quarta-feira, 13 de abril de 2011

Redemptor hominis - III

João Paulo II

Redemptor hominis

aos veneráveis Irmãos no Episcopado
aos Sacerdotes
às Famílias religiosas
aos Filhos e Filhas da Igreja
e a todos os Homens de Boa Vontade
no início do Seu Ministério Pontifical

4 de março de 1979

III. O HOMEM REMIDO E A SUA SITUAÇÃO NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

13 . Cristo uniu-se com cada um dos homens
Quando, através da experiência da família humana, em contínuo aumento a ritmo acelerado, penetramos no mistério de Jesus Cristo, compreendemos com maior clareza que, na base de todas aquelas vias ao longo das quais — de acordo com a sapiência do Sumo Pontífice Paulo VI [86] — a Igreja dos nossos tempos deve prosseguir, existe uma única via: é a via experimentada há séculos, e é, ao mesmo tempo, a via do futuro. Cristo Senhor indicou esta via sobretudo, quando — como ensina o Concílio — “pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, se uniu de certo modo a cada homem”. [87] A Igreja reconhece, portanto, como sua tarefa fundamental fazer com que tal união se possa atuar e renovar continuamente. A Igreja deseja servir a esta única finalidade: que cada homem possa encontrar Cristo, a fim de que Cristo possa percorrer juntamente com cada homem o caminho da vida, com a potência daquela verdade sobre o homem e sobre o mundo, contida no mistério da Encarnação e da Redenção, e com a potência do amor que desta verdade irradia. Sobre o pano de fundo dos crescentes processos na história, que na nossa época parecem frutificar de modo particular no âmbito de vários sistemas, de concepções ideológicas do mundo e de regimes, Cristo torna-se, de certo modo, novamente presente, malgrado todas as suas aparentes ausências, malgrado todas as limitações da presença e da atividade institucional da Igreja. E Jesus Cristo torna-se presente com a potência daquela verdade e daquele amor que nEle se exprimiram como plenitude única e que não se pode repetir, se bem que a sua vida na terra tenha sido breve e ainda mais breve a sua atividade pública.
Jesus Cristo é a via principal da Igreja. Ele mesmo é a nossa via para “a casa do Pai” [88] e é também a via para cada homem. Por esta via que leva de Cristo ao homem, por esta via na qual Cristo se une a cada homem, a Igreja não pode ser entravada por ninguém. Isso é exigência do bem temporal e do bem eterno do mesmo homem. Por respeito a Cristo e em razão daquele mistério que a vida da mesma Igreja constitui, esta não pode permanecer insensível a tudo aquilo que serve ao verdadeiro bem do homem, assim como não pode permanecer indiferente àquilo que o ameaça. O Concílio Vaticano II, em diversas passagens dos seus documentos, deixou bem expressa esta fundamental solicitude da Igreja, a fim de que “a vida no mundo seja mais conforme com a dignidade sublime de homem”, [89] em todos os seus aspectos, e por tornar essa vida “cada vez mais humana”. [90] Esta é a solicitude do próprio Cristo, o Bom Pastor de todos os homens. Em nome desta solicitude, conforme lemos na Constituição pastoral do Concílio, “a Igreja que, em razão da sua missão e competência, de modo algum se confunde com a comunidade política nem está ligada a qualquer sistema político determinado, é ao mesmo tempo o sinal e a salvaguarda do caráter transcendente da pessoa humana”. [91]
Aqui, portanto, trata-se do homem em toda a sua verdade, com a sua plena dimensão. Não se trata do homem “abstrato”, mas sim real: do homem “concreto”, “histórico”. Trata-se de “cada” homem, porque todos e cada um foram compreendidos no mistério da Redenção, e com todos e cada um Cristo se uniu, para sempre, através deste mistério. Todo o homem vem ao mundo concebido no seio materno e nasce da própria mãe, e é precisamente por motivo do mistério da Redenção que ele é confiado à solicitude da Igreja. Tal solicitude diz respeito ao homem todo, inteiro, e está centrada sobre ele de modo absolutamente particular. O objeto destes cuidados da Igreja é o homem na sua única e singular realidade humana, na qual permanece intacta a imagem e semelhança com o próprio Deus. [92] O Concílio indica isto precisamente, quando, ao falar de tal semelhança recorda que o homem é “a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma”. [93] O homem tal como foi “querido” por Deus, como por Ele foi eternamente “escolhido”, chamado e destinado à graça e à glória, este homem assim é exatamente “todo e qualquer” homem, o homem “o mais concreto”, “o mais real”; este homem, depois, é o homem em toda a plenitude do mistério de que se tornou participante em Jesus Cristo, mistério de que se tornou participante cada um dos quatro bilhões de homens que vivem sobre o nosso planeta, desde o momento em que é concebido sob o coração da própria mãe.

14. Todas as vias da Igreja levam ao homem
A Igreja não pode abandonar o homem, cuja “sorte”, ou seja, a escolha, o chamamento, o nascimento e a morte, a salvação ou a perdição, estão de maneira tão íntima e indissolúvel unidos a Cristo. E trata-se aqui precisamente de todos e de cada um dos homens sobre este planeta, nesta terra que o Criador deu ao primeiro homem, dizendo ao mesmo tempo ao homem e à mulher: “submetei-a (a terra) e dominai-a”. [94] Cada homem, pois, em toda a sua singular realidade do ser e do agir, da inteligência e da vontade, da consciência e do coração. O homem nessa sua singular realidade (porque é “pessoa”) tem uma história da sua própria vida e, sobretudo, uma história de sua própria alma. O homem que, segundo a abertura interior do seu espírito, e junto às tantas e tão diversas necessidades do seu corpo e da sua existência temporal, escreve esta sua história pessoal, o faz através de numerosos vínculos, contatos, situações e estruturas sociais, que o unem a outros homens; e faz isso a partir do primeiro momento da sua existência sobre a terra, desde o momento da sua concepção e do seu nascimento. O homem, na plena verdade da sua existência, do seu ser pessoal e, ao mesmo tempo, do seu ser comunitário e social — no âmbito da própria família, no âmbito de sociedades e de contextos bem diversos, no âmbito da própria nação, ou povo (e, talvez, ainda somente do clã ou da tribo), enfim no âmbito de toda a humanidade — este homem é o primeiro caminho que a Igreja deve percorrer no cumprimento da sua missão: ele é a primeira e fundamental via da Igreja, via traçada pelo próprio Cristo e via que imutavelmente conduz através do mistério da Encarnação e da Redenção.
Este homem assim precisamente, em toda a verdade da sua vida, com a sua consciência, com a sua contínua inclinação para o pecado e, ao mesmo tempo, com a sua contínua aspiração pela verdade, pelo bem, pelo belo, pela justiça e pelo amor, precisamente tal homem tinha diante dos olhos o Concílio Vaticano II, quando, ao delinear a sua situação no mundo contemporâneo, se transferia sempre das componentes externas desta situação para a verdade imanente da humanidade: “É no íntimo do homem precisamente que muitos elementos se combatem entre si. Enquanto, por um lado, ele se experimenta, como criatura que é, multiplamente limitado, por outro, sente-se ilimitado nos seus desejos e chamado a uma vida superior. Atraído por muitas solicitações, vê-se obrigado a escolher entre elas e a renunciar a algumas. Mais ainda, fraco e pecador, faz muitas vezes aquilo que não quer e não realiza o que desejaria fazer. Sofre assim em si mesmo a divisão, da qual tantas e tão graves discórdias se originam para a sociedade”. [95]
É este homem assim que é a via da Igreja; via que se encontra, de certo modo, na base de todas aquelas vias pelas quais a Igreja deve caminhar: porque o homem — todos e cada um dos homens, sem exceção alguma — foi remido por Cristo; e porque com o homem — cada homem, sem exceção alguma — Cristo de algum modo se uniu, mesmo quando tal homem disso não se acha consciente: “Cristo, morto e ressuscitado por todos os homens, a estes — a todos e a cada um dos homens — oferece sempre... a luz e a força para poderem corresponder à sua altíssima vocação”. [96]
Sendo portanto este homem a via da Igreja, via da sua vida e experiência cotidianas, da sua missão e atividade, a Igreja do nosso tempo tem de estar, de maneira sempre renovada, bem ciente da “situação” de tal homem. E mais: a Igreja deve estar bem ciente das suas possibilidades, que tomam sempre nova orientação e assim se manifestam; ela tem de estar bem ciente, ao mesmo tempo ainda, das ameaças que se apresentam contra o homem. Ela deve estar consciente, igualmente, de tudo aquilo que parece ser contrário ao esforço para que “a vida humana se torne cada vez mais humana” [97] e para que tudo aquilo que compõe esta mesma vida corresponda à verdadeira dignidade do homem. Numa palavra, a Igreja deve estar bem consciente de tudo aquilo que é contrário a tal processo de nobilitação da vida humana.

15. De que é que o homem contemporâneo tem medo
Conservando, pois, viva na memória a imagem que de maneira tão perspicaz e autorizada traçou o Concílio Vaticano II, procuraremos, uma vez mais, adaptar este quadro aos “sinais dos tempos”, bem como às exigências da situação que muda continuamente e evolui em determinadas direções.
O homem de hoje parece estar sempre ameaçado por aquilo mesmo que produz; ou seja, pelo resultado do trabalho das suas mãos e, ainda mais, pelo resultado do trabalho da sua inteligência e das tendências da sua vontade. Os frutos desta multiforme atividade do homem, com muita rapidez e de modo muitas vezes imprevisível, passam a ser, não tanto objeto de “alienação”, no sentido de que são simplesmente tirados àquele que os produz, quanto, ao menos parcialmente e num círculo consequente e indireto dos seus efeitos, tais frutos se voltam contra o próprio homem. Eles passam então, de fato, a ser dirigidos, ou podem ser dirigidos contra o homem. E nisto assim parece consistir o capítulo principal do drama da existência humana contemporânea na sua dimensão mais ampla e universal. O homem, portanto, cada vez mais vive com medo. Ele teme que os seus produtos, naturalmente não todos e não na maior parte, mas alguns e precisamente aqueles que encerram uma especial porção da sua genialidade e da sua iniciativa, possam ser voltados de maneira radical contra si mesmo; teme que eles possam tornar-se meios e instrumentos de uma inimaginável autodestruição, perante a qual todos os cataclismas e as catástrofes da história, que nós conhecemos, parecem se perder de vista. Deve-se, portanto, colocar uma interrogação: por que tal poder, dado desde o princípio ao homem, poder mediante o qual ele devia dominar a terra, [98] se volta assim contra ele, provocando um compreensível estado de inquietude, de consciente ou inconsciente medo, e de ameaça que de diversas maneiras se comunica a toda a família humana contemporânea e se manifesta sob vários aspectos?
Este estado de ameaça contra o homem, da parte dos seus mesmos produtos, tem várias direções e vários graus de intensidade. Parece que estamos cada vez mais conscientes do fato de a exploração da terra, do planeta em que vivemos, exigir um planejamento racional e honesto. Ao mesmo tempo, tal exploração para fins não somente industriais mas também militares, o desenvolvimento da técnica não controlado nem enquadrado num plano com perspectivas universais e autenticamente humanístico, trazem muitas vezes consigo a ameaça para o ambiente natural do homem, alienam-no nas suas relações com a natureza e apartam-no da mesma natureza. E o homem parece muitas vezes não se dar conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles somente que servem para os fins de um uso ou consumo imediatos. Quando, ao contrário, era vontade do Criador que o homem se comunicasse com a natureza como “senhor” e “guarda” inteligente e nobre, e não como um “desfrutador” e “destruidor” sem respeito algum.
O progresso da técnica e o desenvolvimento da civilização do nosso tempo, que é marcado aliás pelo predomínio da técnica, exigem um proporcional desenvolvimento também da vida moral e da ética. E no entanto este último, infelizmente, parece ficar sempre atrasado. Por isso, este progresso, de resto tão maravilhoso, em que é difícil não vislumbrar também os autênticos sinais da grandeza do mesmo homem, os quais, em seus germes criativos, já nos são revelados nas páginas do Livro do Gênesis, na descrição da sua mesma criação, [99] este progresso não pode deixar de gerar múltiplas inquietações. Uma primeira inquietação diz respeito à questão essencial e fundamental: este progresso, de que é autor e fautor o homem, torna de fato a vida humana sobre a terra, em todos os seus aspectos, “mais humana”? Torna-a mais “digna do homem”? Não pode haver dúvida de que, sob vários aspectos, a torna de fato assim. Esta pergunta, todavia, retorna obstinadamente e pelo que respeita àquilo que é essencial em sumo grau: se o homem, na medida em que é homem, no contexto deste progresso, se torna verdadeiramente melhor, isto é, mais amadurecido espiritualmente, mais consciente da dignidade da sua humanidade, mais responsável, mais aberto para com o outros, em particular para com os mais necessitados e os mais fracos, e mais disponível para proporcionar e prestar ajuda a todos.
Esta é a pergunta que os cristãos devem se colocar, exatamente porque Cristo os sensibilizou assim de modo universal quanto ao problema do homem. E a mesma pergunta devem também se colocar todos os homens, especialmente aqueles que fazem parte daqueles ambientes sociais que se dedicam ativamente ao desenvolvimento e ao progresso nos nossos tempos. Ao observar estes processos e tomando parte neles, não podemos deixar que se aposse de nós a euforia, nem podemos deixar-nos levar por um unilateral entusiasmo pelas nossas conquistas; mas todos devemos nos colocar, com absoluta lealdade, objetividade e sentido de responsabilidade moral, as perguntas essenciais pelo que se refere à situação do homem, hoje e no futuro. Todas as conquistas alcançadas até agora, bem como as que estão projetadas pela técnica para o futuro, estão de acordo com o progresso moral e espiritual do homem? Neste contexto o homem, na medida em que é homem, desenvolve-se e progride, ou regride e degrada-se na sua humanidade? Prevalece nos homens, “no mundo do homem” — que é em si mesmo um mundo de bem e de mal moral — o bem ou o mal? Crescem verdadeiramente nos homens, entre os homens, o amor social, o respeito pelos direitos de outrem — de todos e de cada um dos homens, de cada nação, de cada povo — ou, pelo contrário, crescem os egoísmos de vário alcance, os nacionalismos exagerados em vez do autêntico amor da pátria, e, ainda, a tendência para dominar os outros, para além dos próprios e legítimos direitos e méritos, e a tendência para desfrutar de todo o progresso material e técnico-produtivo exclusivamente para o fim de predominar sobre os outros, ou em favor deste ou daquele outro imperialismo?
Eis as interrogações essenciais que a Igreja não pode deixar de se colocar, porque, de maneira mais ou menos explícita, as põem a si próprios bilhões de homens que vivem hoje no mundo. O tema do desenvolvimento e do progresso anda nas bocas de todos e aparece nas colunas de todos os jornais e nas publicações, em quase todas as línguas do mundo contemporâneo. Não esqueçamos, todavia, que este tema não contém somente afirmações e certezas, mas também perguntas e angustiosas inquietudes. Estas últimas não são menos importantes do que as primeiras. Elas correspondem à natureza dialética fundamental da solicitude do homem pelo homem, pela sua própria humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra. A Igreja, que é animada pela fé escatológica, considera esta solicitude pelo homem, pela sua humanidade e pelo futuro dos homens sobre a face da terra e, por consequência, pela orientação de todo o desenvolvimento e progresso, como um elemento essencial da sua missão, indissoluvelmente ligado a ela. E o princípio de tal solicitude encontra-o a mesma Igreja no próprio Jesus Cristo, como testemunham os Evangelhos. E é por isso mesmo que ela deseja acrescê-la continuamente nEle, ao reler a situação do homem no mundo contemporâneo, segundo os mais importantes sinais do nosso tempo.

16. Progresso ou ameaça?
Se, portanto, o nosso tempo, o tempo da nossa geração, o tempo que se vai aproximando do fim do segundo Milênio da nossa era cristã, se nos manifesta como um tempo de grande progresso, ele se apresenta também como um tempo de multiforme ameaça contra o homem, da qual a Igreja deve falar a todos os homens de boa vontade e sobre a qual ela deve constantemente dialogar com eles. A situação do homem no mundo contemporâneo, de fato, parece estar longe das exigências objetivas da ordem moral, assim como das exigências da justiça e, mais ainda, do amor social. Não se trata aqui senão daquilo que teve a sua expressão na primeira mensagem do Criador dirigida ao homem no momento em que lhe dava a terra, para que ele a “dominasse”. [100] Esta primeira mensagem de Deus foi confirmada depois, no mistério da Redenção, por Cristo Senhor. Isto foi expresso pelo Concílio Vaticano II naqueles belíssimos capítulos do seu ensino que dizem respeito à “realeza” do homem, isto é, à sua vocação para participar na função real — o “munus regale” — do mesmo Cristo. [101] O sentido essencial desta “realeza” e deste “domínio” do homem sobre o mundo visível, que lhe foi confiado como tarefa pelo próprio Criador, consiste na prioridade da ética sobre a técnica, no primado da pessoa sobre as coisas e na superioridade do espírito sobre a matéria.
É por isso mesmo que é necessário acompanhar atentamente todas as fases do progresso hodierno: é preciso, por assim dizer, fazer a radiografia de cada uma das suas etapas exatamente deste ponto de vista. Está em causa o desenvolvimento da pessoa e não apenas a multiplicação das coisas, das quais as pessoas podem servir-se. Trata-se — como disse um filósofo contemporâneo e como afirmou o Concílio — não tanto de “ter mais”, quanto de “ser mais”. [102] Com efeito, existe já um real e perceptível perigo de que, enquanto progride enormemente o domínio do homem sobre o mundo das coisas, ele perca os fios essenciais deste seu domínio e, de diversas maneiras, submeta a elas a sua humanidade, e ele próprio se torne objeto de multiforme manipulação, se bem que muitas vezes não diretamente perceptível; manipulação através de toda a organização da vida comunitária, mediante o sistema de produção e por meio de pressões dos meios de comunicação social. O homem não pode renunciar a si mesmo, nem ao lugar que lhe compete no mundo visível; ele não pode tornar-se escravo das coisas, escravo dos sistemas econômicos, escravo da produção e escravo dos seus próprios produtos. Uma civilização de feição puramente materialista condena o homem a tal escravidão, embora algumas vezes, indubitavelmente, isso aconteça contra as intenções e as mesmas premissas dos seus pioneiros. Na raiz da atual solicitude pelo homem está sem dúvida alguma este problema. E não é questão aqui somente de dar uma resposta abstrata à pergunta: quem é o homem; mas trata-se de todo o dinamismo da vida e da civilização. Trata-se do sentido das várias iniciativas da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, das premissas para numerosos programas de civilização, programas políticos, econômicos, sociais, estatais e muitos outros.
Se nós ousamos definir a situação do homem contemporâneo como estando longe das exigências objetivas da ordem moral, longe das exigências da justiça e, ainda mais, do amor social, é porque isto é confirmado por fatos bem conhecidos e por confrontos que se podem fazer e que, por mais de uma vez, já tiveram ressonância direta nas páginas das enunciações pontifícias, conciliares e sinodais. [103] A situação do homem na nossa época não é certamente uniforme, mas sim diferenciada de múltiplas maneiras. Estas diferenças têm as suas causas históricas, mas também têm uma forte ressonância ética. É assaz conhecido, de fato, o quadro da civilização consumista, que consiste num certo excesso de bens necessários ao homem e a sociedades inteiras — e aqui se trata exatamente das sociedades ricas e muito desenvolvidas — enquanto que as restantes sociedades, ao menos largos estratos destas, sofrem a fome, e muitas pessoas morrem diariamente por desnutrição ou falta de comida. Simultaneamente sucede que se dá por parte de uns certo abuso da liberdade, que está ligado precisamente a um modo de comportar-se consumista, não controlado pela ética, enquanto isso limita contemporaneamente a liberdade dos outros, isto é, daqueles que sofrem notórias carências e se veem empurrados para condições de ulterior miséria e indigência.
Este confronto, universalmente conhecido, e o contraste a que dedicaram a sua atenção, nos documentos do seu magistério, os Sumos Pontífices do nosso século, mais recentemente João XXIII assim como Paulo VI, [104] representam como que um gigantesco desenvolvimento da parábola bíblica do rico avarento e do pobre Lázaro. [105]
A amplitude do fenômeno põe em questão as estruturas e os mecanismos financeiros, monetários, produtivos e comerciais, que, apoiando-se em diversas pressões políticas, regem a economia mundial: eles se têm demonstrado como que incapazes quer de reabsorver as situações sociais injustas, herdadas do passado, quer de fazer face aos desafios urgentes e às exigências éticas do presente. Submetendo o homem às tensões por ele mesmo criadas, dilapidando, com um ritmo acelerado, os recursos materiais e energéticos e comprometendo o ambiente geofísico, tais estruturas permitem que se estendam incessantemente as zonas de miséria e, junto com esta, a angústia, a frustração e a amargura. [106]
Encontramo-nos aqui perante o grande drama, que não pode deixar ninguém indiferente. O sujeito que, por um lado, procura auferir o máximo proveito, bem como aquele que, por outro lado, paga as consequências dos danos e das injúrias, é sempre o homem. E tal drama é ainda mais exacerbado pela proximidade com os estratos sociais privilegiados e com os países da opulência, que acumulam os bens num grau excessivo e cuja riqueza se torna, muitas vezes por causa do abuso, motivo de diversos mal-estares. A isto se ajuntem a febre da inflação e a praga do desemprego: e eis outros sintomas de tal desordem moral, que se faz sentir na situação mundial e que exige por isso mesmo resoluções audaciosas e criativas, conformes com a autêntica dignidade do homem. [107]
Tal tarefa não é impossível de realizar. O princípio de solidariedade, em sentido lato, deve inspirar a busca eficaz de instituições e de mecanismos apropriados: quer se trate do setor dos intercâmbios, em que é necessário deixar-se conduzir pelas leis de uma sã competição, quer se trate do plano de uma mais ampla e imediata redistribuição das riquezas e dos controles sobre as mesmas, a fim de que os povos que se encontram em vias de desenvolvimento econômico possam, não apenas satisfazer às suas exigências essenciais, mas também progredir gradual e eficazmente.
Não será fácil avançar, porém, neste difícil caminho, no caminho da indispensável transformação das estruturas da vida econômica, se não intervier uma verdadeira conversão das mentes, das vontades e dos corações. A tarefa exige a aplicação decidida de homens e de povos livres e solidários. Com muita frequência se confunde a liberdade com o instinto do interesse individual e coletivo, ou ainda com o instinto de luta e de domínio, quaisquer que sejam as cores ideológicas de que eles se revistam. É óbvio que esses instintos existem e operam; mas não será possível ter-se uma economia verdadeiramente humana, se eles não forem assumidos, orientados e dominados pelas forças mais profundas que se encontram no homem, e que são aquelas que decidem da verdadeira cultura dos povos. E é precisamente destas fontes que deve nascer o esforço, no qual se exprimirá a verdadeira liberdade do homem, e que será capaz de assegurá-la também no campo econômico. O desenvolvimento econômico, conjuntamente com tudo aquilo que faz parte do seu modo próprio e adequado de funcionar, tem de ser constantemente programado e realizado dentro de uma perspectiva de desenvolvimento universal e solidário dos homens tomados singularmente e dos povos, conforme recordava de maneira convincente o meu Predecessor Paulo VI na Encíclica Populorum Progressio. Sem isso, a simples categoria do “progresso econômico” torna-se uma categoria superior, que passa a subordinar o conjunto da existência humana às suas exigências parciais, sufoca o homem, desagrega as sociedades e acaba por desenvolver-se nas suas próprias tensões e nos seus mesmos excessos.
É possível assumir este dever; testemunham-no os fatos certos e os resultados, que é difícil enumerar aqui de maneira mais pormenorizada. E uma coisa, contudo, é certa: na base deste campo gigantesco é necessário estabelecer, aceitar e aprofundar o sentido da responsabilidade moral, que tem de assumir o homem. Ainda uma vez e sempre, o homem. Para nós cristãos tal responsabilidade torna-se particularmente evidente, quando recordamos — e devemos recordá-lo sempre — a cena do juízo final, segundo as palavras de Cristo, referidas no Evangelho de São Mateus. [l08]
Essa cena escatológica tem de ser sempre “aplicada” à história do homem, deve ser sempre tomada como “medida” dos atos humanos, como um esquema essencial de um exame de consciência para cada um e para todos: “Tive fome e não Me destes de comer...; estava nu e não Me vestistes...; estava na prisão e não fostes visitar-Me”. [109] Estas palavras adquirem um maior cunho de admoestação ainda, se pensamos que, ao invés do pão e da ajuda cultural a novos estados e nações que estão despertando para a vida independente, algumas vezes, se lhes oferecem, não raro com abundância, armas modernas e meios de destruição, postos ao serviço de conflitos armados e de guerras, que não são tanto uma exigência da defesa dos seus justos direitos e da sua soberania, quanto sobretudo uma forma de “chauvinismo”, de imperialismo e de neo-colonialismo de vários gêneros. Todos sabemos bem que as zonas de miséria ou de fome, que existem no nosso globo, poderiam ser “fertilizadas” num breve espaço de tempo, se os gigantescos investimentos para os armamentos, que servem para a guerra e para a destruição, tivessem sido em contrapartida convertidos em investimentos para a alimentação, que servem para a vida.
Esta consideração talvez permaneça parcialmente “abstrata”; talvez permita a uma e a outra “parte” se acusarem reciprocamente, esquecendo cada qual as próprias culpas; talvez provoque mesmo novas acusações contra a Igreja.
Esta, porém, não dispondo de outras armas, senão das do espírito, das armas da palavra e do amor, não pode renunciar a pregar a Palavra, insistindo oportuna e inoportunamente. [110] Por isso, ela não cessa de solicitar a cada uma das partes e de pedir a todos, em nome de Deus e em nome do homem: Não mateis! Não prepareis para os homens destruições e extermínio! Pensai nos vossos irmãos que sofrem a fome e a miséria! Respeitai a dignidade e a liberdade de cada um!

17. Direitos do homem “letra” ou “espírito”
O nosso século tem sido até agora um século de grandes calamidades para o homem, de grandes devastações, não só materiais, mas também morais, ou melhor, talvez sobretudo morais. Não é fácil, certamente, comparar épocas e séculos sob este aspecto, uma vez que isso depende também dos critérios históricos que mudam. Não obstante, prescindido muito embora de tais comparações, importa verificar que até agora este século foi um tempo em que os homens prepararam para si mesmos muitas injustiças e sofrimentos. Este processo terá sido decididamente entravado? Em qualquer hipótese, não se pode deixar de recordar aqui, com apreço e com profunda esperança para o futuro, o esforço magnífico realizado para dar vida à Organização das Nações Unidas, um esforço que tende para definir e estabelecer os objetivos e invioláveis direitos do homem, obrigando-se os Estados-membros reciprocamente a uma observância rigorosa dos mesmos. Este compromisso foi aceito e ratificado por quase todos os Estados do nosso tempo; e isto deveria constituir uma garantia para que os direitos do homem se tornassem em todo o mundo, o princípio fundamental do empenho em prol do bem do mesmo homem.
A Igreja não precisa confirmar o quanto este problema está intimamente ligado com a sua missão no mundo contemporâneo. Ele está, com efeito, nas mesmas bases da paz social e internacional, como declararam a este propósito João XXIII, o Concílio Vaticano II e depois Paulo VI, com documentos pormenorizados. Em última análise, a paz reduz-se ao respeito dos direitos invioláveis do homem — “efeito da justiça será a paz” — ao passo que a guerra nasce da violação destes direitos e acarreta consigo ainda mais graves violações dos mesmos. Se os direitos do homem são violados em tempo de paz, isso se torna particularmente doloroso e, sob o ponto de vista do progresso, representa um incompreensível fenômeno de luta contra o homem, que não pode de maneira alguma pôr-se de acordo com qualquer programa que se autodefina “humanístico”. E qual seria o programa social, econômico, político e cultural que poderia renunciar a esta definição? Nós nutrimos a convicção profunda de que não há no mundo de hoje nenhum programa em que, até mesmo sobre a plataforma de ideologias opostas quanto à concepção do mundo, não seja posto sempre em primeiro lugar o homem.
Ora, se apesar de tais premissas, os direitos do homem são violados de diversas maneiras, se na prática somos testemunhas dos campos de concentração, da violência, da tortura, do terrorismo e de multíplices discriminações, isto deve de ser uma consequência de outras premissas que minam, ou muitas vezes quase anulam a eficácia das premissas humanísticas daqueles programas e sistemas modernos. Então se impõe necessariamente o dever de submeter os mesmos programas a uma contínua revisão sob o ponto de vista dos objetivos e invioláveis direitos do homem.
A Declaração destes direitos, juntamente com a instituição da Organização das Nações Unidas, não tinham certamente apenas a finalidade de nos apartar das horríveis experiências da última guerra mundial, mas também a finalidade de criar uma base para uma contínua revisão dos programas, dos sistemas e dos regimes, precisamente sob este fundamental ponto de vista, que é o bem do homem — digamos, da pessoa na comunidade — e que, qual fator fundamental do bem comum, deve constituir o critério essencial de todos os programas, sistemas e regimes. Caso contrário, a vida humana, mesmo em tempo de paz, está condenada a vários sofrimentos; e, ao mesmo tempo, junto com tais sofrimentos, desenvolvem-se várias formas de dominação, de totalitarismo, de neocolonialismo e de imperialismo, as quais ameaçam mesmo a convivência entre as nações. Na verdade, é um fato significativo e confirmado por mais de uma vez pelas experiências da história, que a violação dos direitos do homem anda coligada com a violação dos direitos da nação, com a qual o homem está unido por ligames orgânicos, como que com uma família maior.
Já desde a primeira metade deste século, no período em que se estavam desenvolvendo vários totalitarismos de estado, os quais — como se sabe — levaram à horrível catástrofe bélica, a Igreja havia claramente delineado a sua posição frente a estes regimes, que aparentemente agiam por um bem superior, qual é o bem do estado, enquanto que a história haveria de demonstrar que, pelo contrário, aquilo era apenas o bem de um determinado partido, que se tinha identificado com o estado. [111] Esses regimes, na realidade, haviam coartado os direitos dos cidadãos, negando-lhes o reconhecimento daqueles direitos invioláveis do homem que, pelos meados do nosso século obtiveram a sua formulação no plano internacional. Ao compartilhar a alegria de tal conquista com todos os homens de boa vontade, com todos os homens que amam verdadeiramente a justiça e a paz, a Igreja, consciente de que a “letra” somente pode matar, ao passo que só “o espírito vivifica”, [112] deve, junto com estes homens de boa vontade, continuamente se perguntar se a Declaração dos direitos do homem e a aceitação da sua “letra” significam em toda a parte também a realização do seu “espírito”. Surgem, efetivamente, receios fundados de que muito frequentemente estamos ainda longe de tal realização, e de que por vezes o espírito da vida social e pública se acha em dolorosa oposição com a declarada “letra” dos direitos do homem. Este estado de coisas, grave para as respectivas sociedades, tornaria aqueles que contribuem para determiná-lo particularmente responsáveis, perante essas sociedades e perante a história do homem.
O sentido essencial do Estado, como comunidade política, consiste nisto: que a sociedade e, quem a compõe, o povo, é soberana do próprio destino. Tal sentido não se torna uma realidade, se, em lugar do exercício do poder com a participação moral da sociedade ou do povo, tivermos de assistir à imposição do poder por parte de um determinado grupo a todos os outros membros da mesma sociedade. Estas coisas são essenciais na nossa época, em que tem crescido enormemente a consciência social dos homens e, junto com ela, a necessidade de uma correta participação dos cidadãos na vida política da comunidade, tendo em conta as reais condições de cada povo e o necessário vigor da autoridade pública. [113] Estes são, pois, os problemas de primária importância sob o ponto de vista do progresso do mesmo homem e do desenvolvimento global da sua humanidade.
A Igreja sempre tem ensinado o dever de agir pelo bem comum; e, procedendo assim, também educou bons cidadãos para cada um dos Estados. Além disso, ela sempre ensinou que o dever fundamental do poder é a solicitude pelo bem comum da sociedade; daqui dimanam os seus direitos fundamentais. Em nome precisamente destas premissas, que respeitam à ordem ética objetiva, os direitos do poder não podem ser entendidos de outro modo que não seja sobre a base do respeito pelos direitos objetivos e invioláveis do homem. Aquele bem comum que a autoridade no Estado serve, será plenamente realizado somente quando todos os cidadãos estiverem seguros dos seus direitos. Sem isto, chega-se ao descalabro da sociedade, à oposição dos cidadãos contra a autoridade, ou então a uma situação de opressão, de intimidação, de violência, ou de terrorismo, de que nos forneceram numerosos exemplos os totalitarismos do nosso século. É assim que o princípio dos direitos do homem afeta profundamente o setor da justiça social e se torna padrão para a sua fundamental verificação na vida dos Organismos políticos.
Entre estes direitos insere-se, e justamente, o direito à liberdade religiosa ao lado do direito da liberdade de consciência. O Concílio Vaticano II considerou particularmente necessário elaborar uma mais ampla Declaração sobre este tema. É o Documento que se intitula Dignitatis humanae, [114] no qual foi expressa, não somente a concepção teológica do problema, mas também a concepção sob o ponto de vista do direito natural, ou seja da posição “puramente humana”, em base àquelas premissas ditadas pela própria experiência do homem, pela razão e pelo sentido da sua dignidade. Certamente, a limitação da liberdade religiosa das pessoas e das comunidades não é apenas uma sua dolorosa experiência, mas atinge antes de tudo a própria dignidade do homem, independentemente da religião professada ou da concepção que elas tenham do mundo. A limitação da liberdade religiosa e a sua violação estão em contraste com a dignidade do homem e com os seus direitos objetivos. O Documento conciliar acima referido diz com bastante clareza o que seja tal limitação e violação da liberdade religiosa. Encontramo-nos em tal caso, sem dúvida alguma, perante uma injustiça radical em relação àquilo que é particularmente profundo no homem e em relação àquilo que é autenticamente humano. Com efeito, até mesmo os fenômenos da incredulidade, da arreligiosidade e do ateísmo, como fenômenos humanos, compreendem-se somente em relação com o fenômeno de religião e da fé. É difícil, portanto, mesmo de um ponto de vista “puramente humano”, aceitar uma posição segundo a qual só o ateísmo tem direito de cidadania na vida pública e social, enquanto que os homens crentes, quase por princípio, são apenas tolerados, ou então tratados como cidadãos de segunda categoria, e até mesmo — o que já tem sucedido — são totalmente privados dos direitos de cidadania.
É necessário, embora com brevidade, tratar também deste tema, porque ele realmente faz parte do complexo das situações do homem no mundo atual, e porque ele também está a testemunhar quanto esta situação está profundamente marcada por preconceitos e por injustiças de vários gêneros. Se me abstenho de entrar em pormenores neste campo precisamente, no qual me assistiria um especial direito e dever para fazê-lo, isso é sobretudo porque, juntamente com todos aqueles que sofrem os tormentos da discriminação e da perseguição por causa do nome de Deus, sou guiado pela fé na força redentora da cruz de Cristo. Desejo, no entanto, em virtude de meu múnus, em nome de todos os homens crentes do mundo inteiro, dirigir-me àqueles de quem, de alguma maneira, depende a organização da vida social e pública, pedindo-lhes ardentemente para respeitarem os direitos da religião e da atividade da Igreja. Não se pede nenhum privilégio, mas o respeito de um elementar direito. A atuação deste direito é um dos fundamentais meios para se aquilatar do autêntico progresso do homem em todos os regimes, em todas as sociedades e em todos os sistemas ou ambientes.

* Extraído do site do Vaticano, do dia 4 de março de 1979. Revisado por Paulo R. A. Pacheco.

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