João Paulo II
Redemptor hominis
aos veneráveis Irmãos no Episcopado
aos Sacerdotes
às Famílias religiosas
aos Filhos e Filhas da Igreja
e a todos os Homens de Boa Vontade
no início do Seu Ministério Pontifical
4 de março de 1979
II. O MISTÉRIO DA REDENÇÃO
7. No Mistério de Cristo
Entretanto, se as vias a seguir, para as quais o Concílio do nosso século orientou a Igreja, vias que nos indicou na sua primeira Encíclica o saudoso Papa Paulo VI, permanecerão de modo perdurável exatamente as vias que nós todos devemos seguir, ao mesmo tempo nesta nova fase podemos justamente interrogar-nos: Como? De que maneira será conveniente prosseguir? O que será necessário fazer, para que este novo advento da Igreja, conjugado com o já iminente fim do segundo Milênio, nos aproxime dAquele que a Sagrada Escritura chama “Pai perpétuo”, Pater futuri saeculi? [21] Esta é a pergunta fundamental que o novo Sumo Pontífice tem de se colocar, desde o momento em que aceitou, em espírito de obediência de fé, o chamado em conformidade com a ordem mais de uma vez dirigida a Pedro: “Apascenta as minhas ovelhas”; [22] o que quer dizer: “Sê pastor do meu rebanho”; e depois: “... e tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos”. [23]
É precisamente neste ponto, caríssimos Irmãos, Filhos e Filhas, que se impõe uma resposta fundamental e essencial, a saber: a única orientação do espírito, a única direção da inteligência, da vontade e do coração para nós é esta: na direção de Cristo, Redentor do homem; na direção de Cristo, Redentor do mundo. Para Ele queremos olhar, porque só nEle, Filho de Deus, está a salvação, renovando a afirmação de Pedro: “Para quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna”. [24]
Através da consciência da Igreja, tão desenvolvida pelo Concílio, através de todos os graus desta consciência, através de todos os campos de atividade onde a Igreja se afirma presente, se encontra e se consolida, devemos tender constantemente para Aquele “que é a Cabeça”, [25] para “Aquele de quem tudo provém e nós somos criados para Ele”, [26] para Aquele que é, ao mesmo tempo, “o caminho e a verdade” [27] e “a ressurreição e a vida”, [28] para Aquele ao ver o Qual vemos o Pai, [29] para Aquele, enfim, que devia ir, deixando-nos [30] — entende-se aqui a alusão à sua morte na Cruz e depois à sua Ascensão ao Céu — para que o Consolador viesse a nós e continue a vir constantemente como o Espírito da verdade. [31] NEle estão “todos os tesouros da sabedoria e da ciência” [32] e a Igreja é o seu Corpo. [33] A Igreja “em Cristo é como que um sacramento, ou sinal, e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano”; [34] e disto é Ele a fonte! Ele mesmo! Ele o Redentor!
A Igreja não cessa de ouvir as suas palavras, continuamente as relê e reconstrói com a máxima devoção todos os pormenores da sua vida. Estas palavras são escutadas também pelos não cristãos. A vida de Cristo fala ao mesmo tempo também a muitos homens que ainda não se acham em condições de repetir com Pedro: “Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo”. [35] Ele, Filho de Deus vivo, fala aos homens também como Homem: é a sua própria vida que fala, a sua humanidade, a sua fidelidade à verdade e o seu amor que a todos abraça. Fala, ainda, a sua morte na Cruz, isto é, a imperscrutável profundidade do seu sofrimento e do seu abandono. A Igreja não cessa nunca de reviver a sua morte na Cruz e a sua Ressurreição, que constituem o conteúdo da vida cotidiana da mesma Igreja. De fato, é por mandato do próprio Cristo, seu Mestre, que a Igreja celebra incessantemente a Eucaristia, encontrando nela “a fonte da vida e da santidade”, [36] o sinal eficaz da graça e da reconciliação com Deus e o penhor da vida eterna. A Igreja vive o seu mistério e nele vai haurir sem jamais se cansar, e busca continuamente as vias para tornar este mistério do seu Mestre e Senhor próximo do gênero humano: dos povos, das nações, das gerações que se sucedem e de cada um dos homens em particular, como se repetisse sempre, seguindo o exemplo do Apóstolo: “Tomei a resolução de não saber, entre vós, outra coisa, a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado”. [37] A Igreja permanece na esfera do mistério da Redenção, que se tornou precisamente o princípio fundamental da sua vida e da sua missão.
8. Redenção: renovada criação
Redentor do mundo! NEle se revelou de um modo novo, de maneira admirável, aquela verdade fundamental respeitante à criação que o Livro do Gênesis atesta quando repete mais de uma vez: Deus viu que as coisas eram boas. [38] O bem tem a sua nascente na Sapiência e no Amor. Em Jesus Cristo, o mundo visível, criado por Deus para o homem [39] — aquele mundo que, entrando nele o pecado, foi submetido à caducidade [40] — readquire novamente o vínculo originário com a mesma fonte divina da Sapiência e do Amor. Com efeito, “Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho unigênito”. [41] Assim como no homem-Adão este vínculo foi quebrado, assim no Homem-Cristo foi de novo reatado. [42] Não nos convencem, porventura, a nós homens do século vinte, as palavras do Apóstolo das gentes, pronunciadas com uma arrebatadora eloquência, acerca da “criação inteira que geme e sofre, em conjunto, as dores do parto, até ao presente”, [43] e “espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus”, [44] acerca da criação que “foi submetida à caducidade”? O imenso progresso nunca antes conhecido, que se verificou particularmente no decorrer do nosso século, no campo do domínio sobre o mundo por parte do homem, não revela acaso ele próprio e ainda por cima em grau nunca antes conhecido, aquela multiforme submissão “à caducidade”? Basta recordar aqui certos fenômenos, como, por exemplo, a ameaça do inquinamento do ambiente natural nos locais de rápida industrialização, ou então os conflitos armados que rebentam e se repetem continuamente, ou ainda as perspectivas de autodestruição mediante o uso das armas atômicas, das armas com hidrogênio e com os nêutrons e outras semelhantes e a falta de respeito pela vida dos não-nascidos. O mundo da época nova, o mundo dos voos cósmicos, o mundo das conquistas científicas e técnicas, nunca alcançadas antes, não será ao mesmo tempo o mundo que “geme e sofre” [45] e “espera ansiosamente a revelação dos filhos de Deus”? [46]
O Concílio Vaticano II, na sua penetrante análise do “mundo contemporâneo”, chegava àquele ponto que é o mais importante do mundo visível, o homem, descendo — como Cristo — até ao profundo das consciências humanas, tocando mesmo o mistério interior do homem, que na linguagem bíblica (e também não bíblica) se exprime com a palavra “coração”. Cristo, Redentor do mundo, é Aquele que penetrou, de uma maneira singular e que não se pode repetir, no mistério do homem e entrou no seu “coração”. Justamente, portanto, o mesmo Concílio Vaticano II ensina: “Na realidade, só no mistério do Verbo Encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem. Adão, de fato, o primeiro homem, era figura do futuro (Rom 5, 14), isto é, de Cristo Senhor. Cristo, que é o novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu Amor, revela também plenamente o homem ao mesmo homem e descobre-lhe a sua vocação sublime”. E depois, ainda: “Imagem de Deus invisível (Col 1, 15), Ele é o homem perfeito, que restitui aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Já que nEle a natureza humana foi assumida, sem ter sido destruída, por isso mesmo também em nosso benefício ela foi elevada a uma dignidade sublime. Porque, pela sua Encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. Trabalhou com mãos de homem, pensou com uma mente de homem, agiu com uma vontade de homem e amou com um coração de homem. Nascendo da Virgem Maria, Ele tornou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado”. [47] Ele, o Redentor do homem.
9. Dimensão divina do mistério da Redenção
Ao refletirmos novamente sobre este texto admirável do Magistério conciliar, não esqueçamos, nem sequer por um momento, que Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, se tornou a nossa reconciliação junto do Pai. [48] Ele precisamente e só Ele satisfez ao eterno amor do Pai, àquela paternidade que desde o princípio se expressou na criação do mundo, na doação ao homem de toda a riqueza do que foi criado, ao fazê-lo “pouco inferior aos anjos”, [49] enquanto criado “à imagem e à semelhança de Deus”; [50] e, igualmente satisfez àquela paternidade de Deus e àquele amor, de certo modo rejeitado pelo homem, com a ruptura da primeira Aliança [51] e das alianças posteriores que Deus “repetidas vezes ofereceu aos homens”. [52] A redenção do mundo — aquele tremendo mistério do amor em que a criação foi renovada [53] — é, na sua raiz mais profunda, a plenitude da justiça num Coração humano: no Coração do Filho Primogênito, a fim de que ela possa tornar-se justiça dos corações de muitos homens, os quais, precisamente no Filho Primogênito, foram predestinados desde toda a eternidade a se tornarem filhos de Deus [54] e chamados para a graça, chamados para o amor. A cruz no Calvário, através da qual Jesus Cristo — Homem, Filho de Maria Virgem, filho adotivo de José de Nazaré — “deixa” este mundo, é ao mesmo tempo uma nova manifestação da eterna paternidade de Deus, o Qual por Ele (Cristo) de novo se aproxima da humanidade, de cada um dos homens, dando-lhes o três vezes santo “Espírito da verdade”. [55]
Com esta revelação do Pai e efusão do Espírito Santo, que imprimem uma marca indelével no mistério da Redenção, se explica o sentido da cruz e da morte de Cristo. O Deus da criação revela-se como Deus da redenção, como Deus “fiel a si próprio”, [56] fiel ao seu amor para com o homem e para com o mundo, que já se revelara no dia da criação. E este seu amor é amor que não retrocede diante de nada daquilo que nele mesmo exige a justiça. E por isto o Filho “que não conhecera o pecado, Deus tratou-o, por nós, como pecado”. [57] E se “tratou como pecado” Aquele que era absolutamente isento de qualquer pecado, o fez para revelar o amor que é sempre maior do que tudo o que é criado, o amor que é Ele próprio, porque “Deus é amor”. [58] E sobretudo o amor é maior do que o pecado, do que a fraqueza e do que “a caducidade do que foi criado”, [59] mais forte do que a morte; é amor sempre pronto a erguer e a perdoar, sempre pronto para ir ao encontro do filho pródigo, [60] sempre em busca da “revelação dos filhos de Deus”, [61] que são chamados para a glória futura. [62] Esta revelação do amor é definida também misericórdia; [63] e tal revelação do amor e da misericórdia tem na história do homem uma forma e um nome: chama-se Jesus Cristo.
10. Dimensão humana do mistério da Redenção
O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se o não experimenta e se o não torna algo seu próprio, se nele não participa vivamente. E por isto precisamente Cristo Redentor, como já foi dito acima, revela plenamente o homem ao próprio homem. Esta é — se assim é lícito exprimir-se — a dimensão humana do mistério da Redenção. Nesta dimensão o homem reencontra a grandeza, a dignidade e o valor próprios da sua humanidade. No mistério da Redenção o homem é novamente “reproduzido” e, de algum modo, é novamente criado. Ele é novamente criado! “Não há judeu nem gentio, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher: todos vós sois um só em Cristo Jesus”. [64] O homem que quiser compreender-se a si mesmo profundamente — não apenas segundo imediatos, parciais, não raro superficiais e até mesmo só aparentes critérios e medidas do próprio ser — deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. Ele deve, por assim dizer, entrar nEle com tudo o que é em si mesmo, deve “apropriar-se” e assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para encontrar a si mesmo. Se no homem atuar este processo profundo, então ele produzirá frutos, não somente de adoração de Deus, mas também de profunda maravilha perante si próprio. Que grande valor deve ter o homem aos olhos do Criador, se “mereceu ter um tal e tão grande Redentor”, [65] se “Deus deu o seu Filho”, para que ele, o homem, “não pereça, mas tenha a vida eterna”. [66]
Na realidade, aquela profunda estupefação a respeito do valor e dignidade do homem chama-se Evangelho, isto é a Boa Nova. Chama-se também Cristianismo. Tal estupefação determina a missão da Igreja no mundo, também, e talvez mais ainda, “no mundo contemporâneo”. Tal estupefação e também persuasão e certeza, que na sua profunda raiz é a certeza da fé, mas que de um modo recôndito e misterioso vivifica todos os aspectos do humanismo autêntico, está intimamente ligada a Cristo. Ela estabelece também o lugar do mesmo Jesus Cristo — se assim se pode dizer — o seu particular direito de cidadania na história do homem e da humanidade. A Igreja, que não cessa de contemplar o conjunto do mistério de Cristo, sabe com toda a certeza da fé, que a Redenção que se verificou por meio da Cruz, restituiu definitivamente ao homem a dignidade e o sentido da sua existência no mundo, sentido que ele havia perdido em considerável medida por causa do pecado. E por isso a Redenção realizou-se no mistério pascal, que, através da cruz e da morte, conduz à ressurreição.
A tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, de modo particular, do nosso, é a de dirigir o olhar do homem e de endereçar a consciência e experiência de toda a humanidade para o mistério de Cristo, de ajudar todos os homens a ter familiaridade com a profundidade da Redenção que se verifica em Cristo Jesus. Simultaneamente, toca-se também a esfera mais profunda do homem, a esfera — queremos dizer — dos corações humanos, das consciências humanas e das vicissitudes humanas.
11. O Mistério de Cristo na base da missão da Igreja e do Cristianismo
O Concílio Vaticano II realizou um trabalho imenso, para formar aquela plena e universal consciência da Igreja, acerca da qual escrevia o Papa Paulo VI na sua primeira Encíclica. Tal consciência — ou antes autoconsciência da Igreja — forma-se “no diálogo”, que, antes de se tornar colóquio, deve voltar a própria atenção para “o outro”, ou seja para aquele com o qual queremos falar. O Concílio Ecumênico deu um impulso fundamental para se formar a autoconsciência da Igreja, apresentando-nos, de maneira adequada e competente, a visão do orbe terrestre como de um “mapa” de várias religiões. Além disto, ele demonstrou como sobre este “mapa” das religiões do mundo se sobrepõe em estratos — nunca conhecidos antes e característicos da nossa época — o fenômeno do ateísmo nas suas várias formas, a começar do ateísmo programado, organizado e estruturado em sistema político.
Quanto à religião, trata-se, antes de mais, da religião como fenômeno universal, conjunto com a história do homem desde o início; depois, das várias religiões não cristãs e, por fim, do próprio cristianismo. O documento do Concílio dedicado às religiões não cristãs é, em particular, um documento cheio de estima profunda pelos grandes valores espirituais, ou melhor, pelo primado daquilo que é espiritual, e que encontra na vida da humanidade a sua expressão na religião e, em seguida, na moralidade, que se reflete em toda a cultura. Justamente os Padres da Igreja viam nas diversas religiões como que outros tantos reflexos de uma única verdade, como que “germes do Verbo”, [67] os quais testemunham que, embora por caminhos diferentes, está contudo voltada para uma mesma direção a mais profunda aspiração do espírito humano, tal como ela se exprime na busca de Deus; e conjuntamente na busca, mediante a tensão no sentido de Deus, da plena dimensão da humanidade, ou seja, do sentido pleno da vida humana. O Concílio dedicou uma particular atenção à religião judaica, recordando o grande patrimônio espiritual que é comum aos cristãos e aos judeus, e exprimiu a sua estima para com os crentes do Islã, cuja fé se refere também a Abraão. [68]
Em virtude da abertura provocada pelo Concílio Vaticano II, a Igreja e todos os cristãos puderam alcançar uma consciência mais completa do mistério de Cristo, “mistério oculto por tantos séculos” [69] em Deus, para ser revelado no tempo, no Homem Jesus Cristo, e para se revelar continuamente, em todos os tempos. Em Cristo e por Cristo, Deus revelou-se plenamente à humanidade e aproximou-se definitivamente dela; e, ao mesmo tempo, em Cristo e por Cristo, o homem adquiriu plena consciência da sua dignidade, da sua elevação, do valor transcendente da própria humanidade e do sentido da sua existência.
Importa, pois, que nós todos — todos que somos seguidores de Cristo — nos encontremos e nos unamos em torno dEle mesmo. Esta união, nos diversos setores da vida, da tradição e das estruturas e disciplina de cada uma das Igrejas ou das Comunidades eclesiais, não poderá ser atuada sem um válido trabalho que tenda para se chegar a um conhecimento recíproco e para a remoção dos obstáculos ao longo do caminho para uma perfeita unidade. No entanto, podemos e devemos, já a partir de agora, conseguir e manifestar ao mundo a nossa unidade: no anunciar o mistério de Cristo, no tornar patente a dimensão divina e ao mesmo tempo humana da Redenção, no lutar com incansável perseverança por aquela dignidade que todos os homens alcançaram e podem alcançar continuamente em Cristo, que é a dignidade da graça da adoção divina e simultaneamente dignidade da verdade interior da humanidade, a qual — se na consciência comum do mundo contemporâneo chegou a ter um realce assim tão fundamental — para nós ainda ressalta mais à luz daquela realidade que é Ele: Jesus Cristo.
Jesus Cristo é princípio estável e centro permanente da missão que o próprio Deus confiou ao homem. E nesta missão devemos participar todos, nela devemos concentrar todas as nossas forças, uma vez que ela é mais do que nunca necessária para a humanidade do nosso tempo. E se tal missão parece encontrar na nossa época oposições maiores do que em qualquer outro tempo, então esta circunstância demonstra também que ela na nossa época é ainda mais necessária e — não obstante as oposições — mais esperada do que nunca. Aqui tocamos indiretamente naquele mistério da economia divina que uniu a salvação e a graça com a Cruz. Não foi em vão que Cristo disse alguma vez que “o reino dos céus é objeto de violência, e os violentos tornam-se seus senhores”; [70] e, ainda, que “os filhos deste mundo são mais sagazes do que os filhos da luz”. [71] Aceitemos esta admoestação de bom grado, para sermos como aqueles “violentos de Deus” que tantas vezes nos foi dado ver na história da Igreja e que descortinamos ainda hoje, a fim de nos unirmos conscientemente na grande missão, ou seja: revelar Cristo ao mundo, ajudar cada um dos homens para que se encontre nEle, ajudar as gerações contemporâneas dos nossos irmãos e irmãs, povos, nações, estados, humanidade, países ainda não desenvolvidos e países da opulência, ajudar todos, em suma, a conhecer as “imperscrutáveis riquezas de Cristo”, [72] pois estas são para todos e cada um dos homens e constituem o bem de cada um deles.
12. Missão da Igreja e liberdade do homem
Nesta união na missão, decidida sobretudo pelo mesmo Cristo, todos os cristãos devem descobrir aquilo que os une, antes de se realizar a sua plena comunhão. Esta é a união apostólica e missionária, missionária e apostólica. Graças a esta união, podemos juntos aproximar-nos do magnífico patrimônio do espírito humano, que se manifestou em todas as religiões, como diz a Declaração do Concílio Vaticano II Nostra Aetate. [73] E graças à mesma união, nos aproximaremos também de todas as culturas, de todas as concepções ideológicas e de todos os homens de boa vontade. E nos aproximaremos com aquela estima, respeito e discernimento que, desde os tempos apostólicos, distinguiam a atitude missionária e do missionário. Basta-nos recordar São Paulo e, por exemplo, o seu discurso no Areópago de Atenas. [74] A atitude missionária começa sempre por um sentimento de profunda estima para com aquilo “que há no homem”, [75] por aquilo que ele, no íntimo do seu espírito, elaborou quanto aos problemas mais profundos e mais importantes; trata-se de respeito para com aquilo que nele operou o Espírito, que “sopra onde quer”. [76] A missão não é nunca uma destruição, mas uma reassunção de valores e uma nova construção, ainda que na prática nem sempre tenha havido plena correspondência com um ideal assim tão elevado. A conversão, que da missão deve tomar início, sabemos bem que é obra da graça, na qual o homem há de encontrar-se plenamente.
Por tudo isto, a Igreja do nosso tempo dá grande importância a tudo aquilo que o Concílio Vaticano II expôs na Declaração sobre a Liberdade Religiosa, tanto na primeira como na segunda parte do Documento. [77] Sentimos profundamente o caráter compreensivo da verdade que Deus nos revelou. Damo-nos conta, em particular, do grande sentido de responsabilidade por esta verdade. A Igreja, por instituição de Cristo, dela é guarda e mestra, sendo precisamente para isso dotada de uma singular assistência do Espírito Santo, a fim de poder guardá-la fielmente e ensiná-la na sua mais exata integridade. [78]
No desempenho desta missão, olhemos para o próprio Cristo, Aquele que é o primeiro evangelizador, [79] e olhemos também para os seus Apóstolos, Mártires e Confessores. A Declaração sobre a Liberdade Religiosa ilumina, de modo bem convincente, como Cristo e, em seguida, os seus Apóstolos, ao anunciarem a verdade que não provém dos homens, mas sim de Deus — “a minha doutrina não é tão minha como daquele que me enviou”, ou seja, o Pai [80] — embora agindo com todo o vigor do espírito, conservam uma profunda estima pelo homem, pela sua inteligência, pela sua vontade, pela sua consciência e pela sua liberdade. [81] De tal modo, a própria dignidade da pessoa humana torna-se conteúdo daquele anúncio, mesmo sem palavras, mas simplesmente através do comportamento em relação à mesma pessoa livre. Um comportamento assim parece corresponder às necessidades particulares do nosso tempo. Uma vez que nem em tudo aquilo que os vários sistemas e também homens singulares veem e propagam como liberdade está de fato a verdadeira liberdade do homem, mais a Igreja, por força da sua divina missão, se torna guarda desta liberdade, que é condição e base da verdadeira dignidade da pessoa humana.
Jesus Cristo vai ao encontro do homem de todas as épocas, também do da nossa época, com as mesmas palavras que disse alguma vez: “conhecereis a verdade, e a verdade tornar-vos-á livres”. [82] Estas palavras encerram em si uma exigência fundamental e, ao mesmo tempo, uma advertência: a exigência de uma relação honesta para com a verdade, como condição de uma autêntica liberdade; e a advertência, ademais, para que seja evitada qualquer verdade aparente, toda a liberdade superficial e unilateral, toda a liberdade que não compreenda cabalmente a verdade sobre o homem e sobre o mundo. Ainda hoje, depois de dois mil anos, Cristo continua a aparecer-nos como Aquele que traz ao homem a liberdade baseada na verdade, como Aquele que liberta o homem daquilo que limita, diminui e como que despedaça essa liberdade nas próprias raízes, na alma do homem, no seu coração e na sua consciência. Que confirmação estupenda disto deram e não cessam de dar aqueles que, graças a Cristo e em Cristo, alcançaram a verdadeira liberdade e a manifestaram até em condições de constrangimento exterior!
E o próprio Jesus Cristo, quando compareceu prisioneiro diante do tribunal de Pilatos e por ele foi interrogado acerca das acusações que Lhe tinham sido feitas pelos representantes do Sinédrio, porventura não respondeu: “Para isto é que eu nasci e para isto é que eu vim ao mundo: para dar testemunho da verdade”? [83] Com tais palavras pronunciadas diante do juiz, no momento decisivo, foi como se quisesse confirmar, uma vez mais ainda, o que já havia dito em precedência: “Conhecereis a verdade, e a verdade tornar-vos-á livres”. No decorrer de tantos séculos e de tantas gerações, a começar dos tempos dos Apóstolos, não foi acaso o mesmo Jesus Cristo que tantas vezes compareceu ao lado dos homens julgados por causa da verdade, e não foi Ele para a morte, talvez, junto com homens condenados por causa da verdade? Cessa Ele, porventura, de continuamente ser o porta-voz e advogado do homem que vive “em espírito e em verdade”? [84] Do mesmo modo que não cessa de sê-lo diante do Pai, assim também continua a sê-lo em relação à história do homem. E a Igreja, por sua vez, apesar de todas as fraquezas que fazem parte da história humana, não cessa de seguir Aquele que proclamou: “Aproxima-se a hora, ou melhor, já estamos nela, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque é assim que o Pai quer os seus adoradores. Deus é espírito, e os que o adoram em espírito e verdade é que o devem adorar”. [85]
* Extraído do site do Vaticano, do dia 4 de março de 1979. Revisado por Paulo R. A. Pacheco.
Para ler a primeira parte da Redemptor hominis, clique aqui.
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