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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Gramsci tinha razão: somos uma geração mesquinha



Por Mauro Grimoldi

Caro editor,
Escreve quase que movido por um instinto, depois de um diálogo com uma colega minha, mãe de família, que me contou uma confidência recebida de sua filha mais velha.
A menina frequenta o sexto ano e contou à sua mãe a dor que está sentido por uma companheira de sala que revelou a ela, alguns dias antes, o seu sofrimento pela iminente, provável, separação dos pais e o temor de ser afastada da irmã. Que peso é injustamente lançado nas costas de nossos pequenos! Não se trata de um episódio isolado, mas da enésima confirmação de uma inimizade para como nossos próprios filhos, uma verdadeira e propriamente dita hostilidade que nos leva, se se pode dizer assim, a devorá-los, como nos piores pesadelos evocados da literatura mais antiga. Um dos maiores sucessos editoriais japoneses, recentemente traduzido para o italiano (Confissão de Kanae Minato, sem tradução para o português; ndt), conta a vingança, minuciosamente preparada, de um professor do ensino médio contra dois alunos que mataram sua filha de quatro anos. 
Este trecho de Michael Pye, retirado do romance  A camara de inverno, descreve bem uma situação bastante difundida: “No quarto dia em que estavam na estrada, Gretje teve sua primeira menstruação e sua mãe lhe disse que não importava. Sua mãe nunca lhe explicava as coisas, e Gretje era a obrigada a colocar junto o mundo, colando todos os fatos ou as noções nas quais tropeçava”.
Os tempos que estamos vivendo parecem-me marcados por uma dolorosa contradição: o relacionamento com os filhos é distorcido até a uma verdadeira e propriamente dita inversão de papéis. Os adultos se vestem, falam e pensam como criancinhas e as crianças são jogadas, desde a mais tenra infância, nas realidades próprias do mundo adulto (sexo, dinheiro, poder, guerra...), mesmo após uma exposição midiática contínua. A história de Pin, a criança perdida, sem gosto entre os adultos de uma distante brigada parisiense, contada no romance A trilha dos ninhos de aranha de Italo Calvino, poderia ser lida hoje a partir desta chave de interpretação.
A predileção pelos pequenos tantas vezes repetida por Cristo e a advertência peremptória de não escandalizar o distanciar da Sua Pessoa as crianças nos alcançam a partir de uma faceta da experiência humana que se encarrega de uma responsabilidade urgente e dramática, que ilumina a nossa missão de homens para que a educação seja a obra da vida, até ao ponto de nos consumir. Acho que começo a entender de uma maneira totalmente nova a dedicatória que se encontra anotada num dos primeiros livros de Dom Luigi Giussani: “Aos grandes que nos sabem falar, aos pequenos que nos sabem escutar” (Gioventù Studentesca, 1960), assim como o seu célebre apelo: “Obriguem-nos a andar nus, mas nos deixem a liberdade de educar”.
Certamente, a esta urgência não responderá a ênfase, também ela opressiva, hiperprotetora que defende, justifica e preserva os filhos de todos os orcs malvados que povoam o planeta (quem quiser, pode ler The slap, romance do greco-australiano Christos Tsiolkas) ou o fingimento ostentado de uma cumplicidade amigável muito mais do que a redução da educação a psicologia ou a prática normativo-penal. 
É necessário, vice-versa, que os adultos ajam como adultos, coloquem em ação a sua consistência de homens, que não é nem econômica nem muscular, mas é, em primeiro lugar, a consistência da sua esperança; a que não se alimenta da presunção de ter entendido tudo, mas do ideal que se segue. Por isto, precisamos de um lugar onde possamos seguir homens que seguem o Ideal: em suma, precisamos que a Igreja exista.
Tenho vivo na memória o momento do funeral copta realizado para uma menina egípcia, companheira de sala de aula de minha filha Anna, quando a autoridade mais antiga se inclinava em direção à menor das crianças, que, cantando, a interrogava, para responder, também cantando, às suas perguntas. Parece-me uma boa representação da autoridade, que se apoia sobre si mesma, mas só é segura em virtude da tradição, sólida, duradoura e viva, que recebeu e tornou sua. Como Gramsci escreveu: “Uma geração que deprime a geração anterior, que não consegue ver suas grandezas e o seu significado necessário, só pode ser mesquinha e sem confiança em si mesma. (...) Na desvalorização do passado está implícita uma justificação da nulidade do presente”.
Perto do fim do romance A estrada de Cormac McCarthy, no qual se narra a relação entre um pai e um filho num mundo devastado por uma tragédia que reduziu tudo a cinzas, onde a vida animal desapareceu e muitos homens regrediram a uma forma bestial de canibalismo, o filho pergunta ao pai, moribundo, sobre uma criança encontrada na estrada e que nunca mais foi vista outra vez: “Mas, que o encontrará se ele tiver se perdido? Quem encontrará aquele menino?”. A resposta do pai foi: “A bondade o encontrará. Sempre foi assim. E será ainda assim”.
É preciso dizer que esta resposta vem de um homem que, surpreso com a inclinação natural do filho pelo bem, não a mortificou, julgando-a uma fantasia infantil, mas a acompanhou, guiou e fez crescer, reconhecendo na natureza do filho a única possibilidade de salvaguarda da humanidade não só da criança, mas também da sua, até ao legado esperançoso das palavras que eu mencionei, que se demonstrarão verdadeiras e confiáveis.
Emerge uma imagem da educação que não consiste no encher a criança com as próprias opiniões, mas que se realiza no serviço à sua natureza, para fazê-la crescer e dar a ela aquela segurança que a criança, assim como o jovem, é impulsionado a buscar na pessoa e na vida do adulto.
De outro lado, parece-me que seja possível dizer que o movimento amoroso de Deus que se inclina sobre nós, fazendo-Se homem, nasça da urgência de nos assegurar que aquilo que somos é destinado a se realizar: em virtude da ressurreição podemos dizer com a mesma convicção de Paulo e Timóteo: “estou certo de que Aquele que começou em vós esta boa obra, a levará a realização até ao dia de Cristo Jesus”.
A urgência que os tempos põem a nós adultos – qual seja: a de sermos capazes de gerar, educar, fazer crescer na vida aqueles que colocamos no mundo – parece-me decisiva.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 23 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Caros professores, foi assim que vocês “mataram” a sua autoridade


Por Giovanni Gobber

Autoridade é uma palavra com muitos sentidos. Pela origem, vem da palavra latina auctoritas, que indicava capacidade de fazer crescer, portanto “prestígio, estima”: vinha de auctor, que denotava “quem faz crescer, quem é fundador”. Na base havia o verbo augere, ou seja “aumentar”. No dicionário etimológico de Ernout e Meillet, augere goza da máxima atenção, visto que deu origem a um grande número de derivados, entre os quais aparece o nome dos augures, os sacerdotes que escrutavam os fenômenos naturais, como o voo dos pássaros, e formulavam previsões, chamadas augurium, porque se acreditava que fossem favoráveis. Os antigos precisavam de auxilium, ou seja, de uma ajuda que “faz as forças crescerem”. Neste âmbito é que se coloca a experiência da auctoritas: a palavra tem valor positivo e atesta a confiança no futuro, que é visto como crescimento, desenvolvimento e é promessa de um bem.
Na época moderna, por causa de uma metonímia (que transfere a palavra de um elemento a outro no mesmo domínio), autoridade se transferiu da capacidade para o indivíduo que tem a capacidade. Dessa forma é que se passou a chamar como autoridade também a pessoa que reveste um alto cargo público (uma posição que confere o poder de “fazer crescer”, de “construir”). Trata-se de um uso de matriz francesa, que remonta ao tardo século XVIII. Uma passagem ulterior tirou a relação com os indivíduos: autoridade, assim, passou a designar o poder legal de gerir os comportamentos sociais. O nexo com o antigo verbo augere e com o prestígio gozado pelos auctores passou a ser opaco. Além do mais, este vínculo se percebe ainda hoje, mesmo que levemente, no adjetivo autoridade (autorevole) e no substantivo autoridade (autorevolezza). O elemento –evole é um derivado do latim –abilis: auctorabilis designava quem é capaz de ser auctor.
Como se pode notar, a moderna autoridade (autorevolezza) está próxima, pelo sentido, da antiga auctoritas: é um prestígio moral, uma estima que se difunde na comunidade e não depende de uma imposição, mas de um compartilhamento. A autoridade era dotada de um fundamento razoável: era reconhecida porque se viam os seus efeitos.
Outros tempos, outros costumes. No mundo moderno, se rompeu o vínculo entre moral e razão.
Consequentemente, autoridade denota sobretudo aquilo que impõe. O bem futuro não é considerado. A ênfase recai sobre a obrigação no presente. A educação não sabe o que fazer com esta autoridade: impondo a obediência não se “faz crescer”; no máximo, se comprime, se reprime.
A crise da autoridade no mundo moderno talvez esteja ligada ao divórcio com a autoridade (autorevolezza). A rebelião surge onde a autoridade indica apenas imposição, obrigação incapaz de mostrar um bem futuro que confira sentido à obediência. Pelo contrário, lá onde age um indivíduo ou um exemplo de autoridade (autorevole), se percebe a necessidade de obedecer. Não se sente como uma obrigação, mas como uma necessidade de seguir quem tem autoridade. Uma disciplina por demais rígida é bem difundida na prática esportiva: quem se submete a treinamentos duros e monótonos encontra uma razão naquilo que faz – e é a recompensa do sucesso futuro. O mesmo vale para quem enfrenta “sessões” exaustivas na academia, enquanto enfrenta a dificuldade de se preparar para provas.
A autoridade depende do bem que pode suscitar. Se não se vê um bem futuro, não se encontra motivo para seguir quem chama para a obediência. Muitos indivíduos – muitas das vezes jovens – recusam a autoridade por este motivo. Outros indivíduos – menos jovens que os primeiros – não aceitam a recusa da autoridade. Estes, por sua vez, não têm autoridade (autorevolezza), não têm a capacidade de mostrar o bem futuro. Há também quem contribuiu, no passado, para a destruição do princípio de uma autoridade fundada sobre um bem do fundamento razoável, e agora se lamenta porque a autoridade não é mais seguida. 
Resta a possibilidade de construir relacionamentos humanos construídos no encontro com pessoas de carne e osso, capazes de “fazer crescer”, ou seja, de educar e ter esperança no futuro. Convém voltar “a crescer”, dizem. Para isto, não são necessários personagens “sóbrios”, austeros, paladinos do rigor, dispensadores de sermões vazios. Para crescer é preciso gerar humanidade. E isto é possível na medida em que se parta da caridade guiada pela fé. O futuro não é apenas dos usuais Übermenschen, para quem tudo é permitido e nenhum veto parece ser fundado.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 16 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Crise da autoridade? O grande erro da liberdade moderna...


Por Stefano Biancu

Nestas páginas enfrentou-se, sob vários aspectos, o tema da crise da autoridade. O dissídio entre autoridade e razão representa, para o bem e para o mal, um nó constitutivo do aspecto intelectual da nossa modernidade. Hannah Arendt já falava disso: a crise atual da autoridade depende diretamente da estrutura intelectual e político-social da modernidade ocidental, que perdeu “the dimension of depth” – a dimensão da profundidade. Ou, para dizer com poucas palavras, a referência constitutiva a qualquer coisa de (sempre) precedente e fundante.
Convém, todavia, reconhecer como a atual crise da razão moderna não só não resultou numa ampla reavaliação da autoridade, como também exacerbou a crise mesma.
Explico-me. A única forma de autoridade que a modernidade reconheceu como legítima é a da razão autônoma, entendida como essência exclusivamente pensante (res cogitans) aplicada ao conhecimento de uma realidade substancialmente redutível a seus aspectos mensuráveis e quantificáveis (res extensa). A crise da única forma de autoridade tida como legítima – a da razão autônoma – levou a crise da autoridade, dessa forma, ao seu paroxismo.
No alvorecer da modernidade, os desafios inerentes à grande representação de uma distinção clara entre res cogitans e res extensa era dúplice. Em primeiro lugar, tratava-se de garantir a possibilidade de uma relação objetiva e neutra com o real, e isto com a finalidade de legitimar a ciência moderna: convinha postular um sujeito (res cogitans) que fosse de uma matéria completamente diferente da do objeto de sua observação (res extensa). Em segundo lugar, tratava-se de reagir à exagerada pretensão de mediação proveniente de instâncias políticas e religiosas: convinha afirmar a imediaticidade de certos direitos fundamentais do indivíduo, direitos que deveriam ser reconhecidos para cada ser humano desde o seu nascimento, e portanto independentemente da sua história e da sua posição, ou seja, da sua colocação no tempo e no espaço. Neste sentido, a grande representação teórica de uma res cogitans atemporal e aespacial teve o mérito de assegurar e garantir o nascimento e o desenvolvimento não apenas da ciência moderna, como também do Estado de direito. Méritos preciosos e de valor indubitável.  
Os problemas, porém, nasceram no momento em que se sustentou que esta representação artificial pudesse exaurir completamente a humanidade do homem. Ler e tentar compreender a autoridade a partir do paradigma de uma razão radicalmente livre de pressupostos (res cogitans) significou, de fato, se opor à possibilidade de encontrar categorias adequadas para o objetivo. Com efeito, é evidente como não é possível compreender a autoridade a não ser a custo de uma radical reflexão tardia acerca da nossa humanidade e da nossa liberdade, na medida em que humanidade e liberdade ricas de pressupostos: ou na medida em que as considerarmos como inseridas num tempo e num espaço.
Se de fato, jurídica e politicamente, a liberdade só pode ser um direito universal a ser reconhecido imediatamente para quem quer que seja, de um ponto de vista ético e antropológico esta imediaticidade representa apenas uma abstração. Eticamente, a liberdade é, de fato, também um dever e uma responsabilidade. Antropologicamente, sempre se está no caminho em direção à própria liberdade. Não nascemos livres: tornamo-nos livres, e nos tornamos graças ao encontro com liberdades mais maduras do que a nossa, que se tornam assim autoridades. Mais a liberdade com a qual se entra na relação é madura, tanto mais ela terá o caráter de uma autoridade geradora de liberdades. No fundo, este é o princípio de toda educação.
Neste sentido, ao lado de uma experiência (jurídico-política) da liberdade como direito, convém reconhecer uma experiência da liberdade como dever (nível ético) e, finalmente, uma mais fundamental experiência da liberdade como dom (nível antropológico). Ter achatado toda experiência possível da liberdade a partir do paradigma jurídico-político de um direito a ser reivindicado imediatamente, levou a uma redução da autoridade a limite (mais ou menos necessário) da liberdade. Tem significado, na melhor das hipóteses, uma redução da autoridade ao nível de um mal menor a ser suportado: seja como for, a uma frustração da liberdade.
Para voltar a compreender a natureza geradora de uma autêntica relação de autoridade, é preciso portanto voltar a prestar contas com a dimensão temporal da nossa história humana: com aquela dimensão da profundidade de que falava Arendt. No nível individual, isto significa  reconhecer que sempre estamos no caminho em direção à nossa própria liberdade – em direção à nossa própria humanidade – que não pode ser simplesmente tomada como um dado óbvio (a não ser no quadro daquela preciosa abstração jurídico-política que constitui um dos pilares do moderno Estado de Direito). No nível social, prestar contas com a dimensão constitutiva da temporalidade significa reconhecer que somos colocados dentro de uma estrutura de transmissão em virtude da qual é importante não apenas garantir as condições de um “espaço público”, mas também de uma “duração pública” (que se revela essencial exatamente para garantir a qualidade do espaço público).
Somente reconhecendo a rica genealogia da nossa liberdade e da nossa humanidade – como liberdade e humanidade ricas de pressupostos – é que será possível voltar a compreender a natureza de uma autoridade geradora de liberdade: mesmo no contexto da modernidade.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 15 de dezembro de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Comentário ao Evangelho do dia - Advento


3ª Semana do Advento - Terça-feira
Santa Luzia

1ª Leitura - Sf 3,1-2.9-13
Assim fala o Senhor: "Ai de ti, rebelde e desonrada, cidade desumana. Ela não prestou ouvidos ao apelo, não aceitou a correção; não teve confiança no Senhor, nem se aproximou de seu Deus. Darei aos povos, nesse tempo, lábios purificados, para que todos invoquem o nome do Senhor e lhe prestem culto em união de esforços. Desde além-rios da Etiópia, os que me adoram, os dispersos do meu povo, me trarão suas oferendas. Naquele dia, não terás de envergonhar-te por causa de todas as tuas obras com que prevaricaste contra mim; pois eu afastarei do teu meio teus fanfarrões arrogantes, e não continuarás a fazer de meu santo monte motivo de tuas vanglórias. E deixarei entre vós um punhado de homens humildes e pobres". E no nome do Senhor porá sua esperança o resto de Israel. Eles não cometerão iniquidades nem falarão mentiras; não se encontrará em sua boca uma língua enganadora; serão apascentados e repousarão, e ninguém os molestará.

Salmo - Sl 33 (34)
R. Este infeliz gritou a Deus e foi ouvido.
Bendirei o Senhor Deus em todo o tempo, *
seu louvor estará sempre em minha boca.
Minha alma se gloria no Senhor; *
que ouçam os humildes e se alegrem! R. 

Contemplai a Sua face e alegrai-vos, *
e vosso rosto não se cubra de vergonha!
Este infeliz gritou a Deus, e foi ouvido, *
e o Senhor o libertou de toda angústia. R. 

Mas Ele volta a Sua face contra os maus, *
para da terra apagar sua lembrança.
Clamam os justos, e o Senhor bondoso escuta *
e de todas as angústias os liberta. R. 

Do coração atribulado Ele está perto *
e conforta os de espírito abatido.
Mas o Senhor liberta a vida dos Seus servos, *
e castigado não será quem nEle espera. R.

Evangelho - Mt 21, 28-32
Naquele tempo, Jesus disse aos sacerdotes e anciãos do povo: "Que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, ele disse: 'Filho, vai trabalhar hoje na vinha!'. O filho respondeu: 'Não quero'. Mas depois mudou de opinião e foi. O pai dirigiu-se ao outro filho e disse a mesma coisa. Este respondeu: 'Sim, senhor, eu vou'. Mas não foi. Qual dos dois fez a vontade do pai?". Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: "O primeiro". Então Jesus lhes disse: "Em verdade vos digo, que os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus. Porque João veio até vós, num caminho de justiça, e vós não acreditastes nele. Ao contrário, os publicanos e as prostitutas creram nele. Vós, porém, mesmo vendo isso, não vos arrependestes para crer nele".

Comentário feito por São Pedro Crisólogo (c. 406-450)
bispo de Ravena, doutor da Igreja

João Batista ensina com palavras e atos. Verdadeiro mestre, mostra pelo seu exemplo aquilo que afirma com a sua palavra. O saber faz o mestre, mas é a conduta que confere autoridade. [...] Ensinar pelos atos é a única regra daquele que quer instruir. A instrução pelas palavras é sabedoria; mas quando passa pelos atos é virtude. Por conseguinte, a sabedoria é autêntica quando unida à virtude: só então é divina e não humana. [...] "Naqueles dias, apareceu João, o Batista, pregando no deserto da Judeia. Dizia: 'Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu'" (Mt 3, 1-2). "Convertei-vos." Por que não diz: "Rejubilai"? "Rejubilai antes porque as realidades humanas dão lugar às realidades divinas, as terrestres às celestiais, as temporais às eternas, o mal ao bem, a incerteza à segurança, a tristeza à felicidade, as realidades perecíveis às que permanecerão para sempre. O Reino dos céus está muito próximo. Convertei-vos." Que a tua conduta de convertido seja evidente. Tu que preferiste o humano ao divino, que quiseste ser escravo do mundo em vez de vencedor do mundo com o Senhor do mundo, converte-te. Tu que fugiste da liberdade que as virtudes conferem porque quiseste sofrer o jugo do pecado, converte-te; converte-te verdadeiramente, tu que, por medo de possuir a Vida, te entregaste à morte.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Nenhuma teoria (e laboratório) nos faz nascer outra vez...


Por Salvatore Abbruzzese

Para o homem contemporâneo, ou seja, aquele que frui – pelo menos potencialmente – do capital informativo e cultural que caracteriza a atual sociedade global, a lista das escolhas possíveis só se tem alongado, estendendo-se dia após dia para além de todo confim tradicionalmente herdado. E possível escolher aquilo que até ontem parecia imutável, pensando que, assim, seja possível, razoavelmente, modificar não apenas as condições materiais de vida e os modelos de expressão, mas também as próprias características físicas e o mesmo o próprio gênero.
O problema encontra-se, portanto, aberto, mas as suas raízes não são, de fato, inéditas. A extensão ilimitada das oportunidades e o consequente aumento das potencialidades de escolha do indivíduo não datam de hoje, mas estão no centro da modernidade como projeto cultural. Nos fatos é a modernidade na qual nascemos que alimenta constantemente a esperança de uma extensão crescente e potencialmente ilimitada das opções, ou seja, das escolhas à disposição. Estender ao máximo as ocasiões de escolha – como recordava Dahrendorf, em 1979 – é um objetivo que se situa no coração do projeto moderno, e constitui o seu verdadeiro motor motivacional, o que alimenta incessantemente sua dimensão projetual. Para um mundo fundado sobre a liberdade, esta última tem tanto sentido quanto mais o sujeito puder escolher entre uma série crescente e potencialmente ilimitada de oportunidades de vida.
O dado inédito, que é alimentado pelos recentes desenvolvimentos da ciência contemporânea, constitui-se da possibilidade de deixar entrar na rede das opções à disposição também os dados da bagagem natural que, até ontem, eram entendidos como o mais incontroverso dos dados de fato. Uma tal possibilidade de escolha também das características vinculadas à própria natureza psíquica e física não tem apenas problemas no plano ético e político, mas transforma também completamente os termos mesmos do confronto entre modernidade e tradição.
A primeira, de fato, vê transitar a própria dimensão projetual do plano social e político para o das características físicas e psíquicas. Tendo emergido a partir da afirmação de um projeto de emancipação no plano social, a sociedade moderna declina, apresentando um programa de transformação genética. Nascida como direito coletivo à palavra, a modernidade vê o seu declínio no direito do sujeito à redefinição de si mesmo. Estabelecida no laboratório político, descobre a resolução no acomodar-se no laboratório genético.
Mas, também a tradição, de modo quase automático, muda decididamente o seu perfil, passando da subscrição de um código ético e normativo já dado, para a definição de um novo modelo de realização. O sujeito, mais do que tender à multiplicação das oportunidades, se volta aqui para a recuperação e para  a reconstrução dos vínculos e das relações significativas. A dinâmica da tradição se desenrola passando da simples subscrição do statu quo para a busca dos pertencimentos vinculantes. Contra a reversibilidade das escolhas propostas pela modernidade, a tradição replica com a irreversibilidade das relações significativas. Não se trata, aqui, apenas das escolhas do vínculo paterno e materno que se revelam, uma vez efetuadas, completamente não modificáveis, mas todas as escolhas afetivas e vocacionais revelam a mesma dinâmica de irreversibilidade: prova disso é a ferida que continua aberta para sempre, todas as vezes em que tais “escolhas de vínculo” são anuladas por uma renúncia pessoal. Não há escolha de vida verdadeiramente autêntica que não envolva a radicalidade do ser e, nesse mesmo caminho, se preste a ser pensada e vivida como implicitamente irreversível.
O deslocamento da modernidade do plano das reivindicações sociais para o da autodeterminação pessoal provoca, assim, uma transformação radical da forma como enfrenta a tradição.
No passado, o confronto entre tradição e modernidade se realizava ao redor da questão ética socialmente dada e juridicamente codificada. A distinção se desenvolvia entre duas leituras da realidade: a primeira, que tendia a uma adesão incondicional à autoridade do “eterno ontem” que, dessa forma, se constitui na premissa legitimadora, a segunda dirigida à busca também incondicional da mudança e à consequente exaltação do novo entendido como senso normativo da história.
Na presente linha de separação entre modernidade e tradição, e portanto o elemento estrutural de diferenciação, desenvolve-se, pelo contrário, na lacuna crescente entre quem persegue um extensão ilimitada das escolhas à disposição e quem, por outro lado, tem como objetivo também uma busca estendida de relações significativas. 
Desenvolve-se assim uma diferenciação cada vez mais clara entre duas antropologias distintas: uma, própria da modernidade, que vê o sujeito tendido a se libertar de todo vínculo e a se voltar para uma busca de uma cada vez maior e mais completa afirmação de si mesmo; a outra, própria da tradição, onde o sujeito, pelo contrário, está sempre mais atento a uma plena e bem definida afirmação das relações significativas, a partir das quais ele se situa e se define. A uma emancipação do sujeito, consequente ao reconhecimento do “direito aos direitos” e, portanto, tendido à autodeterminação radical daquilo que escolhe ser, se contrapõe uma realização da pessoa voltada ao reconhecimento dos vínculos e das redes de relações às quais escolhe se ligar. Na primeira, o sujeito coroa o próprio sucesso na medida em que tem acesso a uma rede cada vez mais vasta de opções, na segunda ele vê a própria realização na localização e no reconhecimento dos vínculos que o definem. Nestes vínculos, o sujeito descobre seu próprio rosto, aquele que, de fato, ele não quer modificar e para o qual toda potencial transformação genética é simples loucura.

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 14 de julho de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Redemptor hominis - III

João Paulo II

Redemptor hominis

aos veneráveis Irmãos no Episcopado
aos Sacerdotes
às Famílias religiosas
aos Filhos e Filhas da Igreja
e a todos os Homens de Boa Vontade
no início do Seu Ministério Pontifical

4 de março de 1979

III. O HOMEM REMIDO E A SUA SITUAÇÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

13 . Cristo uniu-se com cada um dos homens
Quando, através da experiência da família humana, em contínuo aumento a ritmo acelerado, penetramos no mistério de Jesus Cristo, compreendemos com maior clareza que, na base de todas aquelas vias ao longo das quais — de acordo com a sapiência do Sumo Pontífice Paulo VI [86] — a Igreja dos nossos tempos deve prosseguir, existe uma única via: é a via experimentada há séculos, e é, ao mesmo tempo, a via do futuro. Cristo Senhor indicou esta via sobretudo, quando — como ensina o Concílio — “pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, se uniu de certo modo a cada homem”. [87] A Igreja reconhece, portanto, como sua tarefa fundamental fazer com que tal união se possa atuar e renovar continuamente. A Igreja deseja servir a esta única finalidade: que cada homem possa encontrar Cristo, a fim de que Cristo possa percorrer juntamente com cada homem o caminho da vida, com a potência daquela verdade sobre o homem e sobre o mundo, contida no mistério da Encarnação e da Redenção, e com a potência do amor que desta verdade irradia. Sobre o pano de fundo dos crescentes processos na história, que na nossa época parecem frutificar de modo particular no âmbito de vários sistemas, de concepções ideológicas do mundo e de regimes, Cristo torna-se, de certo modo, novamente presente, malgrado todas as suas aparentes ausências, malgrado todas as limitações da presença e da atividade institucional da Igreja. E Jesus Cristo torna-se presente com a potência daquela verdade e daquele amor que nEle se exprimiram como plenitude única e que não se pode repetir, se bem que a sua vida na terra tenha sido breve e ainda mais breve a sua atividade pública.
Jesus Cristo é a via principal da Igreja. Ele mesmo é a nossa via para “a casa do Pai” [88] e é também a via para cada homem. Por esta via que leva de Cristo ao homem, por esta via na qual Cristo se une a cada homem, a Igreja não pode ser entravada por ninguém. Isso é exigência do bem temporal e do bem eterno do mesmo homem. Por respeito a Cristo e em razão daquele mistério que a vida da mesma Igreja constitui, esta não pode permanecer insensível a tudo aquilo que serve ao verdadeiro bem do homem, assim como não pode permanecer indiferente àquilo que o ameaça. O Concílio Vaticano II, em diversas passagens dos seus documentos, deixou bem expressa esta fundamental solicitude da Igreja, a fim de que “a vida no mundo seja mais conforme com a dignidade sublime de homem”, [89] em todos os seus aspectos, e por tornar essa vida “cada vez mais humana”. [90] Esta é a solicitude do próprio Cristo, o Bom Pastor de todos os homens. Em nome desta solicitude, conforme lemos na Constituição pastoral do Concílio, “a Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a comunidade política nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e a salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana”. [91]
Aqui, portanto, trata-se do homem em toda a sua verdade, com a sua plena dimensão. Não se trata do homem “abstrato”, mas sim real: do homem “concreto”, “histórico”. Trata-se de “cada” homem, porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e com todos e cada um Cristo se uniu, para sempre, através deste mistério. Todo o homem vem ao mundo concebido no seio materno e nasce da própria mãe, e é precisamente por motivo do mistério da Redenção que ele é confiado à solicitude da Igreja. Tal solicitude diz respeito ao homem todo, inteiro, e está centrada sobre ele de modo absolutamente particular. O objeto destes cuidados da Igreja é o homem na sua única e singular realidade humana, na qual permanece intacta a imagem e semelhança com o próprio Deus. [92] O Concílio indica isto precisamente, quando, ao falar de tal semelhança recorda que o homem é “a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma”. [93] O homem tal como foi “querido” por Deus, como por Ele foi eternamente “escolhido”, chamado e destinado à graça e à glória, este homem assim é exatamente “todo e qualquer” homem, o homem “o mais concreto”, “o mais real”; este homem, depois, é o homem em toda a plenitude do mistério de que se tornou participante em Jesus Cristo, mistério de que se tornou participante cada um dos quatro bilhões de homens que vivem sobre o nosso planeta, desde o momento em que é concebido sob o coração da própria mãe.

14. Todas as vias da Igreja levam ao homem
A Igreja não pode abandonar o homem, cuja “sorte”, ou seja, a escolha, o chamamento, o nascimento e a morte, a salvação ou a perdição, estão de maneira tão íntima e indissolúvel unidos a Cristo. E trata-se aqui precisamente de todos e de cada um dos homens sobre este planeta, nesta terra que o Criador deu ao primeiro homem, dizendo ao mesmo tempo ao homem e à mulher: “submetei-a (a terra) e dominai-a”. [94] Cada homem, pois, em toda a sua singular realidade do ser e do agir, da inteligência e da vontade, da consciência e do coração. O homem nessa sua singular realidade (porque é “pessoa”) tem uma história da sua própria vida e, sobretudo, uma história de sua própria alma. O homem que, segundo a abertura interior do seu espírito, e junto às tantas e tão diversas necessidades do seu corpo e da sua existência temporal, escreve esta sua história pessoal, o faz através de numerosos vínculos, contatos, situações e estruturas sociais, que o unem a outros homens; e faz isso a partir do primeiro momento da sua existência sobre a terra, desde o momento da sua concepção e do seu nascimento. O homem, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim no âmbito de toda a humanidade — este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção.
Este homem assim precisamente, em toda a verdade da sua vida, com a sua consciência, com a sua contínua inclinação para o pecado e, ao mesmo tempo, com a sua contínua aspiração pela verdade, pelo bem, pelo belo, pela justiça e pelo amor, precisamente tal homem tinha diante dos olhos o Concílio Vaticano II, quando, ao delinear a sua situação no mundo contemporâneo, se transferia sempre das componentes externas desta situação para a verdade imanente da humanidade: “É no íntimo do homem precisamente que muitos elementos se combatem entre si. Enquanto, por um lado, ele se experimenta, como criatura que é, multiplamente limitado, por outro, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes aquilo que não quer e não realiza o que desejaria fazer. Sofre assim em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão graves discórdias se originam para a sociedade”. [95]
É este homem assim que é a via da Igreja; via que se encontra, de certo modo, na base de todas aquelas vias pelas quais a Igreja deve caminhar: porque o homem — todos e cada um dos homens, sem exceção alguma — foi remido por Cristo; e porque com o homem — cada homem, sem exceção alguma — Cristo de algum modo se uniu, mesmo quando tal homem disso não se acha consciente: “Cristo, morto e ressuscitado por todos os homens, a estes — a todos e a cada um dos homens — oferece sempre... a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação”. [96]
Sendo portanto este homem a via da Igreja, via da sua vida e experiência cotidianas, da sua missão e atividade, a Igreja do nosso tempo tem de estar, de maneira sempre renovada, bem ciente da “situação” de tal homem. E mais: a Igreja deve estar bem ciente das suas possibilidades, que tomam sempre nova orientação e assim se manifestam; ela tem de estar bem ciente, ao mesmo tempo ainda, das ameaças que se apresentam contra o homem. Ela deve estar consciente, igualmente, de tudo aquilo que parece ser contrário ao esforço para que “a vida humana se torne cada vez mais humana” [97] e para que tudo aquilo que compõe esta mesma vida corresponda à verdadeira dignidade do homem. Numa palavra, a Igreja deve estar bem consciente de tudo aquilo que é contrário a tal processo de nobilitação da vida humana.

15. De que é que o homem contemporâneo tem medo
Conservando, pois, viva na memória a imagem que de maneira tão perspicaz e autorizada traçou o Concílio Vaticano II, procuraremos, uma vez mais, adaptar este quadro aos “sinais dos tempos”, bem como às exigências da situação que muda continuamente e evolui em determinadas direções.
O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz; ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências da sua vontade. Os frutos desta multiforme atividade do homem, com muita rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser, não tanto objeto de “alienação”, no sentido de que são simplesmente tirados àquele que os produz, quanto, ao menos parcialmente e num círculo consequente e indireto dos seus efeitos, tais frutos se voltam contra o próprio homem. Eles passam então, de fato, a ser dirigidos, ou podem ser dirigidos contra o homem. E nisto assim parece consistir o capítulo principal do drama da existência humana contemporânea na sua dimensão mais ampla e universal. O homem, portanto, cada vez mais vive com medo. Ele teme que os seus produtos, naturalmente não todos e não na maior parte, mas alguns e precisamente aqueles que encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo; teme que eles possam tornar-se meios e instrumentos de uma inimaginável autodestruição, perante a qual todos os cataclismas e as catástrofes da história, que nós conhecemos, parecem se perder de vista. Deve-se, portanto, colocar uma interrogação: por que tal poder, dado desde o princípio ao homem, poder mediante o qual ele devia dominar a terra, [98] se volta assim contra ele, provocando um compreensível estado de inquietude, de consciente ou inconsciente medo, e de ameaça que de diversas maneiras se comunica a toda a família humana contemporânea e se manifesta sob vários aspectos?
Este estado de ameaça contra o homem, da parte dos seus mesmos produtos, tem várias direções e vários graus de intensidade. Parece que estamos cada vez mais conscientes do fato de a exploração da terra, do planeta em que vivemos, exigir um planejamento racional e honesto. Ao mesmo tempo, tal exploração para fins não somente industriais mas também militares, o desenvolvimento da técnica não controlado nem enquadrado num plano com perspectivas universais e autenticamente humanístico, trazem muitas vezes consigo a ameaça para o ambiente natural do homem, alienam-no nas suas relações com a natureza e apartam-no da mesma natureza. E o homem parece muitas vezes não se dar conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles somente que servem para os fins de um uso ou consumo imediatos. Quando, ao contrário, era vontade do Criador que o homem se comunicasse com a natureza como “senhor” e “guarda” inteligente e nobre, e não como um “desfrutador” e “destruidor” sem respeito algum.
O progresso da técnica e o desenvolvimento da civilização do nosso tempo, que é marcado aliás pelo predomínio da técnica, exigem um proporcional desenvolvimento também da vida moral e da ética. E no entanto este último, infelizmente, parece ficar sempre atrasado. Por isso, este progresso, de resto tão maravilhoso, em que é difícil não vislumbrar também os autênticos sinais da grandeza do mesmo homem, os quais, em seus germes criativos, já nos são revelados nas páginas do Livro do Gênesis, na descrição da sua mesma criação, [99] este progresso não pode deixar de gerar múltiplas inquietações. Uma primeira inquietação diz respeito à questão essencial e fundamental: este progresso, de que é autor e fautor o homem, torna de fato a vida humana sobre a terra, em todos os seus aspectos, “mais humana”? Torna-a mais “digna do homem”? Não pode haver dúvida de que, sob vários aspectos, a torna de fato assim. Esta pergunta, todavia, retorna obstinadamente e pelo que respeita àquilo que é essencial em sumo grau: se o homem, na medida em que é homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto para com o outros, em particular para com os mais necessitados e os mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos.
Esta é a pergunta que os cristãos devem se colocar, exatamente porque Cristo os sensibilizou assim de modo universal quanto ao problema do homem. E a mesma pergunta devem também se colocar todos os homens, especialmente aqueles que fazem parte daqueles ambientes sociais que se dedicam ativamente ao desenvolvimento e ao progresso nos nossos tempos. Ao observar estes processos e tomando parte neles, não podemos deixar que se aposse de nós a euforia, nem podemos deixar-nos levar por um unilateral entusiasmo pelas nossas conquistas; mas todos devemos nos colocar, com absoluta lealdade, objetividade e sentido de responsabilidade moral, as perguntas essenciais pelo que se refere à situação do homem, hoje e no futuro. Todas as conquistas alcançadas até agora, bem como as que estão projetadas pela técnica para o futuro, estão de acordo com o progresso moral e espiritual do homem? Neste contexto o homem, na medida em que é homem, desenvolve-se e progride, ou regride e degrada-se na sua humanidade? Prevalece nos homens, “no mundo do homem” — que é em si mesmo um mundo de bem e de mal moral — o bem ou o mal? Crescem verdadeiramente nos homens, entre os homens, o amor social, o respeito pelos direitos de outrem — de todos e de cada um dos homens, de cada nação, de cada povo — ou, pelo contrário, crescem os egoísmos de vário alcance, os nacionalismos exagerados em vez do autêntico amor da pátria, e, ainda, a tendência para dominar os outros, para além dos próprios e legítimos direitos e méritos, e a tendência para desfrutar de todo o progresso material e técnico-produtivo exclusivamente para o fim de predominar sobre os outros, ou em favor deste ou daquele outro imperialismo?
Eis as interrogações essenciais que a Igreja não pode deixar de se colocar, porque, de maneira mais ou menos explícita, as põem a si próprios bilhões de homens que vivem hoje no mundo. O tema do desenvolvimento e do progresso anda nas bocas de todos e aparece nas colunas de todos os jornais e nas publicações, em quase todas as línguas do mundo contemporâneo. Não esqueçamos, todavia, que este tema não contém somente afirmações e certezas, mas também perguntas e angustiosas inquietudes. Estas últimas não são menos importantes do que as primeiras. Elas correspondem à natureza dialética fundamental da solicitude do homem pelo homem, pela sua própria humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra. A Igreja, que é animada pela fé escatológica, considera esta solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra e, por consequência, pela orientação de todo o desenvolvimento e progresso, como um elemento essencial da sua missão, indissoluvelmente ligado a ela. E o princípio de tal solicitude encontra-o a mesma Igreja no próprio Jesus Cristo, como testemunham os Evangelhos. E é por isso mesmo que ela deseja acrescê-la continuamente nEle, ao reler a situação do homem no mundo contemporâneo, segundo os mais importantes sinais do nosso tempo.

16. Progresso ou ameaça?
Se, portanto, o nosso tempo, o tempo da nossa geração, o tempo que se vai aproximando do fim do segundo Milênio da nossa era cristã, se nos manifesta como um tempo de grande progresso, ele se apresenta também como um tempo de multiforme ameaça contra o homem, da qual a Igreja deve falar a todos os homens de boa vontade e sobre a qual ela deve constantemente dialogar com eles. A situação do homem no mundo contemporâneo, de fato, parece estar longe das exigências objetivas da ordem moral, assim como das exigências da justiça e, mais ainda, do amor social. Não se trata aqui senão daquilo que teve a sua expressão na primeira mensagem do Criador dirigida ao homem no momento em que lhe dava a terra, para que ele a “dominasse”. [100] Esta primeira mensagem de Deus foi confirmada depois, no mistério da Redenção, por Cristo Senhor. Isto foi expresso pelo Concílio Vaticano II naqueles belíssimos capítulos do seu ensino que dizem respeito à “realeza” do homem, isto é, à sua vocação para participar na função real — o “munus regale” — do mesmo Cristo. [101] O sentido essencial desta “realeza” e deste “domínio” do homem sobre o mundo visível, que lhe foi confiado como tarefa pelo próprio Criador, consiste na prioridade da ética sobre a técnica, no primado da pessoa sobre as coisas e na superioridade do espírito sobre a matéria.
É por isso mesmo que é necessário acompanhar atentamente todas as fases do progresso hodierno: é preciso, por assim dizer, fazer a radiografia de cada uma das suas etapas exatamente deste ponto de vista. Está em causa o desenvolvimento da pessoa e não apenas a multiplicação das coisas, das quais as pessoas podem servir-se. Trata-se — como disse um filósofo contemporâneo e como afirmou o Concílio — não tanto de “ter mais”, quanto de “ser mais”. [102] Com efeito, existe já um real e perceptível perigo de que, enquanto progride enormemente o domínio do homem sobre o mundo das coisas, ele perca os fios essenciais deste seu domínio e, de diversas maneiras, submeta a elas a sua humanidade, e ele próprio se torne objeto de multiforme manipulação, se bem que muitas vezes não diretamente perceptível; manipulação através de toda a organização da vida comunitária, mediante o sistema de produção e por meio de pressões dos meios de comunicação social. O homem não pode renunciar a si mesmo, nem ao lugar que lhe compete no mundo visível; ele não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas econômicos, escravo da produção e escravo dos seus próprios produtos. Uma civilização de feição puramente materialista condena o homem a tal escravidão, embora algumas vezes, indubitavelmente, isso aconteça contra as intenções e as mesmas premissas dos seus pioneiros. Na raiz da atual solicitude pelo homem está sem dúvida alguma este problema. E não é questão aqui somente de dar uma resposta abstrata à pergunta: quem é o homem; mas trata-se de todo o dinamismo da vida e da civilização. Trata-se do sentido das várias iniciativas da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, das premissas para numerosos programas de civilização, programas políticos, econômicos, sociais, estatais e muitos outros.
Se nós ousamos definir a situação do homem contemporâneo como estando longe das exigências objetivas da ordem moral, longe das exigências da justiça e, ainda mais, do amor social, é porque isto é confirmado por fatos bem conhecidos e por confrontos que se podem fazer e que, por mais de uma vez, já tiveram ressonância direta nas páginas das enunciações pontifícias, conciliares e sinodais. [103] A situação do homem na nossa época não é certamente uniforme, mas sim diferenciada de múltiplas maneiras. Estas diferenças têm as suas causas históricas, mas também têm uma forte ressonância ética. É assaz conhecido, de fato, o quadro da civilização consumista, que consiste num certo excesso de bens necessários ao homem e a sociedades inteiras — e aqui se trata exatamente das sociedades ricas e muito desenvolvidas — enquanto que as restantes sociedades, ao menos largos estratos destas, sofrem a fome, e muitas pessoas morrem diariamente por desnutrição ou falta de comida. Simultaneamente sucede que se dá por parte de uns certo abuso da liberdade, que está ligado precisamente a um modo de comportar-se consumista, não controlado pela ética, enquanto isso limita contemporaneamente a liberdade dos outros, isto é, daqueles que sofrem notórias carências e se veem empurrados para condições de ulterior miséria e indigência.
Este confronto, universalmente conhecido, e o contraste a que dedicaram a sua atenção, nos documentos do seu magistério, os Sumos Pontífices do nosso século, mais recentemente João XXIII assim como Paulo VI, [104] representam como que um gigantesco desenvolvimento da parábola bíblica do rico avarento e do pobre Lázaro. [105]
A amplitude do fenômeno põe em questão as estruturas e os mecanismos financeiros, monetários, produtivos e comerciais, que, apoiando-se em diversas pressões políticas, regem a economia mundial: eles se têm demonstrado como que incapazes quer de reabsorver as situações sociais injustas, herdadas do passado, quer de fazer face aos desafios urgentes e às exigências éticas do presente. Submetendo o homem às tensões por ele mesmo criadas, dilapidando, com um ritmo acelerado, os recursos materiais e energéticos e comprometendo o ambiente geofísico, tais estruturas permitem que se estendam incessantemente as zonas de miséria e, junto com esta, a angústia, a frustração e a amargura. [106]
Encontramo-nos aqui perante o grande drama, que não pode deixar ninguém indiferente. O sujeito que, por um lado, procura auferir o máximo proveito, bem como aquele que, por outro lado, paga as consequências dos danos e das injúrias, é sempre o homem. E tal drama é ainda mais exacerbado pela proximidade com os estratos sociais privilegiados e com os países da opulência, que acumulam os bens num grau excessivo e cuja riqueza se torna, muitas vezes por causa do abuso, motivo de diversos mal-estares. A isto se ajuntem a febre da inflação e a praga do desemprego: e eis outros sintomas de tal desordem moral, que se faz sentir na situação mundial e que exige por isso mesmo resoluções audaciosas e criativas, conformes com a autêntica dignidade do homem. [107]
Tal tarefa não é impossível de realizar. O princípio de solidariedade, em sentido lato, deve inspirar a busca eficaz de instituições e de mecanismos apropriados: quer se trate do setor dos intercâmbios, em que é necessário deixar-se conduzir pelas leis de uma sã competição, quer se trate do plano de uma mais ampla e imediata redistribuição das riquezas e dos controles sobre as mesmas, a fim de que os povos que se encontram em vias de desenvolvimento econômico possam, não apenas satisfazer às suas exigências essenciais, mas também progredir gradual e eficazmente.
Não será fácil avançar, porém, neste difícil caminho, no caminho da indispensável transformação das estruturas da vida econômica, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos corações. A tarefa exige a aplicação decidida de homens e de povos livres e solidários. Com muita frequência se confunde a liberdade com o instinto do interesse individual e coletivo, ou ainda com o instinto de luta e de domínio, quaisquer que sejam as cores ideológicas de que eles se revistam. É óbvio que esses instintos existem e operam; mas não será possível ter-se uma economia verdadeiramente humana, se eles não forem assumidos, orientados e dominados pelas forças mais profundas que se encontram no homem, e que são aquelas que decidem da verdadeira cultura dos povos. E é precisamente destas fontes que deve nascer o esforço, no qual se exprimirá a verdadeira liberdade do homem, e que será capaz de assegurá-la também no campo econômico. O desenvolvimento econômico, conjuntamente com tudo aquilo que faz parte do seu modo próprio e adequado de funcionar, tem de ser constantemente programado e realizado dentro de uma perspectiva de desenvolvimento universal e solidário dos homens tomados singularmente e dos povos, conforme recordava de maneira convincente o meu Predecessor Paulo VI na Encíclica Populorum Progressio. Sem isso, a simples categoria do “progresso econômico” torna-se uma categoria superior, que passa a subordinar o conjunto da existência humana às suas exigências parciais, sufoca o homem, desagrega as sociedades e acaba por desenvolver-se nas suas próprias tensões e nos seus mesmos excessos.
É possível assumir este dever; testemunham-no os fatos certos e os resultados, que é difícil enumerar aqui de maneira mais pormenorizada. E uma coisa, contudo, é certa: na base deste campo gigantesco é necessário estabelecer, aceitar e aprofundar o sentido da responsabilidade moral, que tem de assumir o homem. Ainda uma vez e sempre, o homem. Para nós cristãos tal responsabilidade torna-se particularmente evidente, quando recordamos — e devemos recordá-lo sempre — a cena do juízo final, segundo as palavras de Cristo, referidas no Evangelho de São Mateus. [l08]
Essa cena escatológica tem de ser sempre “aplicada” à história do homem, deve ser sempre tomada como “medida” dos atos humanos, como um esquema essencial de um exame de consciência para cada um e para todos: “Tive fome e não Me destes de comer...; estava nu e não Me vestistes...; estava na prisão e não fostes visitar-Me”. [109] Estas palavras adquirem um maior cunho de admoestação ainda, se pensamos que, ao invés do pão e da ajuda cultural a novos estados e nações que estão despertando para a vida independente, algumas vezes, se lhes oferecem, não raro com abundância, armas modernas e meios de destruição, postos ao serviço de conflitos armados e de guerras, que não são tanto uma exigência da defesa dos seus justos direitos e da sua soberania, quanto sobretudo uma forma de “chauvinismo”, de imperialismo e de neo-colonialismo de vários gêneros. Todos sabemos bem que as zonas de miséria ou de fome, que existem no nosso globo, poderiam ser “fertilizadas” num breve espaço de tempo, se os gigantescos investimentos para os armamentos, que servem para a guerra e para a destruição, tivessem sido em contrapartida convertidos em investimentos para a alimentação, que servem para a vida.
Esta consideração talvez permaneça parcialmente “abstrata”; talvez permita a uma e a outra “parte” se acusarem reciprocamente, esquecendo cada qual as próprias culpas; talvez provoque mesmo novas acusações contra a Igreja.
Esta, porém, não dispondo de outras armas, senão das do espírito, das armas da palavra e do amor, não pode renunciar a pregar a Palavra, insistindo oportuna e inoportunamente. [110] Por isso, ela não cessa de solicitar a cada uma das partes e de pedir a todos, em nome de Deus e em nome do homem: Não mateis! Não prepareis para os homens destruições e extermínio! Pensai nos vossos irmãos que sofrem a fome e a miséria! Respeitai a dignidade e a liberdade de cada um!

17. Direitos do homem “letra” ou “espírito”
O nosso século tem sido até agora um século de grandes calamidades para o homem, de grandes devastações, não só materiais, mas também morais, ou melhor, talvez sobretudo morais. Não é fácil, certamente, comparar épocas e séculos sob este aspecto, uma vez que isso depende também dos critérios históricos que mudam. Não obstante, prescindido muito embora de tais comparações, importa verificar que até agora este século foi um tempo em que os homens prepararam para si mesmos muitas injustiças e sofrimentos. Este processo terá sido decididamente entravado? Em qualquer hipótese, não se pode deixar de recordar aqui, com apreço e com profunda esperança para o futuro, o esforço magnífico realizado para dar vida à Organização das Nações Unidas, um esforço que tende para definir e estabelecer os objetivos e invioláveis direitos do homem, obrigando-se os Estados-membros reciprocamente a uma observância rigorosa dos mesmos. Este compromisso foi aceito e ratificado por quase todos os Estados do nosso tempo; e isto deveria constituir uma garantia para que os direitos do homem se tornassem em todo o mundo, o princípio fundamental do empenho em prol do bem do mesmo homem.
A Igreja não precisa confirmar o quanto este problema está intimamente ligado com a sua missão no mundo contemporâneo. Ele está, com efeito, nas mesmas bases da paz social e internacional, como declararam a este propósito João XXIII, o Concílio Vaticano II e depois Paulo VI, com documentos pormenorizados. Em última análise, a paz reduz-se ao respeito dos direitos invioláveis do homem — “efeito da justiça será a paz” — ao passo que a guerra nasce da violação destes direitos e acarreta consigo ainda mais graves violações dos mesmos. Se os direitos do homem são violados em tempo de paz, isso se torna particularmente doloroso e, sob o ponto de vista do progresso, representa um incompreensível fenômeno de luta contra o homem, que não pode de maneira alguma pôr-se de acordo com qualquer programa que se autodefina “humanístico”. E qual seria o programa social, econômico, político e cultural que poderia renunciar a esta definição? Nós nutrimos a convicção profunda de que não há no mundo de hoje nenhum programa em que, até mesmo sobre a plataforma de ideologias opostas quanto à concepção do mundo, não seja posto sempre em primeiro lugar o homem.
Ora, se apesar de tais premissas, os direitos do homem são violados de diversas maneiras, se na prática somos testemunhas dos campos de concentração, da violência, da tortura, do terrorismo e de multíplices discriminações, isto deve de ser uma consequência de outras premissas que minam, ou muitas vezes quase anulam a eficácia das premissas humanísticas daqueles programas e sistemas modernos. Então se impõe necessariamente o dever de submeter os mesmos programas a uma contínua revisão sob o ponto de vista dos objetivos e invioláveis direitos do homem.
A Declaração destes direitos, juntamente com a instituição da Organização das Nações Unidas, não tinham certamente apenas a finalidade de nos apartar das horríveis experiências da última guerra mundial, mas também a finalidade de criar uma base para uma contínua revisão dos programas, dos sistemas e dos regimes, precisamente sob este fundamental ponto de vista, que é o bem do homem — digamos, da pessoa na comunidade — e que, qual fator fundamental do bem comum, deve constituir o critério essencial de todos os programas, sistemas e regimes. Caso contrário, a vida humana, mesmo em tempo de paz, está condenada a vários sofrimentos; e, ao mesmo tempo, junto com tais sofrimentos, desenvolvem-se várias formas de dominação, de totalitarismo, de neocolonialismo e de imperialismo, as quais ameaçam mesmo a convivência entre as nações. Na verdade, é um fato significativo e confirmado por mais de uma vez pelas experiências da história, que a violação dos direitos do homem anda coligada com a violação dos direitos da nação, com a qual o homem está unido por ligames orgânicos, como que com uma família maior.
Já desde a primeira metade deste século, no período em que se estavam desenvolvendo vários totalitarismos de estado, os quais — como se sabe — levaram à horrível catástrofe bélica, a Igreja havia claramente delineado a sua posição frente a estes regimes, que aparentemente agiam por um bem superior, qual é o bem do estado, enquanto que a história haveria de demonstrar que, pelo contrário, aquilo era apenas o bem de um determinado partido, que se tinha identificado com o estado. [111] Esses regimes, na realidade, haviam coartado os direitos dos cidadãos, negando-lhes o reconhecimento daqueles direitos invioláveis do homem que, pelos meados do nosso século obtiveram a sua formulação no plano internacional. Ao compartilhar a alegria de tal conquista com todos os homens de boa vontade, com todos os homens que amam verdadeiramente a justiça e a paz, a Igreja, consciente de que a “letra” somente pode matar, ao passo que só “o espírito vivifica”, [112] deve, junto com estes homens de boa vontade, continuamente se perguntar se a Declaração dos direitos do homem e a aceitação da sua “letra” significam em toda a parte também a realização do seu “espírito”. Surgem, efetivamente, receios fundados de que muito frequentemente estamos ainda longe de tal realização, e de que por vezes o espírito da vida social e pública se acha em dolorosa oposição com a declarada “letra” dos direitos do homem. Este estado de coisas, grave para as respectivas sociedades, tornaria aqueles que contribuem para determiná-lo particularmente responsáveis, perante essas sociedades e perante a história do homem.
O sentido essencial do Estado, como comunidade política, consiste nisto: que a sociedade e, quem a compõe, o povo, é soberana do próprio destino. Tal sentido não se torna uma realidade, se, em lugar do exercício do poder com a participação moral da sociedade ou do povo, tivermos de assistir à imposição do poder por parte de um determinado grupo a todos os outros membros da mesma sociedade. Estas coisas são essenciais na nossa época, em que tem crescido enormemente a consciência social dos homens e, junto com ela, a necessidade de uma correta participação dos cidadãos na vida política da comunidade, tendo em conta as reais condições de cada povo e o necessário vigor da autoridade pública. [113] Estes são, pois, os problemas de primária importância sob o ponto de vista do progresso do mesmo homem e do desenvolvimento global da sua humanidade.
A Igreja sempre tem ensinado o dever de agir pelo bem comum; e, procedendo assim, também educou bons cidadãos para cada um dos Estados. Além disso, ela sempre ensinou que o dever fundamental do poder é a solicitude pelo bem comum da sociedade; daqui dimanam os seus direitos fundamentais. Em nome precisamente destas premissas, que respeitam à ordem ética objetiva, os direitos do poder não podem ser entendidos de outro modo que não seja sobre a base do respeito pelos direitos objetivos e invioláveis do homem. Aquele bem comum que a autoridade no Estado serve, será plenamente realizado somente quando todos os cidadãos estiverem seguros dos seus direitos. Sem isto, chega-se ao descalabro da sociedade, à oposição dos cidadãos contra a autoridade, ou então a uma situação de opressão, de intimidação, de violência, ou de terrorismo, de que nos forneceram numerosos exemplos os totalitarismos do nosso século. É assim que o princípio dos direitos do homem afeta profundamente o setor da justiça social e se torna padrão para a sua fundamental verificação na vida dos Organismos políticos.
Entre estes direitos insere-se, e justamente, o direito à liberdade religiosa ao lado do direito da liberdade de consciência. O Concílio Vaticano II considerou particularmente necessário elaborar uma mais ampla Declaração sobre este tema. É o Documento que se intitula Dignitatis humanae, [114] no qual foi expressa, não somente a concepção teológica do problema, mas também a concepção sob o ponto de vista do direito natural, ou seja da posição “puramente humana”, em base àquelas premissas ditadas pela própria experiência do homem, pela razão e pelo sentido da sua dignidade. Certamente, a limitação da liberdade religiosa das pessoas e das comunidades não é apenas uma sua dolorosa experiência, mas atinge antes de tudo a própria dignidade do homem, independentemente da religião professada ou da concepção que elas tenham do mundo. A limitação da liberdade religiosa e a sua violação estão em contraste com a dignidade do homem e com os seus direitos objetivos. O Documento conciliar acima referido diz com bastante clareza o que seja tal limitação e violação da liberdade religiosa. Encontramo-nos em tal caso, sem dúvida alguma, perante uma injustiça radical em relação àquilo que é particularmente profundo no homem e em relação àquilo que é autenticamente humano. Com efeito, até mesmo os fenômenos da incredulidade, da arreligiosidade e do ateísmo, como fenômenos humanos, compreendem-se somente em relação com o fenômeno de religião e da fé. É difícil, portanto, mesmo de um ponto de vista “puramente humano”, aceitar uma posição segundo a qual só o ateísmo tem direito de cidadania na vida pública e social, enquanto que os homens crentes, quase por princípio, são apenas tolerados, ou então tratados como cidadãos de segunda categoria, e até mesmo — o que já tem sucedido — são totalmente privados dos direitos de cidadania.
É necessário, embora com brevidade, tratar também deste tema, porque ele realmente faz parte do complexo das situações do homem no mundo atual, e porque ele também está a testemunhar quanto esta situação está profundamente marcada por preconceitos e por injustiças de vários gêneros. Se me abstenho de entrar em pormenores neste campo precisamente, no qual me assistiria um especial direito e dever para fazê-lo, isso é sobretudo porque, juntamente com todos aqueles que sofrem os tormentos da discriminação e da perseguição por causa do nome de Deus, sou guiado pela fé na força redentora da cruz de Cristo. Desejo, no entanto, em virtude de meu múnus, em nome de todos os homens crentes do mundo inteiro, dirigir-me àqueles de quem, de alguma maneira, depende a organização da vida social e pública, pedindo-lhes ardentemente para respeitarem os direitos da religião e da atividade da Igreja. Não se pede nenhum privilégio, mas o respeito de um elementar direito. A atuação deste direito é um dos fundamentais meios para se aquilatar do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 4 de março de 1979. Revisado por Paulo R. A. Pacheco.

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quarta-feira, 6 de abril de 2011

Os dois “inimigos” e o crime perfeito que assassinou a paixão dos estudantes


Por Dario Nicoli

O dilema da escola – A escola se encontra diante de um dilema de relevância histórica, que diz respeito à resposta que se deve dar à progressiva queda de motivação dos estudantes quanto aos estudos. De um lado existe a solução que vem prevalecendo e que pode ser definida como “cômoda”, e consiste no abaixar progressivamente as metas, reduzir a carga de trabalho, concordar as verificações, dar peso às condições psicossociais dos estudantes na hora de emitir juízo, conceder novas chances, aumentar as recuperações; de outro lado se percebe uma resposta de tipo “neo-rigorista”que aposta na circunscrição do papel da escola apenas à instrução, livrando-se de todas as “educações” que, nos últimos anos, foram acrescentadas aí, aumentar a importância e a gravidade da disciplina escolar, enfatizar a carga de trabalho dos estudantes, sustentar (ou, para dizer melhor, “armar”) o papel do docente com notas e sanções, estigmatizar lacunas e inobservâncias, selecionar.
Enquanto que a primeira estratégia tendencialmente transforma a escola numa espécie de serviço de animação cuja finalidade é cuidar dos problemas juvenis, a segunda acredita poder restabelecer o princípio de autoridade e de compromisso da forma como existiam no passado, ou seja, antes de 1968.
A bem dizer, ambas as respostas parecem inadequadas: a solução cômoda, com a intenção de “ir ao encontro dos jovens”, acaba por esvaziar a experiência escolar, transformando-a num tempo tedioso no qual nada acontece de interessante, reduzindo a cultura a formulazinhas e esquemas de valor ambíguo; a solução neo-rigorista, iludindo-se de poder desenterrar um tempo superado, só consegue fazer aumentar o mal-estar dos estudantes e sua aversão quanto aos estudos, aumentando a dispersão e a mudança para locais de estudo tidos como mais fáceis. Trata-se de uma alternativa entre duas visões, nenhuma das quais se revela, na prática, aceitável.
Elas apresentam um elemento comum decisivo: consideram indiscutível uma metodologia de ensino centrada na epistemologia das disciplinas, realizada segundo micro-sequências de horários divididas entre aula e exercícios, fundada em tarefas de tipo escolar não retiradas da realidade, com a finalidade não tanto de amadurecer a personalidade do estudante através da cultura, mas de dar notas. Ambas assumem como inevitável a “visão dos dois tempos”: primeiro, é preciso estudar, depois do diploma será possível aplicar na realidade aquilo que se apreendeu. Uma escola assim, cuja principal marca é a inércia, não é, de forma alguma, capaz de enfrentar os desafios do tempo presente e, particularmente, a irrupção no mundo juvenil da irrealidade, ou seja, da estética da aparência e do consumismo.
O desafio da hiperrealidade – A desmotivação dos jovens para o estudo não é sintoma de enfraquecimento das capacidades intelectivas de uma geração inteira, mas encontra sua explicação naquele “crime perfeito” de que Jean Baudrillard falou de modo convincente: a realidade teria sido substituída pelas representações fictícias que se mostram mais interessantes e envolventes do que os conteúdos dos estudos apresentados de modo inerte.
A hiperrealidade, feita de objetos, mídia, informação, espetáculo, ilusão, é feita de experiências intensas e envolventes, que povoam o mundo dos jovens e constituem um formidável competidor da escola. Esta realidade virtual solicita a imersão total, uma fingida participação em causas que, se fossem realmente enfrentadas, seriam beneméritas, uma espécie de relação imediata com tudo e com todos realizada através da anulação das distâncias dentro de um espaço que engloba tudo no instante.
Disso advém a impressão de uma juventude desmotivada para os estudos, amorfa diante das solicitações escolares, que tende a considerar o estudo como um desempenho dirigido apenas à aquisição da nota e do boletim. Diante do perigo de uma “selvageria” da juventude, resultado da ação da poderosa agência antieducativa constituída pelo mundo das mídias e dos consumos, com seu sedutor mito de uma vida fácil, leve, prazerosa e voluntariosa, faz-se urgente que a vida escolar adquira o valor de experiência cultural, através da qual os jovens possam ampliar a própria capacidade de visão da realidade, experimentar o gosto da descoberta e da conquista pessoal do saber.
De tal modo, experimentando a dimensão real própria da cultura, eles poderão se tornar conscientes dos valores da civilização a que pertencem, desejar as metas mais altas ligadas às próprias atitudes e potencialidades, adquirir uma disciplina que permita a eles perseguir essas atitudes e potenciais com convicção, superando as dificuldades que, necessariamente, se encontram nesse caminho, a ponto de se tornarem protagonistas da própria história pessoal e capazes de contribuir com a própria ação para o bem de todos.
Portanto, a teoria dos dois tempos se mostra fraca: a escola não pode se limitar a uma transferência de noções, mas deve, através do encontro com a cultura, habilitar os jovens a entrar de forma positiva no mundo real, fornecendo a eles pontos de referência, tornando-os conscientes de suas potencialidades, aproveitando as possibilidades de bem, de justiça, de beleza que insistem na realidade, ensinando a eles a conectar o presente com o passado e imaginar o futuro de modo razoável, agindo nele como verdadeiros caçadores e construtores de sentido.
Mas, para fazer isto, assim como ensina Edgar Morin, é preciso superar um sistema didático que aposta no isolamento dos objetos de seu ambiente, na separação das disciplinas, na disjunção dos problemas, mais do que na vinculação e na integração, através de uma abordagem que ajude os jovens a interconectar os conhecimentos separados, sair do local e do particular concebendo conjuntos, capaz de prolongar-se numa ética de solidariedade entre os homens. Assim sendo, será sustentada a atitude para organizar o conhecimento, o ensino da condição humana, o aprendizado da vida e da incerteza, a educação para a cidadania.
Da escola depositária do saber à maiêutica do real – Esta nova abordagem solicita que se passe da informação para a formação, encorajando uma postura ativa quanto ao conhecimento, mais do que uma postura passiva que recorre à mera autoridade. Impulsiona a reencontrar na realidade, de modo seletivo, o material sobre o qual dar sequência à obra da educação.
A União Europeia se faz porta-voz desta passagem, sobretudo quando solicita que se considere como “cultura” todo aprendizado, seja lá qual for o modo como é adquirido (formal, não formal, informal), e propõe que se dote cada cidadão com competências-chave que lhe permitam viver como protagonista na sociedade do conhecimento.
As conseqüências desta mudança consistem no envolvimento da comunidade na tarefa educativa e formativa, e na superação dos currículos formais para optar decisivamente por uma pedagogia do real. Para a Itália, trata-se, particularmente, de evitar cair numa espécie de autoritarismo vazio, para enfrentar a educação para a verdade e, ao mesmo tempo, a educação moral partindo de experiências que permitam uma descoberta pessoal e, portanto, uma relação vital com o saber.
Isto obriga a um modo de fazer experiência do saber que permita à pessoa mobilizar-se diante da realidade, a ponto de poder ser capaz de compreender, se orientar e agir. É preciso mobilizar a pessoa de modo ativo na sua relação com as tarefas-problema, de modo a estimular nela a autonomia, a iniciativa concreta, o definitivo desejo de aprender através do envolvimento pessoal. É isso que se entende por “competências” (Fim da parte 1).

* Extraído do IlSussidiario.net, do dia 29 de março de 2011. Traduzido por Paulo R. A. Pacheco.

sábado, 5 de março de 2011

Comentário ao evangelho do dia

Evangelho - Mc 11,27-33
Naquele tempo, Jesus e os discípulos foram de novo a Jerusalém. Enquanto Jesus estava andando no Templo, os sumos sacerdotes, os mestres da Lei e os anciãos aproximaram-se dele e perguntaram: "Com que autoridade fazes essas coisas? Quem te deu autoridade para fazer isso?". Jesus respondeu: "Vou fazer-vos uma só pergunta. Se me responderdes, eu vos direi com que autoridade faço isso. O batismo de João vinha do céu ou dos homens? Respondei-me". Eles discutiam entre si: "Se respondermos que vinha do céu, ele vai dizer: 'Por que não acreditastes em João?'. Devemos então dizer que vinha dos homens?". Mas eles tinham medo da multidão, porque todos, de fato, tinham João na qualidade de profeta. Então eles responderam a Jesus: "Não sabemos". E Jesus disse: "Pois eu também não vos digo com que autoridade faço essas coisas".

Comentário feito por Santo Hilário (c. 315-367)
Bispo de Poitiers e Doutor da Igreja 

Vem do Pai, este Filho que se Lhe assemelha. Vem dEle, este Filho que podemos comparar com Ele, pois Se parece com Ele. É Seu igual, este Filho que faz as mesmas obras que Ele (Jo 5, 19). [...] Sim, o Filho faz as obras do Pai; e é por isso que nos pede para acreditarmos que Ele é o Filho de Deus. Ele não se arrogaria um título que não Lhe fosse devido; não é sobre as Suas próprias obras que Ele apoia as Suas reivindicações. Não! Ele dá testemunho de que não são as Suas obras, mas as de Seu Pai. E atesta assim que o brilho das Suas ações Lhe advém do Seu nascimento divino. Mas como é que os homens poderiam ter reconhecido nEle o Filho de Deus, no mistério deste corpo que Ele tinha assumido, neste homem nascido de Maria? Era para fazer penetrar nos seus corações a fé nEle que o Senhor fazia todas estas obras: "Se faço as obras de Meu Pai, então, mesmo que não queirais acreditar em Mim, acreditai ao menos nas Minhas obras" (Jo 10, 38). [...] Se a humildade do Seu corpo parece um obstáculo para crermos na Sua palavra, Ele nos pede para, pelo menos, crermos nas Suas obras. De fato, porque é que o mistério do Seu nascimento humano havia de nos impedir de compreender o Seu nascimento divino? [...] "Se não quiserdes acreditar em Mim, acreditai nas Minhas obras, para saberdes e reconhecerdes que o Pai está em Mim, e Eu no Pai". [...] Tal é a natureza que Ele possui pelo nascimento; tal é o mistério de uma fé que nos assegurará a salvação: não dividir Os que são Um, não privar o Filho da Sua natureza, e proclamar a verdade do Deus Vivo nascido do Deus Vivo. [...] "Como o Pai que Me enviou vive, também Eu vivo pelo Pai" (Jo 6, 57). [...] "Como o Pai tem a vida em Si mesmo, também deu ao Filho a possibilidade de ter também a vida em Si mesmo" (Jo 5, 26).