proximidade de Deus. Devemos seguir o caminho interior de São Francisco: o caminho rumo àquela extrema simplicidade exterior e interior que torna o coração capaz de ver. 
Devemos inclinar-nos, caminhar espiritualmente por assim dizer a pé, para podermos entrar pelo portal da fé e encontrar o Deus que é diverso dos nossos preconceitos e das nossas opiniões: o Deus que Se esconde na humildade dum menino acabado de nascer. Celebremos assim a liturgia desta Noite santa, renunciando a fixarmo-nos no que é material, mensurável e palpável. Deixemo-nos fazer simples por aquele Deus que Se manifesta ao coração que se tornou simples. E nesta hora rezemos também e sobretudo por todos aqueles que são obrigados a viver o Natal na pobreza, no sofrimento, na condição de emigrante, pedindo que se lhes manifeste a bondade de Deus no seu esplendor, que nos toque a todos, a eles e a nós, aquela bondade que Deus quis, com o nascimento de seu Filho no estábulo, trazer ao mundo. Amém.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 24 de dezembro de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Comentário ao Evangelho do dia - Advento


3ª Semana do Advento - Quarta-feira
São João da Cruz

1ª Leitura - Is 45, 6b-8.18.21b-25
"Eu sou o Senhor, não há outro, eu formei a luz e criei as trevas, crio o bem-estar e as condições de mal-estar: sou o Senhor que faço todas estas coisas. Céus, deixai cair orvalho das alturas, e que as nuvens façam chover justiça; abra-se a terra e germine a salvação; brote igualmente a justiça: eu, o Senhor, a criei." Isto diz o Senhor que criou os céus, o próprio Deus que fez a terra, a conformou e consolidou; não a criou para ficar vazia, formou-a para ser habitada: "Sou eu o Senhor, e não há outro. Quem vos fez ouvir os fatos passados e soube predizê-los desde então? Acaso não sou eu o Senhor? E não há deus além de mim. Não há um Deus justo, e que salve, a não ser eu. Povos de todos os confins da terra, voltai-vos para mim e sereis salvos, eu sou Deus e não há outro. Juro por mim mesmo: de minha boca sai o que é justo, a palavra que não volta atrás; todo joelho há de dobrar-se para mim, por mim há de jurar toda língua, dizendo: Somente no Senhor residem justiça e força". Comparecerão perante Ele, envergonhados, todos os que Lhe resistem; no Senhor será justificada e glorificada toda a descendência de Israel.

Salmo - Sl 84 (85) 
R. Que os céus lá do alto derramem o orvalho,
que chova das nuvens o Justo esperado! (Is 45,8)
Quero ouvir o que o Senhor irá falar:*
é a paz que Ele vai anunciar;
a paz para o Seu povo e Seus amigos,*
para os que voltam ao Senhor seu coração.
Está perto a salvação dos que O temem,*
e a glória habitará em nossa terra. R. 

A verdade e o amor se encontrarão,*
a justiça e a paz se abraçarão;
da terra brotará a fidelidade,*
e a justiça olhará dos altos céus. R. 

O Senhor nos dará tudo o que é bom,*
e a nossa terra nos dará suas colheitas;
a justiça andará na sua frente*
e a salvação há de seguir os passos seus. R.

Evangelho - Lc 7, 19-23
Naquele tempo, João convocou dois de seus discípulos, e mandou-os perguntar ao Senhor: "És Tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?". Eles foram ter com Jesus, e disseram: "João Batista nos mandou a Ti para perguntar: 'És Tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?'". Nessa mesma hora, Jesus curou de doenças, enfermidades e espíritos malignos a muitas pessoas, e fez muitos cegos recuperarem a vista. Então, Jesus lhes respondeu: "Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos recuperam a vista, os paralíticos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a Boa Nova é anunciada aos pobres. E feliz é aquele que não se escandaliza por causa de mim!".

Comentário feito por Beato João Paulo II (1920-2005)
papa

Diante dos Seus conterrâneos, em Nazaré, Cristo expõe as palavras do profeta Isaías: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor" (Lc 4, 18-19). [...] Mediante tais fatos e palavras, Cristo torna o Pai presente no meio dos homens. É muito significativo que estes homens sejam sobretudo os pobres, carecidos dos meios de subsistência, os que estão privados da liberdade, os cegos que não veem a beleza da criação, os que vivem com a amargura no coração, ou então os que sofrem por causa da injustiça social e, por fim, os pecadores. Em relação a estes últimos, de modo especial, o Messias torna-Se sinal particularmente visível de Deus que é amor, torna-Se sinal do Pai. [...] É igualmente significativo que, quando os mensageiros enviados por João Batista foram ter com Jesus e Lhe perguntaram: "Tu és Aquele que está para vir, ou temos de esperar outro?", Ele, referindo-Se ao mesmo testemunho com que havia inaugurado o Seu ensino em Nazaré, lhes tenha respondido: "Ide contar a João o que vistes e ouvistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciada a Boa-Nova"; e é ainda significativo que tenha depois concluído: "Bem-aventurado aquele que não se escandalizar a Meu respeito". Jesus revelou, sobretudo pelo Seu estilo de vida e as Suas ações, como o Amor está presente no mundo em que vivemos, Amor operante, Amor que se dirige ao homem e abraça tudo quanto constitui a sua humanidade. Tal amor transparece especialmente no contato com o sofrimento, a injustiça e a pobreza, no contato com toda a "condição humana" histórica que, de vários modos, manifesta as limitações e a fragilidade, tanto físicas como morais, do homem. Precisamente o modo e o âmbito em que Se manifesta o Amor são chamados, na linguagem bíblica, "misericórdia". Cristo, portanto, revela Deus que é Pai, que é "Amor", como referiria João na sua primeira epístola (IJo 4, 16); revela Deus "rico em misericórdia" (Ef 2, 4).

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A Igreja deve se "desmundanizar"...



Encontro com os católicos comprometidos com a Igreja e a sociedade

Discurso do Papa Bento XVI 

Freiburg, Konzerthaus
Domingo, 25 de setembro de 2011.

Caros confrades no ministério episcopal e sacerdotal!
Senhoras e Senhores!
Estou feliz com este encontro convosco que sois comprometidos de múltiplas maneiras com a Igreja e a sociedade. Isto me oferece uma ocasião especial para vos agradecer, aqui, pessoalmente, de todo o meu coração, por vosso serviço e vosso testemunho como “valorosos arautos da fé naquelas realidades que esperamos” (Lumen gentium, n. 35). Dessa maneira, o Concílio Vaticano II designa as pessoas que, como vós, se preocupam com o presente e o futuro da fé. No vosso meio de trabalho vós defendeis a causa da vossa fé e da Igreja, como sabemos, o que não é nada fácil nesses tempos atuais.
Há décadas, assistimos a uma diminuição da prática religiosa, constatamos um crescente distanciamento da vida da Igreja por uma parte notável de batizados. Eis então a pergunta: será que, por acaso, a Igreja não deveria mudar? Será que, por acaso, em seus serviços e estruturas, ela não deveria se adaptar ao tempo presente, para alcançar as pessoas de hoje que estão a procura e em dúvida?
Um dia, perguntaram à Beata Madre Teresa de Calcutá qual deveria ser, segundo ela, a primeira coisa a ser modificada na Igreja. Sua resposta foi: você e eu!
Este pequeno episódio evidencia duas coisas. De um lado, a religiosa quer dizer a seu interlocutor que a Igreja não é unicamente os outros, a hierarquia, o Papa e os Bispos; a Igreja somos todos nós: nós, os batizados. Além do mais, ela parte efetivamente do pressuposto: sim, há motivo para uma mudança. Há a necessidade de uma mudança. Cada cristão e a comunidade dos crentes no seu conjunto são chamados a uma conversão contínua.
Como deve se configurar concretamente esta mudança? Será que se trata de uma renovação tal como, por exemplo, o proprietário de uma casa realiza através da reestruturação ou de uma nova pintura de seu imóvel? Ou será que se trata de uma correção, para retornar aos trilhos ou percorrer um caminho de maneira mais alegre e direta? Estes aspectos e outros mais certamente têm sua importância, e não é o caso de levar todos em consideração neste momento. Mas, quanto àquilo que diz respeito ao motivo fundamental da mudança, trata-se de uma missão apostólica dos discípulos e da própria Igreja.
Com efeito, a Igreja sempre deve verificar sua fidelidade a esta missão. Os três evangelhos sinóticos realçam diferentes aspectos do mandato desta missão: a missão se fundamenta, inicialmente, sobre a experiência pessoal – “Vós sois testemunhas” (Lc 24, 48); ela se exprime em relação – “Fazei discípulos de todas as nações” (Mt 28, 19); ela transmite uma mensagem universal – “Proclamai o Evangelho a toda a criação” (Mc 16, 15). No entanto, por causa das pretensões e dos condicionamentos do mundo, este testemunho é cada vez mais obscurecido, as relações são alienadas e a mensagem é relativizada. Se, logo em seguida, a Igreja, como o diz o Papa Paulo VI, “procura modelar-se em conformidade com o tipo proposto por Cristo, não poderá deixar de distinguir-se profundamente do ambiente humano, em que afinal vive ou do qual se aproxima” (Encíclica Ecclesiam suam, n. 34). Para realizar sua missão, ela deverá continuamente se distanciar de seu meio, se “desmundanizar” por assim dizer.
A missão da Igreja, com efeito, brota do mistério do Deus uno e trino, do mistério de seu amor criador. E o amor não apenas está presente de qualquer forma em Deus: Ele é amor; por Sua natureza, Ele é amor. E o amor divino não quer ser apenas para si, quer se derramar em conformidade com sua natureza. Na encarnação e no sacrifício do Filho de Deus, o amor alcançou a humanidade de maneira particular. E foi da seguinte maneira: o Cristo, o Filho de Deus, saiu da esfera de seu ser Deus, Ele se fez carne e Se tornou homem; e isto não apenas para confirmar o mundo no seu ser terrestre, e partilhar Sua condição que – a deixando imutável – a transforma. Do evento crístico faz parte o fato incompreensível que existe – como dizem os Padres da Igreja – um sacrum commercium, uma troca entre Deus e os homens. Os Padres a explicam desta maneira: não temos nada para dar a Deus, só podemos Lhe apresentar nossos pecados. Ele os aceita e os faz Seus, e Ele nos dá a si mesmo e à Sua glória em troca. Este é, verdadeiramente, um comércio desigual que se desenrola na vida e nos sofrimentos de Cristo. Ele se torna pecador, se encarrega do pecado; Ele toma aquilo que é nosso e nos dá aquilo que é Seu. Mas, continuando a refletir e a viver na fé, torna-se evidente que nós não Lhe damos apenas o pecado, mas que Ele nos autoriza, Ele nos dá uma força interior para Lhe dar igualmente algo positivo: nosso amor Lhe dá, de maneira positiva, a humanidade. É claro, naturalmente, que é somente graças à bondade de Deus, que o homem, o mendigo, recebe a riqueza divina, que Deus pode dar qualquer coisa, que Deus torna nossa oferta aceitável nos tornando capazes de ser, para Ele, oferentes. 
A Igreja se conforma totalmente com este comércio desigual. Ela não possui nada por ela mesma diante dAquele que a fundou, de sorte que ela poderia dizer: Fizemos isto muito bem! Seu sentido consiste em ser um instrumento da redenção, deixar-se penetrar pela palavra de Deus e transformar o mundo introduzindo-o na união de amor com Deus. A Igreja imerge na atenção complacente do Redentor pelos homens. Ela está lá onde ela é ela mesma, sempre em movimento, colocando-se continuamente a serviço da missão, que ela recebeu do Senhor. É por isto que ela deve sempre se abrir às preocupações do mundo – ao qual ela pertence –, consagrar-se sem reservas a estas preocupações, para continuar e tornar presente o comércio sagrado que teve início com a Encarnação.
No entanto, no desenvolvimento histórico da Igreja se manifesta também uma tendência contrária: é a de uma Igreja que se satisfaz consigo mesma, que se instala neste mundo, que é autossuficiente e se adapta aos critérios do mundo. Muito frequentemente, ela dá à organização e à institucionalização uma importância maior do que a seu apelo à abertura para Deus, que tem a esperança do mundo para o outro.
Para corresponder à sua verdadeira tarefa, a Igreja deve sempre se esforçar por se destacar de sua “mundanidade” para se abrir a Deus. Desta forma, ela segue as palavras de Jesus: “Eles não são deste mundo, como eu não sou deste mundo” (Jo 17, 16), e é assim que ela se dá ao mundo. Num certo sentido, a história vem em socorro da Igreja, através dos diversos períodos de secularização, que contribuíram, de modo essencial, para a sua purificação e para a sua reforma interior.
Com efeito, a secularização – que foram a expropriação dos bens da Igreja ou a supressão dos privilégios ou de coisas parecidas – significaram, a cada vez, uma profunda libertação da Igreja das formas de “mundanidade”: ela se despoja, por assim dizer, de sua riqueza terrestre e volta para abraçar plenamente sua pobreza terrestre. Assim, a Igreja partilha o destino da tribo de Levi que, segundo a afirmação do Antigo Testamento, era a única tribo em Israel que não possuía patrimônio terrestre, mas que havia tomado exclusivamente a Deus, Sua palavra e Seus sinais como parte da herança. Como esta tribo, a Igreja partilhava nesses momentos históricos a exigência de uma pobreza que se abria para o mundo, para se desligar de seus vínculos materiais, e assim seu agir missionário voltava a ser igualmente credível. 
Os exemplos históricos mostram que o testemunho missionário de uma Igreja “desmundanizada” é mais claro. Libertada do fardo e dos privilégios materiais e políticos, a Igreja pode se consagrar melhor e de maneira verdadeiramente cristã ao mundo inteiro; ela pode ser verdadeiramente aberta ao mundo. Ela pode, de novo, viver com mais facilidade seu chamado ao ministério de adoração a Deus e de serviço ao próximo. A tarefa missionária que está ligada à adoração cristã, e que deveria determinar a estrutura da Igreja, se torna visível mais claramente. A Igreja se abre ao mundo não para obter a adesão dos homens a uma instituição com suas próprias pretensões de poder, mas para fazê-los entrar em si mesmos e, dessa maneira, conduzi-los Àquele de quem todas as pessoas podem dizer com Agostinho: Ele é mais íntimo de mim do que eu mesmo (cf. Conf. 3, 6, 11). Ele, que é infinitamente acima de mim, está de tal forma em mim até ao ponto de ser a minha verdadeira interioridade. Por este estilo de abertura da Igreja ao mundo, é traçada, ao mesmo tempo, a forma na qual a abertura para o mundo por parte de cada cristão pode se realizar de maneira eficaz e apropriada.
Não se trata, aqui, de encontrar uma nova estratégia para ressuscitar a Igreja. Trata-se muito mais de deixar de lado tudo aquilo que é unicamente tático, e buscar a plena sinceridade, que não negligencia nem reprime nada da verdade de nosso hoje, mas que a realiza plenamente no hoje, vivendo-a justamente, totalmente na sobriedade do hoje, levando-a à sua plena identidade, tirando dela aquilo que é somente aparência de fé, mas que, na verdade, é apenas convenção e hábito.
Digamos com outras palavras: a fé cristã é sempre, para o homem, um escândalo, e isto não é apenas no nosso tempo. Que o Deus eterno se preocupe conosco, seres humanos, que Ele nos conheça; que o Inapreensível tenha se tornado, num determinado momento, apreensível; que o Imortal tenha sofrido e morrido numa cruz; que para nós, seres mortais, sejam prometidas a ressurreição e a vida eterna – acreditar em tudo isto é, para os homens, uma verdadeira exigência. 
Este escândalo, que não pode ser abolido se não se quiser abolir o cristianismo, foi, infelizmente, colocado à sombra, recentemente, por outros escândalos dolorosos que envolveram os anunciadores da fé. Uma situação perigosa é criada quando esses escândalos tomam o lugar do skandalon primeiro da Cruz e, desta forma, o tornam inacessível, quer dizer, quando eles escondem a verdadeira exigência cristã por trás da inadequação de seus mensageiros.
Há uma razão a mais para acreditar novamente atual a retomada da verdadeira “desmundanização”, de arrancar corajosamente aquilo que há de “mundano” da Igreja. Naturalmente, isto não significa se retirar do mundo, muito pelo contrário. Uma Igreja aliviada dos elementos “mundanos” é capaz de comunicar aos homens – àqueles que sofrem e àqueles que os ajudam – justamente também na esfera sócio-caritativa, a força vital particular da fé cristã. “A caridade não é, para a Igreja, uma espécie de atividade de assistência social que se poderia também deixar para outras pessoas, mas ela pertence à sua natureza mesma, ela é uma expressão de sua essência, à qual ela não pode renunciar” (Deus caritas est, n. 25). Certamente, as obras caritativas da Igreja devem também continuamente prestar atenção às exigências de um distanciamento apropriado do mundo para evitar que, diante de um afastamento crescente da Igreja, suas raízes não sequem. Somente a relação profunda com Deus torna possível uma plena atenção ao homem, da mesma forma que sem a atenção ao próximo a relação com Deus empobrece.
Ser abertos aos acontecimentos do mundo significa, portanto, para a Igreja “desmundanizada”, testemunhar, segundo o Evangelho, o domínio do amor de Deus, em palavras e ações, aqui e agora. E além do mais, esta tarefa vai para além do mundo presente. Com efeito, a vida presente inclui o vínculo com a vida eterna. Como indivíduos, e como comunidade da Igreja, vivemos a simplicidade de um grande amor que, no mundo, é ao mesmo tempo a coisa mais fácil e a mais difícil, porque ela exige nada mais nada menos do que o dom de si mesmo.
Caros amigos, resta-me apenas implorar para nós todos a bênção de Deus e a força do Espírito Santo, para que possamos, cada um no seu próprio campo de ação, reconhecer sempre outra vez o amor de Deus e Sua misericórdia e testemunhar isso. Agradeço-vos a atenção.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 25 de setembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

domingo, 21 de agosto de 2011

Diante de um amor desinteressado...



Viagem Apostólica a Madri
Por ocasião da XXVI Jornada Mundial da Juventude
18 a 21 de agosto de 2011

Via Sacra com os Jovens

Alocução do Papa Bento XVI

Praça de Cibeles, Madri
Sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Queridos jovens!
Com piedade e fervor, celebramos esta Via Sacra, acompanhando Cristo na sua Paixão e Morte. As reflexões das Irmãzinhas da Cruz, que servem aos mais pobres e desvalidos, facilitaram-nos a entrada nos mistérios da gloriosa Cruz de Cristo, que encerra a verdadeira sabedoria de Deus, aquela que julga o mundo e todos os que se creem sábios (cf. 1Cor 1, 17-19). Neste itinerário para o Calvário, ajudou-nos também a contemplação destas imagens extraordinárias do patrimônio religioso das dioceses espanholas. São imagens onde se harmonizam a fé e a arte para chegar ao coração do homem e convidá-lo à conversão. Quando é límpido e autêntico o olhar da fé, a beleza coloca-se ao seu serviço e é capaz de representar os mistérios da nossa salvação a ponto de nos tocar profundamente e transformar o nosso coração, como sucedeu a Santa Teresa de Ávila ao contemplar uma imagem de Cristo coberto de chagas (cf. Livro da Vida, 9, 1).
À medida que íamos avançando com Jesus até chegar ao cimo da sua entrega no Calvário, vinham-nos à mente as palavras de São Paulo: “Cristo amou-me e Se entregou por mim” (Gal 2, 20). Diante de um amor assim desinteressado, cheios de admiração e reconhecimento perguntamo-nos agora: Que temos que fazer por Ele? Que resposta Lhe daremos? São João no-lo diz claramente: “Foi com isto que conhecemos o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos” (1Jo 3, 16). A paixão de Cristo incita-nos a carregar sobre os nossos ombros o sofrimento do mundo, com a certeza de que Deus não é alguém distante ou alheio ao homem e às suas vicissitudes; pelo contrário, fez-Se um de nós “para poder padecer com o homem, de modo muito real, na carne e no sangue (…). A partir de lá entrou em todo o sofrimento humano alguém que partilha o sofrimento e a sua tolerância; a partir de lá se propaga em todo o sofrimento a consolatio, a consolação do amor solidário de Deus, surgindo assim a estrela da esperança” (Spe salvi, 39).
Queridos jovens, que o amor de Cristo por nós aumente a vossa alegria e vos anime a permanecer junto dos menos favorecidos. Vós que sois tão sensíveis à ideia de partilhar a vida com os outros, não passeis ao largo quando virdes o sofrimento humano, pois é aí que Deus vos espera para dardes o melhor de vós mesmos: a vossa capacidade de amar e de vos compadecerdes. As diversas formas de sofrimento, que foram desfilando diante dos nossos olhos ao longo da Via Sacra, são apelos do Senhor para edificarmos as nossas vidas seguindo os seus passos e para nos tornarmos sinais do seu conforto e salvação. “Sofrer com o outro, pelos outros; sofrer por amor da verdade e da justiça; sofrer por causa do amor e para se tornar uma pessoa que ama verdadeiramente: estes são elementos fundamentais de humanidade, o seu abandono destruiria o mesmo homem” (Ibid., 39).
Espero que saibamos acolher estas lições e pô-las em prática. Com tal finalidade, olhemos para Cristo, suspenso no duro madeiro, e peçamos-Lhe que nos ensine esta misteriosa sabedoria da cruz, graças à qual vive o homem. A cruz não foi o desfecho de um fracasso, mas o modo de exprimir a entrega amorosa que vai até à doação máxima da própria vida. O Pai quis amar os homens no abraço do seu Filho crucificado por amor. Na sua forma e significado, a cruz representa esse amor do Pai e de Cristo pelos homens. Nela reconhecemos o ícone do amor supremo, onde aprendemos a amar o que Deus ama e como Ele o faz: esta é a Boa Nova que devolve a esperança ao mundo.
Voltemos agora os nossos olhos para a Virgem Maria, que nos foi entregue por Mãe no Calvário, e supliquemos-Lhe que nos apoie com a sua amorosa proteção no caminho da vida, particularmente quando passarmos pela noite da dor, para conseguirmos permanecer como Ela firmes ao pé da cruz. Muito obrigado.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 19 de agosto de 2011. Revisado e adaptado por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Comentário ao evangelho do dia

5ª-feira da 2ª Semana Quaresma

1ª Leitura - Jr 17,5-10
Isto diz o Senhor: "Maldito o homem que confia no homem e faz consistir sua força na carne humana, enquanto o seu coração se afasta do Senhor; como os cardos no deserto, ele não vê chegar a floração, prefere vegetar na secura do ermo, em região salobra e desabitada. Bendito o homem que confia no Senhor, cuja esperança é o Senhor; é como a árvore plantada junto às águas, que estende as raízes em busca de umidade, por isso não teme a chegada do calor: sua folhagem mantém-se verde, não sofre míngua em tempo de seca e nunca deixa de dar frutos. Em tudo é enganador o coração, e isto é incurável; quem poderá conhecê-lo? Eu sou o Senhor, que perscruto o coração e provo os sentimentos, que dou a cada qual conforme o seu proceder e conforme o fruto de suas obras".

Evangelho - Lc 16,19-31
Naquele tempo, Jesus disse aos fariseus: "Havia um homem rico, que se vestia com roupas finas e elegantes e fazia festas esplêndidas todos os dias. Um pobre, chamado Lázaro, cheio de feridas, estava no chão à porta do rico. Ele queria matar a fome com as sobras que caíam da mesa do rico. E, além disso, vinham os cachorros lamber suas feridas. Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado. Na região dos mortos, no meio dos tormentos, o rico levantou os olhos e viu de longe a Abraão, com Lázaro ao seu lado. Então gritou: 'Pai Abraão, tem piedade de mim! Manda Lázaro molhar a ponta do dedo para me refrescar a língua, porque sofro muito nestas chamas'. Mas Abraão respondeu: 'Filho, lembra-te que tu recebeste teus bens durante a vida e Lázaro, por sua vez, os males. Agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E, além disso, há um grande abismo entre nós: por mais que alguém desejasse, não poderia passar daqui para junto de vós, e nem os daí poderiam atravessar até nós'. O rico insistiu: 'Pai, eu te suplico, manda Lázaro à casa do meu pai, porque eu tenho cinco irmãos. Manda preveni-los, para que não venham também eles para este lugar de tormento'. Mas Abraão respondeu: 'Eles têm Moisés e os Profetas, que os escutem!'. O rico insistiu: 'Não, Pai Abraão, mas se um dos mortos for até eles, certamente vão se converter'. Mas Abraão lhe disse: 'Se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, eles não acreditarão, mesmo que alguém ressuscite dos mortos'".

Comentário feito por Beata Teresa de Calcutá (1910-1997)
fundadora das Irmãs Missionárias da Caridade 

Cristo disse: "Tive fome e Me destes de comer" (Mt 25, 35). Teve fome não só de pão, mas também da estima acolhedora que nos permite sentirmo-nos amados, reconhecidos, sermos alguém aos olhos de outrem. Foi desprovido não só da Sua roupa, mas também da dignidade e do respeito humano pela grande injustiça cometida para com o pobre, que é precisamente o ser desprezado por ser pobre. Foi privado não só de um teto, mas também sofreu as privações por que passam os encarcerados, os rejeitados e os escorraçados, aqueles que vagueiam pelo mundo sem ter ninguém que se ocupe deles. Ao desceres a rua, sem outro propósito senão esse, talvez atentes naquele homem, ali na esquina, e vás ao seu encontro. Talvez ele fique de pé atrás, mas tu permaneces lá, diante dele, na sua frente. Tens de irradiar a presença que trazes dentro de ti com o amor e a atenção para com o homem a quem te diriges. E por quê? Porque, para ti, se trata de Jesus. Sim, é Jesus, mas não pode receber-te em Sua casa — eis porque tens de ser tu a dirigir-te a Ele. Ele está escondido ali, naquela pessoa. Jesus, oculto no mais pequenino dos irmãos (Mt 25, 40), não só cheio de fome por um bocado de pão, mas também por amor, por reconhecimento, por ser tido como alguém com valor. 

terça-feira, 1 de março de 2011

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mc 10,28-31
Naquele tempo,  começou Pedro a dizer a Jesus: "Eis que nós deixamos tudo e te seguimos". Respondeu Jesus: "Em verdade vos digo, quem tiver deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, campos, por causa de mim e do Evangelho, receberá cem vezes mais agora, durante esta vida - casa, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições - e, no mundo futuro, a vida eterna. Muitos que agora são os primeiros serão os últimos. E muitos que agora são os últimos serão os primeiros".

Comentário feito por Tomás de Celano (c. 1190-v. 1260)
biógrafo de São Francisco e de Santa Clara 

Havia já quarenta anos que Clara, segundo a comparação utilizada por São Paulo (1Cor 9, 24), corria no estádio da grande pobreza. Ela se aproximava da meta da sua vocação celeste e da recompensa prometida ao vencedor. [...] A Divina Providência apressava-Se a cumprir o que havia previsto para Clara: Cristo quer introduzir a pobrezinha no Seu palácio real no termo da sua peregrinação. Quanto a ela, aspirava com todo o arrebatamento do seu desejo [...] contemplar, reinando no alto em toda a Sua glória, o Cristo que imitara na Terra na sua pobreza. [...] Todas as suas filhas estavam reunidas em torno do leito da mãe. [...] Dirigindo-se então a si mesma, Clara disse à sua alma: "Parte com toda a segurança, pois tens um bom guia para o caminho. Parte, pois Aquele que te criou também te santificou; Ele sempre te protegeu e amou com um amor terno, como uma mãe ama o seu filho. Abençoado sejas, Senhor, Tu que me criaste!". Uma irmã perguntou-lhe a quem se dirigia ela. Clara respondeu: "À minha alma abençoada". O seu guia para o caminho não estava longe. Com efeito, voltando-se para uma das suas filhas, perguntou-lhe: "Estás vendo o Rei de glória que eu entrevejo?" [...] Bendita seja a sua saída deste vale de misérias, uma saída que foi para ela a entrada na vida bem-aventurada! Em recompensa dos seus jejuns neste mundo, conhece agora a alegria que reina à mesa dos santos; em troca dos andrajos e das cinzas, entrou na posse da beatitude do Reino dos Céus onde está vestida com as vestes da glória eterna. 

domingo, 6 de fevereiro de 2011

O jeito faraônico de ser

Gaudêncio Torquato*

O complexo de vira-lata, conceito criado por Nelson Rodrigues para traduzir a inferioridade em que o brasileiro se coloca ante o mundo, está a olhos vistos cedendo lugar ao complexo de faraó. Haja olhos para contemplar a arquitetura faraônica que se espraia pelo País na forma de construções suntuosas, edifícios majestosos, obras de desenhos arrojados e massas volumosas que causam estupefação. A propósito, nestes tempos de quase convulsão social no Egito, o Brasil se habilita a ser o hábitat para abrigar o sono eterno dos faraós, fustigados pelo eco da turba que chega às suas tumbas. Se suas majestades só se sentem confortáveis em pharao-onis, termo do velho latim para significar "casa elevada", é isso que encontrarão no Planalto brasiliense, também conhecido como morada dos faraós no século 21. O fausto, a opulência, o resplendor, a exuberância se elevam nos espaços, sob o ditame inquestionável de que, se a obra tiver de ser construída em Brasília, haverá de receber o selo de Oscar Niemeyer e, por consequência, não sofrerá limites de gastos. A mais recente tumba, ou melhor, o mais resplandecente edifício destes tempos de contenção (?) é a sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que consumirá quase meio de bilhão de reais.
Não se pretende questionar a qualidade técnica e artística das monumentais obras de Brasília e de outras paragens. A capital federal, seu criativo traçado e, de maneira mais abrangente, a própria arquitetura brasileira ocupam lugar de destaque nos mais belos portfólios do planeta. A questão diz respeito aos princípios constitucionais da economicidade, moralidade e finalidade da administração pública. Que devem ser obedecidos a partir dos gestores lotados nos píncaros da administração pública. As sedes monumentais (termo associado a Brasília), apesar do encantamento que provocam, puxam o rolo do desperdício. Eis a pergunta recorrente: o custo da obra faz jus ao porte das tarefas do órgão? Ora, sabe-se que o TSE é o eixo com a menor demanda do Poder Judiciário. Em 2009 recebeu 4.514 processos, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) foi entupido com mais de 103 mil ações. Já o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal Superior do Trabalho (TST) julgaram 354 mil e 204,1 mil, respectivamente. Ademais, o Tribunal Eleitoral é formado por sete ministros, três dos quais já integram o STF. O pano de fundo do desperdício ganha maior extensão quando se pinça a planilha das demandas do Poder Judiciário no País.
Só São Paulo contabiliza um quinto dos juízes e dos gastos de toda a Justiça brasileira, mas responde por 44% dos processos pendentes. Em 2009 recebeu cerca de 30% das novas ações propostas, contabilizando mais de 18 milhões de processos. Foram 5 milhões de sentenças e quase 1 milhão de decisões de segundo grau. No orçamento deste ano estão alocados para o Judiciário paulista R$ 50 milhões, quantia irrisória diante do programa de reformas e construção de fóruns considerados prioritários, estipulado em cerca de R$ 500 milhões. Os contrastes entre o vasto mundo da abundância e o corredor estreito da carência constituem uma das facetas mais perversas da administração pública.
Se os desníveis nos andares do edifício judiciário são alarmantes, imagine-se a situação catastrófica em outras áreas. Basta anotar a faceta faraônica que se faz presente nas catacumbas do desperdício. Jogamos fora 50% dos alimentos produzidos (perda estimada em R$ 12 bilhões anuais, o que daria para alimentar 30 milhões de pessoas), 40% da água distribuída, 30% da energia elétrica. Os cálculos foram feitos pelo professor de Engenharia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro José Abrantes, autor do livro Brasil, o País dos Desperdícios. Há simplesmente um PIB e meio desperdiçado, ou seja, jogam-se no lixo R$ 3,6 trilhões. Se a montanha de riquezas perdidas pudesse ser preservada, o País estaria, há tempos, no ranking mais avançado das potências.
A que se deve isso? Primeiro, a uma cultura política plasmada no patrimonialismo, assim explicada: a res publica é entendida como coisa nossa, o dinheiro dos cofres do Tesouro tem fundo infinito, o Estado é um ente criado para garantir nosso alimento e bem-estar. O jeito perdulário de ser do brasileiro começa, portanto, com a visão do Estado-mãe, providencial e protetor, no seio do qual se abrigam a ambição das elites políticas e o utilitarismo de oportunistas. O (mau) exemplo dado pelos faraós do topo da pirâmide acaba descendo pelas camadas abaixo, na esteira do ditado "ou restaure-se a moralidade ou nos locupletemos", que uns atribuem a Stanislaw Ponte Preta e outros ao Barão de Itararé. E quais seriam os caminhos mais curtos para diminuir o Produto Nacional Bruto do Esbanjamento (PNBE)? Ordem e disciplina nos gastos. Rigor no preceito constitucional da economicidade e moralidade. Uso racional do espaço público. Coordenação eficaz dos planos de obras. Qualificação e treinamento dos quadros funcionais. Elevação geral do nível educacional da população. As vias, todas com sua importância no conjunto, se completam.
No momento em que o mais modesto dos brasileiros conseguir decifrar a conta dos exageros nos umbrais da gastança, as distâncias entre os compartimentos da pirâmide serão menores e o Brasil, maior. Meta para mais de uma geração. Ademais, o desenvolvimento de uma cultura banhada na fonte da racionalização e do zelo para com a coisa pública encontra resistências no arcabouço do Estado-espetáculo. Estamos no apogeu do individualismo iluminado pelas luzes midiáticas. Atores principais e secundários, com papéis definidos nas estruturas do Estado, buscam de maneira sôfrega a visibilidade. Quanto mais brilho adquirem, maior prestígio alcançam. A pompa e o estilo nababesco de ser - aqui incluídos palácios e tumbas faraônicas - fazem parte da estética contemporânea do poder.
Eis o nó difícil de desatar. Eis a extrema dificuldade para tirarmos as coroas brancas, vermelhas e azuis dos nossos faraós.

* Gaudêncio Torquato é jornalista, professor titular da USP e consultor político. Texto extraído da versão online d'O Estado de São Paulo, do dia 6 de fevereiro de 2011.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mt 19, 23-30
Naquele tempo, Jesus disse aos discípulos: "Em verdade vos digo, dificilmente um rico entrará no Reino dos Céus. E digo ainda: é mais fácil um camelo entrar pelo buraco de uma agulha, do que um rico entrar no Reino de Deus". Ouvindo isso, os discípulos ficaram muito espantados, e perguntaram: "Então, quem pode ser salvo?". Jesus olhou para eles e disse: "Para os homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível". Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: "Vê! Nós deixamos tudo e te seguimos. O que haveremos de receber?". Jesus respondeu: "Em verdade vos digo, quando o mundo for renovado e o Filho do Homem se sentar no trono de sua glória, também vós, que me seguistes, havereis de sentar-vos em doze tronos, para julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, campos, por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá como herança a vida eterna. Muitos que agora são os primeiros, serão os últimos. E muitos que agora são os últimos, serão os primeiros".

Comentário feito por São Pedro Damião (1007-1072)
eremita e depois bispo, Doutor da Igreja 

Na verdade, é uma grande coisa "deixar tudo", mas ainda é ainda mais importante "seguir a Cristo" porque, como aprendemos através dos livros, muitos deixaram tudo mas não seguiram a Cristo. Seguir a Cristo é a nossa tarefa, o nosso trabalho, e nisso consiste o essencial da salvação do homem, mas não podemos seguir a Cristo se não abandonarmos tudo o que nos bloqueia. Porque "Ele sai, percorrendo alegremente o seu caminho, como um herói" [Sl 19 (18), 6] e ninguém pode segui-Lo carregado com um fardo. "Nós deixámos tudo e seguimos-Te", diz Pedro, não apenas os bens deste mundo mas também os desejos da nossa alma. Porque quem continua apegado, nem que seja a si mesmo, não abandonou tudo. Mais ainda, não serve de nada deixar tudo à exceção de si mesmo, porque não há para o homem fardo mais pesado que o seu eu. Que tirano será mais cruel, que senhor será mais impiedoso para o homem do que a sua própria vontade? [...] Por consequência, é necessário que deixemos os nossos bens e a nossa vontade própria se que queremos seguir Aquele que não tinha sequer "onde reclinar a cabeça" (Lc 9, 58) e que veio "não para fazer a [Sua] vontade, mas a vontade dAquele que [O] enviou" (Jo 6, 38). 

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mt 19, 16-22
Alguém aproximou-se de Jesus e disse: "Mestre, o que devo fazer de bom para possuir a vida eterna?". Jesus respondeu: "Por que tu me perguntas sobre o que é bom? Um só é o Bom. Se tu queres entrar na vida, observa os mandamentos". O homem perguntou: "Quais mandamentos?". Jesus respondeu: "Não matarás, não cometerás adultério, não roubarás, não levantarás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, e ama teu próximo como a ti mesmo". O jovem disse a Jesus: "Tenho observado todas essas coisas. O que ainda me falta?". Jesus respondeu: "Se tu queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me". Quando ouviu isso, o jovem foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico. 

Comentário feito por São João da Cruz (1542-1591)
carmelita, Doutor da Igreja 

Quanto mais te separares das coisas terrenas mais te aproximarás das coisas do céu e mais riquezas em Deus encontrarás. Aquele que souber morrer para tudo encontrará vida em tudo. Separa-te do mal, faz o bem, procura a paz (Sl 33, 15). Aquele que se queixa ou que murmura não é perfeito e nem sequer é bom cristão. Aquele que se esconde no seu próprio vazio e sabe abandonar-se a Deus é humilde. Aquele que sabe suportar o próximo e suportar-se a si mesmo é doce. Se queres ser perfeito, vende a tua vontade e dá-a aos pobres de espírito. Em seguida vira-te para Cristo para obteres dEle a doçura e a humildade e segue-O até ao calvário e ao sepulcro.

domingo, 1 de agosto de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Santo Afonso Maria de Ligório

1ª Leitura - Eclo 1,2; 2,21-23
"Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade." Por exemplo: um homem que trabalhou com inteligência, competência e sucesso, vê-se obrigado a deixar tudo em herança a outro que em nada colaborou. Também isso é vaidade e grande desgraça. De fato, que resta ao homem de todos os trabalhos e preocupaçðes que o desgastam debaixo do sol? Toda a sua vida é sofrimento, sua ocupação, um tormento. Nem mesmo de noite repousa o seu coração. Também isso é vaidade.

2ª Leitura - Cl 3,1-5.9-11
Irmãos: Se ressuscitastes com Cristo, esforçai-vos por alcançar as coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus; aspirai às coisas celestes e não às coisas terrestres. Pois vós morrestes, e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer em seu triunfo, então vós aparecereis também com ele, revestidos de glória. Portanto, fazei morrer o que em vós pertence à terra: imoralidade, impureza, paixão, maus desejos e a cobiça, que é idolatria. Não mintais uns aos outros. Já vos despojastes do homem velho e da sua maneira de agir e vos revestistes do homem novo, que se renova segundo a imagem do seu Criador, em ordem ao conhecimento. Aí não se faz distinção entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, inculto, selvagem, escravo e livre, mas Cristo é tudo em todos.

Evangelho - Lc 12,13-21
Naquele tempo: Alguém, do meio da multidão, disse a Jesus: "Mestre, dize ao meu irmão que reparta a herança comigo". Jesus respondeu: "Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?". E disse-lhes: "Atenção! Tomai cuidado contra todo tipo de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida de um homem não consiste na abundância de bens". E contou-lhes uma parábola: "A terra de um homem rico deu uma grande colheita. Ele pensava consigo mesmo: 'O que vou fazer? Não tenho onde guardar minha colheita'. Então resolveu: 'Já sei o que fazer! Vou derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: - Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos. Descansa, come, bebe, aproveita!'. Mas Deus lhe disse: 'Louco! Ainda nesta noite, pedirão de volta a tua vida. E para quem ficará o que tu acumulaste?' Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus."

Comentário feito por São Basílio (c. 330-379)
monge e Bispo de Cesareia da Capadócia, Doutor da Igreja 

"O que hei-de fazer? Onde encontrarei que comer? Que vestir?" Eis o que diz este rico. O seu coração sofre, a inquietação devora-o, porque aquilo que regozija os outros acabrunha o avarento. O fato de todos os seus celeiros estarem cheios não é para ele motivo de felicidade. O que atormenta dolorosamente a sua alma é esse excesso de riquezas, transbordando dos seus celeiros. [...] Considera, homem, quem te cumulou com a sua generosidade. Reflete um pouco sobre ti mesmo: Quem és tu? O que é que te foi confiado? De quem recebeste este cargo? Porque foste tu escolhido, de preferência a muitos outros? O Deus de bondade fez de ti Seu administrador; tu és responsável pelos teus companheiros de trabalho: não penses que tudo foi preparado apenas para ti! Dispõe dos bens que possuis como se eles pertencessem aos outros. O prazer que eles te proporcionam dura pouco, em breve eles te vão escapar e desaparecer, mas ser-te-ão pedidas contas rigorosas. Ora, tu guardas tudo, tens portas e fechaduras aferrolhadas; e embora tenhas tudo muito bem fechado, a ansiedade impede-te de dormir. [...] "O que hei-de fazer?" Havia uma resposta pronta: "Encherei as almas dos famintos; abrirei os meus celeiros e convidarei todos os que têm necessidade. [...] Farei ouvir uma palavra generosa: Vós todos que tendes fome, vinde a mim, tomai a vossa parte dos dons concedidos por Deus, cada qual segundo as suas necessidades".

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Evangelho - Mt 13, 44-46
Naquele tempo, disse Jesus à multidão: "O Reino dos Céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o encontra e o mantém escondido. Cheio de alegria, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo. O Reino dos Céus também é como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens e compra aquela pérola".

Comentário feito por São Boaventura (1221-1274)
franciscano, Doutor da Igreja 

Dentre os dons espirituais recebidos da generosidade de Deus, Francisco obteve em particular o de enriquecer constantemente o seu tesouro de simplicidade graças ao seu amor pela extrema pobreza. Vendo que aquela que tinha sido a companheira habitual do Filho de Deus se tornara, nessa altura, objeto de uma aversão universal, tomou a peito desposá-la e devotou-lhe um amor eterno. Não satisfeito em "deixar por ela pai e mãe" (cf. Gn 2, 24), distribuiu pelos pobres tudo o que pudesse ter (cf. Mt 19, 21). Nunca ninguém guardou tão ciosamente o seu dinheiro como Francisco guardou a sua pobreza; nunca ninguém vigiou o seu tesouro com maior cuidado do que o que ele colocou em guardar esta pérola de que fala o Evangelho. Nada o magoava mais do que encontrar junto dos seus irmãos qualquer coisa que não fosse perfeitamente conforme à pobreza dos religiosos. Pessoalmente, desde o princípio da sua vida como religioso até à morte, não teve senão uma túnica, uma corda a servir de cinto e umas bragas como única riqueza; não precisava de mais nada. Acontecia-lhe muitas vezes chorar ao pensar na pobreza de Cristo Jesus e na de Sua Mãe. Dizia ele: "Aqui está a razão pela qual a pobreza é a rainha das virtudes: pelo esplendor com que brilhou no 'Rei dos reis' (1Tm 6, 15) e na Rainha Sua Mãe". Quando os irmãos lhe perguntaram um dia qual era a virtude que nos torna mais amigos de Cristo ele respondeu abrindo-lhes, por assim dizer, o segredo do seu coração: "Sabei, irmãos, que a pobreza espiritual é o caminho privilegiado para a Salvação, visto que é a seiva da humildade e a raiz da perfeição; os seus frutos são incontáveis, embora escondidos. Ela é esse 'tesouro escondido num campo', do qual nos fala o Evangelho, pelo qual é necessário vender tudo o resto e cujo valor deve impelir-nos a desprezar todas as outras coisas".

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mt 11, 28-30
Naquele tempo, tomou Jesus a palavra e disse: "Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vós encontrareis descanso. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve".

Comentário feito por Santa Teresa do Menino Jesus (1873-1897)
carmelita, Doutora da Igreja 

Oh Jesus, quando fostes viajante neste mundo, dissestes: aprendei de Mim, que "sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito". Oh poderoso monarca dos céus, sim, a minha alma encontra descanso ao ver-Vos, revestido com a forma e a natureza do escravo (Fil 2, 7), abaixar-Vos a ponto de lavardes os pés aos apóstolos. Recordo-me então das palavras que proferistes para me ensinar a praticar a humildade: "Dei-vos o exemplo, para que façais como Eu fiz. Se compreenderdes isto, sereis felizes se o praticardes" (Jo 13, 15-17). Compreendo-as, Senhor, estas palavras saídas do Vosso coração manso e humilde, e desejo praticá-las, com o auxílio da Vossa graça. Desejo abaixar-me humildemente e submeter a minha vontade à das minhas irmãs, em nada as contrariando, sem verificar se têm o direito de mandar em mim. Ninguém tinha o direito de mandar em Vós, meu Bem-Amado, e contudo Vós obedecestes, não apenas à Santíssima Virgem e a São José, mas também aos Vossos carrascos. Agora, é na hóstia que Vos vejo assumir o cúmulo do Vosso aniquilamento. Que humildade a Vossa, oh Divino Rei da Glória! [...] Oh meu Bem-Amado, sob o véu da branca hóstia, que manso e humilde de coração Vos mostrais! [...] Oh Jesus, manso e humilde de coração, tornai o meu coração semelhante ao Vosso! 

sábado, 10 de julho de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mt 10,24-33
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: "O discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do seu senhor. Para o discípulo, basta ser como o seu mestre, e para o servo, ser como o seu senhor. Se ao dono da casa eles chamaram de Belzebu, quanto mais aos seus familiares! Não tenhais medo deles, pois nada há de encoberto que não seja revelado, e nada há de escondido que não seja conhecido. O que vos digo na escuridão, dizei-o à luz do dia; o que escutais ao pé do ouvido, proclamai-o sobre os telhados! Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma! Pelo contrário, temei aquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno! Não se vendem dois pardais por algumas moedas? No entanto, nenhum deles cai no chão sem o consentimento do vosso Pai. Quanto a vós, até os cabelos da cabeça estão todos contados. Não tenhais medo! Vós valeis mais do que muitos pardais. Portanto, todo aquele que se declarar a meu favor diante dos homens, também eu me declararei em favor dele diante do meu Pai que está nos céus. Aquele, porém, que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai que está nos céus. 

Comentário feito por Santo Ambrósio (c. 340-397)
Bispo de Milão e Doutor da Igreja 

Todos os dias podes ser testemunha de Cristo. Foste tentado pelo espírito da impureza, mas [...] pareceu-te que não devias macular a castidade do espírito e do corpo: és mártir, ou seja, testemunha de Cristo. [...] Foste tentado pelo espírito do orgulho, mas, vendo o pobre e o indigente, foste tomado de uma terna compaixão e preferiste a humildade à arrogância: és testemunha de Cristo. Mais que isso: não deste o teu testemunho apenas com palavras, mas também com obras. Qual é o testemunho mais autêntico? "Todo o espírito que confessa Jesus Cristo, que veio em carne mortal" (1Jo 4, 2), e que observa os preceitos do Evangelho. [...] Quantos serão, em cada dia, estes mártires escondidos de Cristo, que confessam o Senhor Jesus! O apóstolo Paulo conheceu esse martírio e o testemunho de fé dado a Cristo, ele que disse: "Este é o nosso motivo de glória: o testemunho da nossa consciência" (2Cor 1, 12). Quantos confessam a fé exteriormente mas a negam interiormente! [...] Por conseguinte, sede fiéis e corajosos nas perseguições interiores, para triunfardes também nas perseguições exteriores. Também nas perseguições interiores há "reis e governadores", juízes de poder temível. Tendes o exemplo nas tentações sofridas pelo Senhor (Mt 4, 1ss). 

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mt 9, 18-26
Enquanto Jesus estava falando, um chefe aproximou-se, inclinou-se profundamente diante dele, e disse: "Minha filha acaba de morrer. Mas vem, impõe tua mão sobre ela e ela viverá". Jesus levantou-se e o seguiu, junto com os seus discípulos. Nisto, uma mulher que sofria de hemorragia, há doze anos, veio por trás dele e tocou a barra do seu manto. Ela pensava consigo: "Se eu conseguir ao menos tocar no manto dele, ficarei curada". Jesus voltou-se e, ao vê-la, disse: "Coragem, filha! A tua fé te salvou". E a mulher ficou curada a partir daquele instante. Chegando à casa do chefe, Jesus viu os tocadores de flauta e a multidão alvoroçada, e disse: "Retirai-vos, porque a menina não morreu, mas está dormindo". E começaram a caçoar dele. Quando a multidão foi afastada, Jesus entrou, tomou a menina pela mão, e ela se levantou. Essa notícia espalhou-se por toda aquela região. 

Comentário feito por São Francisco de Assis (1182-1226)
fundador dos Frades Menores 

Escutai, meus irmãos. Se a Bem-aventurada Virgem Maria é digna de louvor - e o é com justiça - porque trouxe a Cristo no seu seio bendito, se o bem-aventurado João Baptista estremeceu, não ousando sequer tocar na cabeça sagrada do seu Deus, se o túmulo em que o corpo de Cristo foi encerrado durante algum tempo está rodeado de veneração, quão santo, justo e digno há de ser aquele que toca a Cristo com as mãos, O recebe na boca e no coração e O dá aos outros em alimento, este Cristo que deixou de ser mortal, mas que é eternamente vencedor e glorioso, que é Aquele que os anjos desejam contemplar.Reparai na vossa dignidade, irmãos sacerdotes, e sede santos porque Ele é santo (1P 1, 16) [...] Grande miséria e miserável fraqueza se, tendo-O assim presente nas mãos, vos entreteis com qualquer outra coisa! Que todo o homem tema, que o mundo inteiro trema, que o céu exulte quando Cristo, o Filho de Deus vivo, Se encontra sobre o altar, entre as mãos do sacerdote. Que grandeza admirável, que bondade extraordinária! Que humildade sublime! O Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, humilha-Se pela nossa salvação, a ponto de Se ocultar numa pequena hóstia de pão. Vede, irmãos, a humildade de Deus; prestai-Lhe homenagem no vosso coração. Sede humildes, vós também, para serdes por Ele exaltados. Nada guardeis para vós, a fim de que Aquele que a vós Se entrega por inteiro vos receba por inteiro. 

domingo, 27 de junho de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro

Evangelho - Lc 9, 51-62
Estava chegando o tempo de Jesus ser levado para o céu. Então ele tomou a firme decisão de partir para Jerusalém e enviou mensageiros à sua frente. Estes puseram-se a caminho e entraram num povoado de samaritanos, para preparar hospedagem para Jesus. Mas os samaritanos não o receberam, pois Jesus dava a impressão de que ia a Jerusalém. Vendo isso, os discípulos Tiago e João disseram: "Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para destruí-los?". Jesus, porém, voltou-se e repreendeu-os. E partiram para outro povoado. Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse a Jesus: "Eu te seguirei para onde quer que fores". Jesus lhe respondeu: "As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça". Jesus disse a outro: "Segue-me". Este respondeu: "Deixa-me primeiro ir enterrar meu pai". Jesus respondeu: "Deixa que os mortos enterrem os seus mortos; mas tu, vai anunciar o Reino de Deus". Um outro ainda lhe disse: "Eu te seguirei, Senhor, mas deixa-me primeiro despedir-me dos meus familiares". Jesus, porém, respondeu-lhe: "Quem põe a mão no arado e olha para trás, não está apto para o Reino de Deus".

Comentário feito por Santa Edith Stein (1891-1942)
carmelita, mártir, co-padroeira da Europa 

O Salvador precedeu-nos no caminho da probreza. Todos os bens do céu e da terra Lhe pertencem. Não representam para Ele nenhum perigo; podia fazer uso deles e manter o Seu coração completamente livre. Mas Ele sabia que é quase impossível a um ser humano possuir bens sem se subordinar a eles e tornar-se seu escravo. Foi por esta razão que Ele abandonou tudo e nos mostrou, com o Seu exemplo, mais ainda do que pelas Suas palavras, que só possui tudo quem não possui nada. O Seu nascimento num estábulo e a Sua fuga para o Egito mostravam já que o Filho do Homem não teria onde reclinar a cabeça. Quem quiser segui-Lo tem de saber que não temos aqui morada permanente. Quanto mais vivamente tomarmos consciência disso, mais fervorosamente tenderemos para a nossa futura morada, e exultaremos com o pensamento de termos direito de cidadania no Céu. 

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mt 6,19-23
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: Não junteis tesouros aqui na terra, onde a traça e a ferrugem destroem, e os ladrões assaltam e roubam. Ao contrário, juntai para vós tesouros no céu, onde nem a traça e a ferrugem destroem, nem os ladrões assaltam e roubam. Porque, onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração. O olho é a lâmpada do corpo. Se o teu olho é sadio, todo o teu corpo ficará iluminado. Se o teu olho está doente, todo o teu corpo ficará na escuridão. Ora, se a luz que existe em ti é escuridão, como será grande a escuridão. 

Comentário feito por São Basílio (c. 330-379)
monge e bispo de Cesareia da Capadócia, Doutor da Igreja 

Por que te atormentas e fazes tantos esforços para colocar a tua riqueza em segurança atrás de cimento e de tijolos? "Vale mais o bom nome que grandes riquezas" (Pr 22, 1). Gostas do dinheiro por causa da consideração que te granjeia. Imagina só quanto maior será a tua fama se te puderem chamar pai e protetor de milhares de crianças, em vez de guardares milhares de moedas de ouro em sacos. Quer queiras, quer não, um dia terás mesmo de deixar cá o teu dinheiro; pelo contrário, a glória de todo o bem que tiveres feito, levá-la-ás contigo à presença do supremo Mestre, enquanto todo um povo, defendendo-te insistentemente diante do juiz comum, te atribuirá nomes que dirão que o alimentaste, o assististe, que foste bom para ele. Como deverias estar reconhecido, feliz e orgulhoso da honra que te é dada: não és tu que tens de ir importunar os outros à sua porta, são os outros que correm para a tua. Mas nesse momento ficas sombrio, tornas-te inacessível, evitas os encontros, com medo de teres de deixar um pouco daquilo que tão ciosamente guardas. E só dizes uma coisa: "Não tenho nada, não vos vou dar nada porque sou pobre." És na realidade pobre, e pobre de todo o bem: pobre de amor, pobre de bondade, pobre de confiança em Deus, pobre de esperança eterna. 

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Comentário ao evangelho do dia


Nossa Senhora da Estrada

Evangelho - Mc 10,17-27
Naquele tempo: Quando Jesus saiu a caminhar, veio alguém correndo, ajoelhou-se diante dele, e perguntou: "Bom Mestre, que devo fazer para ganhar a vida eterna?" Jesus disse: "Por que me chamas de bom? Só Deus é bom, e mais ninguém. Tu conheces os mandamentos: não matarás; não cometerás adultério; não roubarás; não levantarás falso testemunho; não prejudicarás ninguém; honra teu pai e tua mãe!" Ele respondeu: "Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude." Jesus olhou para ele com amor, e disse: "Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!" Mas quando ele ouviu isso, ficou abatido e foi embora cheio de tristeza, porque era muito rico. Jesus então olhou ao redor e disse aos discípulos: "Como é difícil para os ricos entrar no Reino de Deus!" Os discípulos se admiravam com estas palavras, mas ele disse de novo: "Meus filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus! É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus!" Eles ficaram muito espantados ao ouvirem isso, e perguntavam uns aos outros: "Então, quem pode ser salvo?" Jesus olhou para eles e disse: "Para os homens isso é impossível, mas não para Deus. Para Deus tudo é possível."

Comentário extraído do
Relato de três companheiros de São Francisco de Assis (c. 1244)

Certa noite, depois do seu regresso a Assis, os companheiros do jovem Francisco elegeram-no como chefe do grupo. Com tantas vezes tinha feito, mandou então preparar um suntuoso banquete. Depois de saciados, saíram todos e percorreram a cidade, a cantar. Os companheiros, em grupo, iam à frente de Francisco; este, empunhando o bastão de chefe, fechava o cortejo, um pouco mais atrás, sem cantar, mergulhado nos seus pensamentos. E eis que, de súbito, o Senhor lhe aparece, enchendo-lhe o coração de uma doçura tal, que ele ficou sem conseguir falar, sem se mexer [...]. Quando os companheiros se voltaram para trás e o viram assim tão longe deles, voltaram atrás e aproximaram-se, receosos; encontraram-no mudado, como se fosse outro homem. Perguntaram-lhe: "Em que é que pensavas para te esqueceres assim de nos seguir? Estarias a pensar em arranjar mulher?" "Têm toda a razão! Decidi ter esposa, uma esposa mais nobre, mais rica e mais bela do que todas as que vocês já viram". Os companheiros puseram-se a troçar dele [...]. A partir daquele momento, ele fazia os possíveis para que Jesus Cristo lhe ocupasse a alma, e bem assim aquela pérola que tanto desejava comprar depois de tudo ter vendido (Mt 13, 46). Furtando-se frequentemente aos olhos dos que dele troçavam, ia muitas vezes – quase diariamente – rezar em segredo. De alguma maneira a isso era impelido pelo gozo antecipado daquela doçura extrema que tantas vezes o visitava e que com tanta força o atraía, estando ele na praça ou em outros locais públicos, para a oração.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Cartas do P.e Aldo 29

Asunción, 01 de janeiro de 2009.

31 de dezembro, meio-dia, calor de 40°. Estamos em 6 pessoas no cemitério à leste desta Capital: a secretária, o motorista da ambulância, Lorenzo – filho de Roberto Fontolan –, uma mulher com um homem que ela diz ser seu marido e eu. Acompanhamos o salesiano italiano idoso que morreu como um santo, no dia 30 de dezembro, às 14h.
Desta vez, derramei-me em lágrimas. Não apenas porque é o 50º filho do Pai que sepulto no nosso cemitério – enquanto outros 450 estão em algumas tumbas onde seus parentes lhe deram sepultura –, mas muito mais porque estou diante de um homem do Piemonte, órfão, educado pelos Salesianos e salesiano ele mesmo por muitas décadas. Missionário no Paraguai desde 1957... depois, por circunstâncias misteriosas – que pertencem à liberdade de Deus e do homem –, deixou a congregação. Há apenas 20 dias, Deus o havia conduzido até nós.
A congregação o havia abandonado... será por que ele a havia abandonado? É uma pergunta que me faz mal. E me deixa ainda pior porque apenas um salesiano o visitou enquanto estava no nosso hospital, e apenas um salesiano o visitou depois de morto. E, ainda mais, porque nas 24 horas em que o corpo sagrado deste homem ficou comigo... ninguém... exceto aquela mulher – uma mulher que somente Deus sabem quem é e quem era para ele. Eu a olhava: uma vez mais era apenas uma mulher ao seu lado... talvez seja aquela para quem ele deixou tudo... quem sabe? Mas, o que importa? O importante é que ainda uma vez o reino da beleza, do amor humano estava ali. Estava ali comigo, ali... enquanto, com os coveiros, eu o colocava na tumba. A pecadora e este pecador demos o último beijo naquele santo pecador. Eu chorava como uma criança porque sentia – palpitante em mim – que apenas Deus perdoa, apenas Deus não olha para os adjetivos ou para os substantivos – “bom”, “mau”, “religioso”, “consagrado” – ou para o club ou para a congregação ou para o carisma a que pertença.
Sim, somente Deus é misericordioso! Para Ele, existe tão somente o homem, existe tão somente o filho. Não o filho “bom” ou “mau”; existe o filho e basta. Como num relâmpago, veio-me à mente o dia em que deixei a minha congregação há vinte anos atrás... mas, a mim foi concedido um privilégio: dois braços me acolheram e abraçaram... aquele homem que, como me escreveu no Natal a Irmã Lívia, “do céu, está sorrindo para mim”. Entre mim e este salesiano existe esta grande diferença: eu, pecador pior do que ele... abraçado por Giussani. E ele, quem sabe?... por outros braços diferentes, que apenas Deus conhece.
Tristemente, estes braços o levaram a viver como um mendigo, num dos mais feios e folclóricos mercados do mundo: o Mercado 4, de Asunción. Um mercado onde se vive na sujeira. Foi ali que a assistente social o encontrou, depois de ter sido avisada por aquela mulher que, hoje, estava comigo no cemitério. Ela o encontrou a dois metros do chão, numa espécie de mezanino de um depósito a 40cm da telha de zinco. Do lado de fora fazia um calor de 48°. Imaginem o calor que fazia debaixo daquele telhado! Naquele lugar, ele fazia tudo: era o cúmulo da sujeira. Quando chegou à clínica, ele disse à bela enfermeira que cuidou dele: “Senhorita, não adianta... porque tanto faz morrer limpo ou sujo... não muda nada... além do mais, não seria suficiente para lavar-me toda a água de Asunción!”.
Depois daquela ducha, sua alma voltou a ficar bela. Recebeu todos os sacramentos, renovou os votos de pobreza, castidade e obediência... que se tornaram não mais uma obrigação moral, mas a expressão da liberdade reencontrada, ou seja, da Virgindade dada a ele de novo pelo Mistério. Reviveu a beleza do seu batismo e morreu dizendo: “Obrigado, ó Pai do céu, porque não perdi a fé”. Eis a verdadeira questão, amigos. Como não chorar escutando palavras como essas? Quis velar seu corpo durante toda a noite... mas o meu cansaço me impediu e, assim, o deixei sozinho na companhia do pároco – o Santíssimo Sacramento! Porém, foi difícil dormir... e dormi mal. Como Jesus: nenhum salesiano, ninguém vigiando com ele?
Que dor quando um carisma se torna um instrumento para o uso! Que dor quando um carisma se torna um partido, se torna um grupo! Que terrível quando a pessoa é sua amiga apenas porque você pertence ao club... sim, porque mesmo um carisma pode se tornar um club... e não partir da amizade que aponta, em cada momento, para aquilo que Carrón nos repete: “eu sou Tu que me fazes”.
A obediência é uma amizade. Que conforto... agora, sei com certeza que, também para mim, a morte me encontrará como este homem: entre os braços de uma companhia... não importa se feita de 5 ou 6 pessoas mais os coveiros. Mas é sempre uma amizade... o sinal visível de que apenas Deus perdoa, de que apenas Deus é misericordioso.
Voltei do cemitério com o coração fixo na misericórdia de Deus, que me olha e me ama assim como eu sou: como um homem. Que espetáculo! O último dia do ano ser testemunha de que somente Deus é misericórdia, é perdão.
Todos poderão me julgar, condenar, abandonar, mas DEUS ABSOLUTAMENTE NÃO.
Vivo apenas por este certeza.
Bom Ano Novo.
P.e Aldo